domingo, 25 de março de 2012

2827) O Princípio Peter (25.3.2012)




A Lei de Murphy diz que “o pão com manteiga sempre cai com a manteiga pra baixo”, ou, mais genericamente, que “se uma coisa tem alguma possibilidade de dar errado, dará; e se puder dar mais errado ainda, pode contar com isto”. Há muitas “leis” assim, informalmente criadas, e que guardam o nome dos seus criadores. E no meio delas fala-se muito num tal de “Princípio Peter”, que não é tão conhecido e precisa sempre ser explicado.

De tanto ouvir falar nele sem entendê-lo por completo fui consultar a mãe-dos-burros. (Se o pai-dos-burros é o dicionário, a mãe é a Wikipedia.) O “Peter Principle” foi formulado por um canadense chamado Laurence J. Peter e diz apenas: “Numa hierarquia, cada empregado tende a subir até alcançar o nível de sua incompetência”. O livro com o nome desse princípio foi lançado em 1969 e tornou-se um best-seller.

O que Peter afirma é simples. Quando um sujeito se destaca em seu trabalho ele é promovido, porque seus chefes veem suas qualidades e querem aproveitá-las num nível mais alto. Se ele se destaca de novo, torna a ser promovido e vai subindo. (“Promoção”, num trabalho sério, é um pouco como subir de nível num videogame: seu prêmio é ir recebendo incumbências cada vez mais difíceis.) Chega então um momento em que o sujeito começa a não corresponder, a não se desempenhar tão bem quanto fazia nas funções inferiores. Ele atingiu (nas palavras de Peter) seu nível de incompetência. E ali ele fica.

A sutileza é que na vida profissional há outros fatores envolvidos além da mera apreciação e avaliação da competência. Quando um sujeito passa por promoções sucessivas, ele vai acumulando tempo de serviço, respeito, admiração dos colegas, temos dos subalternos, força política. Se só contasse a qualidade do desempenho, ao atingir seu nível de incompetência ele seria rebaixado para o posto anterior, onde chegou a se destacar. Mas não é isso que acontece. O sujeito, que lutava para ser promovido, percebe que está meio perdidão e faz o possível agora para não ser rebaixado. E geralmente consegue. Há uma quantidade imensa, em qualquer empresa, de funcionários que estariam se saindo muito melhor num cargo inferior ao que efetivamente ocupam; mas para descobrir seu nível de incompetência foi preciso promovê-los para uma função de onde agora é difícil tirá-los.

Claro que todo mundo acha uma saída. Exércitos, bancos, multinacionais dão um jeito de “premiar” o cara com um cargo bem remunerado em Singapura ou Cabrobó. Num artigo na revista “Edge”, Nicholas G. Carr diz: “A viga mestra do sonho americano, o desejo de subir a escadaria do sucesso, tornou-se uma receita para a mediocridade em massa”.

sábado, 24 de março de 2012

2826) Primeira pessoa (24.3.2012)




(René Magritte, La Reproduction Interdite)

Alan Garner conta que passou por uma tremenda crise pessoal quando supervisionava a filmagem do seu romance The Owl Service. Todo dia de filmagem ele sofria tremores, suores frios, acessos de vômito. Foi a um terapeuta e narrou seu drama. 

O terapeuta perguntou-lhe se o livro original estava escrito na terceira pessoa e no tempo passado, ou se era na primeira pessoa e no tempo presente. Garner disse que era na terceira, e no passado. O analista lembrou-lhe que o filme – qualquer filme – se passa no presente (a ação, mesmo quando em “flash back”, tem a imediaticidade de qualquer ação vivida). E que sendo um livro autobiográfico era insuportável para ele reviver, no presente, aquelas situações. 

Não posso botar minha mão no fogo pelo diagnóstico, mas o relato de Garner, em Science Fiction at Large (1976), afirma: “Ele foi direto ao centro da minha dor, e me absolveu dela”.

Isto dá uma medida do quanto (para alguns autores, não para todos – é bom que fique bem claro) o ato de escrever envolve catarse, libertação, descarrego. Muita gente diz que escreve para poder lidar com seus “demônios” e “fantasmas”. Por que recorrem a essas imagens para exprimir o que acontece dentro de suas cabeças? 

