sábado, 20 de outubro de 2012

3008) Anonymous (20.10.2012)





O que é o Anonymous, ou, talvez, quem são os Anonymous?  Eles não têm nome: têm “nicks”, “usernames” ou “logins”; não têm rosto, têm máscaras de Guy Fawkes. Nos últimos anos, têm sido o pesadelo e a nêmesis de governos, polícias, corporações. Invadem saites, roubam informações secretas e as divulgam para o mundo inteiro, bloqueiam ou desfalcam contas bancárias, convocam manifestações de rua e de praça. As autoridades os chamam de neo-terroristas, mas eles nunca (ao que eu saiba) tiraram vidas humanas. Atacam a informação e a propriedade privada. São uma bomba-de-nêutrons ao contrário: fazem ruir as infra-estruturas e deixam as pessoas intactas. Estiveram presentes na Primavera Árabe, apoiaram o saite Wikileaks em suas campanhas de vazamento de informações econômicas e militares, combateram departamentos de polícia e a Igreja da Cientologia.

Os Anonymous são o novo Anarquismo – sem bombas, mas sempre infernizando a vida dos arquiduques. Uma multidão espontânea, não-coordenada, sem líderes; na verdade são um conjunto de subgrupos de hackers e agitadores, que agem cada qual por conta própria e mandam a conta ser cobrada à griffe. Num artigo na revista Wired de julho (http://bit.ly/LVLPbf) Quinn Norton analisa esse aspecto sem-forma do movimento. Em junho de 2011 o FBI prendeu e cooptou “Sabu”, um ativista de intensa participação; até que isto foi revelado em março de 2012, “Sabu” entregou uma infinidade de companheiros. Isto quebrou a espinha do movimento? De jeito nenhum. Nos Anonymous, nenhum indivíduo é insubstituível. Conan Doyle dizia que nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos. Os Anonymous parecem ser uma corrente que só pode ser quebrada se todos os seus elos o fôrem, simultaneamente.

Quinn Norton comenta que o grupo é uma “do-ocracy”, uma “fazer-cracia”, onde tudo converge para ações específicas: “indivíduos propõem ações, outros se juntam a eles ou não, e depois a bandeira dos Anonymous é hasteada sobre o resultado. Não há ninguém para dar a permissão, nenhuma promessa de louvor ou de crédito, portanto cada ação deve ser sua própria recompensa”. É um anarquismo eletrônico, sem líderes, não hierárquico, não vertical. Ordens são dadas e obedecidas dependendo do contexto – quem obedece hoje pode estar mandando amanhã e obedecendo de novo no mês que vem. Uma combinação de brodagem com ativismo. Até hoje, quem entrava na política o fazia via política estudantil ou política sindical, até chegar na política partidária. Agora há uma geração inteira na faixa dos 15-20 anos que entra na política pela via do anarquismo eletrônico. Sei que nada será como antes, amanhã.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

3007) A glória secreta (19.10.2012)




(Saul Steinberg)


Fala-se que no Oriente há uma cordilheira de montanhas de calcário escavadas por dentro, formando uma colmeia de galerias. Vive ali um povo frugal e contemplativo. Seus poetas diferem dos de outros lugares pelo fato de que não escrevem: compõem  suas obras mentalmente, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta. Exploradores e turistas europeus já foram admitidos às câmaras internas onde eles vivem sem jamais saírem, alimentados e mantidos pela comunidade.

Lord Gregson informa, em Journeys Through the Lands of the Sun, que foi conduzido ao longo de um corredor por um guia que lhe recomendava silêncio. Os corredores cavados na pedra são baixos, e um europeu precisa curvar-se para atravessá-los. No fim, numa câmara circular com uns seis metros de diâmetro, via-se uma esteira simples, onde um homem estava sentado. Quando Gregson entrou, ele se servia de água de uma bilha, num caneco de barro. Gregson e o guia se sentaram; o homem não pareceu dar pela sua presença. Ficou concentrado, as mãos pousadas sobre os joelhos, e depois de meia hora fechou os olhos e recitou uma longa sequência de frases que deixaram o guia emocionado. Ele explicou depois a Gregson que o homem tinha contado o reencontro entre um homem e seu cavalo. Os dois haviam se perdido numa batalha, muito tempo atrás, e nesse dia o cavalo, reconhecendo o guerreiro no meio de um curral cheio de gente e animais, galopou até ele e se ajoelhou aos seus pés.

