quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

2745) “Mais Que Humano” (21.12.2011)



Este romance de Theodore Sturgeon, de 1953, é um dos grandes romances de ficção científica de sua época, e aparece na maioria das listas dos melhores do gênero. Ser incluído nessas listas não é uma questão de qualidade literária, mas de presença histórica. Obras que compõem um cânone são as obras formadoras, aquelas que uma vez publicadas passam a servir de ponto de referência obrigatório. More than Human conta a história de um grupo de crianças e jovens de rua, marginais, desprezados pela família, com poderes paranormais que utilizam da modo aleatório, sem compreendê-los totalmente. Encontram-se pouco a pouco, meio por acaso, e acabam formando uma Gestalt, um grupo em que cada um deles desempenha um papel essencial. Uma pode mover objetos com a mente, outras podem se transferir instantaneamente de um lugar para outro, outro induz as pessoas a lhe obedecem, como num hipnotismo instantâneo, etc. Juntos, tornam-se uma criatura nova, o Homo Gestalt.

A história se conclui com o aparecimento de um derradeiro personagem, que, após ser perseguido pelo grupo, acaba sendo salvo por uma de suas integrantes e se junta a ele. Sua função é proporcionar ao grupo (que era isolacionista, egocêntrico, amoral) uma moralidade, um senso de finalidade, uma missão a cumprir junto à espécie humana. A infância sofrida e perseguida daquelas crianças produz, quando elas descobrem seus super-poderes, uma espécie de vingança cega contra a humanidade que os desprezou. (Os personagens mutantes da série de HQ “X-Men” herdaram algo dessa atitude.) Somente com a chegada de um personagem que exige deles uma atitude ética o Homo Gestalt passa a funcionar com sua plena capacidade.

É possível que o livro tenha influenciado um conto de Robert Sheckley, “Specialist” (1953), onde aparece uma nave cuja tripulação é composta por criaturas extraterrestres interligadas através da função de cada um: o Olho, o Motor, as Paredes, o Pensador, a Fala... Eles chegam à terra em busca de um Propulsor, ou seja, um ser humano. Sem ele, são uma Gestalt organizada e infalível; mas para dar os saltos que fazem a nave viajar mais rápido do que a luz, precisam desta espécie, o Propulsor, que extrai energia de si mesmo: “Os Propulsores viviam há séculos por entre o medo e a dúvida. Guerreavam por causa do medo, matavam por causa da dúvida”. E é essa energia de que a Nave precisa para mover-se pelo Universo. Os textos de Sturgeon e Sheckley podem servir de metáforas da sociedade ou da mente humana, que por mais organizadas e eficientes que sejam precisam de um componente subjetivo essencial para poderem funcionar com seus plenos poderes.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

2744) A palavra pantim (20.12.2011)




Uma das palavras mais elusivas do nosso idioma nordestinense; serve para um número tão grande de situações que fica difícil atribuir-lhe um sentido principal. Se eu tivesse de escolher algum, escolheria: “fricote; manha; frescura; nhém-nhém-nhém”. 

-- Vamos, rapaz! Começa logo esse show, e deixa de pantim! 

Ou:

-- Deixe de pantim, eu estou só trocando o curativo. 

É qualquer reação exagerada, artificial, “valorizando” demasiadamente uma situação que não tem muita gravidade. Como neste exemplo de Nei Leandro de Castro, em As pelejas de Ojuara

Teve uma hora que Silva da Mata parou, deitado de costas, a língua para fora, os olhos revirados. Ficou desse jeito, totalmente imóvel, a respiração suspensa. Ojuara fez força para não rir daquele pantim, o mais demorado que ele já tinha visto na vida. 

No folheto da 2ª Peleja de José Costa Leite com Maria Quixabeira, de José Costa Leite, vemos: 

Você com esse pantim 
já está me chateando 
a mulher é quem não presta 
a metade vive enganando 
mas já vi uma direita 
uma vez, eu não sei quando. 

