terça-feira, 17 de janeiro de 2012

2768) Escritor pop (17.1.2012)



(ilustração: Domitille Collardey)

Roberval é um escritor pop. Durante séculos a classe literária mofou no abandono, no anonimato, morando em mansardas, rabiscando trilogias à luz de velas, e vendo com inveja o modo como os repórteres e os “paparazzi” se amontoavam à porta dos músicos populares e das estrelas do cinema. Mas o mundo mudou. O marketing evoluiu. Os “publishers” perceberam que se era fácil transformar um brucutu analfabeto numa celebridade, deveria ser fácil fazer o mesmo com um intelectual de óculos. E o fizeram com Roberval, cujos romances agora vendem centenas de milhões de exemplares em trinta idiomas.

Roberval desce à rua para ir na padaria, e a imprensa se acotovela: “E aí? Terminou o capítulo?”. Ela se refere, claro, ao capítulo 18 de seu romance vampiresco “Tatuagem de Sangue”. Roberval (ainda novato, ainda se julgando na obrigação de responder tudo que lhe perguntam), diz: “Ainda não... Tive que parar agora de tarde, a cena se passa em Varsóvia, tive que consultar o Google Earth...” Flashes cintilam. Em segundos, a frase estará no YouTube; fãs poloneses abrirão bandeiras de saudação no telhado, mesmo sabendo que a chance de serem vistos pelo astro é remota.

Se fosse sempre assim era uma maravilha. Mas, e quando Roberval deixa vazar pelo Twitter a morte de um personagem? Tem que desplugar os telefones, trancar-se em casa. Já foi seguido até o aeroporto pelo fã-clube de uma vítima. Outro momento delicado é o da assinatura de contrato com a editora. A imprensa se informa e o bota no canto da parede: “Por que cobrou 15% na tradução britânica, e somente 10 na tradução finlandesa?” E tome a vasculhar seus emails, e tome tentativas de quebrar seu sigilo bancário. Emissários de outras editoras vêm trazer-lhe ofertas irrecusáveis, que ele recusa sem piscar o olho. Queixa-se à esposa de que o celular do seu agente vive desligado; ela comenta que talvez lá em Ibiza o sinal não pegue.

O avanço de cada capítulo é acompanhado pela TV a cabo e pelas câmaras dos saites literários como se fosse a votação de uma emenda constitucional. É preciso justificar cada frase, porque entre seus leitores há os que torcem pelo vampiro, os que torcem pelo cientista, os que torcem pelo primaz da Igreja Ortodoxa (presente em todos os livros), os que torcem pelos agentes da Exterpol... E o pior é que depois do seu mais recente e avassalador sucesso a editora que obrigá-lo a usar um editor de texto capaz reproduzir num blog, em tempo real, tudo que ele digita e deleta em casa. Quando o mundo lhe dará um segundo de trégua? Dura é a vida de quem escreve com um milhão de fãs olhando por cima do seu ombro e dando palpites.

domingo, 15 de janeiro de 2012

2767) “20 Mil Léguas” (15.1.2012)



A reedição de 20 Mil Léguas Submarinas pela Ed. Zahar parece ser a mais completa até agora, principalmente pelas mais de 200 notas explicativas do tradutor André Telles, e pelo fato de que reproduz o texto completo do original. Esta é uma proposta importante porque poucos autores terão tido sua obra tão mutilada quanto Julio Verne, e quem já o leu entende por quê. Verne foi praticamente o criador da ficção científica “hard”, que se baseia meticulosamente nos conceitos científicos, e procura conseguir o máximo de plausibilidade. Em toda a obra de Verne são muito poucos os elementos fantásticos, coisas que não podem ocorrer no mundo como o conhecemos. Verne falou sobre façanhas científicas que ainda não tinham sido postas em prática em obras como 20 Mil Léguas..., Da Terra à Lua, etc.; mas apesar de cometer erros eventuais ele raramente distorce os fatos científicos. Verne se via no papel de um educador, e às vezes parecia um mestre-escola bretão, como na sua famosa reação indignada diante de certos livros de H. G. Wells: “Ele inventa!”.

