sábado, 17 de dezembro de 2011

2742) A epifania do líder (17.12.2011)




(Tancredi Scarpelli, "Balboa avista o Pacífico")

Dizem que os primeiros europeus a avistar o Oceano Pacífico, do lado oposto do continente americano, foram os da expedição de Vasco Nuñez de Balboa. Vi na Wikipedia uma citação da "História da América" de William Robertson em que esse momento histórico é descrito. Diz o texto:

“Os índios haviam garantido que do topo da próxima montanha eles poderiam avistar esse oceano que procuravam. Quando, depois de muito esforço, conseguiram subir a maior parte da íngreme encosta, Balboa ordenou aos seus homens que se detivessem, e avançou sozinho até o topo, para ser o primeiro a desfrutar daquele espetáculo pelo qual tanto ansiara. Assim que viu o Mar Sul em sua extensão infinita diante dos seus olhos, ele caiu de joelhos, e erguendo as mãos para o Céu rendeu graças a Deus, que o guiara naquela descoberta tão importante para o seu país, e tão honrosa para ele próprio. Seus seguidores, vendo suas manifestações de alegria, avançaram para juntar-se a ele em seu deslumbramento, júbilo e gratidão”.

O gesto de Balboa de mandar os soldados se deterem para que ele fosse o primeiro a avistar o Oceano é à primeira vista uma inversão da situação dos capitães de navio. Cabe a Cabral a glória de ter descoberto o Brasil, mas o próprio Cabral tinha consciência de que quem primeiro avistou o Monte Pascoal foi o rapazinho na gávea, naquele cesto preso no alto do mastro. Isso talvez o incomodasse: a consciência íntima de não ter sido o primeiro. 

Ter apenas a glória simbólica, a glória do comando, era pouco para Balboa. Ele queria ter a certeza de ter sido o primeiro, de fato.

Por outro lado, esse egoísmo lembra a famosa cena da "Odisséia” em que Ulisses, desejoso de saber como era o canto das sereias, faz-se amarrar ao mastro para escutá-lo, e manda os marinheiros taparem os ouvidos com cera. O momento de epifania, de êxtase, é reservado ao chefe; os trabalhadores não podem, porque depende deles o rumo seguro do navio. 

Faz parte do sistema o fato de que cem remadores ou cem soldados estão ali apenas para garantir ao seu chefe as experiências numinosas que a aventura lhes reserva. Todo aquela esforço coletivo é em nome de um homem: Cortez conquistou o México, Napoleão perdeu a campanha da Rússia.

E nada nos impede de imaginar que quando Balboa enxergou o Pacífico entendeu de imediato o quanto, diante daquele universo de água, tudo o mais era pequeno. Ficou com o olhar chapado das pessoas que descem da nave alienígena em "Contatos Imediatos". 

Ocorre muitas vezes que essa visões de epifania e transcendência não deixam um indivíduo vaidoso pelo conhecimento adquirido, mas modesto por conhecer agora as próprias dimensões.




sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

2741) Drummond: “Família” (16.12.2011)




Uma parte considerável de Alguma Poesia (primeiro livro de Carlos Drummond, publicado em 1930) é de poemas sobre a vida doméstica, descrita de diferentes pontos de vista (“Infância”, “Sweet Home”, etc.). Um tema que foi se diluindo gradualmente. Não lembro de nenhum texto nessa linha em livros como Claro Enigma, por exemplo. Na verdade, há dois tipos de textos muitos diferentes: os poemas em que Drummond evoca sua família real, suas lembranças reais (o pai, a mãe, etc.) e os poemas em que ele compõe pequenos quadros de vida doméstica que não se referem propriamente a ele mesmo, mas a famílias imaginárias cuja existência está plantada na zona limítrofe entre a paz e a pasmaceira, entre a tranquilidade e o tédio.

