quinta-feira, 11 de outubro de 2012

3000) O máquina de escrever (11.10.2012)



Volta e meia a imprensa faz matérias com um sujeito porque ele publica cinco livros por ano. Não entendo essa admiração, porque se me pagassem bem eu publicaria não cinco, mas dez.  Quem publica livros em excesso pertence sem dúvida à escola asimoviana do “Revisar, nunca!”.  Isaac Asimov gabava-se de escrever um conto do começo ao fim sem voltar atrás, e quando escrevia “The End” no final colocava as páginas num envelope e as remetia para uma revista. Segundo ele, o sujeito que fica agonizando durante uma semana em cima de uma frase, procurando a forma ideal, nunca vai publicar o livro, e eu atesto que é verdade, oferecendo a mim mesmo como o melhor exemplo. (Já que nunca alcançarei sucesso popular, persigo a perfeição, que é mais acessível.) O problema é que nem todos, aliás bem poucos, têm um primeiro-texto tão limpo, tão claro e tão bem acabado quanto o de Asimov.  Tenha os defeitos que tiver (e tem vários), o texto do Doutor é profissionalmente impecável.

Não sei se é o caso de James Patterson, que um artigo de Danilo Venticinque na revista Época aponta como o escritor mais bem pago do mundo.  Diz ele que os 102 livros de Patterson “venderam 220 milhões de exemplares e o levaram 63 vezes à respeitada lista dos mais vendidos do The New York Times – um recorde na história do jornal”. Descontando o fato de que não tenho a mínima confiança nessas listas de “mais vendidos” da imprensa (são todas fajutas), é um número interessante. Patterson lançou 14 livros em 2011. Como ele consegue?

Nas telenovelas, um autor centraliza o enredo, cria os personagens, e uma equipe fica encarregada do trabalho braçal de escrever as cenas linha por linha. Alexandre Dumas trabalhava assim. O autor é o capitão do navio, que determina o curso, e tem sempre em mente todas as variáveis, para tomar as decisões estratégicas; o redator é o cara a quem cabe escrever a cena da briga ou a cena do namoro, de acordo com as instruções recebidas. Edgar Wallace e Erle Stanley Gardner, mestres do romance policial, ditavam os capítulos no gravador e mandavam datilografar. São autores que funcionam bem em voz alta. Outros preferem trabalhar em dupla: Ellery Queeen é o pseudônimo de Frederick Dannay, que escrevia sinopses detalhadíssimas de 40 páginas, e Manfred Lee, que a partir delas escrevia as cenas, as ações, o diálogo.

Quando um sujeito faz 10 romances por ano isso quer dizer apenas que ele descobriu o formato ideal de trabalho para si próprio. Se os livros são bons ou ruins, é outra questão. O importante é que os livros sejam escritos e publicados, até porque só depois disso é que se pode avaliar se são bons ou ruins.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

2999) A canção ou o disco (10.10.2012)



Um aspecto interessante da criação artística é a importância das obras que são na verdade um conjunto, um feixe de obras menores.  Eu sempre digo aos jovens poetas que a obra de arte é o poema, e não o livro de poemas. Cada poema deve ser trabalhado para si mesmo, sem pensar em mais nada, a não ser o que está sendo dito e como está sendo dito. Quando vamos organizar um livro de poemas, no entanto, é preciso harmonizar essas obras, encontrar um conjunto com variedade, que seja interessante e produza uma impressão forte no leitor. O livro de poemas é uma obra associativa; a gente não o escreve, apenas o organiza em função de um material já existente.

O mesmo se dá com o livro de contos e com o álbum de canções.  A crítica de rock já debateu muito o fato de que quando os Beatles surgiram o veículo das canções de rock era o “compacto” ou “single”, e que um LP ou álbum era um mero empacotamento de 12 canções. Os Beatles foram os primeiros que viram o álbum como um conjunto a ser trabalhado, e criaram o “álbum conceitual”, onde o perfil e a idéia central eram concebidos em primeiro lugar, e depois eram escolhidas ou compostas as canções que iriam corresponder a esse conceito; o exemplo típico é Sgt. Pepper’s.

