quarta-feira, 12 de setembro de 2012

2974) Paralímpico? (12.9.2012)




Não sou a única pessoa que se surpreendeu ao ser avisado, pela TV, que os Jogos Paraolímpicos chamam-se agora Jogos Paralímpicos. Não vi a menor razão para isso, porque mesmo que fosse necessário eliminar uma dessas vogais do meio da palavra (“...ao...”) o resultado, ao meu ver, deveria ser algo como “parolímpico”.  Por que?  Porque olímpico vem de Olimpíadas, palavra que por sua vez vem de Olimpo, o monte Olimpo da Grécia, onde viviam virtualmente os deuses antigos. Pra mim não faz o menor sentido mutilar a raiz da palavra amputando esse “O” inicial. Se alguma vogal tem que cair, que caia a do prefixo, ora. Não dizemos “hidrelétrico”?

O saite oficial do Comitê Paralímpico Internacional diz apenas: “A palavra paralímpico deriva da preposição grega ‘para’ (= ao lado de, ou ao longo de) e a palavra ‘Olímpico’. Seu significado é que os Jogos Paralímpicos são jogos paralelos às Olimpíadas, e ilustram como os dois movimentos existem lado a lado”.  Ninguém me explicou até hoje por que motivo os ingleses derrubaram o “O” olímpico, e espero que haja uma boa razão linguística e morfológica para esse absurdo, porque sentido aparente não há nenhum. (Talvez quisessem evitar a semelhança com “parole”, liberdade condicional?...)

O professor Pasquale Cipro Neto veio ao meu socorro em sua coluna (intitulada “Paralímpico: haja bobagem e submissão”) na Folha de SP (http://bit.ly/RnCAwl), que cito a seguir:

“A formação de ‘paraolímpico’ é semelhante à de termos como ‘gastroenterologista’, ‘gastroenterite’, ‘hidroelétrico/a’, ‘socioeconômico’, das quais existem formas variantes, em que se suprime a vogal/fonema final do primeiro elemento (mas nunca a vogal/fonema inicial do segundo elemento): ‘gastrenterologia’, ‘gastrenterite’, ‘hidrelétrico/a’, ‘socieconômico’. O uso não registra preferência por um determinado tipo de processo: se tomarmos a dupla ‘hidroelétrico/hidrelétrico’, por exemplo, veremos que a mais usada sem dúvida é a segunda; se tomarmos ‘socioeconômico/socieconômico’, veremos que a vitória é da primeira. O fato é que em português poderíamos perfeitamente ter também a forma ‘parolímpico’, mas nunca ‘paralímpico’, que, pelo jeito, não passa de macaquice, explicitação do invencível complexo de vira-lata (como dizia o grande Nélson Rodrigues)”.

Resumindo: os países de fala inglesa produziram a forma “paralímpico” e a impuseram aos demais países, que vêm a reboque na criação de organismos internacionais, entidades, eventos, etc. Estes se sentiram na obrigação de adotar essa forma, mesmo que ela não faça o menor sentido em seu próprio idioma. Não é o primeiro nem será o último caso em que isso acontece.


terça-feira, 11 de setembro de 2012

2973) Roberto Silva (11.9.2012)





“Hoje não tem ensaio na Escola de Samba... / O morro está triste e o pandeiro calado”. A manhã de domingo trouxe a notícia temida há muito tempo: a morte de Roberto Silva, o maior sambista brasileiro. Tinha 92 anos, e meses atrás eu lera que estava muito doente.  Soube agora que tinha câncer de próstata.  Os sambas de Roberto Silva marcaram minha infância e adolescência, porque foi durante os anos 1950-60 que ele lançou sua coleção de quatro LPs Descendo o Morro, cujas canções tocaram nas rádios do Brasil inteiro. Veio a Jovem Guarda, veio o Tropicalismo, o Rock-BR, e Roberto desapareceu. Ressurgiu com força total aos 80 anos, e foi num artigo de Ruy Castro que fiquei sabendo do relançamento em CD da série Descendo o Morro, um CD duplo que traz todos os quatro discos.

