quinta-feira, 27 de setembro de 2012

2987) Zumbi a passeio (27.9.2012)




“Felisberto!  Leve o lixo pra jogar lá fora!”.  

Eu já estava quase no portão quando ouvi a voz de Dalva, e gritei de volta: “Não posso agora!  Estou levando Zombe pra passear!”.  

Zombe é o nome do zumbi da gente, e às vezes eu fico imaginando a cara do meu pai se ele tivesse sobrevivido à Guerra Canibal e visse nosso estilo de vida hoje. Ele provavelmente iria dizer: “Não importa quantos apocalipses a humanidade tenha que passar, ela sempre encontra um jeito de regredir à pequena-burguesia suburbana!”.  

Meu pai foi devorado quando eu tinha 12 anos mas me lembro até hoje das aulas dele, porque ele não conversava, ele dava aula o tempo todo, era incapaz de pegar um pão na mesa sem dar uma aula sobre a Crise do Trigo Asiático. Ele sempre disse que a Epidemia Zumbi era uma trama de umas organizações que eu nunca entendi. Quando cresci fiquei sabendo que foi acidente mesmo.

De qualquer modo, fui na casinha, botei a coleira em Zombe e saí. Fim da tarde todo mundo se encontra na padaria. Com uma passadinha no açougue, onde cada um compra um osso pra distrair seu pet. 

Zombe gosta de costela, bem crua. Dê aquela costeletazinha básica e ele passa meia hora de cócoras, entretido, enquanto a gente troca uma idéia, comenta o futebol. Claro, futebol acabou, mas a gente tem as gravações; eu e uns amigos do meu prédio estamos acompanhando o campeonato carioca de 2002, um jogo por dia, proibido spoilers. 

Eu saio pouco de casa; tenho 44 anos e sou o mais velho da minha rua. Só saio de casa armado e com Zombe. Gente com fome é pior do que zumbi.

Na volta dou uma passada na Praça do Por do Sol, uma colina de onde contemplo as ruínas. Antigamente era bonito, hoje é uma mistura de arquitetura e floresta. 

Sou um dos poucos que conheceram o mundo antigo, um mundo onde os zumbis eram uma ameaça e não nossos cães de guarda quimicamente domesticados. Foram vinte anos de carnificina recíproca até que conseguimos amestrá-los. Hoje, não viveríamos sem eles, que nos defendem de nós mesmos. 

O mundo colapsou, todo mundo só come o que planta, cria ou fabrica. Comércio, só de bairro. Não há mais política, indústria, capital financeiro, exércitos, guerras; e isto é um baita dum consolo por não existirem mais universidades, esportes, estações de TV, cinema, restaurantes e bares. 

Na minha cidade somos (li ontem) um milhão de humanos, e só 120 mil possuem zumbis para se defender do restante. Dalva diz que sempre haverá ricos e pobres. 

Puxo a coleira de Zombe e arrasto-o de volta para casa. Falem de apocalipse, falem que vivemos num inferno, mas para mim qualquer mundo é um paraíso se nele sou eu quem puxa alguém pela coleira.







quarta-feira, 26 de setembro de 2012

2986) O fanático sorridente (26.9.2012)




Sou agnóstico mas considero a religião uma forma importante de conhecimento intuitivo do mundo e de relacionamento interpessoal.  Sem as religiões à minha volta, minha vida ficaria empobrecida, mesmo que eu não concorde com as premissas delas (existência de mundo espiritual, existência de seres superiores que nos avaliam e nos julgam, existência do Céu e do Inferno, etc.). Fazem parte da cultura que me cerca. Por outro lado, não preciso de religião. Para explicar o Universo, a Ciência tem me quebrado o maior galho.  Para conviver com a humanidade, tenho uma espécie de humanismo doméstico, que não queima incenso em nenhum altar.  Se um dia eu mudar de idéia e me converter a alguma fé, serei o primeiro a avisar a todo mundo. Por que não?