“Família” pertence a essa linha: “Três meninos e duas meninas, / Sendo uma ainda de colo. / A cozinheira preta, a copeira mulata, / o papagaio, o gato, o cachorro, / as galinhas gordas no palmo de horta / e a mulher que trata de tudo”. Parece a descrição da fotografia de uma família. Ou um daqueles “grupos de família numa sala” que os pintores antigos gostavam de compor. Essa enumeração de personagens humanos e animais, porém, soa como uma receita de bolo, uma lista de ingredientes necessários para preparar a família mineira ideal.

Além dos personagens, a família inclui uma cenografia meticulosa de objetos, e pequenos rituais associados a eles: “A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, / o cigarro, o trabalho, a reza, / a goiabada na sobremesa de domingo, / o palito nos dentes contentes, / o gramofone rouco toda noite / e a mulher que trata de tudo”. Note-se a reiteração da frase “e a mulher que trata de tudo” num tom de calculada ambiguidade. A mulher é mencionada como se fosse a figura mais poderosa, e ao mesmo tempo a frase tem aquele tom taxativo, machista, bem tradicional, dos sujeitos que dizem: “aqui na casa quem manda é a patroa”, num tom que deixa bem clara a situação de subserviência dessa “patroa”.

A vida social de-portas-afora é descrita em breves cápsulas na estrofe final: “O agiota, o leiteiro, o turco, / o médico uma vez por mês, / o bilhete todas as semanas / branco! Mas a esperança sempre verde. / A mulher que trata de tudo / e a felicidade”. Rotina, vidinha conservadora e um tanto fundada em preconceitos (veja-se o tom com que se refere ao “turco”, à “cozinheira preta e a copeira mulata”, como se fossem coisas). A palavra “felicidade” na linha final surge como um elemento obrigatório a partir do qual todos os outros tivessem sido deduzidos. Parece um retrato de família a óleo mostrando na parede um dístico: “Aqui nesta casa todo mundo é obrigado a ser feliz”.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

2740) Arte Acontecimento (15.12.2011)




No futuro próximo irá se intensificar a prática da Arte Acontecimento, mas num plano diverso dos “happenings” dos anos 1960, que privilegiavam o inesperado, o espontâneo, o aleatório. A Arte Acontecimento, ou Arte Evento, irá extrair seu perfil de atividades como o Teatro de Guerrilha, ou Teatro Invisível, de Augusto Boal; os “flash mobs”, ajuntamentos de pessoas com um propósito específico, convocados via Twitter ou celular; os atores que fazem “estátua viva” na calçada; os ativistas ecológicos que interrompem desfiles ou solenidades atirando pizzas ou sangue nos participantes. Nesta forma de arte futura, grupos se organizarão e realizarão peças instantâneas, em lugares públicos, nas quais os transeuntes serão coadjuvantes involuntários e imaginarão que estão presenciando um fato casual, não uma sequência prevista e deliberada de acontecimentos.

Um forte impulso será dado a esta Arte pela disseminação das famosas “pegadinhas” da TV, que estão condicionando o público a aceitar com passividade ou simpatia interferências ficcionais (no sentido de serem pré-roteirizadas) no seu cotidiano. Aceitaremos esses teatrinhos de rua como aceitamos a música de rua ou os pintores que fazem quadros com spray sentados na calçada.

Alguns desses grupos preferirão usar uniformes ou signos facilmente reconhecíveis, como acontece com grupos já existentes – a Confraria do Garoto, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo. Outros virão disfarçados de transeuntes. Alguns grupos provavelmente homenagearão personagens fictícios com os quais se identificam ou com que têm certa filiação simbólica ou sentimental, como os Palhaços ou os Piratas do Tietê, do cartunista Laerte, ou os agentes da Intempol, a polícia temporal criada por Octavio Aragão.