Maior sambista brasileiro?  Que história é essa? E Paulinho da Viola, Martinho da Vila, etc.?  Bem, em primeiro lugar Roberto corre noutra raia, porque é mais cantor do que compositor, é do tempo do cantor intérprete, que grava as composições alheias. Em segundo lugar, se você fizer uma enquete com todos os candidatos a maior sambista brasileiro e tocar no nome “Roberto Silva”, o mais provável é que todos eles ponham um joelho em terra e peçam-lhe a bênção. Ele foi um artista fundador de um estilo, com sua voz grave, encorpada, expressiva, capaz de sutilezas de ironia ou de romance; uma espécie de Orlando Silva com gingado de malandro e repertório de morro.

Tive a alegria de vê-lo ao vivo no Cine Odeon, na Cinelândia, num histórico show de samba em que ele subia ao palco acompanhado de uns 20 músicos para cantar seus grandes sucessos como “Amanhã eu volto”, “Ai que saudade da Amélia”, “Emília”, “Errei, erramos”, “Falsa baiana”, “Agora é cinza” e por aí vai.  Como todos os cantores de sua época, gravou diversos estilos, incluindo bolero e samba-canção. Uma das minhas preferidas é “Jornal da Morte”, que comentei nesta coluna no ano passado (http://bit.ly/RA39i1).

O samba, que já foi o “centrão” da música brasileira, foi cedendo espaço a novos ritmos a cada década que passou, e hoje não é mais o centro, não é mais o “mainstream”, é um gênero como os demais.  Isso não significa que esteja decadente. Jornalistas param de ouvir samba e começam a achar que com a ausência deles o samba morreu. Não morreu, mas quase foi fagocitado por subgêneros de sucesso como o pagode, tanto o pagode verdadeiro de fundo de quintal quanto o pagode estilizado e “axézado” das bandas de show na praça. O samba continua a se multiplicar em talentos e não perdeu a medula rítmica, melódica e poética que foi consolidada pela geração a que pertenceu Roberto Silva.


domingo, 9 de setembro de 2012

2972) Os precogs de Dick (9.9.2012)


(Philip K. Dick)


Em Realidades Adaptadas, coletânea de contos de Philip K. Dick (Ed. Aleph, 2012), aparecem alguns contos do princípio da década de 1950 em que Dick começou a fazer experiências com os personagens a que viria a chamar de “precogs”, pessoas dotadas de precognição, a capacidade de adivinhar o futuro. A palavra “adivinhar”, neste caso, é um barbarismo, e a usei apenas para denunciar o quanto os maus hábitos verbais prejudicam nossa capacidade de entender as coisas. Adivinhar é pensar numa coisa de maneira meio aleatória, sem justificativa, sem nenhum esforço especial, e aquilo depois se revela verdadeiro. Não é isso que acontece com os precogs de Dick. O conto “Relatório Minoritário” (que deu origem ao filme Minority Report, de Spielberg) ajudou muito a popularizar esse conceito.  Os precogs são capazes de antever os diversos futuros possíveis a partir de um determinado momento; enquanto certos atos não são praticados, vários resultados podem coexistir.  O presente, para eles, é como um dado rolando, só que eles conseguem perceber que há mais fatores induzindo que dê, por exemplo, o 2 e o 5 do que o 4 ou o 3 – e essas condições mudam sem parar, a cada minuto que passa.

O que acontece, segundo Dick, é que esses futuros possíveis são instáveis. A melhor comparação com isso, na vida real, é a cobrança de um pênalti no futebol. Quando o jogador parte para a bola, várias coisas podem acontecer, na verdade estão a “um tantinho assim” de acontecer, mas estão sujeitas a micro-decisões que o chutador e o goleiro tomarão nos segundos finais.  No conto de Dick, os três precogs que trabalham para a polícia preveem os crimes antes que eles sejam cometidos, mas nunca há 100% de certeza de que o crime acontecerá, como no pênalti não se tem certeza de que o gol acontecerá. Daí que a visão de cada “precog” dê origem a um relatório sobre esse crime possível, e quando dois desses relatórios (a maioria) coincidem, a polícia entra em ação para fazer com que o crime não aconteça. A trama do conto de Dick é baseada na existência do terceiro, o “relatório minoritário”, que ele usa para tornar o enredo mais surpreendente, cheio de reviravoltas.