Criam histórias assim, para si e para ninguém, ou melhor, para os curiosos (em geral crianças e velhos) que se dão o trabalho de visitá-los. Não têm o direito de escrever, porque escrever seria partir o fio de inspiração que liga o poema ao poeta. O poema (diz aquele povo) pertence ao corpo do poeta, nasce nele, deve morrer com ele. Fala-se que algumas tribos, mais radicais, cortam a língua dos poetas para que nem mesmo a palavra falada quebre esse vínculo.

Isso nos lembra de um dos Buendía de Garcia Márquez, que esculpia peixinhos de ouro delicadamente ourivesados, durante meses, e quando terminava uma dúzia derretia todos e recomeçava. Lembra também o que escreveu Arthur Machen em A glória secreta, quando fala que Cristóvão Colombo, ao descobrir a América, deveria ter jogado ao mar seus tripulantes, voltado sozinho para a Europa e fruído em silêncio, até morrer, seu maravilhoso segredo. E nos permite pensar em civilizações antigas cujas principais conquistas tenham sido do pensamento e do espírito, e cuja existência desconhecemos porque deixaram poucas ruínas físicas, assim como tantos animais invertebrados não deixam fósseis que comprovem sua passagem pela Terra.



3006) Pobre com carro (18.10.2012)



(Pawla Kuczynskiego)


Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Talvez seja por isto que a posse de um automóvel enche de lágrimas felizes os olhos de tantos brasileiros. Desde os primeiros cambaleios infantis esses pobres diabos são induzidos a puxar por um cordão uma traquitana qualquer com quatro rodas e a produzir onomatopéias tipo rom-rom-rom e pi-biiit. 

Para milhões desses desventurados, o carro torna-se o mais multifuncional dos símbolos. Ele é rito de passagem para o mundo adulto, é diploma de ascensão social, é triunfo tecnológico sobre o Espaçotempo, é alcova sobre rodas, é escafandro protetor contra os esbarrões da plebe, é talismã semiótico, é prótese locomotora em quatro dimensões... 

O verbo ser é um conceito abstrato, metafísico, mas ganha carne, osso e metal com este sinônimo reluzente: “ter um carro”.

Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho – como se tivesse poucos).  

E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. 

Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”.  Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.

O saite “Livable Streets” (http://bit.ly/1V86RK) faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espaço humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos. 

A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda-para-abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.






quarta-feira, 17 de outubro de 2012

3005) "Breaking Bad" (17.10.2012)




Esta série de TV está em sua quinta temporada nos EUA. (No Brasil, passa no Canal AXN.) Já vi as duas primeiras e estou vendo (a conta-gotas) a terceira. A vantagem de ver as séries com atraso é não ter que esperar uma semana pelo próximo episódio; meu filho baixa e a gente faz uma maratona de dois por noite. Breaking Bad é a história de Walter White, um professor de química, tímido e bundão, que ao saber que está com câncer e tem somente um ano de vida decide fabricar e vender drogas (secretamente) para deixar um pé-de-meia para a família. O diferencial de Walter é que ele é um químico dos mais CDF, e a metanfetamina que ele fabrica é de uma pureza demolidora. Ele e seu “assistente”, um ex-aluno meio rebelde e meio desnorteado, açambarcam o mercado daquela região fronteiriça com o México. onde a história se passa.

A série se vale principalmente de um excelente roteiro e de atores encaixadíssimos nos papéis. Cada personagem tem uma história de vida suficientemente variada e complexa para proporcionar reviravoltas a qualquer momento, e um dos prazeres da série é ver como tudo se encaixa, e como certos fatos têm uma mecânica de tragédia grega – a gente “canta a pedra” com muita antecedência e fica roendo as unhas à espera da sucessão de catástrofes em que se transforma a vida de Walter (o ótimo ator Bryan Cranston) em sua tentativa de levar uma vida dupla de pai de família respeitável e chefão do tráfico nas horas vagas. O título, acho, significa algo como “Chutando o pau da barraca e virando um caba ruim”.

