sábado, 17 de setembro de 2011

2664) Café não costuma faiá (17.9.2011)



Pegar a garrafa térmica, lavá-la em água corrente, deixá-la na pia, perto do fogão. Pegar a chaleira e enchê-la até um ponto que o olho já sabe. Acender o fogo, colocar a chaleira, colocar o suporte e o porta-filtro sobre a boca da garrafa. Pegar o vidro com o pó, pôr no filtro a quantidade certa, também sabida “de olho”, impossível de quantificar. Quando outra pessoa vai fazer e pergunta: “quantas colheres?”, não há resposta possível. É no olho, ponto final.

Sento e fico olhando a chaleira esquentar. Café é uma droga? Espero que a “Food and Drugs Administration” norte-americana nunca chegue a esse veredito. É um estimulante artificial; produz um estado de euforia mental durante algum tempo; produz insônia, nervosismo e outros efeitos colaterais (em gente fraca, é claro); e vicia. Será que vicia mesmo? Não sei porque nunca parei de tomar. Nos últimos 50 anos certamente não se passaram dez dias seguidos sem que eu tomasse uma xícara de café. E a quantidade normal do meu dia é pelo menos um litro.

O café produz em mim o que o uísque produzia em Humphrey Bogart (“Todo mundo está três doses abaixo do normal”) ou em Paulo Francis (“Bebo para tornar as outras pessoas mais interessantes”). Ele produz uma argamassa neuronial que une a paisagem na janela, a data no calendário, a imagem no espelho, as tarefas na agenda, as mensagens no monitor, o milhão de versos incompletos perpetuamente esvoaçando no meu espaço mental como mariposas em torno de um poste aceso. O café é um diapasão energético que deixa tudo vibrando no mesmo mantra. Deixa nossa mente vibrando em uníssono com o cosmo, dizendo a si mesma e ao cosmos: Yes, we can! Qual é o cosmos que resiste a uma cantada dessas?!

A água chia; depois, borbulha. Dizem os experts que a água não deve ferver, pois queima o pó e altera o gosto. Uma vida inteira de hábitos rústicos me acostumou a esse gosto alterado, portanto sempre exijo que a água esteja fervendo quando a derramo no centro do pó, num fio contínuo, fazendo movimentos circulares para que o pó inteiro fique umedecido por igual (movimento que os experts também desaconselham, eita povinho desmancha-prazeres). O aroma sobe. Lembro a frase de um amigo: “O melhor momento do café é o cheiro antes do primeiro gole, assim como o momento mais bonito da mulher é quando ela se despe enquanto a esperamos na cama”. O cheiro do café é a prelibação, o antegozo. O estímulo que anuncia o prazer anuncia sempre o prazer total e sem condições, o prazer perfeito e platônico. A realidade fica sempre aquém, mas não importa. Todo café é perfeito, na trajetória da chaleira à xícara, e da xícara à boca.

2663) Como escrever depressa (16.9.2011)




(Tom Gauld)

Escrever depressa, produzir tantas mil palavras de texto por dia... É engraçado como se falava pouco nisso na História da Literatura Brasileira. A mentalidade nos 200 anos de nossa prosa de ficção é a da criação de obras de arte, não a da produção profissional de laudas de texto. 

O literato brasileiro vê com admiração e simpatia a frase atribuída a Oscar Wilde: “Levei a manhã inteira para tirar uma vírgula, e a tarde toda para colocá-la de volta”. 

E vê com certo constrangimento (é o meu caso, pelo menos) a afirmação de Isaac Asimov de que datilografava um conto inteiro do começo ao fim, e depois, sem sequer fazer correções à mão, botava num envelope e mandava para todas as revistas conhecidas até que alguma o aceitasse para publicação.

São o Artista e o Profissional: o que quer escrever muito bem e o que quer escrever bem muito. 

Ambas as mentalidades podem produzir grandes livros e livros medíocres. Um artigo de Michael Agger na revista eletrônica Slate usa uma maneira diferente de classificar esses dois tipos. Diz ele: 

“Alguns escritores são beethovenianos, que desprezam os resumos prévios e as anotações, e ao invés disso compõem rascunhos de imediato, para descobrir o que querem dizer, enquanto outros são mozartianos, cujo costume é adiar indefinidamente a hora de escrever, enquanto se dedicam a longa planificação e planejamento”. 