No caso desses autores (não de todos, insisto) existe algo incomodando, e escrever é uma maneira de ficar sabendo o que é e de dar-lhe um fim. Todo mundo conhece a metáfora do grão de areia na ostra; aquilo incomoda tanto que a ostra cobre o grão intruso de madrepérola, e de repente, voilà! O grão de areia virou uma obra de arte.

Voltando ao uso da primeira pessoa: quando o autor é jovem, inexperiente, ou descuidado, ou está escrevendo sob forte tensão, ou está mexendo com coisas que lhe são dolorosas, acontece muito que o “eu” que representa o personagem comece a ser contaminado pelo “eu” da pessoa que escreve. 

Isto ocorre menos quando se está escrevendo na terceira pessoa, porque para transferir para outra pessoa um sentimento muito íntimo (“Fulano estava se sentindo assim porque...”) é necessário um mínimo de distanciamento, e isso funciona como um estalar de dedos que acorda o escritor, dizendo-lhe: “Êpa! É do personagem que você tem que estar falando, não de você!”. 

Quando estamos usando o “eu”, contudo, deslizamos com muito mais facilidade para esse tipo de equívoco, escrevemos sem refletir, projetamos os pensamentos na página sem ficar checando, de instante em instante, se o personagem estaria mesmo dizendo/pensando/sentindo aquilo. 

A pressão interna das coisas querendo ser ditas é tão fortes que elas se apossam do canal mais à mão, o trabalho literário, e escorrem para dentro da página.








sexta-feira, 23 de março de 2012

2825) Treze 1x1 Botafogo (23.3.2012)



Na disputa pela Copa do Brasil, o Treze jogou bem em Campina contra o Botafogo-RJ e conseguiu no último minuto o gol que tornou mais justo o placar. No Rio, 4ª.-feira passada, entrou para jogar no contra-ataque, fez um gol de pura sorte logo no início, e contou com a tradicional neurose botafoguense (“se não tiver sofrimento não é o Botafogo”, dizem meus amigos alvinegros) para segurar um jogo difícil. Só recuou pra valer quando ficou com 10.

O pênalti perdido por Léo Rocha no final, tentando imitar a “cavadinha” de Loco Abreu e se dando mal, desmoronou todo mundo. O goleiro Beto, que havia feito uns 5 milagres ao longo do jogo, defendeu dois pênaltis, e Léo Rocha teve a chance de empatar a disputa. Brincou. Quis fazer chinfra e entrar para a História; não bastava o gol, tinha que ser um gol para achincalhar o adversário. Perdeu. O mundo caiu em cima de sua cabeça.

Devemos puxar as orelhas do jogador, que cometeu uma imprudência desnecessária, mas não devemos crucificá-lo. Ele fez aquilo em nome da torcida. Se tivesse feito o gol e o Galo vencesse, todos (eu disse: todos) os torcedores e dirigentes trezeanos comemorariam aos berros em todas as mesas de bar, do Catolé ao Alto Branco: “Ganhamos do Fogão!!!! Lá deeeentro!!! E com cavadinha, pra desmoralizar Loco Abreu!!!”. Torcedor é assim, não é mesmo? Sou torcedor também, e conheço meu gado.

Ao torcedor não basta a vitória, é preciso desmoralizar o adversário, tripudiar sobre ele. Ainda mais se for um time do Rio, desses que ganham de nós há cinco gerações. O sofrimento acumulado é grande, e o desabafo precisa ser maior. Não basta fazer o gol, tem que escrachar. Quantos criticariam Léo Rocha, se a cavadinha dele virasse gol? Ele não está sendo condenado porque tentou, e sim porque tentou e não conseguiu.