Muitas dessas ações de rua serão expansão de Role Playing Games e de atividades típicas da Internet. Jogos, disputas ou encenações terão lugar através da Web, em tempo real, e em determinados momentos exigirão que seus participantes saiam à rua e participem de tais ou tais ações numa praça, num restaurante, num edifício público, num metrô, etc. Webcams farão a conexão, transformando a rua num palco e a Web numa platéia. Note-se que nada disto se aplica a atos públicos, protestos, ações políticas tipo “Ocupem Wall Street”, mas apenas a ações coordenadas de finalidade estética, artística, ficcional. A Arte Acontecimento consistirá em pequenas histórias ou pequenas situações, potencializadas pela Web, em que ações humanas e diálogos humanos servirão para iluminar a condição humana num ambiente em que será difícil distinguir entre vida e arte, entre o espontâneo e o planejado.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

2739) Aos jovens escritores (14.12.2011)





1) 
Use uma iluminação diferente quando for escrever. Por exemplo, apague a luz principal do escritório, acenda um abajur virado para a parede, deixe a tela do computador brilhar mais forte na penumbra. Crie um clima. Algo que avise o seu inconsciente que agora está num momento distinto, onde as regras são outras. 

Se não der certo, faça o contrário: ande com caneta e papel no bolso e escreva em qualquer lugar, a qualquer momento, em qualquer clima. Na fila do banco, no metrô, no táxi, na sala de espera, em casa diante da TV.

2) 
Tenha perto do computador uma poltrona, sofá, etc., onde você possa pensar longe do teclado. Isso ajuda. O corpo descansa, a cabeça carrega as baterias. Ficar hesitando na frente do teclado cansa todos dois. Se sentir que “deu um branco”, sente no sofá, feche os olhos, concentre-se no que está escrevendo. Quando uma frase surgir, não hesite, pule do sofá, sente no teclado e mande bala. 

Se não der certo, faça o contrário: obrigue-se a ficar na frente do computador, brigando mentalmente com a frase até que ela apareça, mas sem abandonar o ringue e sem aceitar o gongo.

3) 
Planeje cuidadosamente o livro; faça lista dos personagens, com nome, descrição e pequena biografia de cada um; esboce mapas das andanças deles, prepare descrições dos ambientes (use fotos ou ilustrações que deem sugestões visuais), faça sinopse e escaleta dos capítulos. Tenha em mente tudo que aconteceu na história, e só então comece a escrever. 

Se não der certo, faça o contrário: comece com uma frase, uma imagem, uma situação solta, e vá improvisando toda a história a partir daí, dando nomes provisórios às pessoas e aos lugares, o importante é não deixar a peteca cair nem a corda-bamba se soltar.

4) 
Tenha sempre à mão livros inspiradores, livros que você acha bem escritos e que por alguma razão basta ler um parágrafo deles para sua cabeça ficar a mil, querendo escrever, contaminada por aquela energia verbal. 

Se não der certo, faça o contrário: pare de ler durante dias, não ligue a TV, não veja filmes, dedique-se apenas a tarefas manuais, limpe a mente de palavras, para quando começar a escrever estar com a cabeça intacta e pronta.

5) 
Leia instruções, manuais, faça oficinas literárias, consulte livros como O Livro do Escritor (Ímã Editorial), siga religiosamente as dicas alheias para ver se funcionam com você. 

Se não der certo, faça o contrário: escreva prestando atenção em você mesmo, analise seu jeito de fazer as coisas, incremente o que dá certo, corrija o que não dá, crie seu próprio método de escrever. Criar o próprio método é tão divertido e tão útil quanto escrever o próprio livro.







terça-feira, 13 de dezembro de 2011

2738) Lá vem o Barça (13.12.2011)



(Xavi: 600 jogos pelo Barcelona)

Parei tudo, no sábado passado, para assistir Real Madrid x Barcelona, que nos últimos anos andou ganhando o status de O Maior Jogo do Mundo. São dois grandes times, de futebol refinado, raça impressionante, e que cultivam uma rivalidade histórica. Mesmo que estejam ambos caindo aos pedaços e sem aspirações a um título, quando entram em campo para se enfrentar é como se estivessem jogando a vida e a alma. É uma disputa além do futebol. Historicamente, o Barcelona se identifica com a esquerda e com a resistência republicana durante a Guerra Civil espanhola dos anos 1930. Já o Real Madrid se identifica com a monarquia e com os exércitos franquistas que venceram a Guerra Civil. Nem preciso dizer que torço pelo Barça. (E que milhares de torcedores do Real vão me escrever agora dizendo que minha descrição é desinformada e injusta.)