Não é exatamente a mesma coisa, mas reforça a idéia de que existem pelo menos duas abordagens básicas para o ato da escrita. E muitos pretendentes a escritor perdem um tempo danado em oficinas literárias onde professores (bem intencionados, claro) tentam convencê-los a escrever de um jeito que não é o seu jeito natural de pensar e de produzir esforço intelectual.

Agger cita Chenoweth & Hayes (The Cambridge Handbook of Expertise and Expert Performance), para quem as frases da prosa são produzidas numa estrutura do tipo rajada-pausa-avaliação, rajada-pausa-avaliação, sendo que quanto mais experiente o autor mais longas são as rajadas de texto que ele produz a cada vez. 

Já Kellogg, na mesma obra, afirma que escrever a sério é ao mesmo tempo uma questão de pensamento, de linguagem e de memória, e pode se comparar ao esforço mental de um jogo de xadrez profissional ou de uma performance musical de alto nível. 

A mente do escritor está manejando três coisas: o texto que escreve, as coisas que pretende dizer em seguida, e, de modo crucial, teorias de como os seus possíveis leitores irão interpretar o que foi escrito. 

Talento, experiência e estado mental adequado podem fazer com que alguém escreva dessa forma durante um tempo bem longo, e com razoável rapidez.





quinta-feira, 15 de setembro de 2011

2662) O Livro Fantástico (15.9.2011)




Um tema que se alastra cada vez mais na literatura fantástica é o que poderíamos chamar, correndo o risco de uma certa redundância, de O Livro Fantástico. 

Uma grande influência nesse tipo de literatura é a obra de Jorge Luís Borges, que escreveu sobre uma biblioteca infinita (“A Biblioteca de Babel”), um livro infinito (“O Livro de Areia”), um livro que era um labirinto (“O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”), uma enciclopédia de outro mundo que invade este (“Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”) e assim por diante. 

No andar térreo dessa literatura está H. P. Lovecraft com o seu “Necronomicon”, o livro que codifica terrores indizíveis de uma época em que nosso mundo era governados por potestades cósmicas malignas. A Encyclopedia of Fantasy de John Clute & John Grant tem um longo verbete (escrito por Clute, Dave Langford e Brian Stableford) listando esses livros transcendentais, que são personagens por conta própria, núcleos de significação em torno dos quais gravitam os personagens humanos das histórias.

http://sf-encyclopedia.uk/fe.php?nm=books

Há agora toda uma literatura sobre livros míticos, livros mágicos, livros miraculosos, livros que interferem na realidade, livros que manipulam o leitor. 

Livros dados como perdidos e que surgem em nosso mundo para provocar crimes e desastres, como em O Nome da Rosa de Umberto Eco. Livros que são portais para outros mundos, como em A História Sem Fim de Michael Ende. Livros construídos em parceria pelos seus leitores, que podem inclusive modificar o universo em que viveu o autor, como em “The Least Trumps” de Elizabeth Hand. 

Esses livros não são meros objetos passivos, são atores, protagonistas; interferem na realidade, mudam tudo à sua volta, e não apenas pelos modos tradicionais (modificando idéias e opiniões de quem os lê), mas interferindo no mundo físico e se comportando como uma criatura viva, dotada de inteligência, vontade e capacidade de agir. Uma criatura capaz de evoluir; um livro que é outro a cada leitura.

Talvez isso seja uma contraofensiva da palavra escrita que se sente encurralada pela imagem; ou da palavra impressa sentindo-se encurralada pela palavra eletrônica. O livro de papel, desdenhado por ser algo inerte, debate-se, agita-se, procura ganhar vida. Procura ser (olha a palavra crucial) interativo. 

