sexta-feira, 27 de abril de 2012

2855) Drummond: "O Sobrevivente" (27.4.2012)



(Drummond, por Dirceu Veiga)


O Modernismo foi, entre muitas outras, coisas, a crise da poesia lírica, a poesia dedicada à expressão do Eu, posta em xeque pelas enormes transformações sociais no Ocidente no período (digamos) 1850-1918.  O mundo deixou de ser simples, e categorias de pensamento que vigoravam há séculos foram pulverizadas durante a vida dessa geração. O lirismo deixou de ser um cortar-e-colar de expressões infalíveis (“seio palpitante”, “virgem pura”, “beijos apaixonados”, etc.) para absorver um olhar um tanto cínico e cúmplice entre o poeta e a mulher amada.  E não só a mulher amada.  Foi também uma crise lírica entre o poeta e sua Pátria (usava-se muito esta palavra naquela época), sua classe social, os métodos de enriquecimento dos seus antepassados, o próprio planeta.

Em “O sobrevivente”, incluído em Alguma Poesia (1930), Carlos Drummond lança seu brado ironicamente apocalíptico: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. / Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia. / O último trovador morreu em 1914. / Tinha um nome de que ninguém lembra mais.”.  CDA devia estar pensando no começo da I Guerra Mundial; curiosamente, quem morreu em 1914 foi o primeiro trovador dos novos tempos (Augusto dos Anjos), da nova visão de mundo, do novo vocabulário, do novo ponto de vista.

O ponto de vista agora é tecnológico, quase de ficção científica: “Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. / Se quer fumar um charuto aperte um botão. / Paletós abotoam-se por eletricidade. / Amor se faz pelo sem fio. / Não precisa estômago para digestão. (...)”  É o fascínio pelo que o século 20 nos prometeu de automatização, de mecanização das tarefas, um mundo dos Jetsons, ecoado por Guimarães Rosa no seu Grande Sertão: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.

Drummond conclui: “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. / E se os olhos  reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio. / (Desconfio que escrevi o poema.)”.  O poeta sobrevive ao fim do mundo pré-tecnológico. Sabendo da necessidade de uma nova poesia para esse novo mundo, e se arrisca nessa nova poética onde o máximo que pode se permitir é desconfiar que um poema foi escrito, mesmo que essa desconfiança seja, naquele momento, a única alteração indicada pelo seu barômetro poético.

2854) A primeira vez de uma palavra (26.4.2012)





(Pandemonium, John Martin, 1825)

Um passatempo dos lexicógrafos é rastrear, em documentos antigos, o primeiro uso documentado de uma palavra.  Sabemos, por uma série de deduções, que certa palavra apareceu no século tal, em tal ou tal contexto, mas é preciso ter uma prova (um livro, jornal, etc.) em que ela apareça oficialmente pela primeira vez.  

Claro que depois dessa descoberta pode-se acabar descobrindo que anos antes havia uma “primeira vez” ainda mais primeira do que a outra, mas, paciência, a ciência é assim mesmo.  Se um novo fato incontestável é descoberto, arquiva-se o fato anterior.  A ciência existe para servir os fatos.

O saite Brainpickings, sempre cheio de pequenos fatos curiosos, publica uma série de exemplos do primeiro uso conhecido de palavras hoje banais (na língua inglesa, claro), de acordo com o Oxford English Dictionary

(Nesta coluna, já comentei o livro O Professor e o Demente, que aborda aspectos da criação desse dicionário: http://bit.ly/J1BatV). 

Ficamos sabendo que “anarquia” (“anarchy”) apareceu primeiro em 1539, num texto de Richard Taverner, definida como “a liberdade ou licença ilegal da multidão”. 

A palavra “pandemônio”, hoje tão popular, surgiu nobremente no Paraíso Perdido de John Milton (1667), onde ele se refere a “um solene Conselho a ser realizado no Pandemonium, a nobre Capital de Satã e seus Pares”.

Infelizmente os registros de primeira vez não mencionam a etimologia (a origem da palavra), porque eu gostaria de saber de onde veio “piquenique” (“pic-nic”), mencionada por Lord Chesterfield numa carta a seu filho em 1748.  