No jogo de sábado, diante de 80 mil torcedores (dos quais apenas 500 do Barcelona), o Real abriu o placar com 25 segundos, fazendo o mundo vir abaixo. Pressionou por meia hora, e poderia ter feito mais um ou dois gols, liquidando o jogo. Não fez. O Barcelona assimilou o golpe, botou a bola no chão e os nervos no lugar, e empatou. No segundo tempo, jogou como quis; o Real voltou a desperdiçar chances e o Barça conseguiu mais dois gols, calando o estádio.

O futebol do Real é vigoroso, rápido, ofensivo; seus jogadores chutam de longe com uma força e precisão impressionantes, e cada ataque do time é uma “blitzkrieg”. O jogo do Barcelona é miúdo, rápido, envolvente. Não entendo muito desses esquemas táticos de hoje, tipo 3-4-1-2 ou 4-2-1-3. Parece, no entanto, que a ordem no Barça é: não importa onde esteja a bola ou com quem, deve haver sempre 4 ou 5 jogadores fazendo um círculo em volta dela, prontos para tomá-la do adversário ou recebê-la do companheiro. É um jogo de impressionante velocidade, não a velocidade de arrancada rumo ao gol que é a cara do Real, mas velocidade de raciocínio e de visão, numa troca rápida de passes curtos até que a bola chega a um jogador em condições de chutar a gol ou dar o derradeiro passe.

O passe de primeira faz o Barcelona estar sempre um segundo à frente do adversário, no desenrolar da jogada. Vejo tantos jogadores hoje em dia que recebem a bola, param para pensar no que farão, e num piscar de olhos são desarmados. Uma vez perguntaram ao grande Capablanca quantas jogadas um Grande Mestre do Xadrez tinha que pensar antecipadamente. Ele disse: “Basta uma, desde que seja a jogada certa”. O Barcelona está sempre um toque, um segundo à frente do adversário, e é o que lhe basta para ganhar qualquer jogo, inclusive O Maior Jogo do Mundo.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

2737) Contracapa de skype (11.12.2011)



(mancha solar; foto da Nasa)

& um poema são instruções para mudar seu modo de pensar & uma espaçonave sentiente viajando vazia para descobrir sozinha a galáxia & vejo relâmpagos vermelhos no fundo do mar, e vêm subindo & não tem problema na vida que um acidente de moto não resolva & quando me deito pra dormir e me cubro com o lençol sinto como se ele fosse o sudário de Turim & a política é uma guerra entre formigas, as pretas invadindo um buraco aqui, as vermelhas fugindo às pressas de outro, lá no outro quarteirão & a lei é para todos, a transgressão para quem se atreve & primeiro saciar a fome, depois fazer amizade com os sobreviventes & pirata de verdade gosta menos do brilho do ouro do que do som do aço & uma freira cruzando devagar uma ponte deserta à meia-noite & a vida é uma queda do alto de um arranha-céu com um milhão de andares & dez centavos de cada cidadão chinês quebravam meu galho pro resto da vida & a olho nu é difícil distinguir entre uma estrela e uma galáxia & ainda não sei o que é mais ominoso, um ataúde ocupado ou um ataúde vazio & mundo globalizado é aquele em que você embarca para Londres, vai parar em Varsóvia, e sua mala no Gabão & a memória é um museu sem portas nem porteiros, onde qualquer um leva e traz o que bem entende & marcapasso coisa nenhuma, vou implantar é um bate-estacas & o Coliseu se erguia na colina como um dente cariado & e pensar que a Humanidade passou séculos tentando inventar um avião que batesse asas & tem gente que leva uma vida como a das formigas, correndo e cortando, trazendo pra casa e correndo de novo & a memória é um cesto de guardar água & um mercenário insone, de arma em punho, vigiado por um milhão de camponeses & quem me dera ser como o cavalo do Barão de Munchausen, e a bebida descer direto pro chão & a lua vem surgindo cor de nata & “Deus”: uma palavra que só serve para encerrar discussões interessantes & o sedutor trata uma mulher como um turista trata uma cidade & seria tão bom se existissem minibombas atômicas com que a gente se detonasse à noite, e na manhã seguinte acordasse bem normal & em algum lugar existem as árvores que produzem moscas, mosquitos, vespas, varejeiras & poemas cuneiformes gravados num queijo minas & uma prestidigitador que pegava um romance na estante, fazia um gesto, e um personagem desaparecia da história & a insônia é um carro trancado na garagem com o motor ligado & no casamento é preciso saber a hora de ser locomotiva e a hora de ser vagão & vivo oscilando entre o constrangimento por ganhar pouco e o remorso por ganhar muito & ser livre é estar vivo, o resto é choradeira &