Gostei das palavras serenas do goleiro Beto, o melhor em campo, após o jogo. O futebol ( o esporte em geral) é uma escola de vida, porque em nenhuma outra atividade as grandes vitórias e as grandes derrotas se sucedem com tanta rapidez. O atleta não deve se deixar contaminar pela visão do torcedor, que é paixão pura, puro desejo, desespero e euforia. Admiro a ousadia de Léo Rocha, como admirei a ousadia da cavadinha de Loco Abreu na Copa do Mundo. Mas na guerra julgamos um soldado pelas decisões que toma, e julgamos essas decisões pelos seus resultados. Na hora do pênalti, o atleta não pode correr para a bola pensando na torcida, na imprensa, na manchete, na comemoração. Perdemos os pênaltis quando na hora em que corremos para a bola pensamos em qualquer outra coisa que não seja FAZER O GOL.

quinta-feira, 22 de março de 2012

2824) Sou contra a Copa (22.3.2012)



(foto: Muhammed Muheisen)

Não sei se já falei a respeito aqui nesta coluna, mas sou contra a realização da Copa do Mundo no Brasil, nos termos atuais. Sou doido por futebol (pra gostar de futebol precisa ser meio doido). A primeira Copa que acompanhei foi a de 1962, pelo rádio, e desde então sou daqueles que em época de Copa param tudo. Eu adianto o trabalho o máximo que posso nos meses anteriores à Copa, para no dia poder assistir, sei lá, Polônia x Costa Rica às 8 da manhã, Croácia x Costa do Marfim ao meio-dia e Canadá x Irã às 4 da tarde. É bonito ver estilos de futebol tão diferentes testando-se uns aos outros. É bonito acompanhar craques anônimos que, vendo-se pela primeira vez diante de uma platéia de milhões, superam-se e fazem uma Copa inesquecível, viram heróis mesmo que seu time não seja campeão. A rapidez de uma Copa do Mundo, com jogos diários, comprime no espaço de poucas semanas as emoções de um campeonato inteiro. Um time apontado como virtual campeão da 2ª.feira desmorona e é eliminado na 5ª.

Tudo isto é para dizer que sempre sonhei ver uma Copa no Brasil, não para ir ao estádio, mas para que essa festa toda acontecesse fisicamente ao meu redor, como um Carnaval ou um São João. O que acontece é que a Copa mudou muito, tornou-se (nas mãos da FIFA, que em termos de passar-por-cima e faturar grana faz inveja a Eike Batista) um dos eventos mais lucrativos do mundo. Sou um crítico da Fifa (coloco-a numa prateleira próxima à da Vale e da Halliburton) no que diz respeito a transformar o futebol, um esporte para multidões, num esporte para ricos. Já falei aqui nesta coluna sobre o curioso espetáculo de muitas torcidas numa Copa. Não são torcedores, são turistas endinheirados. Gente que não sabe o que é um impedimento ou um chute de três dedos, mas que tem dinheiro para comprar os pacotes caríssimos da Copa – ou tem a sorte de trabalhar numa multinacional que distribui esses pacotes como prêmio para funcionários que se destacaram.

Por onde passa, a Fifa exige que os países atendam suas exigências, que às vezes resultam em efeitos positivos (hotelaria, transportes, segurança, comunicações), mas que deixam prejuízos onde a porta do cofre vive aberta.. O futebol da Alemanha tem como absorver os novos estádios que o país construiu para a Copa, mas os da África do Sul estão fechados, cobrando ingressos aos turistas que vão fotografá-los. O Brasil ironicamente, vai sofrer o mesmo. O futebol de vários Estados incluídos na Copa não tem como encher um estádio desses, a não ser numa decisão regional ou na vinda de um time de fora. O Brasil vai ter mais prejuízo do que benefícios, e é uma pena que seja assim.

quarta-feira, 21 de março de 2012

2823) Jonathan Carroll (21.3.2011)




Jonathan Carroll é um romancista nascido nos EUA e que mora em Viena há mais de 30 anos. Faz mais sucesso na Europa do que em seu país, e é um autor de romances fantásticos pouco convencionais, que não seguem um modelo previsível, e nos quais tudo (quase tudo) pode acontecer. Mesmo autores delirantes como Philip K. Dick ou Lucius Shepard têm uma certa lógica em seus processos, que depois de assimilada se torna previsível. Carroll não, ou talvez tenha, mas nos quatro romances que li ainda não deu para me prevenir por completo. É um dos poucos escritores de quem eu aceito fazer um animal falar.