O filme de Spielberg foi um dos poucos casos em que a idéia original de Dick foi respeitada, encorpada e aperfeiçoada. O uso de painéis holográficos superpostos para representar as visões dos precogs é notável, e transmite bem a idéia sugerida por Dick de que o futuro já existe neste momento presente, mas existe num estágio de larva, de embrião, alguma coisa frágil e trêmula que luta para se impor e acontecer; e cada futuro que acontece sacrifica a existência de todos os demais.

sábado, 8 de setembro de 2012

2971) O tradutor e o estilo (8.9.2012)



(Sarolta Ban)


Uma obra literária consta basicamente de enredo e estilo. A história que é contada e as palavras escolhidas para contar essa história. (Sim, sei que tem muito mais coisas, mas bora em frente.) Tem gente boa de enredo e que escreve apenas mais-ou-menos, e tem gente que escreve super bem mas só imagina histórias banais. A grande e a pequena literatura estão cheias de exemplos.

Essa divisão de tarefas mentais explica, parcialmente, a existência de grandes tradutores. Tem gente que diz que o tradutor é um escritor frustrado.  Não vejo bem assim. Há mil influências pessoais e variáveis de vida que conduzem um indivíduo a essa profissão quase mediúnica, mas eu diria que muitos tradutores são pessoas que são refinadas em estilo mas não têm (ou não tentam ter) capacidade fabulatória, capacidade para inventar histórias, imaginar personagens a partir do zero, produzir peripécias. Escritores assim muitas vezes tornam-se tradutores, porque na tradução é proibido mexer no enredo, mas é preciso saber reproduzir inúmeros estilos.

O que é traduzir?  É escrever um livro que já está escrito, só que escrevê-lo em português. O livro está lá, prontinho da silva, em russo, alemão ou espanhol.  O tradutor não pode cortar cenas nem adicionar cenas.  Não pode mudar o desfecho. Não pode reduzir uma descrição demasiado longa, mesmo que não goste dela. Não pode alterar um diálogo. Por outro lado, toda essa lista do “não pode” pode ser revertida, positivamente, para um “não precisa”: ele não precisa fazer nada disso, porque já está feito, o autor russo ou alemão já se deu o trabalho de arrancar tudo a fórceps do próprio cérebro, e entregou a história finalizada para que ele, o tradutor, faça o que mais gosta: tecer sua prosa como uma aranha tece sua teia.  E acreditem, amigos, existem poucos prazeres superiores ao de tecer mentalmente uma frase inteira e colocá-la no papel antes que o vento (ou a campainha do telefone) a leve embora.

Claro que o processo não é indolor, mas se a gente avisar o quanto dói os jovens saem correndo e vão fazer o concurso do Itamaraty. Melhor falar do prazer de ler uma história brilhante e bem escrita e aceitar o desafio de reescrevê-la de tal modo que ela continue brilhante e dê a impressão de ter sido escrita em português. O tradutor é um camaleão de estilos, um coringa de vozes narrativas. Ele se veste na pele do autor a quem traduz, introjeta sua personalidade, consegue pensar igual a ele como o Pierre Menard de Borges sonhava pensar igual a Cervantes. Enredo? O enredo é um presente que o autor original lhe dá de graça, e ao qual ele deve retribuir com uma prosa feita de sangue, suor e café.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

2970) Anedota búlgara (7.9.2012)


(Drummond jovem)