Há uma leve tintura de David Lynch em certas imagens inesperadas, surrealistas, que depois são justificadas dentro da narrativa. A cidade onde tudo se passa, Albuquerque (Novo México), é uma espécie de Campina Grande, com tamanho suficiente para o sujeito ter uma vida dupla sem ser descoberto, mas não tão grande que ele não esbarre com conhecidos nas horas mais impróprias. Walter é um Jekyll-e-Hyde, um obsessivo capaz de destruir vidas humanas para garantir o futuro da esposa, do filho com leve paralisia cerebral e do bebê que nasce durante essa confusão toda. Os chefões são personagens fascinantes,  cheios de complexidade e de nuances, servidos por excelentes diálogos e uma narrativa de cenas curtas, secas, que vão direto no osso. É o mundo da droga fabricada e vendida por caras que jamais a usariam, porque não são malucos. “Eles são adultos, fazem isso por livre arbítrio”, diz um fabricante. Esta crítica ao nosso conceito ingênuo de liberdade é um dos aspectos mais desconfortáveis dessa história brutal, cômica, cínica, emotiva, cruel. Um dos melhores “filmes” sobre drogas. 


terça-feira, 16 de outubro de 2012

3004) O mundo não acabou (16.10.2012)




Enquanto restar um único jornal capaz de publicar a manchete “O mundo acabou!”, o mundo não terá acabado. Notícias sobre o fim do mundo são um passatempo a mais dos jornalistas, porque a toda hora, em algum país, tem um sujeito meio desnorteado interpretando febrilmente sinais aleatórios e dizendo que o Fim está próximo. Como aconteceu agora em Teresina, onde o ex-zelador Luís Pereira dos Santos conseguiu reunir um grupo de 100 pessoas firmemente convencidas de que ele dizia a verdade ao profetizar que o mundo acabaria no dia 12 de outubro. Luís largou o emprego, se desfez dos seus pertences, atraiu essa multidãozinha de crentes e mandou que todos se preparassem. O mundo mais uma vez recusou-se a se acabar e Luís acabou preso. Segundo ele, Deus resolveu fazê-lo passar por uma provação e impediu que o mundo acabasse, apenas para castigá-lo.

Está tudo aí: a megalomania (tudo que Deus faz é por causa dele), a visão do final apocalíptico, a quebra das normas sociais (as pessoas largaram tudo e foram amontoadas em duas casas, as crianças abandonaram a escola), a busca inconsciente da simetria (“Jesus enviou anjos aos quatro cantos”) e a regurgitação do visionarismo bíblico, uma das formas mais poderosas de aliciamento do inconsciente coletivo (“haverá choro e ranger de dentes”, “noites de trevas”, “a Besta sairá do abismo”). No dia aprazado, o mundo continuou indiferente a eles (em geral, essas coisas ocorrem a quem é tratado com indiferença pelo mundo) e a polícia foi lá desfazer a “arca”, com medo de que houvesse distribuição coletiva de veneno (como ocorreu com a seita do pastor Jim Jones, na Jamaica).

Luís é doido? Um pouco mais do que eu, que há alguns anos estou vendo sinais do fim do mundo por toda parte. (Até quando os governos conseguirão fabricar trilhões de dólares para saciar a Besta Especulativa? Até quando devastaremos o planeta sem que a rebordosa caia sobre as cabeças dos nossos filhos e netos?). Como não sou doido, faço de conta que o mundo não acabará nunca e fico aqui escrevendo meus artigos, abrindo minha cerveja e acompanhando o Campeonato Brasileiro. Luís pertence àquela classe social cuja existência é uma luta perpétua contra o afogamento. Fim do mundo é apenas descer mais um degrau. A classe média se diverte com o calendário maia porque está confiante de que agora os ventos sopram ao seu favor, e pode brincar de ter medo. Por baixo dela, existem os eternos sobreviventes provisórios do Moedor de Gente, que se agarra na Bíblia como a uma boia salva-vidas.  Para eles, o mundo acaba todo dia e recomeça todo dia, e não se sabe qual das duas coisas é mais terrível.


domingo, 14 de outubro de 2012

3003) O fantasma que envelheceu (14.10.2012)




Fantasmas não existem num plano ultraterreno, invulneráveis ao tempo.  A prova disso pôde ser constatada na casa de D. Rigoberta Agra, na av. Floriano Peixoto, perto da catedral. É uma das primeiras mansões “art-nouveau” da cidade, construída na era opulenta do algodão. 

Ali morreu de uma febre, com três anos, o pequeno Gilbertinho – um golpe que abalou e finalmente dispersou a família. D. Rigoberta foi a primeira a avistá-lo, anos depois, brincando com soldadinhos invisíveis num canto do salão. Correu para abraçá-lo e desmaiou. 

As aparições se sucederam numa média de duas ou três por ano. A arrumadeira, D. Lígia, o avistou um dia entretido com um livro de Monteiro Lobato. Aprendera a ler sozinho. Viram-no depois de calção, chutando recursivamente uma bola de encontro à parede dos fundos. Nunca conseguiram aproximar-se dele, que desaparecia.