Aqui no Brasil, uma das primeiras providências da Casa Grande foi abrir uma capela pertinho da Senzala. Quando um povo domina e escraviza outro, não basta destruir seus armamentos, é preciso destruir seus deuses também. Os espanhóis queimaram milhares de códices maias, mas se fossem os maias que tivessem invadido a Espanha teriam feito o mesmo com as catedrais (os republicanos queimaram centenas delas na Guerra Civil). Hoje circula nas redes sociais, numa campanha contra a evangelização forçada dos índios, uma imagem orgulhosa de um jovem índio brasileiro dizendo: “Seu mito não é melhor do que o meu”. O problema é que quem acredita em mitos acha sempre que mito é só o dos outros – o seu é a verdade. A fórmula de toda crença requer pelo menos um átomo de fanatismo, porque crer é ter certeza, e o fanatismo não passa de certeza. Uma certeza ansiosa para se expandir, e que não aceita ser questionada ou relativizada pela existência de certezas opostas. Não é preciso desprezar nem odiar os fanáticos. Devemos apenas enquadrá-los, impor limites civis e coletivos a sua atuação, impedir que infernizem a vida alheia com sua hipótese de Paraíso. Podemos perdoá-los, porque é evidente que não sabem o que fazem.

Vejam bem – não falo dos caras que empunham archotes acesos e enforcam gente.  Falo dos fanáticos pacíficos, cuja única arma é o altofalante na casa vizinha bradando aleluias e hosanas. (Confesso que nessas horas quem tem vontade de empunhar archotes e enforcar gente sou eu.) Alguém já disse que fanático é um sujeito que nunca muda de opinião, nem de assunto. E vou mais além – é o cara para quem o simples fato de você acreditar em algo diferente exige que você seja imediatamente convencido a mudar de idéia. O quê? Não concorda com minha definição, amigo?  Beleza!  Fique com a sua que eu fico com a minha. Basta não tocar na minha campainha, e dar uma abaixada no som.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

2985) Quero morar na Suécia (25.9.2012)


As autoridades da Suécia estão inaugurando uma experiência de engenharia social (existe este termo?) para organizar certos setores de estudo, trabalho, etc. em função dos nossos diferentes ciclos de atividade biológica.  Há pessoas que acordam a mil por hora, com a corda toda, e às 10 da noite já estão cabeceando de sono; e pessoas que se arrastam para fora da cama, de manhã, como trapos embrutecidos, mas vão ganhando forças ao longo do dia, e depois da meia-noite são capazes de qualquer façanha intelectual (sem falar nas outras). Por que isto?  Dizem os cientistas (não só os suecos) que existem dois tipos de pessoas a que eles chamam “A” e “B”.  A pessoa tipo “A” tem um ciclo biológico de 23 horas; a pessoa “B” tem um ciclo de 25 a 27 horas.  São estas pessoas “B” que são mais produtivas no final do dia e acordam com sacrifício.

Erika Augustinsson é vice-presidente da B-Samfundet (“Sociedade B”), um movimento que pretende abrir espaços para que as pessoas com estas características (e que talvez sejam uma minoria) possam estudar e trabalhar em horários mais adaptados ao seu ciclo de atividade.  Pessoas B (como é o meu caso, aliás) são frequentemente chamadas de preguiçosas porque têm dificuldade de acordar cedo para ir à aula ou ao trabalho. (Curiosamente, quando elas estão acordadas na madruga, com todas as turbinas mentais ligadas na potência máxima, ninguém vê, porque está todo mundo dormindo.)

Diz Erika: "Nosso objetivo é acabar com as rígidas disciplinas de horário da sociedade industrial, em que todos chegam ao mesmo tempo e saem na mesma hora". A industrialização exige a uniformização, ou seja, todo mundo chegando e saindo ao mesmo tempo, todo mundo se comportando de maneira ordenada e previsível.  Exceções não são bem vindas, porque para lidar com elas é preciso criar e manter diferentes cronogramas, e isso atrapalha a Produtividade (essa deusa grega invisível, que só se deixa perceber pelas benesses que distribui aos seus sacerdotes).