Na música tivemos momentos em que se alternaram a canção e o álbum como produtos comerciais e como obras de arte. Na literatura, no entanto, o conto raramente foi um produto comercial por si só. Como obra de arte, ele cedo estabeleceu sua importância; mas não como produto. Nenhum leitor comprava um conto: comprava uma revista de contos, ou um livro de contos. A transação comercial do conto existia entre, p. ex., o autor e o editor de uma revista; mas o público só tinha a opção de comprar um conto comprando uma obra coletiva que o incluía.

Agora, com a publicação digital, isto está mudando. No saite de muitas editoras e de livrarias virtuais como a Amazon, pode-se comprar um conto isolado por 0.99 ou 1.99 dólares, o que, dependendo do tamanho e da qualidade da obra, é um ótimo preço. Muitas vezes precisamos ler um conto específico de um autor mas ele só está disponível num volume de 400 páginas que custa 65 reais. Eu pagaria satisfeito 5 e até 10 reais para ler um conto que preciso ler urgentemente, até por motivos de trabalho (inclusão numa antologia, citação num ensaio, etc.). A existência de um mercado específico de contos nunca foi tão possível quanto agora. Seu único defeito é que pode afunilar o mercado aumentando a popularidade dos contos famosos e deixando na obscuridade os contos menos conhecidos, que antes se beneficiavam da inclusão em livros para serem descobertos pelo leitor. 


2998) O autor anônimo (9.10.2012)





A questão dos direitos autorais está ligada, de um lado, à remuneração do trabalho do autor (aspecto material) e a um aspecto que poderíamos chamar imaterial ou simbólico, que é referido nos contratos como “o direito de ser reconhecido como o autor da obra X”. Este é um aspecto interessante porque implica numa vantagem (se não o fosse, não seria reivindicado pelos autores), mas uma vantagem de caráter abstrato. Esse direito e essa vantagem nos parecem indiscutíveis, mas a verdade é que, pelo menos na literatura, nem sempre havia a pressuposição tácita de que o autor gostaria de se identificado com a obra. Às vezes, entretanto, o autor preferia ficar na sombra.

Edgar Allan Poe publicou em 1837 seu primeiro livro, Tamerlane and other poems, assinando-se como “Um bostoniano”. Talvez uma tentativa de sentir-se mais integrado à população de Boston, cidade onde nasceu e com quem manteve uma relação de amor e ódio. Talvez por ter apenas 18 anos, estar servindo ao Exército sob nome falso (“Edgar Perry”) e não querer chamar atenção sobre si próprio. Sempre achei este episódio semelhante ao que ocorreu com Manuel Antonio de Almeida, que publicou em 1852 as Memórias de um Sargento de  Milícias, assinando-se como “Um brasileiro”. Por que?  Já li num ensaio ou prefácio que Almeida limitou-se, como jornalista, a escutar as histórias narradas por um personagem real, e as transpôs para o livro sem muita interferência.. Por isso sentia-se meio desconfortável em apresentar-se publicamente como o inventor daquilo tudo, coisa que não era.

Folheando uma reedição recente do Frankenstein de Mary Shelley vi uma reprodução da página de rosto da edição original de 1818, em três volumes.  O livro saiu sem menção ao autor, o que só ocorreu da segunda edição em diante. Pelo fato de ser uma mulher?  Talvez, mas o livro era prefaciado por Percy Shelley (marido da autora) e trazia uma dedicatória ao pai dela, o filósofo William Godwin.  Hoje em dia, um livro que saia sem indicação do autor, mesmo um nome falso ou um pseudônimo, é quase inimaginável. Livros anônimos são, às vezes, livros que podem produzir reações polêmicas, como os Vestígios da História Natural da Criação, que Robert Chambers publicou anonimamente em 1844, com uma teoria cósmica da evolução.