Da mesma época (1754) vem a palavra “cookie”, bolinho, que por vias transversas tornou-se tão popular no Brasil através da Internet: “cookies” são pequenos arquivos que são transportados para nosso computador quando entramos num saite, e que facilitam nosso reconhecimento quando vamos lá de novo.

Algumas dessas palavras se devem a autores clássicos: “audaciosamente” (“audaciously”) a Shakespeare (1598), “shopboy” a Jane Austen (1813). 

No caso de Shakespeare, posso imaginar que se trata de uma formação possível na língua (um advérbio a partir de um adjetivo um tanto rebuscado) mas que nesse caso não ocorrera a ninguém. No caso de Austen, era decerto uma palavra corrente na linguagem cotidiana da época, mas sem registro escrito. 

É bom lembrar que o Oxford Dictionary registra apenas o uso impresso mais antigo; raramente a palavra foi criada pelo autor em questão.  Está livre, oral, solta como a luz do sol. 

Quantas décadas uma palavra precisa estar na boca do povo até que um intelectual se atreva a reproduzi-la na página? 



quinta-feira, 26 de abril de 2012

2853) Os 100 anos do “Eu” (25.4.2012)




Em 1912, Augusto dos Anjos, um modesto professor de escolas públicas, pediu uma grana emprestada ao irmão, juntou com algumas economias que vinha guardando, e publicou seu único livro de poemas: Eu

Esse título minúsculo e gigantesco parecia o anúncio de um enorme narcisismo, mas era o contrário disso.  O poeta fala de si, mas sem nada dos suspiros afetivos e dos arroubos emocionais dos sonetos de seus contemporâneos.  A impressão que se tem é que o  Eu do título é o Universo, e o poeta que assina o livro não passa de um simples amanuense escolhido para ser seu porta-voz. A vastidão cósmica de suas imagens lembra Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick.

Augusto dos Anjos é o primeiro poeta de ficção científica do Brasil, e o maior, até hoje.  Seus poemas são tentativas de visualização de milhões de anos de história das espécies vivas, num Cosmos de forças obscuras ao qual ele, num esforço lírico compreensível, procura muitas vezes atribuir uma consciência semelhante à consciência humana. 

Leituras filosóficas e científicas se misturam nos seus versos com uma ambientação urbana repleta de mendigos, prostitutas, cães vadios, tuberculosos, bêbados, urubus.  Entre a nobreza decadente dos engenhos da Zona da Mata e o panorama sombrio e insalubre das cidades que conheceu (João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro) sua poesia mistura influências contraditórias e até hoje únicas em nossa literatura.  

É como ter Olaf Stapledon, o autor de Star Maker, caminhando pelos becos por onde caminharam Lima Barreto e João Antonio.

Augusto não foi imune ao lirismo do seu tempo, aos modismos do seu tempo.  Basta ver suas Poesias Completas para perceber que ele podia ser tão piegas quanto qualquer outro poeta daquele momento. Era capaz do mesmo sentimentalismo açucarado, do mesmo romantismo da-boca-pra-fora, composto de clichês verbais e de sinetas pavlovianas destinadas a emocionar os leitores já familiarizados com elas.  Mas ao recolher uma pequena parte de sua produção para compor o Eu, o poeta acertou em praticamente tudo.  Seu senso crítico lhe indicou com clareza em que pontos era diferente dos seus contemporâneos – e superior a eles. 

Cada poema ali contido é um paralelepípedo de novidade numa balança crítica que só servia para comparar pozinhos de um lirismo homeopático. O único “defeito” do Eu é não poder ter incluído poemas importantes que Augusto escreveu entre 1912 (ano em que o livro saiu) e 1914, ano de sua morte. (Acho que eu teria incluído alguns poemas pré-1912 também, mas é mero detalhe.) 

