terça-feira, 16 de outubro de 2012

3004) O mundo não acabou (16.10.2012)




Enquanto restar um único jornal capaz de publicar a manchete “O mundo acabou!”, o mundo não terá acabado. Notícias sobre o fim do mundo são um passatempo a mais dos jornalistas, porque a toda hora, em algum país, tem um sujeito meio desnorteado interpretando febrilmente sinais aleatórios e dizendo que o Fim está próximo. Como aconteceu agora em Teresina, onde o ex-zelador Luís Pereira dos Santos conseguiu reunir um grupo de 100 pessoas firmemente convencidas de que ele dizia a verdade ao profetizar que o mundo acabaria no dia 12 de outubro. Luís largou o emprego, se desfez dos seus pertences, atraiu essa multidãozinha de crentes e mandou que todos se preparassem. O mundo mais uma vez recusou-se a se acabar e Luís acabou preso. Segundo ele, Deus resolveu fazê-lo passar por uma provação e impediu que o mundo acabasse, apenas para castigá-lo.

Está tudo aí: a megalomania (tudo que Deus faz é por causa dele), a visão do final apocalíptico, a quebra das normas sociais (as pessoas largaram tudo e foram amontoadas em duas casas, as crianças abandonaram a escola), a busca inconsciente da simetria (“Jesus enviou anjos aos quatro cantos”) e a regurgitação do visionarismo bíblico, uma das formas mais poderosas de aliciamento do inconsciente coletivo (“haverá choro e ranger de dentes”, “noites de trevas”, “a Besta sairá do abismo”). No dia aprazado, o mundo continuou indiferente a eles (em geral, essas coisas ocorrem a quem é tratado com indiferença pelo mundo) e a polícia foi lá desfazer a “arca”, com medo de que houvesse distribuição coletiva de veneno (como ocorreu com a seita do pastor Jim Jones, na Jamaica).

Luís é doido? Um pouco mais do que eu, que há alguns anos estou vendo sinais do fim do mundo por toda parte. (Até quando os governos conseguirão fabricar trilhões de dólares para saciar a Besta Especulativa? Até quando devastaremos o planeta sem que a rebordosa caia sobre as cabeças dos nossos filhos e netos?). Como não sou doido, faço de conta que o mundo não acabará nunca e fico aqui escrevendo meus artigos, abrindo minha cerveja e acompanhando o Campeonato Brasileiro. Luís pertence àquela classe social cuja existência é uma luta perpétua contra o afogamento. Fim do mundo é apenas descer mais um degrau. A classe média se diverte com o calendário maia porque está confiante de que agora os ventos sopram ao seu favor, e pode brincar de ter medo. Por baixo dela, existem os eternos sobreviventes provisórios do Moedor de Gente, que se agarra na Bíblia como a uma boia salva-vidas.  Para eles, o mundo acaba todo dia e recomeça todo dia, e não se sabe qual das duas coisas é mais terrível.


domingo, 14 de outubro de 2012

3003) O fantasma que envelheceu (14.10.2012)




Fantasmas não existem num plano ultraterreno, invulneráveis ao tempo.  A prova disso pôde ser constatada na casa de D. Rigoberta Agra, na av. Floriano Peixoto, perto da catedral. É uma das primeiras mansões “art-nouveau” da cidade, construída na era opulenta do algodão. 

Ali morreu de uma febre, com três anos, o pequeno Gilbertinho – um golpe que abalou e finalmente dispersou a família. D. Rigoberta foi a primeira a avistá-lo, anos depois, brincando com soldadinhos invisíveis num canto do salão. Correu para abraçá-lo e desmaiou. 

As aparições se sucederam numa média de duas ou três por ano. A arrumadeira, D. Lígia, o avistou um dia entretido com um livro de Monteiro Lobato. Aprendera a ler sozinho. Viram-no depois de calção, chutando recursivamente uma bola de encontro à parede dos fundos. Nunca conseguiram aproximar-se dele, que desaparecia.