Entre o autor que receia ser revelado e o autor que não faz a menor questão de ser conhecido vai uma grande distância. Se tomássemos no seu sentido mais amplo as palavra “história” e “canção”, e fosse feito um balanço de muitos séculos, veríamos que numa espantosa percentagem delas nunca se veio a saber quem foi o seu criador. 


2997) Blow-ups de Cortázar (8.10.2012)




Julio Cortázar é sempre incluído no realismo mágico latino-americano, em parte por sua evidente identificação com o gênero, mas sua obra vai muito além disso. Muitos livros seus contêm mais contos policiais (histórias de crime) do que os contos fantásticos ou de terror que seu leitor casual espera encontrar. Em “Apocalipse em Solentiname” (no livro Alguém que anda por aí) Cortázar relata uma visita (real, em 1976) que fez à Costa Rica e à Nicarágua.  Ali, fazendo palestras, sendo recebido por escritores e políticos, conhecendo vilas e cidades diferentes, o personagem Julio Cortázar fotografa crianças, plantações, artesanato. De volta a Paris, ele está no apartamento aguardando a chegada de uma amiga, e resolve projetar os slides que tinha recebido do laboratório.  Ao chegar nas fotos em Solentiname, ele tem um susto. As casas que ele fotografou inteiras estão destruídas pelo fogo ou por bombas; um menino, que ao ser fotografado brincava, agora está caído, com uma bala na testa. Ele continua exibindo os slides, até o último: só destruição.

Ele vai lá dentro, passa uma água fria no rosto. Nisso chega a amiga, ele a deixa na sala e vai preparar um drinque. Ela pega o controle e começa a projetar os slides. Ele não tem coragem de voltar à sala, não quer ver aquilo de novo.  Espera ela terminar, e chega na sala com o drinque. Ela diz que viu todos os slides, e completa: “Lindas as fotos... que povo tão alegre... que lugares bonitos!”.

Se fosse um conto sobre um personagem qualquer, seria um conto banal, um conto em que oscilaríamos, conforme a “fórmula de Todorov”, entre uma explicação fantástica e uma explicação corriqueira (“ele teve apenas uma alucinação causada pela longa viagem e pelo jet-lag”).  Mas Cortázar narra o conto, borgianamente, em ultra-primeira-pessoa. O personagem é ele, a história é autobiográfica. No início do conto ele diz que nas entrevistas coletivas respondeu perguntas que sempre lhe são feitas: se não acha estranho viver em outro país, ou se não acha que seu conto “Las babas del diablo” foi mal adaptado por Antonioni no filme Blow up.  Isto cria um piso mínimo de realidade compartilhada entre o autor, o personagem e o leitor. Pelo fato de ter sido justamente ao escritor Cortázar que sucedeu aquilo, ele não poderia deixar de pensar no filme Blow up, também ele a história de um homem que fotografa, e que ao revelar as fotografias percebe que fotografara um crime. O que ele vê na foto não é mais o que ele imaginava estar vendo no momento do clique. Ou, melhor dizendo: o que a gente vê numa foto é uma soma entre o instante de fotografar e o instante de ver.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

2996) Infinitamente complexo (7.10.2012)





O ser humano, dizem alguns autores, existe numa escala que fica exatamente no meio do caminho entre as maiores estruturas físicas conhecidas (chamadas as Muralhas de Galáxias) e as menores (as partículas subatômicas, como os quarks).  Calculando as proporções desses dois extremos, o mundo em que existimos está situado bem no meio do caminho. 

Ou talvez — aí já é especulação minha – isso não passe de uma limitação inevitável do nosso ponto de vista.  Sempre estaremos exatamente no meio do caminho entre quaisquer macro e micro-universos que viermos a perceber, olhando para cima e olhando para baixo.

