sexta-feira, 20 de maio de 2011

2561) As notícia tão errada (20.5.2011)



(Mário de Andrade, por Baptistão)

Tem causado polêmica o livro Por uma vida melhor de Heloísa Ramos, Ed. Global, em que supostamente o MEC estaria ajudando a destruir a língua portuguesa e prejudicando a alfabetização das crianças. É a campanha política de sempre, procurando más intenções nas menores coisas feitas pelo Governo. Acho um absurdo manchetes ou chamadas tipo “Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado”. Não é isso, absolutamente. O livro, pelo que vi, faz o que eu faço nestas minhas colunas: defender a fala informal, coloquial, como uma maneira paralela de usar a língua, que pode muito bem conviver com a Norma Culta. Mas eu acho que todos lucraríamos se o enfoque político, mero pretexto para “meter o pau no Governo”, fosse substituído por um enfoque voltado para a língua portuguesa, que é o que está em questão. Eu critico todo Governo, mas neste caso os dois lados merecem críticas.

Diz a autora do livro: "O importante é chamar a atenção para o fato de que a ideia de correto e incorreto no uso da língua deve ser substituída pela ideia de uso da língua adequado e inadequado, dependendo da situação comunicativa". Concordo com isto, menos num detalhe, a expressão “substituída”. Não podemos perder a idéia de correto e incorreto, porque existem coisas que são flagrantemente incorretas. E não se pode dar a ninguém a impressão de que a Norma Culta da língua (que também defendo, consistentemente, nesta coluna) não serve para nada, e pode ser substituída pela norma coloquial, ao gosto do falante. (O livro não defende isto, claro. Mas os termos que usa abrem espaço para que alguém o acuse disto.)

Cada um fala do jeito que lhe apraz. Eu digo o tempo todo coisas como: “As pessoa pensa que a Gramática é um bicho de sete cabeça”. É assim que eu pronuncio as palavras quando estou falando, resíduo plebeu de quem foi criado em rua sem calçamento. Mas se eu for escrevê-las vou escrever como Camões escreveria, resíduo elitista de quem foi criado em casa com biblioteca. A não ser que eu esteja escrevendo, num romance ou numa peça, um diálogo de um personagem que fala assim. Então, tenho que escrever assim.

O livro tem a boa intenção de diminuir o enorme sentimento de culpa, de inadequação, de complexo de inferioridade, em milhões de alunos pobres que são escarnecidos diante da turma por terem escrito ou pronunciado uma palavra da única maneira que aprenderam, e que não é a da Norma Culta. O “preconceito linguístico” existe, e existe forte. Nosso dever é legitimar as falas coloquiais, regionais, etc., sem dar a impressão de que se está dispensando o ensino, o estudo e a prática da Norma Culta. A Norma Culta é a âncora da língua, que a mantém firme no centro de uma consciência coletiva e compartilhada. A Norma Culta evita que ela se estilhace em milhares de falares regionais ou, pior ainda, em milhões de indivíduos falando uma língua pessoal que só eles entendem.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

2560) Estatísticas (19.5.2011)




Até que ponto podemos nos deixar induzir pelas estatísticas? Elas são um tremendo instrumento para análise, e ao mesmo tempo uma tremenda viseira, filtro, que só permite ver um tipo de coisa. 

Uma piada famosa diz que as estatísticas são como os biquínis: o que mostram é interessante, mas o que escondem é mais interessante ainda. 

Outra piada diz que três amigos saíram para caçar: um médico, um advogado e um estatístico. Um pato selvagem levantou voo. O médico atirou à esquerda e errou, o advogado atirou à direita e errou, e o estatístico gritou: “Acertamos!”.

Estatísticas têm um papel decisivo nas pesquisas de opinião, que decidem desde campanhas publicitárias de detergente até eleição do Presidente da República. Uma crítica que faço às estatísticas é que seu excesso de precisão mascara sua eventual irrelevância. O maior exemplo é o vício das estatísticas por computador que toma conta das transmissões de futebol. O jogador Fulano percorreu 4,5 km, o chute de Sicrano ia a 97 km por hora, o time tal é o que fez mais gols entre os 20 e 45 minutos do 2o. tempo... 

Isso ajuda o técnico, ajuda o adversário? Pode ajudar, remotamente. Mas precisa ser um técnico de muito bom senso para filtrar dessa emaranhado de números algo que seja útil do ponto de vista prático. E que possa ser posto em prática pelos brucutus ao seu dispor.

Existem exemplos curiosos de como as estatísticas moldam nosso modo de pensar. Os psicólogos costumam empregar o termo “efeito Lake Wobegon”, numa referência a uma cidade fictícia criada por Garrison Keillor, na qual “todas as mulheres são fortes, todos os homens têm boa aparência e todas as crianças são acima da média”. 

Algumas pesquisas nos EUA indicaram que 63% dos norte-americanos se consideram mais inteligentes do que a média da população, o que é uma impossibilidade estatística; numa pesquisa semelhante no Canadá, 70% dos entrevistados se consideram mais espertos do que o canadense médio.

O modo como as perguntas são feitas, é claro, faz essas percentagens mudarem dramaticamente. Lembro de um livro de Theodore Sturgeon (Venus Plus X) em que ele cita uma pesquisa feita nos EUA, em que a certa altura foi perguntado se todos os homens eram iguais, e 61% responderam que sim. Logo em seguida perguntaram se os negros são iguais aos brancos, e 4% disseram que sim. 

Aparentemente este exemplo comprova o quanto os norte-americanos são preconceituosos. Para mim, ao contrário, prova o quanto é fácil provar algo formulando as perguntas de certa maneira. A primeira pergunta é tão ampla que tem um sentido generalizante, filosófico. Ao respondê-la, pensamos no que a Constituição diz, abstratamente, sobre igualdades. 