Na introdução a esta edição do livro, Rodrigo Lacerda comenta (poucos estudiosos de Verne o fazem) os recursos usados pelo autor para dourar a pílula das numerosas descrições científicas que era seu propósito incluir. Verne e seu editor, Hertzel (o grande inspirador das “Viagens Extraordinárias”), ambicionavam “resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, astronômicos e da física coletados pela ciência moderna, e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria [a Verne] a história do universo”. Esta ambição lembra o projeto da enciclopédia fantástica de “Tlön” de Jorge Luís Borges: “Conjetura-se que este ‘brave new world’ é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio”.

A narrativa típica de Verne, portanto, é salpicada de pequenas explicações científicas que vão de poucas linhas a várias páginas de extensão. Se somarmos a isto as notas de pé de página necessárias para situar, hoje, informações que eram de conhecimento público na França de 1871, resulta que poderíamos ter uma edição eletrônica desta obra em forma de hipertexto. As explicações e digressões científicas ficariam ocultas mas poderiam ser reveladas a um clique do mouse, bem como notas posteriores feitas pelos editores e tradutores de Verne. A mutilação que os seus livros sofreram tantas vezes se tornaria meramente parcial, superficial; o texto completo estaria contido na versão, para ser lido por quem se interessasse.

sábado, 14 de janeiro de 2012

2766) Coração Numeroso (14.1.2012)




É um dos meus poemas preferidos de Drummond, um dos primeiros que me conquistaram por completo. Até hoje me surpreende que já aparecesse em seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930), por ser de algum modo um poema-síntese que parece já exprimir a visão de um autor maduro. Fala do Rio, mas deve se referir a alguma viagem ocasional, pois precede a mudança do poeta para lá: “Foi no Rio. / Eu passava na Avenida quase meia-noite. / Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis. / Havia a promessa do mar / e bondes tilintavam, / abafando o calor / que soprava no vento / e o vento vinha de Minas”. Soa como uma síntese do complexo processo que fez do poeta um carioca adotivo sonhando eternamente com uma Minas que passou a existir apenas na sua memória e imaginação. Drummond, mesmo escrevendo fartamente sobre o Rio, nunca tirou Minas da cabeça. Sua obra é uma obra de exílio e de aceitação do exílio; de ida sem volta e de aceitação amadurecida do fato de não poder mais voltar. Este poema é sua primeira, precoce e definitiva declaração de amor pelo Rio de Janeiro.

A falta inicial de Minas e a inadaptação crônica do poeta com o mundo o fazem dizer, vagando a esmo na cidade estranha: “Meus paralíticos sonhos desgosto de viver / (a vida para mim é vontade de morrer) / faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente / na Galeria Cruzeiro quente quente / e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, / nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso”. Quem não já se sentiu assim numa cidade grande e anônima, sem conhecer ninguém, sem se encaixar? Numa cidade onde a vida humana soa alienada, distanciada, estrangeirizada e irredutível? Quem não já vagou de noite sem ter porta a que bater, nome que chamar, recanto onde dormir? Acabemos com isso, claro.

“Mas” (diz o poeta) “tremia na cidade uma fascinação casas compridas / autos abertos correndo caminho do mar / voluptuosidade errante do calor / mil presentes da vida aos homens indiferentes, / que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. // O mar batia em meu peito, já não batia no cais. / A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu / a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor”. É, pra mim, um dos grandes momentos da poesia de Drummond: o instante em que a mera existência da cidade toma de assalto o indivíduo numa espécie de náusea sartreana ao contrário. Escolhas verbais, pontuação, fragmentação sintática do texto, a equivalência sutil mar=coração, esse inesperado e insubstituível “meu amor”... É um momento de fusão perfeita entre o ser e o mundo, entre a idéia, a emoção e a palavra. Drummond insuperável.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