 Na canção de Capiba “Quem vai pra farol é o bonde de Olinda”, de 1937, ele já diz: 

Você sabe que eu sei 
e todo mundo já fala 
porém você quer me ocultar; 
confesse logo e deixe de pantim para mim 
que você vive a me enganar. 

Dicionários on-line por aí dão-lhe um significado que, sinceramente, nunca vi sendo utilizado: “boato, notícia assustadora, alarmante”. Vejo, por outro lado, a expressão “fazer um pantim” no sentido de “fazer uma encenação qualquer para pregar susto em alguém”: “Ele ficou escondido atrás da porta, com um lençol, quando os meninos entraram ele fêz um pantim, e os meninos saíram correndo”. 

Outra acepção de “fazer pantim” é esboçar um gesto, deixando-o incompleto, ou apenas a título de ilustração: “Ele não puxou a faca não. Fez só o pantim, mas a gente se assustou e saiu correndo.” "Passa a carteira pra cá, ligeiro! Sem fazer pantim!" 

Tenho imensa curiosidade em saber a origem desse termo, mas nunca me ocorreu uma hipótese que valesse a pena. 

Existe uma leve possibilidade de que venha do francês pantin ("fantoche; pessoa ridícula"). O filme de Luís Buñuel Este Obscuro Objeto de Desejo baseia-se num romance de Pierre Louys intitulado La femme et le pantin (filmado também por Julien Duvivier, com Brigitte Bardot, e por Josef von Sternberg, com Marlene Dietrich). 

Literalmente, seria "A Mulher e o Fantoche": a personagem é uma jovem bonita que passa o filme inteiro prometendo entregar-se a um homem idoso, e esquivando-se dele na hora H. Ou seja, em bom paraibanês: ela não dá nunca pra ele, faz somente o pantim.







domingo, 18 de dezembro de 2011

2743) Novos milionários (18.12.2011)



Sete mil novos milionários por ano. Esta é a quantidade que o Brasil produz, segundo a revista Forbes. Um artigo recente (http://tinyurl.com/7po2pzb) dessa revista nos adverte, contudo, que eles são milionários em moeda brasileira, pois o seu valor em dólares é algo em torno de 540 mil. Para um país do BRIC não está nada ruim, embora faça lembrar a frase (não sei se é de Gandhi ou do Dalai Lama) de que alguns países produzem riqueza e outros produzem ricos. O Brasil, amigos, está botando rico pelo ladrão.

A Forbes lembra que a estatística, que na verdade fala em 19 milionários por dia, levou em conta todas as riquezas do indivíduo: investimentos, propriedades, poupanças e outros ativos, além de dinheiro em caixa. E diz que o Brasil tem atualmente 137 mil milionários e cerca de 30 bilionários, de acordo com a lista elaborada pela própria revista em 2011, sendo que 70% da riqueza do país estão concentrados em São Paulo e Rio de Janeiro. (Imagino que este número se refira à riqueza desses banqueiros e altos executivos, não à riqueza do país como um todo.)

O engano mais frequente em torno dos milionários é pensar que todo sujeito rico conquistou esse dinheiro roubando. Errado. Muitos enriquecem honestamente, e a única crítica que se pode fazer a sua fortuna é que foi obtida através da exploração do operariado, do crescimento desenfreado dos bancos e das multinacionais, etc.; mas o trabalho dele, em si, não envolveu corrupção ou apropriação indébita.

Essa é minha dúvida principal, porque um corrupto, traficante, contrabandista, gangster, etc. desfruta, é óbvio, de uma riqueza indevida. Mas o que dizer de um gerente de conglomerado financeiro que ganha um milhão por mês? É o salário dele, pagam-lho porque acham que o merece. É um pouco como salário de jogador de futebol. Eu não consigo encontrar uma relação concreta entre os salários sauditas que esses atletas ganham e o futebolzinho bambala que jogam. Mas se os próprios patrões concordam em pagar isso, problema deles.