sábado, 10 de dezembro de 2011

2736) O artista farol (10.12.2011)



(ilustração: Jaron Phillips)

Escrevi uma vez que esses poetas que se dizem influenciados por Arthur Rimbaud deveriam ter radicalizado essa influência e parado de produzir poesia aos 19 anos, como ele fez. É um gracejo, meio sem sentido aliás, porque para ser influenciado por Rimbaud basta ter lido uma vez alguns dos seus grandes poemas. Rimbaud dedicou a sua curta obra, escrita ao longo de cinco ou seis anos, uma intensidade de pensamento e de trabalho equivalente a uma vida inteira de um sujeito normal. Muita gente, contudo, esquece esse trabalho insano e acaba querendo imitar os cacoetes superficiais de Rimbaud: sua andarilhagem, seu homossexualismo, sua grosseria, sua mania de se alojar na casa alheia, seu gosto pelo escândalo... Nem Bob Dylan escapou.

Ou então, é um jovem guitarrista que quer tocar igual a Keith Richard, e uma das primeiras coisas que faz é começar a injetar heroína. Ou um jovem escritor que lê um livro de Faulkner, se deslumbra, ouve falar que Faulkner era um bêbado, e começa imediatamente a beber, ao invés de escrever. A verdade é que é mais fácil e mais divertido imitar os vícios de um artista do que as noites em claro que ele passou estudando e aperfeiçoando sua técnica. Artistas são, muitas vezes, sujeitos com imensa capacidade de concentração, de esforço, de disciplina; mas como têm um lado romântico e anticonvencional minimizam esse esforço, não querem ficar exortando os jovens a se tornarem “operários padrão”. Mas eles próprios o foram, e sem isto não teriam sido grandes.

O pior de tudo é quando certos artistas viveram uma viagem autodestrutiva que os arrastou para o abismo, mas durante esse processo produziram uma obra que perdurou. O leitor desavisado, o leitor jovem geralmente, imagina que para produzir uma obra como aquela é indispensável viver uma vida como aquela. Pensa que tem a obrigação de tomar todas as drogas que William Burroughs tomou, para ter idéias tão anticonvencionais quanto as de Burroughs; pensa que para escrever como Edgar Allan Poe é preciso viver na penúria, enchendo a cara, brigando com os amigos; pensa que tomar remédios tarja-preta o dia todo e ceder a surtos esquizofrênicos vai lhe dar de graça romances como os de Philip K. Dick.

Esses artistas são como faróis. Existem para serem vistos à distância, não para que alguém se aproxime deles. A obra é a luz que emitem, mas no caso deles é preciso saber que essa luz revela os penhascos ameaçadores onde foi fincada. Dizem aos navegantes: “Este lugar é perigoso!”. Feliz o artista que, mesmo naufragando entre os penhascos, consegue produzir alguma luz que diga: “Afasta-te daqui! Foi aqui que naufraguei!”.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

2735) “Jornal da Morte” (9.12.2011)