2765) Literatura Conceitual (13.1.2012)



Tenho falado aqui nesta coluna sobre a Literatura Conceitual, aquela que ao invés de pretender apenas contar uma história, como se faz desde que o mundo é mundo, inventa um truque ou efeito qualquer, e produz textos que da primeira à última palavra obedecem a essa regra estrutural. Esse tipo de literatura é geralmente praticado por grupos de autores de vanguarda. Os Surrealistas disseram: “E se a gente escrevesse textos sem pensar, sem escolher, sem criticar, escrevesse a toda velocidade o que a mente inconsciente nos diz?”. Os membros da Oulipo (“Ouvroir de Littérature Potentielle”) disseram: “E se a gente criasse regras matemáticas ou geométricas, totalmente arbitrárias, e produzisse textos de acordo com elas?”.

Esse procedimento não é privilégio das vanguardas. Aliás, o que as vanguardas fizeram (justificando seu nome) foi antever processos artificiais (ou pelo menos mais artificiais do que os processos em voga no seu tempo) de produzir textos, os quais começaram a ser postos em prática décadas depois pela literatura de massas. Ultimamente, por exemplo, alguém disse: “E se a gente reescrevesse romances clássicos cujo texto está em domínio público, enxertando neles novos parágrafos, ou capítulos inteiros, com a finalidade de transformá-los em livros de terror?”. E daí surgiram Orgulho e Preconceito e Zumbis de Jane Austen e Seth Grahame-Smith, Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos de Jane Austen e Ben H. Winters, Dom Casmurro e os Discos Voadores de Machado de Assis e Lúcio Manfredi, e vários outros. Esses romances trazem para a literatura a prática, hoje comum na música, que consiste em pegar os elementos originais de discos já gravados e fazer um “remix”, um “mash up”, etc. – ou seja, recombinando, eliminando elementos do original, fundindo-os com os de outras obras, e assim por diante.

Algum vanguardista escandalizado pode espernear dizendo que o termo “Literatura Conceitual” não se aplica a essa prática, que (segundo ele, talvez) não passa de uma jogada comercial. Para mim se aplica, pois Literatura Conceitual não passa de uma literatura que adota um princípio básico, meio arbitrário, de estrutura, de forma ou de técnica, e se atém a ele de maneira radical e inflexível. Comparar os livros citados acima com as obras dos surrealistas e dos oulipoetas revela apenas que as vanguardas são sempre mais bem-humoradas e brincalhonas do que aparentam; e que o público desses romances populares é capaz de entender um jogo conceitual, desde que seja feito em cima de conceitos que lhe são familiares e resultem em processos que eles sejam capazes de acompanhar.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

2764) A Mega Cena (12.1.2012)



(Rolling Stones, "O Banquete dos Mendigos")

A cena musical brasileira foi durante muitos anos uma espécie de Castelo de Caras, recebendo em seus esfuziantes salões aquelas poucas dezenas de felizardos que conseguiam o objetivo das gravadoras de discos: vender alguma coisa em torno de um milhão de discos. Isso bastava para que o artista mudasse de vida, mudasse de classe social, comprasse uma cobertura de frente pro mar, uma fazenda, meia dúzia de carros importados e assim por diante. Quantas vezes estive numa mesa de restaurante ouvindo alguém dizer: “Semana que vem embarco para Aruba com minha banda, minha equipe e minha família, por conta da gravadora. Vou passar uma semana lá, gravando o clipe do meu próximo disco”. Gravadoras sempre rasgaram montanhas de dinheiro com farras nababescas, lançamentos de discos com boca-livre e uísque importado dando no meio da canela, brindes e “kits” de divulgação cheios de riquetriques que enriqueciam os fabricantes sem somar nada ao disco divulgado. O objetivo dessa cena era espalhar pelo Brasil a idéia de que, fazendo o disco certo, cada um de nós podia virar milionário, comprar um avião, tornar-se príncipe sertanejo ou imperador do rock.