Foram rezados terços e novenas, foi aspergida água benta, mas D. Rigoberta afirmava que o menino era feliz; deixassem-no viver em paz os pedacinhos daquela vida que lhe coube. 

Gilbertinho continuou crescendo; em breve já era um rapaz, sentado pensativo sobre a balaustrada. Gostava de observar o ir e vir das pessoas rumo à esquina da Maciel Pinheiro, e não perdia o corso durante o carnaval.  Jamais transpunha os limites da mansão, onde parecia residir a fonte oculta de força que o mantinha. D. Rigoberta faleceu, e à saída do féretro Gilberto, nessa época já de bigode, foi visto por trás da janela do segundo andar.

A casa ficou com outro neto, Valfredo, quando este casou com Silvana. Em algumas cartas ele mencionou que Gilberto agora dava preferência aos quartos de hóspedes, eternamente vazios, e opinou que a presença humana o incomodava. 

Percebeu também que Gilberto trajava roupas de acordo com o figurino do momento, e teorizou (gostava de ler teosofia, ocultismo) que a aparência física de um fantasma é criada por nós mesmos, com farrapos de memória, quando sentimos sua presença – que é necessariamente imaterial e invisível.  “Gilberto está aqui, mas a imagem que percebemos só existe em nós, como as cores do arco-íris”, afirmou ele numa palestra que fez no Encontro Para a Nova Consciência.

Valfredo e Silvana envelheceram. Gilberto também. Nas últimas vezes tinha a barba toda branca e caminhava com dificuldade. 

De acordo com os registros da família, a última pessoa a avistá-lo foi a filha do casal, Thayssa, que o viu várias vezes cochilando sentado na grama do jardim, entre as flores. O mesmo lugar onde perdura hoje, principalmente ao anoitecer, uma luminosidade sem forma, pairando como um fogo-fátuo ou como o reflexo, numa vidraça distante, de um sol que já se pôs.


sábado, 13 de outubro de 2012

3002) Lionel Messi (13.10.2012)




Ele tem sido eleito o melhor jogador do mundo, e mesmo que não volte a sê-lo este ano isto não faz diferença. Continuará jogando o mesmo futebol brilhante que joga há anos. 

O argentino Messi mostra mais uma vez o quanto o talento é uma coisa única, pessoal, intransferível. Ninguém nunca jogou como ele; e o mesmo pode ser dito de Pelé, Maradona, Platini, Beckenbauer, Di Stefano, Leônidas, Heleno de Freitas. Podemos até comparar o estilo de A com o de B, mas cada um deles tem qualidades e limitações que estão ausentes no outro. 

Messi e Maradona são argentinos, canhotos, baixinhos, velozes; tanto armam quanto são artilheiros; driblam com esfuziante facilidade, finalizam com variedade desconcertante. Parecidos – e diferentíssimos.

O saite ESPN publicou uma longa reportagem de Wright Thompson (http://es.pn/UHBxKc) sobre a complicada relação de Messi com sua cidade natal, Rosário. 

Diz o jornalista que rodou um dia inteiro na cidade sem encontrar a menor referência a Messi, nem mesmo no "VIP", um bar-restaurante pertencente à família dele. Não há estátuas, nem fotos nas vitrines, nada. 

Num bar temático sobre esporte, perto da rua onde ele foi criado, as janelas têm fotos de Muhammad Ali, Maria Sharapova e Rafael Nadal. Thompson inicia então um trabalho detetivesco para rastrear a razão dessa indiferença.

Messi despontou num time infantil chamado ”A Máquina de 87” (o ano em que todos os jogadores nasceram), e que perdeu apenas um jogo durante quatro anos. Os outros garotos cresceram; Messi não. O Newell’s Old Boys investiu durante algum tempo num tratamento hormonal, mas depois desistiu, e o pai de Messi o levou para o Barcelona com 13 anos. 

Este breve resumo reproduz a história de milhares de meninos (brasileiros inclusive) no mercado da bola de hoje. Todos são bons; a Europa dificilmente compra um adolescente perna-de-pau. Todos são arrancados da família e do país antes de virarem gente. 