Os livros mágicos da literatura fantástica desempenham papéis que só um livro eletrônico, um CD-Rom ou um video-game interativo são capazes de desempenhar. A literatura fantástica está escrevendo uma metáfora do futuro do próprio livro. Depois de mais de meio século imaginando livros fantásticos, começamos a ver o surgimento desses livros vivos, modificáveis e modificadores.





quarta-feira, 14 de setembro de 2011

2661) O mundo não me deve nada (14.9.2011)



Morreu nos últimos dias de agosto de 2011 o bluesman David “Honeyboy” Edwards, aos 96, tido como o último sobrevivente da geração dos chamados “Delta Blues Singers”, os músicos do delta do Mississipi que praticamente criaram as raízes do blues que conhecemos hoje. 

Honeyboy teria sido, inclusive, a última pessoa ainda viva entre as que conviveram com o lendário Robert Johnson, cuja bola já enchi bastante, de modo que vamos direto ao mito do momento. 

Há muitos bons livros sobre a música e os músicos do blues; Edwards tem uma autobiografia (The World Don’t Owe Me Nothing, Chicago Review Press, 1997), escrita com o auxílio de jornalistas, em que ele conta de maneira cândida, descritiva, a sua versão da infância que teve, e de como se tornou músico. É um relato em primeira mão que não deve ser descartado, mesmo levando-se em conta que depois que alguém fica velho seu passado fica mais enfeitado do que burra de cigano. Cada ano que passa o ancião inventa uma lembrança nova. 

Não importa. O que me interessa em livros desse tipo não é o dado factual, aquele que faz tremer o medidor do IBGE. Interessa-me a fábula, o sentimento, a verdade humana, à qual tanto se chega pela memória verdadeira quanto pela falsa. 

O livro de Honeyboy tem um título incapaz de ser melhorado: O Mundo Não Me Deve Nada. Isso é de uma nobreza admirável, de um alto-astral espantoso, vindo de um sujeito negro, pobre, cuja vida foi uma gincana de desafios. Mas Honeyboy tira tudo de letra, com um enorme sorriso cheio de dentes de ouro, que em mais de uma foto me lembrou o saudoso Zé Vicente da Paraíba, seu parente cósmico. 

Diz ele: “Eu era jovem, com boa aparência, e tinha a boca cheia de ouro. Mandei botar ouro nos dentes da frente, para chamar a atenção e mostrar estilo.” É o fraco! 

Honeyboy é aquele típico crioulo cheio de chinfra, um malandro do bem. Conta mil histórias dos bastidores do blues: 

“Todo mundo pegava músicas uns dos outros e as modificava. É assim que as canções surgem. Você senta, pega um verso de uma música, um verso de outra. É a única maneira de fazer uma coisa nova! Ou pega dois ou três versos e põe outra melodia”. 

Edwards levava escorpiões secos num saquinho, num bolso, simpatia para dar sorte; pendurava o violão na parede, sobre a cabeceira da cama, mandinga para não esquecer as coisas que aprendera naquele dia. Cresceu, viveu e morreu no caldeirão inesgotável e mutante do blues. Era um músico de rua, da cultura oral que uma dúzia de folcloristas heróicos descobriu e preservou a partir dos anos 1930. 

Ele diz: 

“Eu já devia estar morto há mais de cinquenta anos, mas Deus ainda não estava pronto para me receber”.







terça-feira, 13 de setembro de 2011

2660) Onze de setembro (13.9.2011)



(manuscrito do séc. XIII)
 

Naquele dia, meu filho Gabriel, que na época tinha nove anos, mudou de canal, do Cartoon Network para a Globo, para assistir Dragonball Z no programa da Xuxa. Acordei não tanto com o volume da TV, mas como o tom angustiado e nervoso na voz do locutor; e já estava diante da tela quando o segundo avião explodiu de encontro à segunda torre. 

Fiquei colado ali, e perplexo como todo mundo. Antes do meio-dia, atendi telefonemas (sabe Deus como conseguiram meu número) da Rádio Jovem Pan e da Folha de São Paulo, ambas com a mesma pergunta: A ficção científica previra algo assim? 

Falei que a FC propriamente dita não, mas escritores de techno-thrillers como Tom Clancy tinham chegado perto. E comentei, com certa imodéstia, que meu conto “Jogo Rápido” (em A Espinha Dorsal da Memória, 1989) também postulava um ataque a um “cartão postal” – neste caso, um grupo terrorista que arrancava e roubava a cabeça do Cristo Redentor. (Não eram terroristas políticos, eram terroristas estéticos, um grupo de milionários que colecionava cabeças de estátuas famosas do mundo inteiro). 