Isso ainda não acabou, claro. Olhem a programação das casas noturnas patrocinadas por telefônicas, ou os shows pagos por prefeituras pelo Brasil afora. Mas a atual cena da música está estrangulando esse degrau mais alto do pódio, que daqui a algum tempo talvez até desapareça. Ninguém mais vai vender um milhão de discos, ninguém mais vai comprar mansão com dinheiro de música, ninguém vai gravar clipe nas Bahamas nem marcar entrevista coletiva em Acapulco. O mercado se expande, mas sua tendência é se expandir mais horizontalmente do que verticalmente, em termos de cifrões – e não pode existir notícia melhor do que esta.

A cena musical megalomaníaca vai minguar e se extinguir. Em vez de um cara vendendo um milhão, teremos cem artistas vendendo dez mil cada um. Talvez isso não dê para eles construírem uma casa ou comprarem uma BMW, mas ora, quem tiver esses objetivos que se candidate a deputado! A música ficará para os que querem fazer música, não para os que querem ficar ricos. O objetivo de uma carreira musical será tirar um som, espalhar uma idéia, produzir uma emoção, alegrar uma galera, embalar um romance, atacar um sistema, captar um momento. Se a música é essa loteria imprevisível, onde o sucesso nunca está garantido, ela vai deixar de conceder o prêmio da Sena, e o máximo a que os artistas podem ambicionar é a Quina ou a Quadra. E teremos uma cena musical com milhões de músicos não-ricos, mas vivendo de música, em cada esquina e em cada quadra do Brasil.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

2763) Dicas de Billy Wilder (11.1.2012)



(Billy Wilder)

O diretor Cameron Crowe fez com o mestre Billy Wilder algo parecido com o que François Truffaut havia feito com Hitchcock: um livro (Conversations with Billy Wilder) de discussão minuciosa sobre os segredos do cinema. Wilder é um dos narradores mais inteligentes do cinema americano, e suas observações vão ao cerne da arte da narrativa visual. Como todo mundo sabe, o artista incompetente não consegue seguir as regras, o artista medíocre segue as regras, o artista de talento cria regras para os demais, e o gênio cria regras que só se aplicam a ele próprio. Wilder pertence ao terceiro tipo.

Ele diz, por exemplo: “O público é volúvel. Agarre-o pela garganta e não o solte”. O cinema é uma diversão popular. Por mais que as pessoas estejam trancadas numa sala escura, sentadas em poltronas presas ao chão, viradas para a tela, as possibilidades de distração são infinitas. Acho que foi Caetano Veloso quem disse que na Europa as pessoas veem um filme como quem assiste uma ópera, e nos EUA veem um filme como quem assiste um jogo de basquete. É pipoca, é refrigerante, é namorada, é turma, é brincadeira, é jogar bolinha de papel na cabeça dos amigos... Tem que dar uma trava nessa galera. É preciso imobilizar o espectador e deixá-lo de olhos arregalados, com a mão cheia de pipoca parada a meio caminho da boca aberta, durante vários minutos. Todo o cinema de super-heróis, de perseguições e de efeitos especiais é uma hipertrofia dessa tendência. Wilder segurava a atenção da platéia para mostrar e dizer; esses filmes o fazem apenas para mostrar.

Li uma vez um comentário sobre o teatro no tempo de Shakespeare. Teatro naquele tempo era diversão popular, devia ser uma coisa tão barulhenta quanto uma peça de mamulengos numa feira nordestina. Daí que o dramaturgo, para calar o vozerio da platéia, tinha que começar as peças com imagens de impacto, que agarrassem a audiência pela garganta: um fantasma em Hamlet, bruxas em Macbeth, etc. Eram os “efeitos especiais” daquele tempo.