Messi não se sente à vontade em Buenos Aires; e quando retorna a Rosário, encontra-se apenas com a família e com os ex-companheiros da “Máquina de 87”. O resto da cidade o ignora. Por que? “Nunca ganhou nada para a Argentina”, resmunga com desprezo um torcedor.

Esta é (segundo Thompson) a maior diferença entre Messi e Maradona. Maradona nunca retorna à favela onde foi criado, mas como despontou como craque no próprio país e lhe deu uma Copa, é considerado um Deus. 

Messi é tímido, caladão, ausente, e sem uma bola nos pés parece um autista. “Estrangeiro aqui como em toda parte”, sua biografia fraturada lhe deu o destino de sentir-se em casa apenas quanto pisa no gramado, e de saber quem é apenas quando a bola chega aos seus pés.








sexta-feira, 12 de outubro de 2012

3001) Em tradução livre (12.10.2012)




Ridicularizar erros de tradutores é um passatempo informal dos resenhadores de livros. Como me incluo em ambas as categorias, posso proclamar minha neutralidade. Ou, melhor ainda, meu completo envolvimento com os dois lados desse cabo-de-guerra. 

Traduzir não é uma ciência exata, e nem chega a ser uma ciência – é uma arte a mais na periferia da literatura. (Só nos resta lutar por um mundo onde a resenha de livros seja feita como arte também.)

Muitas pessoas de fora do mundo literário têm uma visão engenheira do que seja traduzir. Para elas, há uma correspondência ponto-a-ponto entre quaisquer duas línguas, de modo que basta ir ao dicionário e copiar o ponto que corresponde a cada palavra ou expressão do texto original. 

Na verdade, o que temos é uma nuvem turbilhonante de significados instáveis, em inglês ou russo, e a tarefa de produzir uma nuvem de dinâmica parecida, em português. O significado é uma resposta evocada na memória verbal de cada indivíduo por uma palavra ou expressão. 

Ninguém tem dois repertórios iguais, e um dos milagres da Civilização, mais do que a eletricidade ou o cimento armado, é o fato de que sejamos capazes de nos entender quando falamos. Isso se deve talvez ao fato de que dois terços de nossas comunicações verbais são uma imensa reiteração do óbvio, do visível e do já sabido.

Em seu blog Todo Prosa, Sérgio Rodrigues anuncia o Prêmio Nobel concedido ao chinês Mo Yan, cita seu livro Life and death are wearing me out e diz: “Algo como ‘A vida e a morte estão acabando comigo’”. 

Esse ‘algo como’ é a típica linguagem defensiva (equivalente a dizer “Em tradução livre: ...”) com que a gente se protege quando os engenheiros da língua, de Webster em punho, questionam a expressão usada. Que aliás me parece correta, e eu não traduziria por outra – embora alguém pudesse preferir, sei lá, “estão me matando aos poucos”, ou, paraibanamente, “estão me deixando numa peínha de nada”.

Tradução livre é o álibi que invocamos quando, escrevendo às pressas, jogamos no papel nosso primeiro impulso verbal de reconstituição em português do que acabamos de ler, sem ligar para os regulamentos. 

Toda tradução deveria ser livre. Ser livre não garante que seja a tradução correta, nem que seja a melhor tradução; mas não ser livre também não garante coisíssima nenhuma. 

Quando o tradutor joga a toalha e diz: “É algo como...”, seu único e fugaz consolo é pensar que o autor original, seja Mo Yan ou Marcel Proust, tinha algo turbilhonando em seu cérebro, e, depois de muita luta em busca das palavras mais evocativas, da melhor cadência, da melhor arquitetura sintática, resignou-se também a dizer: “É algo como...”.









quinta-feira, 11 de outubro de 2012

3000) O máquina de escrever (11.10.2012)