O esquema vai ser inaugurado com uma escola secundária de Gotemburgo, que a partir de setembro oferecerá turnos opcionais entre as 20 e as 8:00 horas.  Eu sempre fui um aluno medíocre quando estudei de manhã, e minha melhor fase estudantil foi quando passei para o turno da noite. Ainda hoje, sair da cama é como escalar um penhasco, mas depois que anoitece a única coisa que peço é que não me atrapalhem, porque preciso recuperar o tempo perdido. Assim como muita gente já conseguiu trabalhar em casa (sem perder 3 ou 4 horas no trânsito), muita gente pode vir a conseguir essa coisa tão simples: ser aproveitado durante o seu melhor momento.


domingo, 23 de setembro de 2012

2984) O fim do mundo (23.9.2012)




Peço desculpas pelo tom catastrófico deste título. Dada a importância do assunto, pensei em intitular esta coluna “Mulher pelada!”, para atrair mais leitores, mas o título acima me parece mais honesto em função do conteúdo. Ver e rever o filme Trabalho Interno (Inside Job, 2010), documentário de Charles Ferguson sobre a crise financeira de 2008 (que não acabou ainda – o mundo continua vivo, respirando com a ajuda de aparelhos) me leva a pensar neste episódio emblemático do gangsterismo denominado “capitalismo financeiro”, que arruinou centenas de milhões de famílias pelo mundo afora. O filme ganhou o Oscar de Melhor Documentário, uma atitude corajosa da Academia, ou talvez nem tanto - fico imaginando quantos dos seus membros perderam suas poupanças devido às maracutaias que o filme denuncia e expõe.

Duas coisas aconteceram. De um lado, a omissão dos governos em fiscalizar esse mercado, impor limites, atribuir responsabilidades, investigar os delitos e punir os transgressores. (É para isso que existem os governos, amigos, e isso, por incrível que pareça, não é cerceamento das liberdades individuais. Pelo contrário.) Do outro lado, a emergência de uma casta de executivos, economistas, altos funcionários, advogados e políticos que descobriram uma maneira rápida de fabricar dinheiro imaginário tendo como matéria-prima o dinheiro real dos correntistas e aplicadores.  Esse dinheiro real era multiplicado 100 ou 200 vezes numa ciranda de transações cada vez maiores, pagando dividendos fantásticos. E criando uma situação de extremo risco, porque era um castelo de cartas. No dia em que tombou a primeira, tombaram todas.

Quando os correntistas e aplicadores perguntavam timidamente se aquilo era seguro, todos os consultores diziam que sim, sem dúvida. Mesmo sabendo que não era.  É impressionante a cara-de-pau deles no filme, interrogados nas CPIs, tirando o seu da reta e dizendo que o que tinham passado para os clientes “era apenas uma opinião”, e que os clientes seguiram aquela opinião porque quiseram. Uma super-fraude organizada para enriquecer às custas dos leigos; uma farra que durou quase uma década.

Eu já tinha visto esta história por alto nos telejornais da época, mas é outra coisa ver os principais trambiqueiros (e os principais denunciantes) entrevistados por quem entende do assunto. Não vou transcrever aqui a cadeia de fatos, os números, os episódios. Está tudo no filme (em qualquer locadora, com versão comentada pelo diretor, ou para download aqui, com legendas: http://bit.ly/QseKmX), no websaite do filme (http://www.sonyclassics.com/insidejob/), e por aí afora. Poderia se intitular: ”O Começo do Fim”.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

2983) "Um Livro de Nonsense" (22.9.2012)




Entre os muitos centenários comemorados este ano (Luiz Gonzaga, Nelson Rodrigues, Adoniran Barbosa, Jorge Amado, Herivelto Martins, Mazzaropi, etc.) há um (na verdade, um bicentenário) que quase passava despercebido em nosso país, por ser de um poeta estrangeiro e obscuro. Em 1812 nasceu Edward Lear, poeta e ilustrador inglês, um dos grandes mestres do “nonsense” ou do absurdo.  Lear foi apontado como influência em autores tão diferentes quando John Lennon e James Joyce, e embora não tenha sido nunca um dos “grandes nomes” da poesia inglesa tem em torno de si um pequeno culto de admiradores dedicados.