Faz muito tempo que os czares saíram da paisagem política do mundo, e periga uma boa parte dos jovens de hoje não terem a menor idéia do que significa essa palavra. Ela deriva, aliás, do título de “César” que os imperadores romanos passaram a se atribuir em homenagem a Julio César; o termo gerou “Czar” em russo e “Kaiser” em alemão. Mas no tempo em que Carlos Drummond publicou seu primeiro livro, Alguma Poesia, ou seja, em 1930, os czares tinham desaparecido há bem pouco tempo, mais precisamente em 1917, quando a Revolução Russa não apenas os arrancou do poder mas fuzilou sumariamente a família inteira, crianças inclusive. Os czares foram no século 19 um símbolo da sofisticação e da gastança desbragada de todos os potentados. O Museu Hermitage, em São Petersburgo, é um resíduo da riqueza cultural patrocinada pelos czares, cujos equivalentes no mundo de hoje seriam os xeiques de Dubai e seus palácios de mil-e-uma-noites high-tech. 

Em todo caso, Drummond não se referia aos czares da Rússia, mas aos da Bulgária, em seu poema “Anedota Búlgara”, que diz: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, / ficou muito espantado / e achou uma barbaridade”. A Bulgária teve seus próprios czares até 1943, quando morreu o último deles, Bóris III, que era apenas oito anos mais velho do que o próprio Drummond. Não deve ser ele o personagem do poema, pois consta que era um bom sujeito, tendo inclusive peitado Hitler durante a II Guerra e se recusado a permitir a extradição de judeus.

O poema de Drummond, com sua malícia inocente, é uma polaroidezinha da psicologia desses potentados. Um poderoso cria sua própria escala de valores, seus próprios dez mandamentos, sua própria declaração dos direitos do homem. Ao invés de ser um sujeito apenas sádico, ele mistura sadismo e humanismo e os projeta em direções inesperadas. A biografia de qualquer imperador mostra que até os piores entre eles têm qualidades e virtudes que seríamos capazes de admirar em alguém. Mandam matar milhões numa guerra, mas protegem as artes e as ciências; são cruéis com os súditos mas são maridos carinhosos e pais dedicados; e assim por diante. O czar drummondiano é um personagem de cartum retratando, com a aparente ingenuidade de uma pintura de Chagall, essa deformação de perspectiva. Não é muito distinto de outros personagens do mundo de hoje: torturadores que ouvem Mozart, ditadores que financiam bienais de arte, pedófilos que são bons chefes de família, bilionários capazes de deixar anêmica a economia de um país e depois dar-lhe de presente uma dúzia de creches.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

2969) A arte do photoshop (6.9.2012)




O termo “photoshop” virou hoje em dia sinônimo de alteração, interferência ou falsificação de uma imagem. A técnica digital fez com que até um desocupado e leigo como eu seja capaz de pegar uma foto e apagar a presença de uma pessoa, coisa que antigamente só o Departamento de Propaganda do Kremlin era capaz de fazer. Engana-se quem pensa que isso surgiu com a imagem digital. No tempo do negativo em celulóide e da cópia em papel havia mil técnicas para interferir na imagem, como aliás o Kremlin (e o Pentágono) faziam a dar com o pau. Claro que nem sempre isso era feito por manipulações maquiavélicas. Os fotógrafos antigos interferiam na imagem, em geral, para obter efeitos estéticos mais interessantes, ou até (vejam só a ironia!) para produzir imagens mais parecidas com a realidade (ou com o modo como a realidade é vista a olho nu). Os negativos antigos, por exemplo, reagiam de forma desigual à luminosidade do céu e à luz refletida na paisagem, de modo que era hábito, cem anos atrás, tirar duas fotos do mesmo ângulo, com medições de luz diferentes, e depois recortar e colar o céu de uma e a paisagem de outra.

A interferência na imagem, portanto, pode ter como objetivo produzir: 1) imagens mais realistas; 2) imagens fantásticas ou impossíveis; 3) imagens esteticamente mais interessantes onde o realismo fica em segundo plano (as fotos do Instagram, hoje em dia, produzem coloridos fantásticos que nossos olhos não veem); 4) imagens que sutilmente querem se fazer passar por autênticas, sem dar a perceber que foram manipuladas (o efeito Kremlin-Pentágono).