Outra coisa interessante: as leis físicas que governam o grande Universo e o universo sub-microscópico são parecidas. Tanto os cosmólogos (que estudam a formação das estrelas e galáxias) quanto os físicos-de-partículas (que estudam a estrutura do átomo) usam uma Física que trabalha com as mesmas leis, regras, forças básicas que governam a matéria. 

Mas esse domínio é muito diferente deste em que nós existimos. A Física Quântica, p. ex., e as leis da Relatividade, não têm muito a ver com esse mundo real onde existem pessoas, casas, livros, computadores e latas de cerveja (perdão pela descrição – é do meu mundo que estou falando). Nosso mundo é governado por uma Física raríssima no Universo, a Física de Galileu e de Isaac Newton, mas já descobriu a existência de outra Física, mais formatada pela nossa percepção. 

Só no fim do século 19 começamos a perceber que na escala Macro e na escala Micro as leis eram diferentes, ou melhor, somente nessas escalas percebíamos certas sutilezas.

Teilhard de Chardin, o jesuíta arqueólogo que foi silenciado pelo Vaticano pelo atrevimento de ter idéias científicas (e homenageado por autores de FC como George Zebrowski e Dan Simmons), tem uma imagem interessante a este respeito.  

Dizia ele que o ser humano está nesse limite entre o Infinitamente Grande e o Infinitamente Pequeno – e que essa dimensão em que vivemos pode ser chamada o Infinitamente Complexo.  É como se no mundo dos aglomerados de galáxias e no mundo dos quarks e do bóson de Higgs funcionassem apenas ciências como Física e Química.  O Universo, como um todo, é meramente físico.  

E nesta área intermediária onde estamos ocorre o fenômeno da vida, da matéria orgânica, e tudo que deriva dela: plantas, animais, pessoas, linguagem, civilização, ciência, religião, filosofia, psicologia, artes.  Inventamos dezenas de Ciências (além da Física, que pode ser considerada a ciência da base do Universo) para estudar e tentar entender tudo que acontece apenas em nosso estreitíssimo domínio. 








2995) Má ciência (6.10.2012)




(Charles Babbage)

Certos cientistas pertencem àquela espécie de sujeito meticuloso, detalhista, pente-fino mental que não deixa escapar coisa nenhuma.  Deve-se a esses indivíduos (certamente uma minoria) a fama de chatos que os cientistas têm. 

Claro que não é preciso ser cientista para ser assim. Uma vez, um amigo meu, que era técnico de som, foi lá em casa para ouvir algo no toca-discos. No começo da música ele começou a olhar para o relógio e anunciou que o aparelho estava com defeito. Ao invés de 33 rotações e um terço, por minuto, que é a velocidade padrão, estava com 33 e dois terços. 

Eu perguntei: “Mas não é quase a mesma coisa?”. 

Ele estufou o peito, ofendido, e disse: “Para um leigo, sim”.

Charles Babbage, que no século 19 projetou a Máquina Diferencial (um computador mecânico que nunca pôde ser construído) escreveu certa vez uma carta ao poeta Lord Tennyson, a respeito do poema deste, “The Vision of Sin”, onde se lê a frase: “Every moment dies a man, every moment one is born” (“A todo instante um homem nasce, a todo instante um homem morre”). 

Incomodado com essa inexatidão – que deixaria estável a população mundial – Babbage sugeriu ao poeta:  “Sugiro que na próxima publicação do seu poema o verso diga: A todo instante um homem morre, a todo instante 1 1/16 nasce”. E complementa: “O número exato é extenso demais para caber no verso, mas acho que 1 1/16 é exato o bastante para um poema”. 

É um exemplo claro de preocupação com a perfeição do detalhe e total desconhecimento do que se passa no conjunto.

Vi agora um comentário em The Guardian, em 2005, sobre uma canção de Katie Melua, “Nine Million Bicycles”, que dizia: “Estamos a 12 bilhões de anos-luz da borda [do Universo] / É uma suposição. / Ninguém pode dizer que é verdade. / Mas eu sei que estarei sempre com você”.  