Fantasioso, eu? De jeito nenhum, pensei, diante da TV onde as torres desmoronavam coreografadamente. Nos dias seguintes, li o depoimento do compositor Stockhausen, dizendo (e causando um tremendo escândalo junto à imprensa): “Aquilo foi a maior obra de arte que já existiu. Pessoas passam dez anos se preparando para um ‘concerto’, e no momento da execução morrem”. 

Eu já havia escrito os parágrafos acima quando, pouco antes da meia-noite entre sábado e domingo passados (de 10 para 11 de setembro) terminei a leitura da coletânea de contos Saffron and Brimstone de Elizabeth Hand, e me surpreendi ao ver no fim do livro uma “Afterword” datada de 11 de setembro de 2006. 

Hand fala que alguns contos do livro foram inspirados por um amigo que ela julgou ter perdido no atentado ao WTC. O último conto do livro, “The Saffron Gatherers”, mostra San Francisco sendo destruída por um terremoto no momento em que o avião da protagonista decola (ela vê tudo lá de cima). 

Diz Hand que a história desse amigo se tornou “a personificação das minhas ansiedades: desejo e perda; a ameaça do apocalipse; o poder e a vulnerabilidade do artista; meu fracasso constante em criar alguma coisa a partir da tristeza e do desespero”. 

Foi só mais uma sincronicidade (me ocorre com frequência ler por acaso um livro em que surge a mesma data em que o estou lendo), mas acho que exprime o que os atentados de 2001 passaram a significar para muitos escritores e artistas em geral. A necessidade, e a impossibilidade, de fazer literatura e arte sobre uma catástrofe tão esmagadora.






domingo, 11 de setembro de 2011

2659) A ilha ao meio (11.9.2011)




O helicóptero desce num ratatá de hélices e rotores, e pousa na mandala do heliporto. Desço acompanhado do tenente que me trouxe. Um coronel está no hangar para me receber. Numa sala com ar condicionado, há um bufê de café e salgadinhos. Ele me faz uma descrição detalhada, mostra desenhos, pranchas, fotografias antigas e recentes. A ilha tem alguns quilômetros de comprimento, algumas centenas de metros de largura. Ele mostra a maquete, indica onde fica a Base onde estamos. Examino uma foto enorme mostrando o Serrote circular que cortou a ilha ao meio: um semicírculo de metal emergindo do chão, com dezenas de metros de altura, alguns centímetros de espessura, dentes de liga de titânio com mais de um palmo.

Um carrinho elétrico nos conduz à Fronteira. Dia nublado, mas numa das encostas avisto o mar, onde ao longe bate sol. Elevações vulcânicas no meio de um terreno arenoso, quebradiço. Descemos a pé um barranco, por uma trilha de lajes horizontais fincadas na terra. Lá embaixo se estende uma planície, e a cem metros, já do Outro Lado, ergue-se uma escarpa de rocha escura, com manchas de vegetação. Caminhamos ao longo de uma espécie de istmo que liga as duas partes, tendo à esquerda e à direita dois horizontes azuis de mar. Chegamos por fim à Fronteira, uma linha reta, a meio caminho entre o barranco de onde descemos e a escarpa do lado oposto.

Agacho-me. A Fronteira é uma fenda de alguns centímetros de largura, com bordas revestidas de metal. Inclinando-me, vejo que, de cada lado da fenda, paredes de metal descem terra adentro, e percebo, lá no fundo, um reflexo na água do mar. Fico novamente de pé. Durante a viagem, tinha imaginado o que me sucederia se desse um passo por cima da fenda. Agora sei que isto é tão impossível quanto abrir os braços e me elevar rumo ao céu.

Não há diferença entre o solo de um lado e do outro, mas a ilha foi serrada ao meio, de maneira cirúrgica, implacável, e a um custo financeiro espantoso. Lembro as fotos: duas frotas simétricas de rebocadores firmando os cabos e a engrenagens por onde o Serrote se deslocou cortando o istmo. 