Diz ele que não sabe até agora quem é o seu público: “Por exemplo: na Polônia, onde vendo uma porção de livros, todos os meus leitores são mulheres entre 20 e 30 anos; na França, são aqueles acadêmicos esnobes; na Alemanha, são punks”. Estou lendo um conjunto de seus romances chamado “O Sexteto das Preces Atendidas”, seis livros que contam histórias meio surrealistas ocorridas com um grupo de pessoas que se conhecem entre si. Cada livro aborda a vida de uma delas e as demais aparecem como figurantes, ou são citadas de passagem. Bones of the Moon (1987) conta a história de um dona de casa, Cullen James, que tem sonhos que transcorrem noutro universo; Sleeping in Flame (1988) é a história de Walker Easterling, um ator que sonha com vidas passadas e tem um mistério na infância; A Child Across the Sky (1989) fala de dois cineastas amigos, Weber Gregston (intelectual e cult) e Philip Strayhorn (diretor de uma série de filmes B de terror); Outside the Dog Museum (1991) conta como o arquiteto Harry Radcliffe recebe a incumbência de construir um museu de cachorros no Oriente Médio. Ainda não li After Silence (1992) e From the Teeth of Angels (1993).

Esses livros têm como protagonistas artistas de classe média, alta, ou simplesmente ricos, no eixo EUA/Europa (Viena aparece em quase todos), cujas vidas são tomadas de assalto por fatos inexplicáveis e grotescos, que os forçam a difíceis decisões éticas. São freqüentes as alucinações, abortos, morte violenta de personagens simpáticos, crianças em perigo, crianças bizarras, coincidências estranhas, animais que falam, reconstituição moderna de mitos do passado... Carroll tem sido comparado aos autores do realismo mágico latino-americano ou ao pintor Magritte, o que é correto, mas não esgota suas surpresas. É um desses casos raros de um autor fantástico que cria suas próprias regras e suas próprias exceções – o que acaba incomodando de início o leitor, acostumado a ver livros que são façanhas acrobáticas diferentes com os mesmos malabares de sempre.

terça-feira, 20 de março de 2012

2822) O paredão sonoro (20.3.2012)



O poeta Jessier Quirino desencadeou um movimento, na cidade de Itabaiana, em defesa do carnaval pacífico da população, ameaçado por uma prática tenebrosa do mundo de hoje: a invasão das ruas, das praças e das praias por carros munidos de gigantescas e ensurdecedoras aparelhagens de som. Segundo Jessier, os responsáveis por essa calamidade estacionam os carros, colocam seus “paredões” um ao lado do outro e fazem uma disputa pra ver quem consegue tocar música num volume mais alto. Não é preciso dizer que qualquer bloco ou troça carnavalesca não consegue ser ouvida (ou ouvir a si própria) se estiver no raio de algumas centenas de metros desse apocalipse sonoro. Resultado: ninguém na cidade brinca mais carnaval, somente uma dúzia de donos de “paredões”, que se instalam no centro da cidade, e produzem um tsunami de decibéis de tal ordem que algumas casas de Itabaiana tiveram suas paredes rachadas.

Isso não passa do crescimento de uma tendência que há muitos anos vem incomodando a Paraíba. (Incomoda o Brasil inteiro, mas fiquemos por enquanto no nosso raio de escuta.) Qualquer sujeito que tem dinheiro para comprar um carro e enchê-lo dos altofalantes mais potentes do mercado considera tão importante essa façanha que a cidade inteira precisa tomar conhecimento dela. Em João Pessoa estou cansado de ver, no calçadão da praia, o carro estacionado no meio-fio, todas as portas abertas, a tampa da mala levantada, o som bradando num volume insuportável, e o cara sentado na mureta, tomando cerveja sozinho e olhando pro carro. Não existe imagem mais patética da solidão urbana.