E volto à questão. É possível, talvez, ser um funcionário honesto (dedicado, ético, que age estritamente dentro da lei) num conglomerado financeiro. O problema é que um conglomerado financeiro é, no mundo de hoje, algo comparável ao conglomerado celular popularmente conhecido como “câncer”. Suas intenções podem até ser as mais angelicais possíveis, mas seu funcionamento é predatório, suicida, e tende a destruir o organismo onde habita. É possível ser correto no interior de um sistema que age de forma incorreta? Até que ponto a surrada justificativa do “estou apenas cumprindo ordens” os absolve das fortunas que ganham?

sábado, 17 de dezembro de 2011

2742) A epifania do líder (17.12.2011)




(Tancredi Scarpelli, "Balboa avista o Pacífico")

Dizem que os primeiros europeus a avistar o Oceano Pacífico, do lado oposto do continente americano, foram os da expedição de Vasco Nuñez de Balboa. Vi na Wikipedia uma citação da "História da América" de William Robertson em que esse momento histórico é descrito. Diz o texto:

“Os índios haviam garantido que do topo da próxima montanha eles poderiam avistar esse oceano que procuravam. Quando, depois de muito esforço, conseguiram subir a maior parte da íngreme encosta, Balboa ordenou aos seus homens que se detivessem, e avançou sozinho até o topo, para ser o primeiro a desfrutar daquele espetáculo pelo qual tanto ansiara. Assim que viu o Mar Sul em sua extensão infinita diante dos seus olhos, ele caiu de joelhos, e erguendo as mãos para o Céu rendeu graças a Deus, que o guiara naquela descoberta tão importante para o seu país, e tão honrosa para ele próprio. Seus seguidores, vendo suas manifestações de alegria, avançaram para juntar-se a ele em seu deslumbramento, júbilo e gratidão”.

O gesto de Balboa de mandar os soldados se deterem para que ele fosse o primeiro a avistar o Oceano é à primeira vista uma inversão da situação dos capitães de navio. Cabe a Cabral a glória de ter descoberto o Brasil, mas o próprio Cabral tinha consciência de que quem primeiro avistou o Monte Pascoal foi o rapazinho na gávea, naquele cesto preso no alto do mastro. Isso talvez o incomodasse: a consciência íntima de não ter sido o primeiro. 

Ter apenas a glória simbólica, a glória do comando, era pouco para Balboa. Ele queria ter a certeza de ter sido o primeiro, de fato.

Por outro lado, esse egoísmo lembra a famosa cena da "Odisséia” em que Ulisses, desejoso de saber como era o canto das sereias, faz-se amarrar ao mastro para escutá-lo, e manda os marinheiros taparem os ouvidos com cera. O momento de epifania, de êxtase, é reservado ao chefe; os trabalhadores não podem, porque depende deles o rumo seguro do navio. 

Faz parte do sistema o fato de que cem remadores ou cem soldados estão ali apenas para garantir ao seu chefe as experiências numinosas que a aventura lhes reserva. Todo aquela esforço coletivo é em nome de um homem: Cortez conquistou o México, Napoleão perdeu a campanha da Rússia.

E nada nos impede de imaginar que quando Balboa enxergou o Pacífico entendeu de imediato o quanto, diante daquele universo de água, tudo o mais era pequeno. Ficou com o olhar chapado das pessoas que descem da nave alienígena em "Contatos Imediatos". 

Ocorre muitas vezes que essa visões de epifania e transcendência não deixam um indivíduo vaidoso pelo conhecimento adquirido, mas modesto por conhecer agora as próprias dimensões.




sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

2741) Drummond: “Família” (16.12.2011)




Uma parte considerável de Alguma Poesia (primeiro livro de Carlos Drummond, publicado em 1930) é de poemas sobre a vida doméstica, descrita de diferentes pontos de vista (“Infância”, “Sweet Home”, etc.). Um tema que foi se diluindo gradualmente. Não lembro de nenhum texto nessa linha em livros como Claro Enigma, por exemplo. Na verdade, há dois tipos de textos muitos diferentes: os poemas em que Drummond evoca sua família real, suas lembranças reais (o pai, a mãe, etc.) e os poemas em que ele compõe pequenos quadros de vida doméstica que não se referem propriamente a ele mesmo, mas a famílias imaginárias cuja existência está plantada na zona limítrofe entre a paz e a pasmaceira, entre a tranquilidade e o tédio.