Olho para o Outro Lado, tão próximo e tão inacessível. “Há alguém lá?”, pergunto, “Há pessoas como nós, há construções, estradas, atividade humana?”. “É provável”, diz o oficial; “talvez agora mesmo estejam aí, diante de nós, mas evidentemente não podemos vê-los. O corte foi definitivo”. O sol bate do nosso lado, e bate lá no mesmo ângulo, mas a verdade é que ilumina dois mundos diferentes, dois mundos que um dia foram um só. Agora, mesmo visível, aquela metade da ilha está mais distante do que um planeta que não se vê no céu.






sábado, 10 de setembro de 2011

2658) O que é um Loop (10.9.11)




“Loop” (pronuncia-se “lúp”), é uma palavrinha inglesa muito apreciada pelo pessoal da música eletrônica e pelo da informática. Um loop é algo como um laço, uma linha que dá uma volta completa e emenda no começo.

Em música, loop é uma série de notas ou efeitos sonoros que, quando chega ao fim, começa outra vez, insistentemente.

Na informática, é um processo que não acaba nunca e deixa o usuário do computador olhando, impaciente, aquela ampulhetazinha no lugar do cursor, tão exasperante quanto sinal de linha telefônica ocupada.

E alguém divulgou na Web a historieta abaixo para explicar o que está acontecendo.

1) O Diretor chama a secretária e avisa que vão viajar a trabalho por uma semana.

2) A Secretária liga para o marido e avisa que vai passar uma semana fora.

3) O Marido liga para a amante e diz que terão uma semana inteira para ficar juntos.

4) A Amante liga para o aluno a quem dá aulas particulares e pede licença por uma semana.

5) O Aluno liga para o avô e diz que terá uma semana sem aulas, e poderão fazer algum programa juntos.

6) O Avô, que é o mesmo Diretor do início da história, chama a Secretária e manda cancelar a viagem, pois deseja ficar com o neto, que não vê há um ano.

7) A Secretária liga para o marido: a viagem foi cancelada.

8) O Marido liga para a amante: não terão mais uma semana inteira para ficar juntos.

9) A Amante liga para o aluno: não vai mais tirar licença, e os dois deverão ter aulas normalmente.

10) O Aluno liga para o avô: não podem mais se encontrar porque ele afinal vai ter uma semana de aulas.

11) O Avô, que é o mesmo Diretor, liga para a secretária: já que não poderá ficar com o netinho, é melhor confirmar de novo a viagem... E tudo recomeça.

Isto é um loop. Os personagens cruciais da história são o Diretor, que é o Começo, e o Netinho, que é o Fim. Se fossem personagens não relacionados, a história fluiria normalmente. Acontece que o Fim se relaciona com o Começo e lhe envia uma mensagem que reverte o comando inicial.

Se esse loop ficar rodando, os personagens ficarão irritados com tantas mudanças de planos, pois nenhum tem a visão geral do que está acontecendo. Os programas de computador têm sub-rotinas (ou sei lá como as chamam) que acompanham todos os passos e percebem quando há um elemento contraditório (o Diretor quer viajar mas o Avô não quer, e os dois são a mesma pessoa).

Enquanto isso não for resolvido a cadeia de comandos ficará paralisada, rodando sem sair do canto. Tem que haver uma vigilância de fora, que enxergue todo o processo e perceba onde está o ponto onde ele se volta sobre si mesmo e manda reverter tudo que tinha sido ordenado antes.






sexta-feira, 9 de setembro de 2011

2657) Você que tinha razão (9.9.2011)



Uma das desvantagens de ter dez anos é que ninguém nos dá ouvidos. Uma das vantagens é que não passa pela cabeça de um adulto que nós, pirralhos, somos capazes de ver e ouvir.

Meu pai e minha mãe conversam um repertório espantoso de assuntos (que – se lhes fosse perguntado – eles garantiriam que “não era assunto para crianças”) na minha frente e da frente da minha irmã, de oito anos. Imagino que já se acostumaram tanto à nossa presença que é como se a gente nem estivesse ali. E que se acostumaram tanto com a nossa fase de bebezinhos (fraldas, mamadeiras) que na cabeça deles continuamos nessa fase, incapazes de focar o olho ou de apurar o ouvido.