Foram rezados terços e novenas, foi aspergida água benta, mas D. Rigoberta afirmava que o menino era feliz; deixassem-no viver em paz os pedacinhos daquela vida que lhe coube. 

Gilbertinho continuou crescendo; em breve já era um rapaz, sentado pensativo sobre a balaustrada. Gostava de observar o ir e vir das pessoas rumo à esquina da Maciel Pinheiro, e não perdia o corso durante o carnaval.  Jamais transpunha os limites da mansão, onde parecia residir a fonte oculta de força que o mantinha. D. Rigoberta faleceu, e à saída do féretro Gilberto, nessa época já de bigode, foi visto por trás da janela do segundo andar.

A casa ficou com outro neto, Valfredo, quando este casou com Silvana. Em algumas cartas ele mencionou que Gilberto agora dava preferência aos quartos de hóspedes, eternamente vazios, e opinou que a presença humana o incomodava. 

Percebeu também que Gilberto trajava roupas de acordo com o figurino do momento, e teorizou (gostava de ler teosofia, ocultismo) que a aparência física de um fantasma é criada por nós mesmos, com farrapos de memória, quando sentimos sua presença – que é necessariamente imaterial e invisível.  “Gilberto está aqui, mas a imagem que percebemos só existe em nós, como as cores do arco-íris”, afirmou ele numa palestra que fez no Encontro Para a Nova Consciência.

Valfredo e Silvana envelheceram. Gilberto também. Nas últimas vezes tinha a barba toda branca e caminhava com dificuldade. 

De acordo com os registros da família, a última pessoa a avistá-lo foi a filha do casal, Thayssa, que o viu várias vezes cochilando sentado na grama do jardim, entre as flores. O mesmo lugar onde perdura hoje, principalmente ao anoitecer, uma luminosidade sem forma, pairando como um fogo-fátuo ou como o reflexo, numa vidraça distante, de um sol que já se pôs.


sábado, 13 de outubro de 2012

3002) Lionel Messi (13.10.2012)




Ele tem sido eleito o melhor jogador do mundo, e mesmo que não volte a sê-lo este ano isto não faz diferença. Continuará jogando o mesmo futebol brilhante que joga há anos. 

O argentino Messi mostra mais uma vez o quanto o talento é uma coisa única, pessoal, intransferível. Ninguém nunca jogou como ele; e o mesmo pode ser dito de Pelé, Maradona, Platini, Beckenbauer, Di Stefano, Leônidas, Heleno de Freitas. Podemos até comparar o estilo de A com o de B, mas cada um deles tem qualidades e limitações que estão ausentes no outro. 

Messi e Maradona são argentinos, canhotos, baixinhos, velozes; tanto armam quanto são artilheiros; driblam com esfuziante facilidade, finalizam com variedade desconcertante. Parecidos – e diferentíssimos.

O saite ESPN publicou uma longa reportagem de Wright Thompson (http://es.pn/UHBxKc) sobre a complicada relação de Messi com sua cidade natal, Rosário. 

Diz o jornalista que rodou um dia inteiro na cidade sem encontrar a menor referência a Messi, nem mesmo no "VIP", um bar-restaurante pertencente à família dele. Não há estátuas, nem fotos nas vitrines, nada. 

Num bar temático sobre esporte, perto da rua onde ele foi criado, as janelas têm fotos de Muhammad Ali, Maria Sharapova e Rafael Nadal. Thompson inicia então um trabalho detetivesco para rastrear a razão dessa indiferença.

Messi despontou num time infantil chamado ”A Máquina de 87” (o ano em que todos os jogadores nasceram), e que perdeu apenas um jogo durante quatro anos. Os outros garotos cresceram; Messi não. O Newell’s Old Boys investiu durante algum tempo num tratamento hormonal, mas depois desistiu, e o pai de Messi o levou para o Barcelona com 13 anos. 

Este breve resumo reproduz a história de milhares de meninos (brasileiros inclusive) no mercado da bola de hoje. Todos são bons; a Europa dificilmente compra um adolescente perna-de-pau. Todos são arrancados da família e do país antes de virarem gente. 

Messi não se sente à vontade em Buenos Aires; e quando retorna a Rosário, encontra-se apenas com a família e com os ex-companheiros da “Máquina de 87”. O resto da cidade o ignora. Por que? “Nunca ganhou nada para a Argentina”, resmunga com desprezo um torcedor.