Volta e meia a imprensa faz matérias com um sujeito porque ele publica cinco livros por ano. Não entendo essa admiração, porque se me pagassem bem eu publicaria não cinco, mas dez.  Quem publica livros em excesso pertence sem dúvida à escola asimoviana do “Revisar, nunca!”.  Isaac Asimov gabava-se de escrever um conto do começo ao fim sem voltar atrás, e quando escrevia “The End” no final colocava as páginas num envelope e as remetia para uma revista. Segundo ele, o sujeito que fica agonizando durante uma semana em cima de uma frase, procurando a forma ideal, nunca vai publicar o livro, e eu atesto que é verdade, oferecendo a mim mesmo como o melhor exemplo. (Já que nunca alcançarei sucesso popular, persigo a perfeição, que é mais acessível.) O problema é que nem todos, aliás bem poucos, têm um primeiro-texto tão limpo, tão claro e tão bem acabado quanto o de Asimov.  Tenha os defeitos que tiver (e tem vários), o texto do Doutor é profissionalmente impecável.

Não sei se é o caso de James Patterson, que um artigo de Danilo Venticinque na revista Época aponta como o escritor mais bem pago do mundo.  Diz ele que os 102 livros de Patterson “venderam 220 milhões de exemplares e o levaram 63 vezes à respeitada lista dos mais vendidos do The New York Times – um recorde na história do jornal”. Descontando o fato de que não tenho a mínima confiança nessas listas de “mais vendidos” da imprensa (são todas fajutas), é um número interessante. Patterson lançou 14 livros em 2011. Como ele consegue?

Nas telenovelas, um autor centraliza o enredo, cria os personagens, e uma equipe fica encarregada do trabalho braçal de escrever as cenas linha por linha. Alexandre Dumas trabalhava assim. O autor é o capitão do navio, que determina o curso, e tem sempre em mente todas as variáveis, para tomar as decisões estratégicas; o redator é o cara a quem cabe escrever a cena da briga ou a cena do namoro, de acordo com as instruções recebidas. Edgar Wallace e Erle Stanley Gardner, mestres do romance policial, ditavam os capítulos no gravador e mandavam datilografar. São autores que funcionam bem em voz alta. Outros preferem trabalhar em dupla: Ellery Queeen é o pseudônimo de Frederick Dannay, que escrevia sinopses detalhadíssimas de 40 páginas, e Manfred Lee, que a partir delas escrevia as cenas, as ações, o diálogo.

Quando um sujeito faz 10 romances por ano isso quer dizer apenas que ele descobriu o formato ideal de trabalho para si próprio. Se os livros são bons ou ruins, é outra questão. O importante é que os livros sejam escritos e publicados, até porque só depois disso é que se pode avaliar se são bons ou ruins.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

2999) A canção ou o disco (10.10.2012)



Um aspecto interessante da criação artística é a importância das obras que são na verdade um conjunto, um feixe de obras menores.  Eu sempre digo aos jovens poetas que a obra de arte é o poema, e não o livro de poemas. Cada poema deve ser trabalhado para si mesmo, sem pensar em mais nada, a não ser o que está sendo dito e como está sendo dito. Quando vamos organizar um livro de poemas, no entanto, é preciso harmonizar essas obras, encontrar um conjunto com variedade, que seja interessante e produza uma impressão forte no leitor. O livro de poemas é uma obra associativa; a gente não o escreve, apenas o organiza em função de um material já existente.

O mesmo se dá com o livro de contos e com o álbum de canções.  A crítica de rock já debateu muito o fato de que quando os Beatles surgiram o veículo das canções de rock era o “compacto” ou “single”, e que um LP ou álbum era um mero empacotamento de 12 canções. Os Beatles foram os primeiros que viram o álbum como um conjunto a ser trabalhado, e criaram o “álbum conceitual”, onde o perfil e a idéia central eram concebidos em primeiro lugar, e depois eram escolhidas ou compostas as canções que iriam corresponder a esse conceito; o exemplo típico é Sgt. Pepper’s.

Na música tivemos momentos em que se alternaram a canção e o álbum como produtos comerciais e como obras de arte. Na literatura, no entanto, o conto raramente foi um produto comercial por si só. Como obra de arte, ele cedo estabeleceu sua importância; mas não como produto. Nenhum leitor comprava um conto: comprava uma revista de contos, ou um livro de contos. A transação comercial do conto existia entre, p. ex., o autor e o editor de uma revista; mas o público só tinha a opção de comprar um conto comprando uma obra coletiva que o incluía.