“Família” pertence a essa linha: “Três meninos e duas meninas, / Sendo uma ainda de colo. / A cozinheira preta, a copeira mulata, / o papagaio, o gato, o cachorro, / as galinhas gordas no palmo de horta / e a mulher que trata de tudo”. Parece a descrição da fotografia de uma família. Ou um daqueles “grupos de família numa sala” que os pintores antigos gostavam de compor. Essa enumeração de personagens humanos e animais, porém, soa como uma receita de bolo, uma lista de ingredientes necessários para preparar a família mineira ideal.

Além dos personagens, a família inclui uma cenografia meticulosa de objetos, e pequenos rituais associados a eles: “A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, / o cigarro, o trabalho, a reza, / a goiabada na sobremesa de domingo, / o palito nos dentes contentes, / o gramofone rouco toda noite / e a mulher que trata de tudo”. Note-se a reiteração da frase “e a mulher que trata de tudo” num tom de calculada ambiguidade. A mulher é mencionada como se fosse a figura mais poderosa, e ao mesmo tempo a frase tem aquele tom taxativo, machista, bem tradicional, dos sujeitos que dizem: “aqui na casa quem manda é a patroa”, num tom que deixa bem clara a situação de subserviência dessa “patroa”.

A vida social de-portas-afora é descrita em breves cápsulas na estrofe final: “O agiota, o leiteiro, o turco, / o médico uma vez por mês, / o bilhete todas as semanas / branco! Mas a esperança sempre verde. / A mulher que trata de tudo / e a felicidade”. Rotina, vidinha conservadora e um tanto fundada em preconceitos (veja-se o tom com que se refere ao “turco”, à “cozinheira preta e a copeira mulata”, como se fossem coisas). A palavra “felicidade” na linha final surge como um elemento obrigatório a partir do qual todos os outros tivessem sido deduzidos. Parece um retrato de família a óleo mostrando na parede um dístico: “Aqui nesta casa todo mundo é obrigado a ser feliz”.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

2740) Arte Acontecimento (15.12.2011)




No futuro próximo irá se intensificar a prática da Arte Acontecimento, mas num plano diverso dos “happenings” dos anos 1960, que privilegiavam o inesperado, o espontâneo, o aleatório. A Arte Acontecimento, ou Arte Evento, irá extrair seu perfil de atividades como o Teatro de Guerrilha, ou Teatro Invisível, de Augusto Boal; os “flash mobs”, ajuntamentos de pessoas com um propósito específico, convocados via Twitter ou celular; os atores que fazem “estátua viva” na calçada; os ativistas ecológicos que interrompem desfiles ou solenidades atirando pizzas ou sangue nos participantes. Nesta forma de arte futura, grupos se organizarão e realizarão peças instantâneas, em lugares públicos, nas quais os transeuntes serão coadjuvantes involuntários e imaginarão que estão presenciando um fato casual, não uma sequência prevista e deliberada de acontecimentos.

Um forte impulso será dado a esta Arte pela disseminação das famosas “pegadinhas” da TV, que estão condicionando o público a aceitar com passividade ou simpatia interferências ficcionais (no sentido de serem pré-roteirizadas) no seu cotidiano. Aceitaremos esses teatrinhos de rua como aceitamos a música de rua ou os pintores que fazem quadros com spray sentados na calçada.

Alguns desses grupos preferirão usar uniformes ou signos facilmente reconhecíveis, como acontece com grupos já existentes – a Confraria do Garoto, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo. Outros virão disfarçados de transeuntes. Alguns grupos provavelmente homenagearão personagens fictícios com os quais se identificam ou com que têm certa filiação simbólica ou sentimental, como os Palhaços ou os Piratas do Tietê, do cartunista Laerte, ou os agentes da Intempol, a polícia temporal criada por Octavio Aragão.