Esta é (segundo Thompson) a maior diferença entre Messi e Maradona. Maradona nunca retorna à favela onde foi criado, mas como despontou como craque no próprio país e lhe deu uma Copa, é considerado um Deus. 

Messi é tímido, caladão, ausente, e sem uma bola nos pés parece um autista. “Estrangeiro aqui como em toda parte”, sua biografia fraturada lhe deu o destino de sentir-se em casa apenas quanto pisa no gramado, e de saber quem é apenas quando a bola chega aos seus pés.








sexta-feira, 12 de outubro de 2012

3001) Em tradução livre (12.10.2012)




Ridicularizar erros de tradutores é um passatempo informal dos resenhadores de livros. Como me incluo em ambas as categorias, posso proclamar minha neutralidade. Ou, melhor ainda, meu completo envolvimento com os dois lados desse cabo-de-guerra. 

Traduzir não é uma ciência exata, e nem chega a ser uma ciência – é uma arte a mais na periferia da literatura. (Só nos resta lutar por um mundo onde a resenha de livros seja feita como arte também.)

Muitas pessoas de fora do mundo literário têm uma visão engenheira do que seja traduzir. Para elas, há uma correspondência ponto-a-ponto entre quaisquer duas línguas, de modo que basta ir ao dicionário e copiar o ponto que corresponde a cada palavra ou expressão do texto original. 

Na verdade, o que temos é uma nuvem turbilhonante de significados instáveis, em inglês ou russo, e a tarefa de produzir uma nuvem de dinâmica parecida, em português. O significado é uma resposta evocada na memória verbal de cada indivíduo por uma palavra ou expressão. 

Ninguém tem dois repertórios iguais, e um dos milagres da Civilização, mais do que a eletricidade ou o cimento armado, é o fato de que sejamos capazes de nos entender quando falamos. Isso se deve talvez ao fato de que dois terços de nossas comunicações verbais são uma imensa reiteração do óbvio, do visível e do já sabido.

Em seu blog Todo Prosa, Sérgio Rodrigues anuncia o Prêmio Nobel concedido ao chinês Mo Yan, cita seu livro Life and death are wearing me out e diz: “Algo como ‘A vida e a morte estão acabando comigo’”. 

Esse ‘algo como’ é a típica linguagem defensiva (equivalente a dizer “Em tradução livre: ...”) com que a gente se protege quando os engenheiros da língua, de Webster em punho, questionam a expressão usada. Que aliás me parece correta, e eu não traduziria por outra – embora alguém pudesse preferir, sei lá, “estão me matando aos poucos”, ou, paraibanamente, “estão me deixando numa peínha de nada”.

Tradução livre é o álibi que invocamos quando, escrevendo às pressas, jogamos no papel nosso primeiro impulso verbal de reconstituição em português do que acabamos de ler, sem ligar para os regulamentos. 

Toda tradução deveria ser livre. Ser livre não garante que seja a tradução correta, nem que seja a melhor tradução; mas não ser livre também não garante coisíssima nenhuma. 

Quando o tradutor joga a toalha e diz: “É algo como...”, seu único e fugaz consolo é pensar que o autor original, seja Mo Yan ou Marcel Proust, tinha algo turbilhonando em seu cérebro, e, depois de muita luta em busca das palavras mais evocativas, da melhor cadência, da melhor arquitetura sintática, resignou-se também a dizer: “É algo como...”.









quinta-feira, 11 de outubro de 2012

3000) O máquina de escrever (11.10.2012)



Volta e meia a imprensa faz matérias com um sujeito porque ele publica cinco livros por ano. Não entendo essa admiração, porque se me pagassem bem eu publicaria não cinco, mas dez.  Quem publica livros em excesso pertence sem dúvida à escola asimoviana do “Revisar, nunca!”.  Isaac Asimov gabava-se de escrever um conto do começo ao fim sem voltar atrás, e quando escrevia “The End” no final colocava as páginas num envelope e as remetia para uma revista. Segundo ele, o sujeito que fica agonizando durante uma semana em cima de uma frase, procurando a forma ideal, nunca vai publicar o livro, e eu atesto que é verdade, oferecendo a mim mesmo como o melhor exemplo. (Já que nunca alcançarei sucesso popular, persigo a perfeição, que é mais acessível.) O problema é que nem todos, aliás bem poucos, têm um primeiro-texto tão limpo, tão claro e tão bem acabado quanto o de Asimov.  Tenha os defeitos que tiver (e tem vários), o texto do Doutor é profissionalmente impecável.