Tão dedicados que enfrentam a complicada tarefa de verter para outras línguas os seus versinhos sem sentido, que ele mesmo ilustrava de maneira muito divertida. Lear cultivou o limerick,, uma forma de poesia inglesa que consiste numa estrofe de cinco versos onde o 1, o 2 e o 5 são longos e rimam entre si, e o 3 e o 4 são curtos e rimam um com o outro. O limerick é tipicamente uma estrofe meio absurda e meio obscena para ser cantada em público enquanto se toma cerveja num bar. Para ter uma idéia de como se canta, lembrem a melodia do desenho animado de Popeye, aquela que diz “Oh Popeye the sailor man...”  Um limerick se encaixa aproximadamente numa melodia como aquela.

Vinicius Alves arriscou-se a traduzir e homenagear Lear em seu centenário, e publicou este ano Um Livro de Nonsense (Florianópolis: Bernúncia, 2012), um livro destinado a “crianças de 8 a 88 anos”, com 44 limericks de Lear. O livro traz na página esquerda o original inglês (com a ilustração do autor) e na página oposta a tradução, que sempre toma inúmeras liberdades, mantendo uma certa semelhança com o original mas pulando para direções inesperadas. Lear empregava muitos nomes próprios (pessoas e lugares) em suas rimas, e o tradutor brasileiro vê-se forçado a inventar outros, que sugerem novas rimas, e assim por diante. Vinicius Alves também interfere (de forma positiva) na estrutura do limerick de Lear, o qual tinha o hábito de repetir na última linha a frase da primeira; alguns tradutores optam por evitar essa repetição, criando um verso novo. (Eu teria feito o mesmo.)

Veja-se este exemplo: “There was an Old Man of Berlin / whose form was uncommonly thin; / till he once, by mistake, / was mixed up in a cake, / so they baked that Old Man of Berlin”, que vira: “Havia um Velhinho em Berlim, / mais magro que o meu dedo mindim, / até que num dia errado / à massa ele foi misturado, / pelas doceiras que faziam quindim”. O divertido nessas traduções é ser fiel, não às frases, mas ao espírito lúdico, trocadilhesco e irreverente do original.

2982) Escrever e respirar (21.9.2012)



(Londres, 1940)


Suponhamos que daqui a 100 anos a atual crise ambiental se agravou a um tal ponto que a poluição envenenou a atmosfera de modo irremediável. Para sobreviver, a humanidade construiu imensas usinas produtoras de cilindros de oxigênio, que são acoplados aos nossos narizes desde o momento em que o cordão umbilical do bebê é cortado na maternidade. Todo ser humano vive feito um mergulhador, com aquele trambolho de metal numa mochila às costas e os tubos flexíveis conduzindo aos pulmões o gás indispensável à vida.  É de graça? Quem dera. As indústrias e os governos cobram, e cobram caro por isso. Mas todo mundo paga, ou melhor, quem está vivo é porque consegue pagar. Os que não conseguiram não pertencem mais à paisagem.

Um belo dia, um grupo de indústrias independentes inventa um processo químico de limpar a atmosfera e num piscar de olhos, em 20 ou 30 anos, o ar volta a ser uniformemente respirável, ou pelo menos fica igual a este ar que respiramos em 2012. E agora? O mundo entra em crise.  Dezenas de milhões de desempregados superlotam a Praça Tahir, a Plaza de Mayo, Wall Street, o Vale do Anhangabaú. “Queremos de volta a indústria do oxigênio”, bradam eles, arquejantes (e meio bêbados, claro, seus pulmões não estavam acostumados àquela overdose). Os governos arrancam os cabelos porque vão ficar sem os 71% de impostos que cobravam sobre a indústria respiratória. Filósofos ponderam: “Respirar de graça empobrece o senso de responsabilidade dos cidadãos. E esse desperdício de oxigênio não-respirado, francamente!”.