Muitas dessas ações de rua serão expansão de Role Playing Games e de atividades típicas da Internet. Jogos, disputas ou encenações terão lugar através da Web, em tempo real, e em determinados momentos exigirão que seus participantes saiam à rua e participem de tais ou tais ações numa praça, num restaurante, num edifício público, num metrô, etc. Webcams farão a conexão, transformando a rua num palco e a Web numa platéia. Note-se que nada disto se aplica a atos públicos, protestos, ações políticas tipo “Ocupem Wall Street”, mas apenas a ações coordenadas de finalidade estética, artística, ficcional. A Arte Acontecimento consistirá em pequenas histórias ou pequenas situações, potencializadas pela Web, em que ações humanas e diálogos humanos servirão para iluminar a condição humana num ambiente em que será difícil distinguir entre vida e arte, entre o espontâneo e o planejado.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

2739) Aos jovens escritores (14.12.2011)





1) 
Use uma iluminação diferente quando for escrever. Por exemplo, apague a luz principal do escritório, acenda um abajur virado para a parede, deixe a tela do computador brilhar mais forte na penumbra. Crie um clima. Algo que avise o seu inconsciente que agora está num momento distinto, onde as regras são outras. 

Se não der certo, faça o contrário: ande com caneta e papel no bolso e escreva em qualquer lugar, a qualquer momento, em qualquer clima. Na fila do banco, no metrô, no táxi, na sala de espera, em casa diante da TV.

2) 
Tenha perto do computador uma poltrona, sofá, etc., onde você possa pensar longe do teclado. Isso ajuda. O corpo descansa, a cabeça carrega as baterias. Ficar hesitando na frente do teclado cansa todos dois. Se sentir que “deu um branco”, sente no sofá, feche os olhos, concentre-se no que está escrevendo. Quando uma frase surgir, não hesite, pule do sofá, sente no teclado e mande bala. 

Se não der certo, faça o contrário: obrigue-se a ficar na frente do computador, brigando mentalmente com a frase até que ela apareça, mas sem abandonar o ringue e sem aceitar o gongo.

3) 
Planeje cuidadosamente o livro; faça lista dos personagens, com nome, descrição e pequena biografia de cada um; esboce mapas das andanças deles, prepare descrições dos ambientes (use fotos ou ilustrações que deem sugestões visuais), faça sinopse e escaleta dos capítulos. Tenha em mente tudo que aconteceu na história, e só então comece a escrever. 

Se não der certo, faça o contrário: comece com uma frase, uma imagem, uma situação solta, e vá improvisando toda a história a partir daí, dando nomes provisórios às pessoas e aos lugares, o importante é não deixar a peteca cair nem a corda-bamba se soltar.

4) 
Tenha sempre à mão livros inspiradores, livros que você acha bem escritos e que por alguma razão basta ler um parágrafo deles para sua cabeça ficar a mil, querendo escrever, contaminada por aquela energia verbal. 

Se não der certo, faça o contrário: pare de ler durante dias, não ligue a TV, não veja filmes, dedique-se apenas a tarefas manuais, limpe a mente de palavras, para quando começar a escrever estar com a cabeça intacta e pronta.

5) 
Leia instruções, manuais, faça oficinas literárias, consulte livros como O Livro do Escritor (Ímã Editorial), siga religiosamente as dicas alheias para ver se funcionam com você. 

Se não der certo, faça o contrário: escreva prestando atenção em você mesmo, analise seu jeito de fazer as coisas, incremente o que dá certo, corrija o que não dá, crie seu próprio método de escrever. Criar o próprio método é tão divertido e tão útil quanto escrever o próprio livro.







terça-feira, 13 de dezembro de 2011

2738) Lá vem o Barça (13.12.2011)



(Xavi: 600 jogos pelo Barcelona)

Parei tudo, no sábado passado, para assistir Real Madrid x Barcelona, que nos últimos anos andou ganhando o status de O Maior Jogo do Mundo. São dois grandes times, de futebol refinado, raça impressionante, e que cultivam uma rivalidade histórica. Mesmo que estejam ambos caindo aos pedaços e sem aspirações a um título, quando entram em campo para se enfrentar é como se estivessem jogando a vida e a alma. É uma disputa além do futebol. Historicamente, o Barcelona se identifica com a esquerda e com a resistência republicana durante a Guerra Civil espanhola dos anos 1930. Já o Real Madrid se identifica com a monarquia e com os exércitos franquistas que venceram a Guerra Civil. Nem preciso dizer que torço pelo Barça. (E que milhares de torcedores do Real vão me escrever agora dizendo que minha descrição é desinformada e injusta.)