Simon Singh escreveu um artigo examinando esta estrofe e declarou que não apenas o número está errado mas é muito grave dizer que ele não passa de uma suposição (“a guess”). Diz ele que o tamanho do universo é um número (13.7 bilhões de anos-luz) estabelecido com grande precisão científica, e sugere que a estrofe passe a dizer: 

"Estamos a 13.7 bilhões de anos-luz 
da borda do Universo observável. 
É uma boa estimativa, com margens de erro bem definidas. 
Os cientistas dizem que é verdade, mas 
reconhecem que esse número pode ser melhorado. 
E com esta informação disponível, eu afirmo 
que sempre estarei com você”.

Ressalva: nem todos os cientistas são (e muitos poetas são) pessoas fanaticamente detalhistas e preocupadas com exatidão factual. É mais um caso de diferença de sensibilidades pessoais do que do modo de ver de suas profissões. 






sexta-feira, 5 de outubro de 2012

2994) "Love Me Do" (5.10.2012)




Há exatos 50 anos, em 5 de outubro de 1962, saía na Inglaterra o primeiro compacto gravado pelos Beatles. O conceito de “compacto” requer hoje em dia um pouco de explicação. O compacto era um disco pequeno, em 33 rotações, com uma música de cada lado. A música principal, para ser tocada nas rádios, ocupava o lado A; o lado B era ocupado por uma música qualquer, que estava ali apenas para completar o espaço, pois seria um desperdício lançar um disco de vinil (que tipicamente, ao contrário dos CDs, permitia gravação de ambos os lados) com apenas uma música. (Havia também o compacto duplo, com 2 músicas de cada lado.)

Naquela data, portanto, saiu o primeiro compacto dos Beatles, com “Love Me Do” no lado A, e “P. S. I love you” no lado B.  Eram duas típicas cançõezinhas dos grupos pop da época, embora os historiadores, enriquecidos pelo capital interpretativo do “desde então”, projetem em ambas uma porção de tendências futuras. A temática amorosa e adolescente das letras dispensa comentários. Como o próprio Lennon afirmou depois, “a gente estava em busca de criar um som, a letra podia ser qualquer coisa, ninguém dava a menor atenção”. Claro que depois isso mudou, e o próprio Lennon apontou “Help” como a primeira canção em que ele tentou dizer algo que de fato sentia.

Em seu livro essencial Revolution in the Head, onde disseca em minúcias todas as canções dos Beatles, Ian MacDonald afirma que a canção era excessivamente “crua” para o padrão do pop da época, e que chamava a atenção “como um tijolo a descoberto na parede de uma sala de visitas’. Talvez por isto, pensa ele, o disco tenha apenas atingido o 17o. lugar nas paradas. Com sua gaitinha plangente e seu vocal que pareceu afinadíssimo (ninguém imaginava do que aquelas três vozes juntas ainda seriam capazes no futuro) “Love Me Do” era uma canção muito mais pobre, melodicamente, do que “P. S. I love you”, a baladinha-abolerada que lhe serviu de contrapeso.

Os Beatles, em sua curta carreira de cerca de oito anos (entre 1962 e 1970) foram um exemplo único, na história da música popular, de um artista que parte do mais simples ao mais complexo, ano após ano, sem olhar para trás, e ainda assim arrebanhando e mobilizando tudo que foi capaz de aprender e inventar ao longo do caminho. Quem imaginaria que os rapazes que gravaram estas duas canções estariam, cinco anos depois, gravando “A Day in the Life” e “She’s Leaving Home”? Ninguém. O futuro influencia o passado, ilumina o passado, contamina o passado com um novo sentido. Não sabemos, dos milhões de músicas lançadas hoje, qual a que daqui a 50 anos estaremos comemorando. Melhor ficar com os ouvidos bem abertos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