É uma crise assim que a tecnologia digital está precipitando num mundo que estava deixando de ter Cultura para ter Indústria Cultural. Os aspectos industriais e suas prioridades tomaram a frente, e a gente criou este universo surrealista em que a Cultura, que é o compartilhamento livre de informações e contatos entre as pessoas e os grupos, virou uma “commodity”, e nos preocupamos mais com a geração de empregos do que com a geração de idéias. É uma grave crise para todo mundo que ganhava dinheiro com música, filmes e livros – por uma coincidência sinistra, as três coisas com que eu próprio ganho a vida. O que fazer?  Ser contra? Não, amigo. Descobrir maneiras alternativas de ganhar dinheiro. Cultura é oxigênio, não pode ser nem estatizada nem privatizada, pertence aos animais individuais que somos, e não a Instituições. Na nossa cultura, aceitamos como normal que não se ganhe dinheiro para pular carnaval ou para fazer sexo.  Por que essa atitude não pode ser estendida a outras atividades?  Por que tudo tem que ser medido em termos de dinheiro?  Há mil outras maneiras de ganhar dinheiro.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

2981) Galera e games (20.9.2012)













Num ótimo ensaio na revista Serrote (http://bit.ly/NLRZYc), o escritor Daniel Galera examina a experiência dos videogames e procura apontar o que ela tem de diferente, de novo e de útil para nós. Essa discussão é parecida com a de quase um século atrás sobre “o específico fílmico”. O específico fílmico era, segundo os teóricos, um modo de experimentar o mundo através do cinema que não podia ser proporcionado pela literatura, pelo teatro, por nenhuma outra arte.  Claro que cada teórico via esse “específico” de uma maneira diferente.  Para Rudolf Arnheim, por exemplo, eram as limitações da imagem cinematográfica que produziam sua linguagem nova, única: o fato de ser limitada por um retângulo, de ver as coisas por um só ângulo de cada vez, etc.

Galera indica uma diferença essencial nos games, o que ele chama de “narrativa procedimental”, o fato de que cada jogo precisa ser jogado de maneira ligeiramente diferente, e que é somente jogando que o jogador aprende o modo de jogar o jogo e o objetivo do jogo.  Isso está na raiz da interatividade do jogo, do fato de que ele exige ações e decisões do jogador, coisa que o espectador cinematográfico não precisa executar. No cinema, existe apenas a ação intelectual de interpretar as imagens, mas o espectador não toma decisões sobre o que vai aparecer na tela em seguida. Nesse sentido, o “específico fílmico” requer a observação, e o “específico guêimico” (desculpa aí!) exige a interatividade.

Diz Galera: “A maioria dos ‘gamers’ nem se dá conta de que a narra­tiva procedimental é o que realmente os absorve e fascina enquanto dedicam horas a seus jogos favoritos. Isso não quer dizer que os personagens e o enredo sejam desprezíveis – ao contrário, são essenciais para disfarçar o fato de que estamos interpretando e executando um algoritmo. O enredo entra para nos fornecer tudo o que o algoritmo não pode: uma moti­vação, um início e um fim coerentes, um dilema moral, uma chave para asso­ciar a narrativa procedimental a um universo fantasioso ou a um episódio específico do mundo real. Mas o que jogamos é o jogo. O que nos move, em última instância, é o prazer proporcionado pela interpretação desse conjunto específico de regras, pela descoberta das maneiras como podemos interagir com esse mundo fictício, pelo aprendizado e pela habilidade progressivos que nos permitem, dependendo do jogo, fazer nossa parte para conduzir o programa a seu estado final, à conclusão da história, à obtenção de um desempenho distinto, ao recorde de pontos, ao esgotamento das possibili­dades, à exploração de todo o espaço de jogo, ao uso criativo das variáveis”.


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

2980) Nina vs Carminha (19.9.2012)




Não, amigos, eu não acompanho a novela Avenida Brasil. Aliás, faz anos que a única novela que acompanho é o Campeonato Brasileiro, onde também há heróis e vilões, suspenses e reviravoltas, tragédias e farsas, inícios empolgantes, barrigas intermináveis e nem sempre um final feliz. Mesmo assim, sou um admirador do gênero telenovelesco, ao contrário do que geralmente se pensa dos intelectuais. Gosto de futebol, cordel, forró, pulp fiction, de tudo que é popularesco; como não gostarei de telenovela? A diferença, acho, é que eu não gosto de qualquer telenovela, só gosto das que prestam.