Vai daí que discutem sem parar na nossa frente, e mostram o quanto os adultos são contraditórios. Todo dia a discussão obedece o mesmo padrão, só muda o assunto.

Digamos que o assunto é dinheiro. Minha mãe diz: “Você não tem jeito mesmo, a gente precisando das coisas e você torrando o dinheiro com besteira”.

Meu pai: “Eu só gasto com coisa necessária”.

Ela: “Duzentos reais num litro de uísque, isso é coisa necessária?”.

Ele: “Era uma promoção! Esse uísque não sai por menos de 400”.

Ela: “Homem é fogo, só homem mesmo pra raciocinar desse jeito”.

Ele: “Você não vive dizendo que eu sou gastador? Fiz 50% de economia e você ainda reclama”.

Ela: “Reclamo porque uísque não é economia, e além disso você só toma cerveja”.

Ele: “Mulher é tudo igual. Existe hora de cerveja e hora de uísque”.

Ela: “Sim, mas o ar condicionado quebrou e não apareceu dinheiro pra comprar outro. Já o uísque...”.

Ele: “Estou esperando aparecer uma promoção de ar condicionado. Não tenho culpa se a promoção do uísque apareceu primeiro”.

Ela: “Ah, chega, você parece que é imbecil, não tem diálogo”.

Ele: “Você que é idiota, parte logo pra agressão”.

Aí ficam os dois comendo em silêncio, e minha irmã pisca o olho pra mim.

Meia hora depois estão os dois nos braços um do outro.

Ele: “Desculpe. Eu sou mesmo um imbecil. Você que tinha razão”.

Ela: “Não, não, eu sou uma idiota. Quem tinha razão era você.”

Ele: “Não, meu amor, eu sou um irresponsável, vou devolver o uísque, espero que eles não percebam que está faltando uma dose”.

Ela: “Não, fique com seu uisquinho, você trabalha tanto, merece relaxar. Eu é que sou uma chata, uma egoísta.”

Ele: “Não, eu negligencio as coisas de casa, mas é tanto estresse, eu tenho que tomar uma”.

Ela: “Não, você cuida tanto, eu é que fico lhe cobrando sem necessidade, você é o melhor marido do mundo”.

Ele: “Tá certo, então eu fico com o uísque e compro um ventilador”.

Os dois se agarram aos beijos, e minha irmã pisca o olho pra mim.





quinta-feira, 8 de setembro de 2011

2656) A mansão sombria (8.9.2011)





("Hill House")

Alguns dos melhores filmes de terror ocorrem em castelos góticos ou mansões vitorianas. Longos corredores, arcadas, escadarias em ziguezague ou em caracol, pórticos sombrios, passagens secretas, sótãos, porões... 

Revi recentemente Os Inocentes de Jack Clayton (baseado na Outra Volta do Parafuso de Henry James) e Desafio ao Além (“The Haunting of Hill House”) de Robert Wise, baseado no romance de Shirley Jackson. Exemplos perfeitos desse terror cenográfico, arquitetônico, em que os elementos físicos da Casa Assombrada se entremeiam aos elementos sonoros: o vento, o ranger de portas, estalidos inexplicáveis, portas que batem, vidros que se quebram, relógios que soam badaladas.

O uso desses espaços amplos, diversificados, permite ao diretor uma sucessão de efeitos visuais (geralmente baseados no uso do claro-escuro violento, dos movimentos de câmara, dos ângulos esquisitos) e sonoros (ecos, efeitos sonoros de origem indefinida, e música) sempre inesperados e sempre justificados pelo ambiente onde a história acontece. 

Num prédio moderno de apartamentos não existem tantas frestas por onde o vento possa uivar, tanta madeira suscetível de estalos e movimentação térmica, proliferação de tantos elementos decorativos multiplicando as formas e as sombras.