2993) Como ser criativo (4.10.2012)






Hugh MacLeod é um cartunista e artista gráfico autor de um manifesto intitulado “How to be creative”, que, segundo ele informa em seu saite, já teve 4,5 milhões de downloads. Fui responsável por um desses, porque sou fascinado por mandamentos, conselhos, dicas, regrinhas sobre como escrever, como criar, etc. Faço isso porque tenho um lado supersticioso me dizendo que só não consegui realizar tudo que planejo porque estou errando em algum minúsculo aspecto ao qual nunca dei muita atenção, mas num belo dia ensolarado lerei um conselho de uma ou duas linhas, postado na Internet por um desconhecido, e a partir daí, ah, meu amigo, a partir daí minha vida vai mudar.  Daqui pra frente tudo vai ser diferente!

Mera superstição, como se vê.  Baixei o manifesto de MacLeod e entre as primeiras dicas leio, logo de cara: “Se o seu grande plano profissional depende de você ser descoberto de repente por algum figurão, provavelmente não vai dar certo. Ninguém descobre ninguém assim de repente. As coisas são criadas devagar, e com sofrimento”.  Só faltou o “viu, Braulio?” no final.  Mas isso me tranquilizou, porque se o que é necessário para ser criativo é trabalhar “devagar, e com sofrimento”, então estou no caminho certo há 50 anos.

MacLeod partilha comigo uma desconfiança com relação a um excesso de condições técnicas e materiais.  Desconfio muito de trabalhos onde alguém fica exigindo 150 toalhas brancas, ou diz que só toca no piano tal, que só existe na Rússia.  Ele diz no manifesto: “Quanto mais talentoso alguém é, menos necessita de penduricalhos. Saber que uma pessoa escreveu uma obra-prima no verso de um cardápio de lanchonete não me surpreenderia. Saber que uma pessoa escreveu uma obra-prima com uma caneta Cartier de prata, sobre uma mesa comprada num antiquário, num estúdio do SoHo, me surpreenderia bastante”. Eu diria: para escrever um livro bom você não precisa do mais revolucionário processador de texto. Precisa apenas (e cito aqui outro item de MacLeod) de “tempo, esforço e energia”.

E por fim uma frase curiosa, que pode ser lida de muitas maneiras: “A coisa mais importante que uma pessoa criativa pode aprender, em sua vida profissional, é onde traçar a linha que separa o que você aceita fazer do que você não aceita”. Certa vez, a atriz Marília Pera recusou um projeto, e uma amiga jovem disse: “Você pode dizer não, porque você é Marília Pera”. E ela disse: “Não, eu só sou Marilia Pera porque aprendi a dizer não”. Não sei se o episódio se passou de fato com Marilia (histórias assim acabam sendo atribuídas a Deus e o mundo), mas dá uma boa dica sobre como explicar ao mundo quem é você.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

2992) "Margin Call" (3.10.2012)





A atual crise financeira, depois da catástrofe de 2008, foi provisoriamente neutralizada, mas com efeitos colaterais gravíssimos, como se pode ver na quebradeira geral de países como Grécia, Portugal, Espanha e outros. Para que os Bancos (envolvidos em absurdas negociatas) não fossem todos à falência de uma vez só, o que de certo modo acabaria com a civilização como a conhecemos, os governos injetaram ali trilhões de dólares e de euros que precisam vir de algum lugar. De onde vêm? Dos programas sociais e previdenciários dos países. Ou seja: para curar a doença vai ser preciso matar o paciente.

Revi The Corporation (2003, de Mark Achbar e Jenniffer Abbott, http://bit.ly/id3zO1), um documentário que prova, a seu modo, que as grandes corporações são semelhantes aos psicopatas criminosos: pensam apenas no próprio benefício, ignoram acordos, não dão importância ao sofrimento alheio, etc. Vi e comentei aqui Trabalho Interno (2010, de Charles Ferguson, http://bit.ly/arg7hS), analisando a crise de 2008: em consequência da desregulamentação da especulação financeira, as empresas produziram lucros fantásticos para si e para seus executivos, mesmo sabendo que aquele dinheiro inexistente teria que ser coberto mais cedo ou mais tarde – pela população, é claro.