Wilder complementa essa dica dizendo: “Estabeleça uma linha de ação clara para o protagonista do filme, e saiba para onde está indo”. A primeira parte é essencial para capturar o interesse do público, que, em geral, se liga ao que acontece com o personagem Fulano. A segunda parte simplesmente nos lembra que não podemos deixar para improvisar o fim do filme na hora da filmagem. Lembrem-se: não estamos falando em Cinema de Arte, onde o artista faz o que lhe dá na telha e arca com as consequências. Estamos falando de Billy Wilder, cinema comercial inteligente, de boa qualidade, capaz de nos divertir e de mexer com camadas misteriosas da nossa mente.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

2762) A vida é linda (10.1.2012)




Eu fazia de tudo para deixar Florisbela feliz. Quando ela pedia para ir à noite no restaurante tal, eu dava uma geral no menu, à distância, e fazia com que preparassem alguns dos pratos preferidos dela (mas não tantos que a fizessem sofrer com indecisões). A coisa mais linda do mundo era vê-la arregalar os olhos azuis diante do cardápio e exclamar, deliciada: “Peixe ao molho de maracujá! Adoro isso!”. Sem falar nos sinais de trânsito, que eu sempre preferia ir abrindo de um em um, na hora, improviso total, maior jazz sem perder o compasso, enquanto ela murmurava: “Você dirige tão concentrado...”

Nada me dava mais prazer do que dar prazer a Florisbela, e para felicidade minha ela era uma menina de coração puro, por isso nunca tive de manipular as tômbolas da Mega Sena ou coisa equivalente; Florisbela desprezava os novos-ricos. Sua alegria era a das pequenas coisas, por isso eu conseguia presenteá-la com um arco-íris numa tarde sem chuva ou flores que brotavam nas alamedas do parque enquanto caminhávamos (e desapareciam para sempre quando íamos embora). Ir ao cinema com ela exigia de mim performances caprichadas, verdadeiras acrobacias mentais, como quando vimos Em Algum Lugar do Passado e ela foi a única pessoa no cinema a receber em suas retinas os dez minutos de um final feliz. (O pior é que depois era preciso monitorar as conversas dela com as amigas, que tinham visto a versão oficial do filme e achavam Florisbela meio desorientada.)

Beijava meu rosto e dizia: “Me sinto tão bem contigo, visse?...”, enquanto eu guiava pela cidade, meio à toa, ao volante de um carro sem uma gota de gasolina, evitando parar num posto para não quebrar o encanto das canções dos Beatles que estávamos escutando juntos (num pendraive vazio). Cada momento nosso era mágico e especial. Num domingo em que acordamos preguiçosamente, com alguns compromissos meio chatos, bastou perceber a languidez do seu olhar para produzir uma chuva que durou o dia inteiro, fazendo com que nos enroscássemos sem compromisso até a hora em que ela disse: “Vamos comer uma pizza?”, e a chuva parou como por milagre.

Os parcos conhecimentos astronômicos de Florisbela nunca lhe permitiram desconfiar do fato de que em todos os seus aniversários ela era presenteada com uma lua cheia espetacular. Isto me fez perder o senso de medida. Uma noite, quando passeávamos de mãos dadas à margem do Açude Velho, produzi uma aurora boreal que a deixou maravilhada, à beira das lágrimas. Mas de súbito ela teve um sobressalto, olhou desconfiada para mim e disse: “Peraí... Aurora boreal na Paraíba?!!!”. Aí pronto, desse dia em diante nada mais deu certo.

domingo, 8 de janeiro de 2012

2761) Prezado Eu (8.1.2012)



“Prezado Eu: Estou escrevendo do ano de 2010, quando atingi a idade totalmente ridícula de 62 anos, e venho lhe dar um pequeno conselho, em apenas cinco palavras: fique longe das drogas recreativas. Você tem muito talento e vai fazer muita gente feliz com suas histórias, mas (é triste, mas é verdade) você também é um viciado pronto para entrar em ação. Se você não der atenção a esta carta e mudar seu futuro, pelo menos dez anos da sua vida, entre os 30 e os 40 anos, vão ser uma espécie de eclipse tenebroso em que você vai decepcionar uma porção de gente e deixar de aproveitar seu próprio sucesso. Vai também chegar bem perto da morte, em várias ocasiões. Faça um favor a você mesmo e desfrute de um mundo mais luminoso e mais produtivo. Lembre que, assim como o amor, a resistência à tentação torna o nosso coração mais forte. Fique limpo. Tudo de bom, Stephen King”.