Agora, com a publicação digital, isto está mudando. No saite de muitas editoras e de livrarias virtuais como a Amazon, pode-se comprar um conto isolado por 0.99 ou 1.99 dólares, o que, dependendo do tamanho e da qualidade da obra, é um ótimo preço. Muitas vezes precisamos ler um conto específico de um autor mas ele só está disponível num volume de 400 páginas que custa 65 reais. Eu pagaria satisfeito 5 e até 10 reais para ler um conto que preciso ler urgentemente, até por motivos de trabalho (inclusão numa antologia, citação num ensaio, etc.). A existência de um mercado específico de contos nunca foi tão possível quanto agora. Seu único defeito é que pode afunilar o mercado aumentando a popularidade dos contos famosos e deixando na obscuridade os contos menos conhecidos, que antes se beneficiavam da inclusão em livros para serem descobertos pelo leitor. 


2998) O autor anônimo (9.10.2012)





A questão dos direitos autorais está ligada, de um lado, à remuneração do trabalho do autor (aspecto material) e a um aspecto que poderíamos chamar imaterial ou simbólico, que é referido nos contratos como “o direito de ser reconhecido como o autor da obra X”. Este é um aspecto interessante porque implica numa vantagem (se não o fosse, não seria reivindicado pelos autores), mas uma vantagem de caráter abstrato. Esse direito e essa vantagem nos parecem indiscutíveis, mas a verdade é que, pelo menos na literatura, nem sempre havia a pressuposição tácita de que o autor gostaria de se identificado com a obra. Às vezes, entretanto, o autor preferia ficar na sombra.

Edgar Allan Poe publicou em 1837 seu primeiro livro, Tamerlane and other poems, assinando-se como “Um bostoniano”. Talvez uma tentativa de sentir-se mais integrado à população de Boston, cidade onde nasceu e com quem manteve uma relação de amor e ódio. Talvez por ter apenas 18 anos, estar servindo ao Exército sob nome falso (“Edgar Perry”) e não querer chamar atenção sobre si próprio. Sempre achei este episódio semelhante ao que ocorreu com Manuel Antonio de Almeida, que publicou em 1852 as Memórias de um Sargento de  Milícias, assinando-se como “Um brasileiro”. Por que?  Já li num ensaio ou prefácio que Almeida limitou-se, como jornalista, a escutar as histórias narradas por um personagem real, e as transpôs para o livro sem muita interferência.. Por isso sentia-se meio desconfortável em apresentar-se publicamente como o inventor daquilo tudo, coisa que não era.

Folheando uma reedição recente do Frankenstein de Mary Shelley vi uma reprodução da página de rosto da edição original de 1818, em três volumes.  O livro saiu sem menção ao autor, o que só ocorreu da segunda edição em diante. Pelo fato de ser uma mulher?  Talvez, mas o livro era prefaciado por Percy Shelley (marido da autora) e trazia uma dedicatória ao pai dela, o filósofo William Godwin.  Hoje em dia, um livro que saia sem indicação do autor, mesmo um nome falso ou um pseudônimo, é quase inimaginável. Livros anônimos são, às vezes, livros que podem produzir reações polêmicas, como os Vestígios da História Natural da Criação, que Robert Chambers publicou anonimamente em 1844, com uma teoria cósmica da evolução.

Entre o autor que receia ser revelado e o autor que não faz a menor questão de ser conhecido vai uma grande distância. Se tomássemos no seu sentido mais amplo as palavra “história” e “canção”, e fosse feito um balanço de muitos séculos, veríamos que numa espantosa percentagem delas nunca se veio a saber quem foi o seu criador. 