Não sei se é o caso de James Patterson, que um artigo de Danilo Venticinque na revista Época aponta como o escritor mais bem pago do mundo.  Diz ele que os 102 livros de Patterson “venderam 220 milhões de exemplares e o levaram 63 vezes à respeitada lista dos mais vendidos do The New York Times – um recorde na história do jornal”. Descontando o fato de que não tenho a mínima confiança nessas listas de “mais vendidos” da imprensa (são todas fajutas), é um número interessante. Patterson lançou 14 livros em 2011. Como ele consegue?

Nas telenovelas, um autor centraliza o enredo, cria os personagens, e uma equipe fica encarregada do trabalho braçal de escrever as cenas linha por linha. Alexandre Dumas trabalhava assim. O autor é o capitão do navio, que determina o curso, e tem sempre em mente todas as variáveis, para tomar as decisões estratégicas; o redator é o cara a quem cabe escrever a cena da briga ou a cena do namoro, de acordo com as instruções recebidas. Edgar Wallace e Erle Stanley Gardner, mestres do romance policial, ditavam os capítulos no gravador e mandavam datilografar. São autores que funcionam bem em voz alta. Outros preferem trabalhar em dupla: Ellery Queeen é o pseudônimo de Frederick Dannay, que escrevia sinopses detalhadíssimas de 40 páginas, e Manfred Lee, que a partir delas escrevia as cenas, as ações, o diálogo.

Quando um sujeito faz 10 romances por ano isso quer dizer apenas que ele descobriu o formato ideal de trabalho para si próprio. Se os livros são bons ou ruins, é outra questão. O importante é que os livros sejam escritos e publicados, até porque só depois disso é que se pode avaliar se são bons ou ruins.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

2999) A canção ou o disco (10.10.2012)



Um aspecto interessante da criação artística é a importância das obras que são na verdade um conjunto, um feixe de obras menores.  Eu sempre digo aos jovens poetas que a obra de arte é o poema, e não o livro de poemas. Cada poema deve ser trabalhado para si mesmo, sem pensar em mais nada, a não ser o que está sendo dito e como está sendo dito. Quando vamos organizar um livro de poemas, no entanto, é preciso harmonizar essas obras, encontrar um conjunto com variedade, que seja interessante e produza uma impressão forte no leitor. O livro de poemas é uma obra associativa; a gente não o escreve, apenas o organiza em função de um material já existente.

O mesmo se dá com o livro de contos e com o álbum de canções.  A crítica de rock já debateu muito o fato de que quando os Beatles surgiram o veículo das canções de rock era o “compacto” ou “single”, e que um LP ou álbum era um mero empacotamento de 12 canções. Os Beatles foram os primeiros que viram o álbum como um conjunto a ser trabalhado, e criaram o “álbum conceitual”, onde o perfil e a idéia central eram concebidos em primeiro lugar, e depois eram escolhidas ou compostas as canções que iriam corresponder a esse conceito; o exemplo típico é Sgt. Pepper’s.

Na música tivemos momentos em que se alternaram a canção e o álbum como produtos comerciais e como obras de arte. Na literatura, no entanto, o conto raramente foi um produto comercial por si só. Como obra de arte, ele cedo estabeleceu sua importância; mas não como produto. Nenhum leitor comprava um conto: comprava uma revista de contos, ou um livro de contos. A transação comercial do conto existia entre, p. ex., o autor e o editor de uma revista; mas o público só tinha a opção de comprar um conto comprando uma obra coletiva que o incluía.

Agora, com a publicação digital, isto está mudando. No saite de muitas editoras e de livrarias virtuais como a Amazon, pode-se comprar um conto isolado por 0.99 ou 1.99 dólares, o que, dependendo do tamanho e da qualidade da obra, é um ótimo preço. Muitas vezes precisamos ler um conto específico de um autor mas ele só está disponível num volume de 400 páginas que custa 65 reais. Eu pagaria satisfeito 5 e até 10 reais para ler um conto que preciso ler urgentemente, até por motivos de trabalho (inclusão numa antologia, citação num ensaio, etc.). A existência de um mercado específico de contos nunca foi tão possível quanto agora. Seu único defeito é que pode afunilar o mercado aumentando a popularidade dos contos famosos e deixando na obscuridade os contos menos conhecidos, que antes se beneficiavam da inclusão em livros para serem descobertos pelo leitor.