Claro que não são somente os solitários. Tem os folgados que andam de turma. Encostam o carro num bar cheio de pessoas conversando, escancaram as portas do carro, ligam o som em todo volume. Sentam os 4 ou 5 numa mesa, pedem duas águas e um prato de tiragosto. Trazem do carro um isopor cheio de latas de cerveja bem geladas e ficam ali, bebendo e ouvindo Chico Buarque ou Mozart em todo volume. E ai de quem for pedir para que eles abaixem o volume. Na melhor das hipóteses, ouve um “Você sabe de quem eu sou filho?”. Na pior, leva uma camada de pau.

Aliás, não é Chico Buarque nem Mozart que esse pessoal escuta, mas, mesmo que fosse, a grosseria e a estupidez seriam as mesmas. A poluição sonora produzida por esse pessoal (e juntem a eles os insuportáveis carros-de-som de propaganda, que fazem o que querem) é o indício de uma época em que manda quem tem dinheiro e truculência. No século 20 temia-se que as hordas selvagens (os pobres da periferia) destruíssem a sociedade. No século 21, as hordas são de ricos; o mundo será destruído de cima para baixo.

domingo, 18 de março de 2012

2821) O inferno do plágio (18.3.2012)




Acusado de ter cortado e colado centenas de trechos de dezenas de autores para compor seu romance policial de estréia, Assassin of Secrets (sob o pseudônimo de Q. R. Markham), Quentin Rowan está sendo o plagiador mais em evidência na imprensa mundial. O plágio é uma coisa engraçada. De um modo geral é considerado (pelo menos nos ambientes que eu frequento) um crime vergonhoso, comparável moralmente à delação. E no entanto a maioria das pessoas já plagiou ou já foi plagiada em alguma medida, mesmo nas atividades mais discretas e nos contextos mais obscuros.

Rowan fez uma colcha-de-retalhos com parágrafos alheios, na ingênua esperança de que ninguém achasse familiar alguma dessas frases e fosse checar no livro original. (O que aconteceu, claro.) Faltou-lhe senso prático; fez o que fez numa espécie de delírio manso. Faltou-lhe inclusive um pouco de sofisticação intelectual, porque eu no lugar dele diria que estava fazendo “metaficção”, “mash-up narrativo”, “colagem pós-moderna”, qualquer coisa que me possibilitasse pelo menos bloquear a acusação de plágio e manter o livro nos balcões das lojas. Não seria o primeiro.

Jonathan Lethem, que publicou um artigo sobre plágio consistindo quase inteiramente de frases alheias (com créditos revelados no final), disse sobre Rowan: “Parece que ele fez algo muito mais trabalhoso do que simplesmente sentar e escrever um livro. Compor um texto a partir de outros não é um passatempo de preguiçoso. Falo como quem já fez isto: é uma imensa quantidade de trabalho”. Um dos autores copiados por Rowan, Charles McCarry, escreveu ao seu agente literário: “Hi, Jack. Pobre sujeito: tanto cortar-e-colar, e nenhum prazer de verdade. (...) Pode declarar também: Ele não me causou nenhum mal, e não tenho ressentimento contra ele”.

Pressionado pela obrigação de ser “geniozinho”, Rowan, ao invés de escrever um livro, preferiu o caminho mais tortuoso, mais cansativo, menos lógico, e mais arriscado. Ele diz: “Quando eu era garoto, tinha a sensação de uma expectativa a meu respeito. Era uma dessas coisas estranhas – eu pensava que meus pais ficariam decepcionados se eu me tornasse, por exemplo, um mero cirurgião ou um mero advogado”. A obrigação do sucesso intelectual pesa tanto quanto (ou mais do que) a obrigação do sucesso financeiro.