2997) Blow-ups de Cortázar (8.10.2012)




Julio Cortázar é sempre incluído no realismo mágico latino-americano, em parte por sua evidente identificação com o gênero, mas sua obra vai muito além disso. Muitos livros seus contêm mais contos policiais (histórias de crime) do que os contos fantásticos ou de terror que seu leitor casual espera encontrar. Em “Apocalipse em Solentiname” (no livro Alguém que anda por aí) Cortázar relata uma visita (real, em 1976) que fez à Costa Rica e à Nicarágua.  Ali, fazendo palestras, sendo recebido por escritores e políticos, conhecendo vilas e cidades diferentes, o personagem Julio Cortázar fotografa crianças, plantações, artesanato. De volta a Paris, ele está no apartamento aguardando a chegada de uma amiga, e resolve projetar os slides que tinha recebido do laboratório.  Ao chegar nas fotos em Solentiname, ele tem um susto. As casas que ele fotografou inteiras estão destruídas pelo fogo ou por bombas; um menino, que ao ser fotografado brincava, agora está caído, com uma bala na testa. Ele continua exibindo os slides, até o último: só destruição.

Ele vai lá dentro, passa uma água fria no rosto. Nisso chega a amiga, ele a deixa na sala e vai preparar um drinque. Ela pega o controle e começa a projetar os slides. Ele não tem coragem de voltar à sala, não quer ver aquilo de novo.  Espera ela terminar, e chega na sala com o drinque. Ela diz que viu todos os slides, e completa: “Lindas as fotos... que povo tão alegre... que lugares bonitos!”.

Se fosse um conto sobre um personagem qualquer, seria um conto banal, um conto em que oscilaríamos, conforme a “fórmula de Todorov”, entre uma explicação fantástica e uma explicação corriqueira (“ele teve apenas uma alucinação causada pela longa viagem e pelo jet-lag”).  Mas Cortázar narra o conto, borgianamente, em ultra-primeira-pessoa. O personagem é ele, a história é autobiográfica. No início do conto ele diz que nas entrevistas coletivas respondeu perguntas que sempre lhe são feitas: se não acha estranho viver em outro país, ou se não acha que seu conto “Las babas del diablo” foi mal adaptado por Antonioni no filme Blow up.  Isto cria um piso mínimo de realidade compartilhada entre o autor, o personagem e o leitor. Pelo fato de ter sido justamente ao escritor Cortázar que sucedeu aquilo, ele não poderia deixar de pensar no filme Blow up, também ele a história de um homem que fotografa, e que ao revelar as fotografias percebe que fotografara um crime. O que ele vê na foto não é mais o que ele imaginava estar vendo no momento do clique. Ou, melhor dizendo: o que a gente vê numa foto é uma soma entre o instante de fotografar e o instante de ver.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

2996) Infinitamente complexo (7.10.2012)





O ser humano, dizem alguns autores, existe numa escala que fica exatamente no meio do caminho entre as maiores estruturas físicas conhecidas (chamadas as Muralhas de Galáxias) e as menores (as partículas subatômicas, como os quarks).  Calculando as proporções desses dois extremos, o mundo em que existimos está situado bem no meio do caminho. 

Ou talvez — aí já é especulação minha – isso não passe de uma limitação inevitável do nosso ponto de vista.  Sempre estaremos exatamente no meio do caminho entre quaisquer macro e micro-universos que viermos a perceber, olhando para cima e olhando para baixo.

Outra coisa interessante: as leis físicas que governam o grande Universo e o universo sub-microscópico são parecidas. Tanto os cosmólogos (que estudam a formação das estrelas e galáxias) quanto os físicos-de-partículas (que estudam a estrutura do átomo) usam uma Física que trabalha com as mesmas leis, regras, forças básicas que governam a matéria. 

Mas esse domínio é muito diferente deste em que nós existimos. A Física Quântica, p. ex., e as leis da Relatividade, não têm muito a ver com esse mundo real onde existem pessoas, casas, livros, computadores e latas de cerveja (perdão pela descrição – é do meu mundo que estou falando). Nosso mundo é governado por uma Física raríssima no Universo, a Física de Galileu e de Isaac Newton, mas já descobriu a existência de outra Física, mais formatada pela nossa percepção. 