O que impressiona no único livro de Augusto não é o quanto foi novo quando surgiu, é o quanto ainda é novo cem anos depois.





terça-feira, 24 de abril de 2012

2852) Jão Balaêro (24.4.2012)


 

Cap. 1 – De como Jão Balaêro não nasceu: surgiu no mundo já pronto, aos dez anos, calçando havaianas diferentes, o cós da bermuda na virilha, a camiseta suja com um nome em inglês, um picolé na mão e o balaio na cabeça, e berrando: “Rampali, tantão!”, frase cujo significado ninguém sabia. 

Cap.2 – De como Jão Balaêro cresceu na feira de Campina, chutando laranja chupada, e foi descoberto por um olheiro que o convidou para treinar nas divisões de base do Corinthians. 

Cap. 3 – De como Jão Balaêro viu-se dias depois numa fazenda no sul da Bahia, trabalhando acorrentado, comendo angu com bolacha seca e dormindo numa antiga cocheira de vacas. 

Cap. 4 – De como Jão Balaêro conheceu, entre os trabalhadores, Natan, um sujeito magro, alfabetizado e veemente que lhe ensinou em poucas semanas o que eram os livros, a mais-valia e o coquetel molotov.  

Cap. 5 – De como Jão Balaêro e Natan, aos gritos de “Rampali, tantão!”, mobilizaram 120 trabalhadores exigindo colchonetes, sabão e sopa de legumes, o que resultou em serem todos chicoteados pelos capangas e pendurados de cabeça pra baixo nas árvores uma noite inteira, para exemplo dos demais.  

Cap. 6 – De como, dias depois, caminhões na rodovia próxima recolheram um número incalculável de caroneiros, enquanto no horizonte se elevava um fumaceiro parecido com o da queima de um depósito de algodão, uma casa grande, 35 capangas e um fazendeiro gordo. 

Cap. 7 – De como Jão Balaêro e Natan desembarcaram de um pau-de-arara no Rio e arrumaram emprego numa funilaria. 

Cap. 8 – De como Natan ensinou a Jão Balaêro o que era uma armadura medieval, um robô e um assalto a banco. 

Cap. 9 – De como a polícia frustrou o assalto de dois homens sem documentos vestindo contrafações feitas de folhas de alumínio. 

Cap. 10 – De como a perplexidade da polícia carioca a fez transferir os dois indigitados para o presídio de Ilha Grande. 

Cap. 11 – De como em poucos meses Natan e Jão Balaêro transformaram o presídio, aos gritos de “Rampali, tantão!”, num serpentário trotskysta, onde até os agentes presidiários discutiam acaloradamente sutilezas estratégicas do tratado de Brest-Litovsk. 

Cap. 12 – De como o Alto Comando das Forças Armadas decidiu acabar com a festa, transferindo Jão Balaêro e Natan para um lugar seguro, mas contou com encarniçada resistência dos presos, que resultou em 87 baixas das forças da legalidade e 238 dos amotinados.  

Cap. 13 – De como finalmente Natan foi explodido com uma granada e Jão Balaêro abduzido num helicóptero da Marinha, onde foi amarrado num saco e jogado no Oceano Atlântico, onde submergiu gritando algo que soou como “Glugluglub, glub-glub!”.


domingo, 22 de abril de 2012

2851) Os fracos não têm vez (22.4.2012)


O romance de Cormac MacCarthy e o filme dos irmãos Coen têm o mesmo título, No Country for Old Men, que foi traduzido aqui como Onde os Fracos Não Têm Vez. É uma citação ao poema “Sailing to Byzantium”, de William Butler Yeats.  O poema do irlandês conta a ânsia de viagem de um homem maduro para longe do país em que vive, um país voltado para os jovens e os deleites da vida. O homem quer ir para Bizâncio e entregar-se a atividades de natureza mais espiritual.  No filme e no livro os indivíduos mais velhos estão diante de atos de violência de uma proporção que lhes parece espantosa, e se queixam (principalmente nas sequências em que aparece o xerife Bell, interpretado por Tommy Lee Jones) de que “os jovens hoje fazem o que bem entendem, e o mundo está perdido”.