Rowan é símbolo e sintoma de uma época de bolhas financeiras, quebra do sistema de crédito bancário, etc., uma época em que o mundo ocidental falsificou um cheque e começou a gastar por conta, alucinadamente, porque sabia que a inexistência de fundos não tardaria a ser descoberta. No futuro será reconhecido como o autor emblemático do começo do século 21.

sábado, 17 de março de 2012

2820) Dickens Digital (17.3.2012)



(Charles Dickens no começo da carreira)

Livros de papel ou livros digitais? Até parece o debate na Idade Média sobre a quantidade de anjos que era capaz de dançar na ponta de uma agulha (agora são pixels e bytes). Há partidários eloquentes e extremados de ambos os lados da discussão. Num artigo no Guardian (http://bit.ly/yJfVK9), Henry Porter comenta algumas declarações recentes do romancista Jonathan Franzen, para quem o papel impresso dá uma sensação de continuidade e permanência, enquanto que a tela digital parece conter apenas um texto provisório, que pode vir a ser modificado a qualquer instante. E Porter faz uma comparação com Charles Dickens, cujos 200 anos de nascimento comemoram-se este ano.

Dickens foi, como muito escritores de sua época, um palestrante incansável. Viajava pelo mundo fazendo palestras, para auditórios repletos, porque seus livros eram best-sellers. Foi um desses escritores cujo sucesso popular deixa a crítica de pé atrás, como ocorreu com Balzac, Jorge Amado e tantos outros. Porter comenta: “Nos últimos anos de sua vida, Charles Dickens caiu na estrada para cumprir uma extenuante agenda de leituras públicas, que certamente apressaram sua morte. Na magnífica biografia que fez sobre o escritor, Claire Tomalin descreve como ele se arrastou de auditório em auditório, sozinho exceto pelos personagens que carregava na mente: alquebrado, mal alimentado e mortalmente exausto, mas com uma urgente necessidade de se comunicar com seus leitores. Essas leituras, precursoras das modernas festas literárias, nos lembram que o objetivo primordial de um romancista é entrar em contato com pessoas. (...) Se Dickens fosse vivo hoje, adivinhe quem estaria blogando, tuitando de vez em quando, montando websaites literários, exumando algumas obras antigas e recolocando-as em circulação sob a forma de e-books. Dickens detestava muitos dos seus editores, que ele considerava parasitas preguiçosos e desonestos; e ele ficaria entusiasmado com todas as oportunidades que temos hoje de fazer uma conexão direta entre autor e leitor”.

Escritores são indivíduos, cada um tem seu jeito, sua índole. Não é por terem a mesma profissão que têm a mesma personalidade. Alguns adoram falar em público e dar entrevistas; outros detestam. Alguns querem ter controle total e estrito sobre cada linha que escrevem, e querem controlar cada centavo que entra e que sai; outros querem semear livros à mancheia para atingir o maior número possível de pessoas, e se no meio do processo conseguirem o suficiente para viver com um pouco de conforto, ficarão felizes. Ao que tudo indica, estes últimos sobreviverão melhor, e serão mais felizes, nos tempos que estão chegando.

sexta-feira, 16 de março de 2012

2819) “Drive” (16.3.2012)




Este filme de Nicolas Winding Refn é à primeira vista apenas mais um thriller policial em que indivíduos truculentos praticam roubos e abatem a tiros quem se atravessar na sua frente. Muda somente o ponto de vista, porque agora a história não se concentra nos assaltantes, e sim no motorista. É um piloto de automóvel cheio de recursos e com muito sangue frio, que trabalha numa oficina e de vez em quando faz bico como dublê, em cenas de acidentes com carros. Ele não assalta: apenas se aluga aos assaltantes, com o compromisso de ficar à espera durante o golpe, e depois fugir com os bandidos, deixando-os em lugar seguro. Não pega em armas, não atira, não fica com a grana, a não ser o pagamento combinado pelos seus serviços.

Parece um thriller tradicional, misturando a espetacularidade das perseguições de carros e a trama intrincada, surpreendente, de todas as histórias que envolvem gangsters, uma rapaziada especialista em mentir, enganar, trair, dissimular. História com gangster está sempre sujeita a reviravoltas, porque eles nunca são o que fingem ser, e eles mesmos não sabem quando estão fingindo ou sendo.