Esta é uma das cartas que The Guardian encomendou a pessoas como Gene Hackman, Alice Cooper, James Belushi, Gillian Anderson, etc., com o mote: “Escreva uma carta para você mesmo aos 16 anos, dando-lhe o recado que achar mais importante (http://bit.ly/p0bFox)”. Todos nós sabemos que é impossível mudar o passado, e que se pudéssemos mudar o que fizemos aos 16 anos não chegaríamos ao ponto de, adultos, poder voltar no tempo para fazer essa mudança. É a viagem impossível, um paradoxo temporal que tem a sedução hipnótica das ilusões de ótica, das pinturas “trompe l’oeil” e das gravuras de Escher em que duas imagens incompatíveis parecem coexistir.

Stephen King é um dos escritores mais bem sucedidos, comercialmente, mas sempre teve problemas com a bebida (e outras drogas). Já vi uma entrevista em que ele declarava guardar apenas uma vaga lembrança de ter escrito o romance Cujo (1981), porque nessa época não fazia outra coisa senão se embebedar. Sua obra retoma de maneira obsessiva e mesmo cansativo esse tema: um escritor bêbado em conflito com a família (talvez O Iluminado seja o melhor livro dele sobre esse tema).

Entre os outros convidados, Hugh Jackman (“Wolverine”) aconselha seu Eu jovem a usar sempre protetor solar, e a manter uma lista das 5 coisas que gosta de fazer e das 5 coisas que sabe fazer bem, e avisa: “Um dia tudo isto vai se encaixar, e você vai descobrir seu caminho”. Esses conselhos fictícios são uma breve dramatização do balanço retrospectivo que todos nós fazemos de vez em quando para saber o que funcionou e o que não deu certo em nossas vidas. O “Eu” com 16 anos cometerá os mesmos erros e fará as mesmas descobertas; mas somente nós somos capazes de, agora, distinguir o que foi descoberta e o que foi erro.

sábado, 7 de janeiro de 2012

2760) Modos de dizer (7.1.2012)




Jorge Luís Borges disse que os séculos dão polimento às frases, assim como a água dá polimento aos seixos. Esse polimento, contudo, tanto embeleza quanto deturpa. Tem frases que com o tempo vão ficando mais erradas, vão se deteriorando, seja em termos de sonoridade, seja em sentido.

Antigamente tínhamos uma expressão para dizer que não estávamos dando importância a alguma coisa: “Estou me lixando para isso”. Não sei de onde veio esse “me lixando”, mas visualizo a cena de uma pessoa lixando as unhas e dizendo: “Não tenho tempo para me importar com isso, estou fazendo algo mais interessante: lixando as unhas”. Algo assim. 

E havia outra expressão equivalente: “Eu pouco estou ligando para isso”, a qual não precisa de explicação. Ora, de algumas décadas pra cá a TV está cheia de mocinhas louras sacudindo a cabeleira prum lado e dizendo: “Ah, não ligo, eu pouco estou me lixando para isso”. Dirão o mesmo, é claro, deste meu comentário.

Essa deturpação pela junção de contrários é estruturalmente equivalente à de uma cena que foi uma grande gozação no YouTube tempos atrás. O show de uma banda adolescente foi cancelado, houve empurra-empurra, garotos e garotas protestando histéricos, e uma adolescente chorando e dizendo pra câmara: “Gente, isso é uma grande falta de sacanagem!”.