No jogo de sábado, diante de 80 mil torcedores (dos quais apenas 500 do Barcelona), o Real abriu o placar com 25 segundos, fazendo o mundo vir abaixo. Pressionou por meia hora, e poderia ter feito mais um ou dois gols, liquidando o jogo. Não fez. O Barcelona assimilou o golpe, botou a bola no chão e os nervos no lugar, e empatou. No segundo tempo, jogou como quis; o Real voltou a desperdiçar chances e o Barça conseguiu mais dois gols, calando o estádio.

O futebol do Real é vigoroso, rápido, ofensivo; seus jogadores chutam de longe com uma força e precisão impressionantes, e cada ataque do time é uma “blitzkrieg”. O jogo do Barcelona é miúdo, rápido, envolvente. Não entendo muito desses esquemas táticos de hoje, tipo 3-4-1-2 ou 4-2-1-3. Parece, no entanto, que a ordem no Barça é: não importa onde esteja a bola ou com quem, deve haver sempre 4 ou 5 jogadores fazendo um círculo em volta dela, prontos para tomá-la do adversário ou recebê-la do companheiro. É um jogo de impressionante velocidade, não a velocidade de arrancada rumo ao gol que é a cara do Real, mas velocidade de raciocínio e de visão, numa troca rápida de passes curtos até que a bola chega a um jogador em condições de chutar a gol ou dar o derradeiro passe.

O passe de primeira faz o Barcelona estar sempre um segundo à frente do adversário, no desenrolar da jogada. Vejo tantos jogadores hoje em dia que recebem a bola, param para pensar no que farão, e num piscar de olhos são desarmados. Uma vez perguntaram ao grande Capablanca quantas jogadas um Grande Mestre do Xadrez tinha que pensar antecipadamente. Ele disse: “Basta uma, desde que seja a jogada certa”. O Barcelona está sempre um toque, um segundo à frente do adversário, e é o que lhe basta para ganhar qualquer jogo, inclusive O Maior Jogo do Mundo.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

2737) Contracapa de skype (11.12.2011)



(mancha solar; foto da Nasa)

& um poema são instruções para mudar seu modo de pensar & uma espaçonave sentiente viajando vazia para descobrir sozinha a galáxia & vejo relâmpagos vermelhos no fundo do mar, e vêm subindo & não tem problema na vida que um acidente de moto não resolva & quando me deito pra dormir e me cubro com o lençol sinto como se ele fosse o sudário de Turim & a política é uma guerra entre formigas, as pretas invadindo um buraco aqui, as vermelhas fugindo às pressas de outro, lá no outro quarteirão & a lei é para todos, a transgressão para quem se atreve & primeiro saciar a fome, depois fazer amizade com os sobreviventes & pirata de verdade gosta menos do brilho do ouro do que do som do aço & uma freira cruzando devagar uma ponte deserta à meia-noite & a vida é uma queda do alto de um arranha-céu com um milhão de andares & dez centavos de cada cidadão chinês quebravam meu galho pro resto da vida & a olho nu é difícil distinguir entre uma estrela e uma galáxia & ainda não sei o que é mais ominoso, um ataúde ocupado ou um ataúde vazio & mundo globalizado é aquele em que você embarca para Londres, vai parar em Varsóvia, e sua mala no Gabão & a memória é um museu sem portas nem porteiros, onde qualquer um leva e traz o que bem entende & marcapasso coisa nenhuma, vou implantar é um bate-estacas & o Coliseu se erguia na colina como um dente cariado & e pensar que a Humanidade passou séculos tentando inventar um avião que batesse asas & tem gente que leva uma vida como a das formigas, correndo e cortando, trazendo pra casa e correndo de novo & a memória é um cesto de guardar água & um mercenário insone, de arma em punho, vigiado por um milhão de camponeses & quem me dera ser como o cavalo do Barão de Munchausen, e a bebida descer direto pro chão & a lua vem surgindo cor de nata & “Deus”: uma palavra que só serve para encerrar discussões interessantes & o sedutor trata uma mulher como um turista trata uma cidade & seria tão bom se existissem minibombas atômicas com que a gente se detonasse à noite, e na manhã seguinte acordasse bem normal & em algum lugar existem as árvores que produzem moscas, mosquitos, vespas, varejeiras & poemas cuneiformes gravados num queijo minas & uma prestidigitador que pegava um romance na estante, fazia um gesto, e um personagem desaparecia da história & a insônia é um carro trancado na garagem com o motor ligado & no casamento é preciso saber a hora de ser locomotiva e a hora de ser vagão & vivo oscilando entre o constrangimento por ganhar pouco e o remorso por ganhar muito & ser livre é estar vivo, o resto é choradeira &