Este filme, no entanto, tem menos a ver com o Passado (o thriller tradicional) do que com o Futuro, que são os videogames. Ele absorve de maneira muito eficaz a estética dos videogames, e, para além da estética, aquilo que podemos definir precariamente como o clima, o espírito dos games. Aquela sensação de quem está numa espécie de vácuo iluminado, onde coisas existem mas parecem apenas aparências coloridas e translúcidas, carentes de substância, o que não impede de nesse mundo haver também vida, amor e morte.

Ryan Gosling, que faz o “driver”, tem a inexpressividade de uma estátua da Ilha da Páscoa, e isso é proposital. Ele se comporta do início ao fim (num gestual certamente preparado com infinitos cuidados e ensaios) como um “carinha”, um “avatar” que é manipulado pelo jogador num game. A caminhada rítmica, um tanto mecânica. A violência que irrompe de repente, num frenesi de energia de que aquele corpo apático parecia incapaz. Os gestos entrecortados ou abruptos, o rosto parado enquanto os olhos giram nas órbitas até enquadrar o interlocutor; e então um sorriso deliberado que acontece apenas na boca, a resposta numa voz que parece gravação, e depois o sorriso se desfazendo em retrocesso até o rosto voltar à impassibilidade anterior. É assim que (pelas limitações da computação gráfica atual) os personagens de videogames agem; e é assim que o ator mimetiza esse tipo de ação. Para atrair, seduzir e convencer os espectadores para quem o videogame é o Presente, e o cinema o Passado.

quinta-feira, 15 de março de 2012

2818) O 39 e o 24 (15.3.2012)



Um dos cacoetes do pensamento mágico é fazer associações de idéias entre duas coisas não-relacionadas, e, a partir daí, agir como se elas fossem uma só. Vêm daí os dois grandes princípios da magia. Na magia por semelhança, coisas com formato igual ou aparência igual são a mesma coisa, por isso fazer um bonequinho de alguém e espetar-lhe agulhas vai provocar dores naquela pessoa, Na magia por contato, qualquer coisa que esteve em contato íntimo com alguém mantém esse contato mesmo depois de afastada. Simpatias amorosas, p. ex., exigem, para fazerem efeito, uma cueca, uma raspa de unha, um cacho de cabelo da pessoa.

Um princípio menor, mas interessante, é o que faz associações desse tipo com números, o que é um problema sério, porque número é um negócio danado pra reaparecer no caminho da gente. Em chinês, por exemplo, o som do número “quatro” parece com o da palavra “morte”, daí que os chineses fazem verdadeiras ginásticas para evitá-lo. Muitos prédios na China, por conta disto, não têm quarto andar – como muitos nos pragmáticos Estados Unidos não têm o 13o.

Fiquei sabendo de uma ótima que ocorre com o número 39 no Afeganistão. Numa cidade qualquer havia um cafetão cujos serviços prostitucionais eram contratados através de telefones onde sempre aparecia o número 39. O 39 ficou com péssima reputação; há movimentos para não comprar carros em cuja placa ele apareça, casas com essa numeração, etc. O número é desagradável; dá azar. Nos colégios, alunos a quem cabe esse número são vítima de ridicularização e bullying. Recentemente, um encontro político oficial teve que pular o 39 ao enumerar os comitês de discussão técnica. O líder religioso Ataula Fawzi protestou energicamente: “Se as autoridades que representam o povo afegão atuam desta maneira diante da comunidade internacional, o que se pode esperar de um taxista ou comerciante iletrado?"

Ridículo? Nem tanto, amigos. É a mesma sina do número 24 em nossa cultura, que devido ao jogo do bicho ficou associado ao veado, e este (por motivos que nunca entendi) ao homossexualismo. O tempo todo vejo gente evitando o assento 24, o quarto 24, a senha 24... Ter esse número como símbolo do homossexualismo é uma coisa arraigada em nossa mentalidade de rua. (Diga-se de passagem, só homem dá atenção a isso, nunca vi uma mulher prestar atenção nesse número.) Na minha infância, um dos momentos culminantes do rito-de-passagem do primeiro dia de aula era a primeira chamada, quando aguardávamos, com excitação crescente, a quem caberia o número maldito, e consequentemente a vaia, os impropérios, as casquinadas escarninhas, o opróbrio, o vitupério, a desmoralização.