Esta canção de 1961 foi gravado pelo grande Roberto Silva, no quarto LP de sua histórica série Descendo o morro. A canção começa com vozes de jornaleiros bradando na rua, gritos agudos de mulher, uma sirene policial que uiva e a entrada de um cavaquinho lancinante. (Esta sirene precede em cerca de cinco anos sua utilização em “Highway 61” de Bob Dylan.) Um coral de vozes femininas repete: “Sangue – sangue – sangue...” E o cantor ataca: “Olha aqui este jornal. / É o maior hospital. / Porta-voz do bangue-bangue / e da polícia central”. E começa a relatar as notícias: “Tresloucada, seminua / jogou-se do oitavo andar / porque o noivo não comprava / maconha pra ela fumar... / Um escândalo amoroso / com retratos do casal / um bicheiro assassinado / em decúbito dorsal. / Cada página é um grito: / um homem caiu no mangue! / Só falta alguém espremer o jornal / pra sair sangue, sangue, sangue...” Ouça aqui a canção: http://www.youtube.com/watch?v=Tidd-RjnxOI.

A letra é do versátil Miguel Gustavo, que ajudou Moreira da Silva a criar seu personagem Kid Morengueira em sambas memoráveis. E que ficaria ainda mais famoso depois de compor o que se tornaria o jingle do tricampeonato da Seleção Brasileira no México, em 1970; “Noventa milhões em ação / pra frente Brasil / do meu coração...”

As imagens sensacionalistas, o tom explorativo das próprias manchetes, dá à música um tom de denúncia que a afasta dos sambas humorísticos de Morengueira. A canção tem o tom melodramático mas coberto de urgência de outros sambas do seu tempo, como “Mãe Solteira” de Wilson Batista e Jorge de Castro: “Hoje não tem ensaio na escola de samba / o morro está triste, e o pandeiro calado; / Maria da Penha, a porta-bandeira, / ateou fogo às vestes / por causa do namorado”. Ou de “Notícia de jornal”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Tentou contra a existência num humilde barracão / Joana de Tal, por causa de um tal João...” São sambas em que os desajustes sociais e as pequenas tragédias anônimas são vistas por um breve instante através dos olhos de um público e da linguagem da “mídia ambiente” (o jornal da morte, a notícia que “carece de exatidão”). São antecessores do corpo que tem “em vez de rosto uma foto de um gol” de Aldir Blanc e João Bosco. Drogas, escândalos sexuais, homicídio de bicheiros, tudo isto aparece nessa canção de 50 anos atrás como algo que se reencontra todas as manhãs, pendurado numa banca de revista. A mesma fascinação sustenta a edição de “faits divers”, de folhetos de cordel sobre crimes famosos ou fatos inusitados, e dos jornais que dão fama às tragédias da micro-história cotidiana.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

2734) O vitral e a vidraça (8.12.2011)


(George Orwell, por Felipe Muanis)


Isaac Asimov faz uma comparação hábil (embora injusta, a meu ver) entre o escritor que quer contar uma história e o escritor que quer criar uma maneira pessoal de contar qualquer coisa. É a velha oposição meio maniqueísta entre enredo e estilo. 

Asimov compara essas duas formas de escrever com a vidraça e o vitral. Uma vidraça é transparente: olhamos por ela sem vê-la, porque não queremos ver a vidraça, queremos ver apenas o que ela está nos mostrando do outro lado. Já o vitral (aquele vitral de igreja) é opaco, colorido e não quer mostrar outra coisa além de si próprio. 

Diz Asimov que a prosa literária, sofisticada, é assim como um vitral: quer apenas exibir-se como prosa bem escrita. Não quer contar história alguma, nem exprimir verdade alguma a não ser sua existência como prosa brilhante. E diz Asimov que ele próprio produz uma prosa-vidraça, simples, direta, transparente, que não quer se exigir como literatura, quer apenas mostrar o que está do outro lado, ou seja, a história que está contando.