Só no fim do século 19 começamos a perceber que na escala Macro e na escala Micro as leis eram diferentes, ou melhor, somente nessas escalas percebíamos certas sutilezas.

Teilhard de Chardin, o jesuíta arqueólogo que foi silenciado pelo Vaticano pelo atrevimento de ter idéias científicas (e homenageado por autores de FC como George Zebrowski e Dan Simmons), tem uma imagem interessante a este respeito.  

Dizia ele que o ser humano está nesse limite entre o Infinitamente Grande e o Infinitamente Pequeno – e que essa dimensão em que vivemos pode ser chamada o Infinitamente Complexo.  É como se no mundo dos aglomerados de galáxias e no mundo dos quarks e do bóson de Higgs funcionassem apenas ciências como Física e Química.  O Universo, como um todo, é meramente físico.  

E nesta área intermediária onde estamos ocorre o fenômeno da vida, da matéria orgânica, e tudo que deriva dela: plantas, animais, pessoas, linguagem, civilização, ciência, religião, filosofia, psicologia, artes.  Inventamos dezenas de Ciências (além da Física, que pode ser considerada a ciência da base do Universo) para estudar e tentar entender tudo que acontece apenas em nosso estreitíssimo domínio. 








2995) Má ciência (6.10.2012)




(Charles Babbage)

Certos cientistas pertencem àquela espécie de sujeito meticuloso, detalhista, pente-fino mental que não deixa escapar coisa nenhuma.  Deve-se a esses indivíduos (certamente uma minoria) a fama de chatos que os cientistas têm. 

Claro que não é preciso ser cientista para ser assim. Uma vez, um amigo meu, que era técnico de som, foi lá em casa para ouvir algo no toca-discos. No começo da música ele começou a olhar para o relógio e anunciou que o aparelho estava com defeito. Ao invés de 33 rotações e um terço, por minuto, que é a velocidade padrão, estava com 33 e dois terços. 

Eu perguntei: “Mas não é quase a mesma coisa?”. 

Ele estufou o peito, ofendido, e disse: “Para um leigo, sim”.

Charles Babbage, que no século 19 projetou a Máquina Diferencial (um computador mecânico que nunca pôde ser construído) escreveu certa vez uma carta ao poeta Lord Tennyson, a respeito do poema deste, “The Vision of Sin”, onde se lê a frase: “Every moment dies a man, every moment one is born” (“A todo instante um homem nasce, a todo instante um homem morre”). 

Incomodado com essa inexatidão – que deixaria estável a população mundial – Babbage sugeriu ao poeta:  “Sugiro que na próxima publicação do seu poema o verso diga: A todo instante um homem morre, a todo instante 1 1/16 nasce”. E complementa: “O número exato é extenso demais para caber no verso, mas acho que 1 1/16 é exato o bastante para um poema”. 

É um exemplo claro de preocupação com a perfeição do detalhe e total desconhecimento do que se passa no conjunto.

Vi agora um comentário em The Guardian, em 2005, sobre uma canção de Katie Melua, “Nine Million Bicycles”, que dizia: “Estamos a 12 bilhões de anos-luz da borda [do Universo] / É uma suposição. / Ninguém pode dizer que é verdade. / Mas eu sei que estarei sempre com você”.  

Simon Singh escreveu um artigo examinando esta estrofe e declarou que não apenas o número está errado mas é muito grave dizer que ele não passa de uma suposição (“a guess”). Diz ele que o tamanho do universo é um número (13.7 bilhões de anos-luz) estabelecido com grande precisão científica, e sugere que a estrofe passe a dizer: 

"Estamos a 13.7 bilhões de anos-luz 
da borda do Universo observável. 
É uma boa estimativa, com margens de erro bem definidas. 
Os cientistas dizem que é verdade, mas 
reconhecem que esse número pode ser melhorado. 
E com esta informação disponível, eu afirmo 
que sempre estarei com você”.

Ressalva: nem todos os cientistas são (e muitos poetas são) pessoas fanaticamente detalhistas e preocupadas com exatidão factual. É mais um caso de diferença de sensibilidades pessoais do que do modo de ver de suas profissões.