Na verdade a culpa nem é dos jovens, a menos que vejamos neles um mercado significativo para as drogas que desencadeiam a verdadeira matança que ocorre ao longo da narrativa. O enredo é uma variante do argumento “Sujeito Descolado Põe as Mãos Sem Querer Numa Fortuna Que Pertence a Gente Braba”.  Daí em diante, a narrativa vai se transformar num jogo de gato e rato onde os gatos são muitos e o rato é um só.  Llewellyn Moss (Josh Brolin) é um ex-veterano do Vietnam cheio de pequenos truques e que sabe usar uma arma, mas além da polícia e dos traficantes ele está sendo caçado por Anton Chigurh (Javier Bardem), um dos vilões mais imprevisíveis e filosóficos que a literatura e o cinema nos deram nos últimos tempos. Chigurh mata por crueldade, mas mata também por algum tipo de missão cósmica que não entendemos bem, mas que parece guiar suas decisões muitas vezes surpreendentes.

Há um diálogo emblemático no filme, quando um xerife idoso diz: “Alguém iria imaginar que um dia, nas ruas do Texas, passariam rapazes com cabelo verde e um osso enfiado no nariz?  E alguém iria imaginar que seriam nossos filhos?”. Os tempos estão mudando. O livro de MacCarthy é uma reflexão sobre a enorme importância da droga dentro de nossa sociedade.  A droga que leva homens a se fuzilarem uns aos outros, a sangue frio, numa chacina progressiva que dura semanas e atravessa várias cidades.  Alguém dirá que estão se matando por dinheiro; mas a droga é um dos meios mais baratos para produzir dinheiro fácil.  É um dos negócios mais lucrativos, em termos do quanto se investe.  A droga significa Prazer para uns e Dinheiro para outros.  Enquanto o Prazer e o Dinheiro forem o objetivo de tudo que fazemos, a sociedade não se livrará da droga. E daqui a algumas décadas em nenhum país existirão pessoas velhas. Todo mundo morrerá cedo – por causa da droga, do prazer e do dinheiro.

sábado, 21 de abril de 2012

2850) Temple Grandin (21.4.2012)




Temple Grandin é uma mulher autista, e tem 64 anos.  Na infância teve professores especiais, mas depois estudou em escolas de crianças normais.  Como se sabe, crianças “normais” não perdoam crianças que sejam um pouquinho diferentes delas. Quando percebem que Fulano é “estranho”, elas mangam, zoam, perseguem, às vezes dão porrada.  Temple Grandin diz hoje que tinha dificuldade em entender a razão daquilo: “Eu pensava que todo mundo pensava igual a mim, e não entendia por que eles me tratavam daquele jeito”.  Todo autista é uma pessoa completa, e toda pessoa é diferente.  Quando alguém tem uma condição especial como autismo, isso é apenas 10 ou 20%, e os outros 80 ou 90% dela são tão imprevisíveis quanto os de qualquer pessoa.  Nenhum ser humano pode ser definido exclusivamente em função de alguma condição especial que possua, seja ela qual for.

Temple estudou Psicologia e tornou-se uma defensora dos “direitos humanos dos animais”, se bem me exprimo.  Planejou fazendas, currais e matadouros menos estressantes para o gado. Mesmo reconhecendo a necessidade do sacrifício do gado para nos alimentar, ela resume sua reivindicação para eles em “uma vida digna e uma morte indolor”.  Incapaz de sentir emoções, como muitos autistas, ela mesmo assim fez muito mais pelos bichos do que muita gente que se comove com a tragédia deles mas não move uma palha em seu favor (eu, por exemplo).

Aqui está uma palestra dela (com legendas em português: http://bit.ly/HLYZQs), “O mundo necessita de todos os tipos de mentes”. É uma mulherona grisalha, com camisa florida de cowboy, um jeito meio masculino. Vi-a pela primeira vez anos atrás, num documentário da TV que mostrava uma engenhoca bizarra que ela construiu, a “máquina do abraço”, uma coisa feita de traves de madeira, roldanas e tudo mais. Ela entrava naquela estrutura, movia controles, e as partes de madeira pressionavam partes diferentes das costas, das pernas e dos braços dela, produzindo-lhe “uma indescritível sensação de bem estar”. Deve ser o que as crianças normais sentem quando são abraçadas e acarinhadas pelos pais.  O fato de Temple ter precisado inventar uma trapizonga mecânica para obter esse efeito mostra, como diria Drummond, que “cada pessoa é diferente e somos todos iguais”. 