E essas mansões sombrias têm outro aspecto além do visual, um aspecto sociológico. Minha infância foi passada em casas modestas e pequenas, que mesmo assim davam um trabalho medonho a minha mãe e às empregadas. Era um tal de varrer, limpar, esfregar, recolher lixo, colocar objetos de volta no lugar... 

E no cinema surgiam aquelas mansões de 50 quartos, alguns deles trancados há gerações; móveis, tapeçarias, candelabros, quadros, um acervo que faria inveja a qualquer museu. E a impressão constante de decadência, de estagnação. 

Aqueles filmes são hinos visuais à riqueza coagulada de elites que conquistaram mais do que eram capazes de administrar. Enquanto se ergue de novo uma parede desmoronada na Ala Oeste, o vento, a chuva e os cupins estão botando outra parede abaixo na Ala Norte.

Buñuel, em O Anjo Exterminador, enclausura e desmoraliza esses aristocratas ociosos. Não têm a virilidade dos conquistadores que edificaram esses impérios; reproduzem o conhecido padrão de “pai rico, filho nobre, neto pobre”. A história de terror é o gênero ideal para descrever a vida dessas pessoas, herdeiras de um passado que conhecem pouco, de uma riqueza que não sabem usar, de um poder estancado que se deteriora a olhos vistos. 

O terror de uma casa onde caberiam cem pessoas e mora uma dúzia, e que se vinga dos pusilânimes que ousam ocupá-la hoje.





quarta-feira, 7 de setembro de 2011

2655) O filme que se ensina (7.9.2011)




(Gandalf e Bilbo)

O filme Julgamento em Nuremberg de Stanley Kramer (1961) mostra o famoso julgamento dos criminosos de guerra nazistas. Os juízes, advogados, testemunhas, etc. eram de nacionalidades diferentes, e usavam fones de ouvido com tradução simultânea. Isso é mostrado no começo do filme. Quando um americano fala em inglês, a tradutora repete em alemão, o alemão escuta, responde, outra tradutora repete em francês, outro advogado escuta, responde... É assim nos primeiros minutos do filme. Depois, o diretor presume que o público entendeu a mecânica da coisa; e os tradutores e fones de ouvidos desaparecem. Para que o filme possa fluir.

Na trilogia O Senhor dos Anéis de Peter Jackson várias raças se misturam: homens, hobbitts, elfos, anões, orcs... Diante dos hobbits, todos baixinhos, um humano é quase um gigante. Ora, o diretor escolheu atores de estatura normal para todos esses personagens, apenas ligeiramente mais atarracados uns, mais compridos outros. No filme A Irmandade do Anel (2001) há uma cena em que o mago Gandalf (Ian McKellen) conversa com Bilbo (Ian Holm) na casa deste. Nesse momento, um efeito especial indica que Gandalf tem ter mais do dobro da altura de Bilbo. Vemos e registramos; daí em diante essas diferenças vão se atenuando. Ao invés de usar os tais efeitos pelo restante do filme (o que iria complicar ainda mais um filme já complicado de fazer), Jackson mostra os diferentes tamanhos dos personagens apenas no início. Para que o filme possa fluir.

São códigos que fazem parte da realidade mostrada no filme mas que, por economia narrativa, não podem ficar sendo mostrados o tempo inteiro. Os diretores mostram aquilo no começo, e, depois que o espectador entendeu do que se trata, omitem esse aspecto, que fica apenas subentendido no resto do filme.

Um filme pode, se necessário, conter dentro de si instruções para a decodificação da própria obra. Pode explicar em sua parte inicial qual o código de leitura específico que vai exigir, sem que o cineasta tenha um papel paternalista ou didático, e sem que o espectador seja obrigado a “engolir uma apostila”. Algumas realidades descritas num filme são especiais, e o diretor deve fazer uma rápida educação do público nos minutos iniciais: “Olha, isso aqui precisa ser interpretado assim e assim...” Feito isto, a demonstração pode desaparecer, e o filme pode fluir. Aliás, podemos extrapolar esse princípio e dizer que os minutos iniciais de qualquer filme esteticamente mais ambicioso são exatamente isso: um pequeno curso, ou tutorial, sobre como ler corretamente esse filme que já está acontecendo diante dos nossos olhos.