Às vezes as modificações não alteram o sentido mas contaminam a forma da frase, de modo irremediável. Antigamente, quando queríamos dizer a alguém que perdesse as esperanças quanto a alguma coisa, dizíamos: “Tire o cavalo da chuva, Fulana não quer mais namorar com você”. (Acho que a origem da frase foi numa noite tempestuosa; uma pessoa que queria prosseguir viagem, e o dono da hospedaria disse: “Monsieur, tire o cavalo da chuva e guarde-o no estábulo, não convém pegar a estrada numa noite como esta”.) 

Em todo caso, por motivos insondáveis a frase hoje se cristalizou em “Pode ir tirando o cavalinho da chuva”, a tal ponto que quando digo a forma original sempre aparece alguém para me corrigir. Frases assim viram uma espécie de fórmula mágica, que toda vez tem que ser dita escrupulosamente da mesma maneira.

E até em setores mais eruditos aparecem contaminações assim. Todo mundo conhece a frase de Hamlet: “Existem mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”. A frase é uma beleza, mas até hoje ninguém me explicou quem é o responsável por esse adjetivo “vã”. Ele não aparece no texto original, mas se infiltrou de modo tão sorrateiro que quando digo a frase correta alguém corrige: “Não é ‘a nossa filosofia’, é a ‘nossa vã filosofia’...” E o autor das peças de Shakespeare dá a milionésima volta no túmulo.






sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

2759) “Bonita Maria do Capitão” (6.1.2012)



O centenário de nascimento de Maria Bonita, mulher de Lampião, motivou o lançamento de um livro que celebra sua vida e seu mito, realizado por Vera Ferreira (neta do casal) e Germana Gonçalves de Araújo. É um álbum de luxo (Editora da Universidade do Estado da Bahia, www.uneb.br), com excelente produção gráfica e uma abundância de fotos e de documentos de época, na primeira parte, e na segunda um apanhado do reflexo da figura de Maria Bonita na cultura brasileira em geral. Eu contribuí com uma pequena crônica. Há poemas de Jessier Quirino, Ângelo Rafael, Myriam Fraga e outros. O pesquisador cearense Nirez contribui com um artigo sobre as canções da MPB que mencionam Maria Bonita. Laura Bezerra estuda as imagens de Maria no cinema, Jeová Franklin a sua presença na xilogravura, através do cordel, e André Betonassi estuda as histórias em quadrinhos que a têm como personagem.

Dentro da sempre crescente bibliografia sobre o cangaço, acho que são poucos os livros sobre Maria Bonita. A figura central de Lampião domina esses estudos, e de qualquer maneira a maior parte deles tem um viés histórico e sociológico que os faz ter que abordar o cangaço como um todo, e não pessoas específicas. Entende-se a inesgotável atração da figura de Lampião, seja como herói ou como bandido, como justiceiro social ou como criminoso sádico, como estrategista ou como marqueteiro de si próprio. A polêmica extremada que cerca Virgolino nasce de sua própria personalidade, contraditória como a de qualquer indivíduo de valor projetado numa situação-limite dentro de um ambiente sem lei. Nessas circunstâncias, é de se esperar que um sujeito seja generoso de manhã e brutal no fim da tarde; protetor de uns e algoz de outros. É de se esperar que deixe atrás de si um rastro de ódios e de gratidões.

Maria é um personagem fascinante porque não tem nenhuma dessas facetas de Virgolino. Não conheço histórias de nenhuma violência praticada pessoalmente por ela, a não ser a participação nos combates (minha impressão é confirmada no artigo de Sérgio Augusto de Souza Dantas). Não sei se era estrategista ou diplomata no meio da intrincada rede de negociações políticas e militares da guerrilha sertaneja. Para todos nós, é a figura aventureira da mulher que abandonou a tranquilidade de uma vida doméstica pela vida selvagem na caatinga, onde a única certeza era a morte no final. Este livro se encerra com a presença de Bonita (e do cangaço) na moda. Isto, de certo modo, chancela o último estágio da transformação de uma pessoa em imagem, cada vez mais diferente de si própria e mais parecida com o próprio mito.