Os autistas se fixam em pequenas obsessões, diz ela: animais, automóveis, livros. Pode-se usar essas obsessões para lhes ensinar matemática, desenho, história, etc.  Infelizmente nosso ensino não é (nem tem como ser) personalizado. Existe um conjunto de fórmulas que todos devem assimilar até a graduação e o diploma. Quando os autistas forem maioria (estão aumentando!), talvez isso mude.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

2849) Rehab (20.4.2012)



O café da manhã seria o melhor momento do dia, se não fosse pelo café da manhã. Piada recorrente aqui na clínica. Gostamos do ambiente claro, acolhedor; gostamos de ver, na TV do refeitório, as reprises de I Love Lucy ou A Ilha da Fantasia. (Todas as TVs são ligadas num mesmo canal, para estimular a socialização e a troca de idéias). 

Gostamos do zum-zum-zum, do tilintar de pratos e talheres. Só não gostamos da comida. Não tem sabor nenhum, o que ressalta a textura repugnante de algumas delas. O Duque de Hagen comentou ontem comigo: “Mastigamos estas coisas insípidas e sem cheiro em busca de sofrimento. Só alimentam a ilusão de que nos fazem bem”.

Piscina com água pela cintura, olhares vigilantes dos salvavidas. Baralho ou gamão no Espaço Convivencial. Mme. Tepes, como sempre, passeia no jardim sem guarda-sol, rosto erguido; perdida em alguma viagem épica, triunfante. Eu caminho ao seu lado, ouço histórias suas de épocas passadas, mas todas pasteurizadas, irrepreensíveis. Com a idade que tem, não cansa de dizer que vive em função do futuro.

Hoje não recebi diálise, só as injeções e o rebatismo. Depois, caminhei em volta da clínica, que tem para isso uma pista larga, arborizada. Caminhar me faz bem, e é apenas nestes momentos que sinto algo próximo ao arrebatamento de quem se joga sem medo num abismo, de quem voa por sobre as nuvens guiado pela lua. 

O moleton está encharcado quando o dispo no banheiro; um chuveiro frio; uma roupa leve; e o detestável almoço, onde é ainda maior a quantidade de coisas pastosas que é preciso engolir, de coisas ásperas e úmidas que é preciso desfazer com os dentes.

Minha tardes são sempre melancólicas; costumo me alegrar com a companhia do Signor Polidori, sempre bem-humorado, com duas ou três anedotas picantes na ponta da língua. E quando a noite começa a cair e os enfermeiros nos conduzem para o prédio principal, tem início a parte terrível do meu dia, do dia meu e de todos. 

Trancafiados em nossos quartos, com portas e janelas protegidas, câmaras de vigilância piscando mecanicamente seu olho vermelho, entretemo-nos em ler A Bíblia na Linguagem de Hoje, revistas de modas ou de vida social. Uns assistem vídeos de Papai sabe tudo ou de Os pioneiros. Outros escutam MP3 de Pat Boone ou de Brenda Lee. 

Alegria e conforto são as palavras de ordem nessa noite interminável que se inicia e que todos nós temos que atravessar. A noite que agora precisamos temer e abominar, sem lembrar o tempo em que éramos seus imperadores, em que o mundo se estendia imenso por baixo de nossas asas abertas, e o prazer da vida borbulhava quente e saboroso por entre os nossos caninos.






quinta-feira, 19 de abril de 2012

2848) Millôr Fernandes (19.4.2012)



Não conheci Millôr pessoalmente. No lançamento de um livro, há quase 20 anos, num salão repleto de gente, vi-o a cinco passos de distância, conversando com alguém. Poderia ter ido até lá e dito a bobagem de sempre, “sou seu fã desde pequenininho”, a que ele responderia com bom humor e atenção, como me parece que era seu jeito. Paciência. Um autor tem vida própria, tem sua família, seus amigos. E tem seus leitores, que são uma espécie de amigos virtuais: nunca conviverão com ele, nunca tomarão um cafezinho na esquina ou um chope na calçada, nunca compartilharão confidências pessoais, nunca telefonarão um para o outro quando estiverem precisando trocar idéias ou reclamar da vida. Paciência; a vida é assim, não adianta reclamar.