Li comentários recentes de outros jornalistas, como Maria do Rosário Caetano, em seu Almanakito eletrônico, que disse dias atrás: “Que mal o ‘esticamento’ de Avenida Brasil está fazendo a esta telenovela, heim???  Sem assunto e sem poder resolver a trama, João E. Carneiro está cometendo terríveis atentados à verossimilhança e enchendo linguiça até mais não poder! Quem ainda aguenta as caretas e esgares da Carminha? E o chove não-molha do casal Caruso-Giardini? E Cadinho e suas três mulheres (aliás, este sempre foi um dos pontos fracos da novela, porque caricato demais!!!)”.

E ela cita Zuenir Ventura, que comentou, aludindo à cena do dinheiro roubado a Nina após sair do banco: “Nina, moça viajada, é, na verdade uma tonta, ou pensa que a gente é. Além de desconhecer a existência de cheque e transferências bancárias, não sabe que os bancos possuem cofres para guardar em segurança as fotos que fez de Max e Carminha se beijando e escondeu na casa dos outros".

Concordo com as críticas, principalmente esta de Zuenir, porque vi a cena do roubo e pensei o mesmo. A novela é um gênero mais visual do que o cinema, porque se dirige a uma platéia mais diluída e desatenta. Numa novela não existe dinheiro eletrônico, virtual.  Dinheiro tem que ser em espécie, algo visível, um pacote embaixo do braço. É o mesmo princípio que faz um personagem ir discutir assuntos pessoais na casa do outro, em vez de telefonar. A novela vive do confronto físico, olho no olho, mesmo quando isso impõe violações tremendas à verossimilhança. Neste aspecto, ela se parece mais com uma anedota do que com um romance. O romance, mesmo buscando efeitos, tem um certo compromisso com o real. Numa anedota, tudo que parece com real só existe em função do efeito, e assim é a telenovela. Não porque o público seja bobo. 50 milhões de espectadores devem ter dito: “Mas essa Nina é burra! Sair do banco assim, com o dinheiro na mão!”. Mas eles sabiam o efeito que isto preparava. Puseram as duas coisas na balança, fruíram o efeito e deram de ombros para a plausibilidade.



terça-feira, 18 de setembro de 2012

2979) O mundo islâmico (18.9.2012)




Fico com a pulga atrás da orelha quando leio na imprensa generalizações do tipo “os argentinos são egocêntricos”, “os baianos são preguiçosos”, “os políticos são desonestos”, “os sertanejos são simplórios”, “os cientistas são insensíveis”… Pobre imprensa: tão sufocada pelos prazos curtos, tão obrigada a traficar clichês. Todo clichê parece fazer sentido, porque (é triste, mas é verdade) o alcance mental de muita gente só vai até aí. Para quem raciocina desse jeito, todas as categorias acima são homogêneas, compartilham as mesmas características. Meus camaradas, nenhuma categoria no mundo é homogênea. Talvez os átomos de um elemento químico sejam todos iguais, mas mesmo nesse caso eu não boto a mão no fogo.

O websaite da emissora árabe Al-Jazeera publicou um artigo da antropóloga Sarah Kendzior (http://aje.me/UaDEcd) criticando o uso indiscriminado da expressão “o mundo islâmico”, um conceito que envolve numerosos países e centenas de milhões de pessoas.  Algo de uma complexidade que dá tontura só de pensar, e ainda assim lemos todo dia expressões como “as mulheres não têm liberdade no mundo islâmico…”.  Dizer isso é deixar de lado incontáveis diferenças políticas, econômicas e históricas entre todos esses países que cultivam a mesma religião.  

Diz ela: “Após a destruição da embaixada dos EUA em Benghazi e as mortes de quatro norte-americanos, aconteceu um protesto contra as pessoas que os mataram. Cidadãos líbios ergueram cartazes em inglês dizendo ‘Benghazi é contra o terrorismo’, e “Desculpem, americanos, estas não são ações do nosso Islã e do Profeta’. (…) Mas explicações assim não deviam ser necessárias. Não se deveria imaginar que pessoas comuns compartilham as idéias de criminosos violentos que pertencem à mesma fé”.