O museu Metropolitan (Nova York) vai inaugurar em outubro uma exposição intitulada “Falsificando: a Fotografia Manipulada Antes do Photoshop” (ver: http://bit.ly/KHaYSc), com mais de 200 amostras produzidas entre as décadas de 1840 e 1990. São exibidas diversas técnicas de manipulação: múltipla exposição (várias imagens num só negativo), imagens combinadas (colagem de partes de diferentes negativos), fotomontagem, pintura e retoque tanto de negativos quanto de cópias em papel.

Quase dois séculos de existência da fotografia produziram uma cultura extremamente dependente da imagem, onde cada pessoa se transforma num São Tomé (“só acredito no que vejo”), mas um São Tomé ingênuo (“já que estou vendo, deve ser verdade”). O fato de hoje sabermos que uma fotografia é tão pouco-ou-muito confiável quanto um desenho ou uma pintura não desvaloriza nenhuma dessas técnicas. Apenas nos deixa mais cautelosos quando quisermos usar uma foto como prova de qualquer coisa, inclusive de que o mundo é real e que nós existimos de fato.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

2968) Meu habitante (5.9.2012)



(The Bully, Alexander Jansson)


Não sei de onde ele veio nem há quanto tempo me habita. Está incrustado em mim de tal maneira que nada me custaria supor que eu e ele somos um só.  Sei que não somos porque minhas vontades não coincidem com as dele, nem meus impulsos, nem nada na minha vida.  Vivemos num permanente desacordo e desencontro, e ainda assim já não imagino como poderia ser minha existência sem essa presença invisível que desassossega meus propósitos e enche meus dias de sustos, de revelações. 

Há momentos em que mantenho o controle das pernas que me conduzem pela calçada, mas é ele quem obriga meus olhos a seguirem uma silhueta feminina que vem e passa. Há dias chuvosos em que nada me apetece mais do que ficar encolhido sob os cobertores, na penumbra do quarto, mas ele me obriga ao banho, ao metrô, à Biblioteca, à descoberta de livros que nesse dia se tornam um recomeço para minha vida. Quando penso em distrair minha madrugada saltando de saite em saite na web, passeando a mente sem pensar, ele me faz cortar de brusco a conexão, abrir um arquivo de texto e produzir algo que me inquieta, me faz derramar lágrimas de que eu não me sabia possuidor, e deixar cravado ali um episódio obscuro, relatando coisas que não aconteceram na vida de pessoas que nunca existiram, mas que passam a me servir de espelho ou mapa.

Ele me contraria e me inquieta quando tudo que desejo é sossego e paz, e por outro lado é ele quem me faz desligar a algaravia multicor da TV e me recolher ao quarto, à escuridão, ao teto onde se entrecruzam reflexos dos faróis lá da rua, numa música-de-câmara silenciosa.  Não sei por que me habita. Para obter o que certamente procura poderia estar instalado em qualquer outra pessoa; quem sabe o improvável mérito que enxergou em mim e que o fez preferir meu cérebro e meus olhos aos das pessoas de minha família, aos dos meus vizinhos do lado.

Percebi sua presença desde muito cedo, ainda garoto, e é a ele que atribuo grande parte das minhas contradições de jovem, que hoje na velhice já me parecem tão inevitáveis quanto possuir um lado direito e um esquerdo. Nunca falei dele a ninguém. É ele quem lê os livros e vê os filmes, ele quem escreve e compõe, ele quem faz amor quando desperto e quem sonha quando adormecido; já eu, penso somente em trabalhar, pagar as contas, atender os telefonemas, cumprir os compromissos, obedecer às ordens mudas das tarefas cotidianas.  Durante muito tempo eu o desprezei e repeli como se fosse um intruso, um aproveitador; mas chegamos a bons termos, hoje nos alternamos no controle deste carcaça que envelhece, e não sabemos ainda qual de nós dois será o primeiro a abandoná-la.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

2967) Realidades Adaptadas (4.9.2012)