Agora, vi este longa de estréia de J. C. Chandor, em 2011 (http://bit.ly/SVR2ge). A história se passa ao longo de dois dias de crise numa grande financeira que parece ter sido inspirada na Lehman Brothers, uma das vítimas de 2008. Um funcionário alerta seus chefes que a firma está prestes a falir pelo acúmulo de “papéis sem valor”. Segue-se uma tensa rodada de reuniões e negociações internas que se estende madrugada afora, e na qual rolam várias cabeças na estrutura de comando. A firma opta pela solução mais catastrófica, mas a única que pode salvá-la: vender todos os papéis, de uma vez só, no dia seguinte – e recuperar parte do dinheiro, antes que o mercado perceba o que está sendo feito. Com isto, é claro, a firma escapa, mas arruína seus clientes e provoca o “estouro da boiada” no mercado. O que aconteceu.

O elenco tem a presença de Kevin Spacey, Stanley Tucci, Demi Moore; e de Jeremy Irons, que, desdenhoso e cruel no papel do CEO da empresa, está assustadoramente parecido com o nosso banqueiro Daniel Dantas. É uma narrativa tensa, trancada o tempo quase todo nos escritórios de um arranha-céu, com imensas vidraças mostrando a indefesa New York em volta. Filmes como este estão fazendo um papel semelhante ao dos filmes políticos italianos da década de 1970: dramatizando hoje as manchetes dos jornais de ontem, revelando os fatos e refletindo sobre eles. 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

2991) Religião e consumo (2.10.2012)




Um artigo de Eliane Brum na revista Época (http://glo.bo/Pl9U9N) procura entender o fenômeno do candidato líder à prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno. A jornalista vê em Russomanno um indício da ascensão de forças cujo objetivo é transformar o país num cenário de consumo cada vez mais ampliado. O curioso é que são forças às vezes conflitantes, que batalham por objetivos diferentes, mas que numa esquina específica da História, concordam com um objetivo parcial, imediato, e lutam juntos por ele. Acontece o tempo todo, na guerra, na economia (que é uma forma disfarçada de guerra) e na política (que é uma forma disfarçada de economia.)

Por exemplo: a ascensão da Classe C, que no governo Lula teve um crescimento assombroso. Isso interessou ao governo, ao PT e à esquerda em geral porque indicou a passagem da pobreza para a classe média, a entrada de milhões de pessoas no mercado de trabalho mais elevado, e assim por diante. E interessou ao grande capital porque significou mais compradores, mais consumidores. Eram pobres que não tinham dinheiro; agora, são remediados que têm um cartão de crédito, e as pesquisas indicam que esse ex-pobres são ótimos pagadores, só dão calote quando não têm outro jeito. Deixam a geladeira vazia mas pagam a prestação da geladeira. Qual o mercado que não quer 30 milhões de consumidores assim?

Eliane Brum observa: “Ao ascender economicamente, a ‘nova classe média’ parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família”. Ou seja: desde que minha família passe bem, o bairro que se dane, eu mudo de bairro.

Russomanno é apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, e nada mais simbólico do que essa aliança com o comércio religioso, que suga cada centavo em troca de absolvição de pecados ou de uma vaga no Paraíso.  Não foram os neo-evangélicos, aliás, que inventaram isso: a igreja católica sempre cobrou pelos seus serviços espirituais, e muitos Papas já zeraram os pecados de um Rei em troca de vantagens políticas. O instinto do comércio (a arte de comprar e de vender, que se refina na arte de comprar os outros e vender a si próprio) parece estar mais entranhado na alma humana do que o próprio instinto religioso.