Nenhum de nós ficaria satisfeito com um julgamento moral ou psicológico sobre “o mundo cristão” que botasse no mesmo saco os países onde o cristianismo é predominante e aplicasse um julgamento a todos. Segundo Kendzior, buscando no Google a expressão “the Christian world” dá 5,8 milhões de resultados, enquanto a frase “the Muslim world” dá mais de 87 milhões. Não é preciso dizer que quem usa esta última são justamente as pessoas do Ocidente, e que grande parte delas pensa que os muçulmanos são iguaizinhos uns aos outros, como se tivessem saído de uma linha de montagem. Preconceito pessoal é uma coisa perigosa. Mais perigoso ainda é o preconceito cultural, a incapacidade, no interior de uma cultura, de alguém entender uma cultura diferente da sua. Pior: de enxergar a outra cultura, de perceber que ela é tão variada, dinâmica e contraditória quanto a sua.

domingo, 16 de setembro de 2012

2978) Tempestade de Dylan (16.9.2012)




O novo disco de Bob Dylan, Tempest está chegando às lojas (ou melhor, já pode ser ripado livremente). O Bardo aproveitou a ocasião para dar mais uma entrevista à revista Rolling Stone, na qual solta o verbo sobre os críticos com uma irritação que há um bom tempo não demonstrava (“all those motherfuckers can rot in hell”). Bem, como é tempo de política, ele deve estar se dirigindo aos críticos republicanos.

Já escutei uma faixa no YouTube, “Duquesne Whistle”, que mais uma vez não é rock, começa como uma daquelas cantigas “honey pie” dos anos 1930, com uma bateriazinha básica, guitarra slide, órgão de apoio... Tem um clima de botecos clandestinos da Lei Seca, ainda com um glitter e um charme dos anos 1920, mas já com um cheiro de fumaça, poeira e pólvora da Depressão dos 30. Não é rock, como aliás não têm sido os últimos álbuns de Dylan. É uma raiz melódica do rock, uma raiz mais remota que o blues, ainda que menos poderosa. Curiosamente, uma raiz que Dylan compartilha com os Beatles, cuja música entre 1967 e 1969 bebeu nessa fonte “antiquada”, graças principalmente a Paul McCartney, cujo pai tinha sido músico de banda nesse período.

Dylan retoma na entrevista a discussão sobre os versos que andou “pedindo emprestado” a outros autores em letras de canções recentes. Os casos mais notórios são o livro Confessions of a Yakuza de Junichi Saga e os poemas de Henry Timrod (1828-1867), dos quais Dylan teria usado frases inteiras. Diz ele:

“No folk e no jazz a citação é uma tradição rica e enriquecedora. Alguém aí já ouviu falar em Henry Timrod? Quem de vocês leu os livros dele ultimamente? E quem foi que o trouxe à evidência agora? Quem fez vocês se interessarem por ele? Perguntem aos descendentes dele o que acham dessa discussão. E se vocês pensam que é fácil citá-lo, e que isso pode lhes ser útil, vão em frente e vejam o que conseguem. Estou trabalhando dentro da minha arte, dentro das regras e das limitações dela. Existe aí gente autorizada que pode explicar isso melhor do que eu. Chama-se ‘escrever canções’. Tem a ver com melodia e ritmo, e depois disso vale tudo. Tudo que você usa fica sendo seu. Todos nós fazemos isso”.

E antes que qualquer zé-mané se meta a copiar versos alheios, faço eu minha advertência final: você só tem direito de copiar 10% do que usa, e seus 90% têm que ser melhores do que o material alheio que você vier a usar. É justamente o caso de Dylan. Ele usa o alheio, mas num contexto tal que o alheio fica valorizado e enriquecido pelo novo contexto. No caso de Junichi Saga, pelo menos, ele afirmou sentir-se honrado por ter frases suas citadas por Dylan.