Realidades Adaptadas é a coletânea de contos de Philip K. Dick lançada há pouco pela Editora Aleph, de São Paulo, dentro da sua ótima linha de clássicos da ficção científica.  Esta coletânea é talvez única no mundo, pois embora os sete contos incluídos aqui tenham sido republicados em numerosas revistas e antologias, este é o único volume que reúne especificamente histórias que foram adaptadas para o cinema. (Por questões de espaço estão ausentes, claro, os romances que foram filmados, como Blade Runner e outros.) Depois da morte de Dick em 1982, o mesmo ano de lançamento de Blade Runner, sua obra foi redescoberta ao mesmo tempo pelo público e pela crítica.  É engraçado ver hoje nas edições da prestigiosa Library of America, cercados de aparato conceitual e teórico, livros que tiveram sua primeira edição em formato de bolso, com capas de “pulp fiction”.  O prêmio Philip K. Dick, concedido anualmente, é destinado ao melhor livro cuja primeira edição saiu no menosprezado formato de bolso, ou “paperback”. 

O mais interessante nesta antologia é avaliar a distância que vai, por exemplo, do conto original “Lembramos para você a preço de atacado” ao filme O vingador do futuro, com Arnold Schwarzenegger (não vi ainda a refilmagem recente). O conto original é apenas o ponto de partida – um operário paga para receber um implante de falsas memórias em que ele é um espião que retornou de uma missão secreta em Marte, mas a partir de certo ponto não sabemos mais se isto aconteceu de fato ou se a tentativa de implante despertou memórias reais porque ele era de fato um espião. 

Essa ambiguidade do “real recordado” é discutida por Freud e por inúmeros psicólogos, que desmascaram o modo como estamos o tempo inteiro reescrevendo as coisas que lembramos.  Evocar um fato da infância, por exemplo, é como abrir um arquivo no computador e olhar o que tem dentro. Ao fechar de novo o arquivo, nós o salvamos com quaisquer alterações que tenhamos feito, mesmo sem querer, durante o acesso. Quanto mais vezes acessamos uma recordação, mais ela vai se contaminando de interpretações, associações de idéias que não estavam presentes no momento original, comparações com outras memórias. A tal ponto que é frequente a gente lembrar com nitidez absoluta de uma coisa que não aconteceu.

No filme essa dúvida se dissipa logo, porque nos dizem que Douglas Quail (Schwarzenegger) era mesmo agente secreto e fim de papo.  O conto de Dick, porém, faz um jogo de espelhos em que a cada interferência na mente no protagonista ficamos mais longe de saber se tudo aquilo era ou não era real. É um conto de 1966 que será sempre atual.

domingo, 2 de setembro de 2012

2966) O artista sem corpo (2.9.2012)




Quem é Marc-Albert Santillo? Citando fatos decorados e repetindo interpretações alheias qualquer pessoa é capaz de conversar meia hora sobre a vida deste artista de vanguarda que durante a última década sobressaltou a vida cultural do Rio de Janeiro.  Fala-se que era neto de diplomata estrangeiro, e que, após a mudança da capital para Brasília sua família decidira continuar vivendo no Rio.  Marc-Albert queria ser artista, teve acesso aos melhores cursos e a professores particulares. Conquistou menções honrosas, e segundos e terceiros lugares em alguns Salões.  Isto o ajudou a conseguir a bolsa que lhe proporcionou doze anos entre Paris (onde preferia morar) e Londres (onde realizou seus trabalhos mais importantes).

De volta ao Rio, Santillo já tinha uma carreira estabelecida e uma obra: cartazes de cinema e teatro, capas de livros, algumas “graphic novels”, exposições individuais, projetos especiais – uma carreira de artista e de designer que seria igual a qualquer outra, se pelo menos as pessoas envolvidas já tivessem visto o artista. Porque ele não era uma pessoa. Era um nome, uma griffe, como Banksy ou como O Chacal. Perdera o contato com a família. Desde as primeiras entrevistas que deu, havia um grupo de pessoas respondendo às perguntas feitas ao artista.  “Qual de vocês é Santillo?”, perguntava sempre alguém. E eles: “Santillo é um de nós, mas na verdade é apenas uma idéia, um vetor, uma seta que aponta uma direção estética. Todos nós somos Santillo”.