Há uma frase de George Orwell que talvez tenha sido lida por Asimov e guardada no inconsciente, aquele caldeirão febril onde todas as assinaturas e todas as autorias se dissolvem. Diz ele: 

Eu tentei com todas as minhas forças contar toda a verdade sem violar meus instintos literários. Um autor não pode escrever nada legível sem que lute constantemente para apagar a sua própria personalidade. A boa prosa deve ser como uma vidraça. 

Para ele, acho, a “personalidade” a ser apagada é a que resulta num estilo literário que chama a atenção para si mesmo. Para Orwell e Asimov, o leitor não deve prestar atenção no modo como a frase foi escrita. Se ele parar para “saborear” uma frase é sinal de que a vaidade do autor está interferindo com a contação de história.

A analogia entre literatura e vidraça não se sustenta, como a maioria das analogias. Ela pressupõe que existe uma realidade objetiva “lá fora” e que a prosa literária deve servir, com discrição e não-interferência, para revelar essa realidade. 

Ora, não existe nos livros (de Asimov, de Orwell, etc.) nenhuma realidade independente das palavras com que está sendo descrita. Não existem vidraças por onde os fatos possam ser vistos “exatamente somo são”. Toda linguagem escrita, toda obra literária é uma tela animada, feita de palavras, por trás do qual existe apenas o vácuo negro da não-existência. 

As imagens que imaginamos ver através da vidraça são na verdade criadas na superfície da própria vidraça, que nesse caso se parece menos com vidraça e mais com uma tela de cristal líquido. Toda literatura é vitral, e revela apenas a si própria.





quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

2733) Consciência artificial (7.12.2011)



Quando René Descartes proferiu seu famoso “Penso, logo existo” colocou um desafio para os programadores de video-games e de inventores cibernéticos em geral. Quando será que um personagem de jogo será capaz de, sem ser estimulado por seres humanos biológicos, produzir uma afirmação equivalente? Claro que não se trata de apenas repetir a frase de Descartes, por mais que isto pudesse ser criativo (Borges, em “Pierre Menard”, tentou provar que a frase do escritor A, repetida espontaneamente pelo escritor B, ganha novos contextos e novas nuances, e pode ser considerada uma frase original). Seria necessário que um personagem artificial de game, com pendor introspectivo, reflexivo, metido a filósofo, abandonasse por algum tempo as façanhas de espadachim para que fôra programado (coisa que ocorreu com o próprio Descartes) e, recolhendo-se à meditação, afirmasse a própria existência, baseando-se apenas no fato de ser capaz de pensar na possibilidade dela.

Há dois tipos, que eu saiba, de personagens de games: os que são controlados por jogadores, e os que são controlados por algoritmos, fórmulas matemáticas que determinam as ações dos personagens baseando-se num vasto menu de possibilidades de ação. Defrontando-se com várias alternativas, o personagem regido por um algoritmo opta por uma delas, influenciado por variáveis que podem ser aleatórias (equivalentes a jogar um dado) ou podem levar em conta tudo que aconteceu com o personagem até então, sua história pessoal. É possível chegarmos a algoritmos que nos deem a sensação de que existe uma consciência humana por trás daquelas decisões. Mas não saberíamos se era uma ilusão ou um fato. Só o veríamos como fato se esse personagem regido por fórmulas matemáticas se tornasse tão caótico e imprevisível quanto um ser humano normal.

Minha teoria filosófica predileta é a de que a humanidade é o videogame de alguma raça muito mais adiantada do que a nossa. Começou como um jogo de ação/aventura tipo “Trogloditas vs. Mamutes”, evoluiu para um jogo de gerenciamento de tribos, agricultura e pastoreio. Então, os avatares biológicos fugiram ao controle. Primeiro inventaram a linguagem, depois a escrita; e desenvolveram consciência individuais que não faziam parte do plano. O degrau seguinte levou esta nossa humanidade biológica a desenvolver uma humanidade cibernética (feita de bytes, de pixels, de algoritmos) na qual o mesmo processo começará, mais cedo ou mais tarde, a se reproduzir. O universo é um experimento em que espécies de natureza física totalmente diversa trabalham para produzir o mesmo fenômeno não-físico: a consciência de si mesmo.