Cresci numa época em que a revista O Cruzeiro era uma espécie de Fantástico, o Show da Vida impresso, que levávamos uma semana saboreando. Eu lia as reportagens sobre futebol, crimes e discos voadores; e lia as seções de humor, o Pif-Paf de Millôr, o Amigo da Onça de Péricles, a página de Carlos Estêvão, os cartuns de Appe ou Borjalo. Millôr saiu da revista brigado, por causa da sátira “A Verdadeira História do Paraíso”, que desagradou a Igreja. Fundou seu próprio Pif-Paf, depois entrou no Pasquim, tornou-se uma figura onipresente na minha vida adulta. Por causa dele conheci a obra de Steinberg, e a palavra “cartum” virou uma forma de arte. Li quase todas suas peças de teatro, a começar pela colagem Liberdade, Liberdade com Flávio Rangel (um dos mais célebres espetáculos anti-ditadura), e depois É..., Um elefante no caos, Os órfãos de Jânio, Computa, computador, computa!... Millôr era uma espécie de Bernard Shaw carioca. Seu teatro era engraçado, profundamente crítico, e cheio de teorizações sobre o Brasil e o mundo.

Foi o maior fazedor de frases do Brasil? Difícil dizer, porque este é um dos talentos mais espontâneos e viscerais do nosso povo. Mas mesmo nesta concorrência acirrada Millôr poderia reivindicar o título pelo mero fator quantidade (basta folhear A Bíblia do Caos). Era um agnóstico tranquilo e um individualista renitente. Brigava pelo direito de não usar cinto de segurança, o que me parece idiota na prática mas compreensível como atitude ideológica (“quem manda em mim sou eu, não o Estado”). Tinha uma independência de espírito que muitos intelectuais também poderiam ter, se para isso não fosse preciso ter a coragem de passar a vida batendo com a cabeça nas paredes e dando murros em pontas de faca. Millôr fez isso até o fim, e, pelo menos daqui de onde enxergo, as paredes e as facas nunca mais tiveram o mesmo poder sobre seus leitores virtuais.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

2847) No pé da página (18.4.2012)




Houve um tempo em que os livros eram copiados a mão nos mosteiros, em folhas de pergaminho. Obras importantes eram passadas a limpo por escribas hábeis, com caligrafias meticulosas que, vistas hoje, parecem ter sido impressas com tipos móveis, pela sua regularidade, harmonia e clareza. Ser escriba medieval exigia, além da caligrafia perfeita, boa cultura (para não cometer erros de grafia, e para poder eventualmente corrigir os erros da cópia que estava servindo de modelo), paciência e resistência física; porque em geral o escriba tinha que passar o dia inteiro debruçado sobre uma mesa, molhando a pena no tinteiro e desenhando letras após letras, hora após horas, dia após dia, ano após ano. Não era um serviço para qualquer um; e pelo menos uma grande obra literária, O Nome da Rosa de Umberto Eco, fez justiça a esses operários do saber, de um mundo que não existe mais.

O número da primavera da revista Lapham’s Quarterly (http://bit.ly/GDbCwa) traz uma matéria sobre o lado emocional desses artesãos anônimos: os comentários que eles deixavam anotados nas margens ou no cólofon das obras que copiavam. Ninguém é de ferro, não é mesmo? Esses monges de 800 anos atrás também não eram, e deixavam rabiscados, aqui e ali, seus pequenos protestos. “Estou com muito frio”, anota um. “Esta é uma página difícil dá muito trabalho para ser lida”, anota outro, lembrando-nos que estas cópias impecáveis eram muitas vezes feitas a partir de manuscritos muito velhos, danificados, com trechos arrancados ou ilegíveis. Alguns se queixam de pequenos problemas técnicos: “O pergaminho é peludo”, “A tinta é rala”, “Pergaminho novo, tinta rala, e não digo mais nada”. Alguns fazem uma autocrítica: “Esta página não foi escrita muito devagar”.