sábado, 10 de dezembro de 2011

2736) O artista farol (10.12.2011)



(ilustração: Jaron Phillips)

Escrevi uma vez que esses poetas que se dizem influenciados por Arthur Rimbaud deveriam ter radicalizado essa influência e parado de produzir poesia aos 19 anos, como ele fez. É um gracejo, meio sem sentido aliás, porque para ser influenciado por Rimbaud basta ter lido uma vez alguns dos seus grandes poemas. Rimbaud dedicou a sua curta obra, escrita ao longo de cinco ou seis anos, uma intensidade de pensamento e de trabalho equivalente a uma vida inteira de um sujeito normal. Muita gente, contudo, esquece esse trabalho insano e acaba querendo imitar os cacoetes superficiais de Rimbaud: sua andarilhagem, seu homossexualismo, sua grosseria, sua mania de se alojar na casa alheia, seu gosto pelo escândalo... Nem Bob Dylan escapou.

Ou então, é um jovem guitarrista que quer tocar igual a Keith Richard, e uma das primeiras coisas que faz é começar a injetar heroína. Ou um jovem escritor que lê um livro de Faulkner, se deslumbra, ouve falar que Faulkner era um bêbado, e começa imediatamente a beber, ao invés de escrever. A verdade é que é mais fácil e mais divertido imitar os vícios de um artista do que as noites em claro que ele passou estudando e aperfeiçoando sua técnica. Artistas são, muitas vezes, sujeitos com imensa capacidade de concentração, de esforço, de disciplina; mas como têm um lado romântico e anticonvencional minimizam esse esforço, não querem ficar exortando os jovens a se tornarem “operários padrão”. Mas eles próprios o foram, e sem isto não teriam sido grandes.

O pior de tudo é quando certos artistas viveram uma viagem autodestrutiva que os arrastou para o abismo, mas durante esse processo produziram uma obra que perdurou. O leitor desavisado, o leitor jovem geralmente, imagina que para produzir uma obra como aquela é indispensável viver uma vida como aquela. Pensa que tem a obrigação de tomar todas as drogas que William Burroughs tomou, para ter idéias tão anticonvencionais quanto as de Burroughs; pensa que para escrever como Edgar Allan Poe é preciso viver na penúria, enchendo a cara, brigando com os amigos; pensa que tomar remédios tarja-preta o dia todo e ceder a surtos esquizofrênicos vai lhe dar de graça romances como os de Philip K. Dick.

Esses artistas são como faróis. Existem para serem vistos à distância, não para que alguém se aproxime deles. A obra é a luz que emitem, mas no caso deles é preciso saber que essa luz revela os penhascos ameaçadores onde foi fincada. Dizem aos navegantes: “Este lugar é perigoso!”. Feliz o artista que, mesmo naufragando entre os penhascos, consegue produzir alguma luz que diga: “Afasta-te daqui! Foi aqui que naufraguei!”.