Nas entrevistas, sentavam-se para responder, lado a lado, um jovem de barba rala e cabelos longos; outro rapaz, louro, de rosto quadrado e maneiras irrepreensíveis; um mulato envolto em roupas orientais e com expressão pétrea; uma mocinha magra, de óculos, postura agressiva; um rapaz gordo e com um raciocínio mais rápido do que aparentava; outro rapaz de rosto sardento, redondo, que falava com veemência. Havia outros, mas eram estes os que mais vezes apareciam nas ocasiões públicas, encarnando o espírito de Marc-Albert Santillo. “Ele não existe,” diziam; “é apenas um personagem que criamos, um artista cujas idéias inventamos em conjunto, e somos nós que escrevemos suas falas, produzimos suas obras”. Nas entrevistas, dependendo da pergunta, entreolhavam-se por alguns segundos, e então um deles se inclinava para o microfone e produzia uma resposta cabal, definitiva, arrasadora. Santillo era apenas um espírito criado e mediunizado por eles, e o mais impressionante era como sempre pousava em apenas um deles por vez. Algumas interpretações radicais chegavam a afirmar que o Santillo original morrera e havia sido fisicamente canibalizado pelo grupo.

sábado, 1 de setembro de 2012

2965) Charles Burns (1.9.2012)




A maturidade de um novo meio de expressão (p. ex., o cinema, os quadrinhos, a TV, o videogame) não é atingida quando produz obras que atingem milhões de pessoas, ou quando ganha prêmios internacionais, ou quando é analisada e louvada nas torres-de-marfim acadêmicas.  Penso às vezes que essa maturidade é atingida quando esse meio de expressão começa a abrigar cada vez mais artistas fora-de-esquadro, artistas idiossincráticos cujas obras não dá para entender muito bem, mas são obras que inquietam, desconfortam. Não trazem mensagens, palavras de ordem ideológicas ou fórmulas mágicas de auto-ajuda.  São obras excêntricas, personalistas, às vezes herméticas, às vezes chocantes – mas aquele meio de expressão está tão maduro e consolidado como arte e como mercado que essas obras são aceitas e incorporadas ao cardápio ofertado ao público, como a coisa mais natural do mundo.

A maturidade do cinema teria sido alcançada, por exemplo, com os primeiros filmes surrealistas de Luís Buñuel entre 1928 e 1930, e se mantém hoje com a obra anticonvencional e difícil de um David Lynch ou um Raul Ruiz.  Nos quadrinhos, um sinal atual dessa maturidade é a possibilidade de ver as novelas gráficas de um cara como Charles Burns, autor de Black Hole  e agora de Toxic (título da edição francesa). Existe muito de David Lynch nas histórias desse desenhista nascido em 1955: a atmosfera constante de pesadelo, uma sensação philipkdickiana de que aquilo que estamos vivendo não está acontecendo de verdade e vai ceder lugar, a qualquer instante, a algo um pouco mais verossímil mas igualmente delirante.  Seus personagens mudam de rosto e de traço ao longo da história, deparam-se com objetos insólitos que não reconhecem (mas que o leitor reconhece de um trecho anterior), são assaltados o tempo inteiro por flash-backs inexplicáveis de coisas terríveis que lhes aconteceram, ou com as quais eles simplesmente sonharam.

Por que a existência de quadrinhos assim avaliza o amadurecimento das HQs?  Acho que é porque demonstra que aquele meio de expressão acolhe o artista de visão intensamente pessoal e que nem faz sucesso de público (vender milhões) nem de crítica (o reconhecimento oficial da “intelligentzia”). É o artista peculiar que corre-por-fora, o azarão da cultura, o cara a quem cabe realimentar de novas idéias e novas formas um tipo de expressão já consagrado que corre o eterno risco de se cristalizar em função do sucesso financeiro ou do reconhecimento intelectual.  Os pesadelos existencialistas e surreais de Burns não pretendem ser best-seller nem mainstream; e o universo HQ, abrigando-os, prova que está vivo e respirando.