Mais comovente são os desabafos mais longos, que expressam bem o sentimento provocado por esse trabalho estafante: “Agora acabei tudo, pelo amor de Deus me deem algo para beber”. “São Patrick de Armagh, libertai-me do ofício de escrever”. “A escrita é um trabalho enfadonho. Ela enverga nossas costas, cansa nossa visão, torce o nosso ventre e as nossas ilhargas”. “Eu estava gelado enquanto escrevia, e o que não pude copiar aos raios do sol terminei à luz de velas”. “Assim como a visão do porto é bem vinda ao marinheiro, a da última linha o é para o escriba”. “Isto é tão triste! Oh, pequenino livro. Chegará um dia em que alguém lerá esta página e dirá: A mão que a escreveu não existe mais”. São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão ou de dois joelhos humanos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

2846) Bob Dylan no Rio (17.4.2012)



(Dylan em Copacabana. Foto: Nana Tucci)

Não fui ver Dylan no Citibank Hall. É a quinta vez que ele canta na cidade, e vi todas as outras quatro. Pra que ver mais? Dylan é uma espécie de Ronaldinho Gaúcho: a gente não vai assistir pensando no que ele pode fazer, mas para agradecer o que ele já fez. Isso não impede nenhum dos dois de eventualmente produzir algo genial. Os monstros sagrados nunca morrem de todo. Quando menos se espera, as cinzas começam a se juntar sem que nenhum vento esteja soprando.

Dylan cantou no Rio pela primeira vez em janeiro de 1990, na Apoteose. Abriu o show com “Subterranean Homesick Blues”. Eu estava no gargarejo, e o cara que ajeitou o pedestal do microfone dele era mais alto do que eu. Dylan tem 1,65m. Cantou a primeira estrofe inteira de guitarra em punho, para um microfone apontado para sua testa (no fim da estrofe, ajeitou rapidinho). O show foi uma mistura de gente emocionada e gente reclamando. No meio de “Hattie Carroll” estourou uma briga perto de onde eu estava, ele cantou a música inteira olhando para os brigões.

Em agosto de 91, ele cantou no extinto Imperator, no Méier. Um show fechado, acolhedor. A certa altura faltou energia na casa inteira. O baterista fez um longo improviso acompanhado com palmas pela platéia. Em 1998, ele abriu o show dos Rolling Stones, novamente na Apoteose. “Apoteose” é um eufemismo para a cena em que, no show da banda principal, ele voltou ao palco para cantar “Like a Rolling Stone”. Na turma que foi a este show estava minha filha Maria, então com 20 anos. O quarto show de Dylan aqui foi na Arena Multiuso, em março de 2008 (ver: http://bit.ly/HL8N0L). Fui com meu filho Gabriel, então com quase 16 anos. Dylan abriu o show com “Rainy Day Women # 12 e 35”, levantando a platéia, cantou razoavelmente bem algumas músicas, o tempo todo em pé, num tecladinho.

Por que não fui agora, além do preço? Não sei. Ano passado vi Milo Manara aqui no Rio, autografando quadrinhos. Vinte anos atrás eu passaria uma madrugada sob a chuva para pegar um autógrafo dele. Desta vez, esnobei. Não, não esnobei ele, nem Dylan, nem qualquer outro. Esnobei a necessidade de guardar uma prova palpável de que por alguns minutos compartilhamos as mesmas coordenadas espaçotemporais. Dizem que com a idade a gente vai ficando mais indiferente às pequenas coisas; já ouvi alguém dizer que velho não guarda lembrancinhas porque não vai ter muito tempo para lembrar. Eu diria que a idade torna meio irrelevantes esses rituais. O mundo é dos jovens. Pessoas como eu e Dylan estamos por aqui curtindo a música da festa, a inebriação do vinho; mas na verdade já estamos na calçada, esperando o táxi.