Na segunda pergunta, o dado concreto (cor, aparência física) é jogado de maneira tão brusca que eu mesmo responderia que “não”. É como se me perguntassem: Os gordos são iguais aos magros? Os futebolistas são iguais aos astrônomos?





quarta-feira, 18 de maio de 2011

2559) “O Fantasma de Canterville” (18.5.2011)



Poucas histórias de fantasmas serão tão emblemáticas quanto esta noveleta de Oscar Wilde, de 1887, que hoje é um clássico da literatura infantil. Foi adaptada várias vezes para o cinema, várias vezes traduzida no Brasil. É a história de uma família norte-americana que compra Canterville Chase, uma tradicional propriedade rural inglesa, e ao se mudar para lá recebe o aviso de que a casa é mal-assombrada. A família é pragmática e materialista, não acredita no Fantasma, e, quando este aparece, não lhe dá muita importância. A partir dessa primeira aparição o Fantasma passa a ser o ponto de vista narrativo, e vemos sua decepção e perplexidade diante daquelas pessoas que não o temem, e daquelas crianças capazes de qualquer coisa para infernizar sua vida: há um par de gêmeos que lembram Hans & Fritz, os “Sobrinhos do Capitão” dos quadrinhos.

Wilde cria uma historieta divertida mostrando o desespero do pobre Fantasma que não assusta ninguém. Os jovens e saudáveis norte-americanos não o levam a sério em momento algum, por mais que ele recorra a todos os seus truques, caracterizações, efeitos especiais. O autor fica numa posição “triangular”, mostrando à distância os dois lados da história, satirizando ambos, mas com um bom humor juvenil que talvez tenha se diluído à medida que ele foi cristalizando a “persona” cínica que o tornou famoso em Londres.

O livro de Wilde foi mais um golpe pesado na literatura gótica de velhos castelos, noites tempestuosas, maldições seculares, tragédias de famílias nobres, espectros penitentes que imploram perdão ou vingança. Surgindo no século 18, cem anos depois esse tipo de romance já merecia sátiras e paródias variadas. No século 20, os fantasmas bonzinhos acabaram se transformando num clichê tão consagrado quanto os fantasmas ameaçadores. A “sacada” de Wilde foi de que seria engraçada uma situação em que as pessoas incrédulas vissem, sim, o fantasma, mas isso não tivesse o menor efeito sobre elas. Pelo contrário: os adultos tentam ajudá-lo (dão-lhe óleo para lubrificar as correntes, que rangem muito) e as crianças pregam-lhe peças terríveis. No fim do livro, a filha da família Otis, Virginia, torna-se amiga do fantasma e ajuda a libertar sua alma.

O fantasma do livro é Sir Simon de Canterville, que em 1565 assassinou a própria esposa. O que acaba parecendo uma premonição do poema mais famoso de Wilde, a “Balada do Cárcere de Reading”, escrito dez anos depois, em 1897, onde estão os famosos versos: “Pois todo homem mata a coisa que ama, / e cada um que escute bem: / alguns o fazem com um olhar amargo / outros com uma palavra de elogio / o covarde o faz com um beijo / e o homem valente com uma espada”. Por ter morto a esposa, Sir Simon tem que passar 300 anos vagando pelos corredores da mansão, até ser desmoralizado pela incredulidade dos norte-americanos e ser libertado pela compaixão da garota, a primeira que é capaz de perdoá-lo.

terça-feira, 17 de maio de 2011

2558) Domingo de bola (17.5.2011)




O domingo passado foi o domingo dos campeões estaduais, com algumas surpresas e várias jornadas épicas. (Aqui no Rio de Janeiro foi um domingo de TV, porque o Flamengo simplificou o processo ganhando invicto os dois turnos.) Eu me juntei com uma galera pernambucana para torcer pelo hexa do Sport, que mais uma vez ficou pra próxima. (Parece que pro Leão ganhar cinco títulos é mais fácil do que ganhar o sexto.) O Santa Cruz, com um time mais modesto (em grana e em futebol) jogou com garra e sustentou até quase o final o 0x0. O juiz, esperto, calou a boca da torcida do Sport inventando um pênalte aos 48 minutos, que não serviu para nada. Marcelinho Paraíba converteu, o jogo acabou, e ele, como bom raposeiro, ainda tentou inventar uma briga pra não perder a viagem.

De crista baixa, fui ver quanto tinha sido o jogo do Galo mineiro, que esteve com o jogo nas mãos (jogava pelo empate) e deixou escapar. Surpresa mesmo foi o Bahia de Feira de Santana, que derrotou o Vitória no Barradão, para a festa de 30 e poucos feirenses perdidos no meio da multidão rubronegra. Isso, sim, é uma decisão que nenhum time tem o direito de perder.

Decisão mais tranquila (a julgar pelos Melhores Momentos, no SporTV) foi a vitória do Santos sobre o Corinthians, resultado justo, lógico e previsto, porque o Santos está na ascendente há bastante tempo (agora mais ainda, com Muricy como técnico), e o Corinthians numa entressafra danada, com um time sem muito brilho e esperando Adriano emagrecer.

A grande batalha épica do domingo, no entanto, foi o Gre-Nal, talvez o jogo mais emocionante, cheio de alternativas. Internacional e Grêmio são um dos poucos casos, no futebol brasileiro, em que as torcidas parecem torcer mais contra o adversário do que a favor do seu próprio time. Os gaúchos parecem pensar no adversário desde o instante em que acordam ao instante em que vão dormir (e sonham com ele, também). Os dois jogos decisivos foram simétricos, com o visitante ganhando de 3x2 no campo do adversário. O título foi decidido nos pênaltis com três defesas de Renan, que havia falhado em três dos cinco gols gremistas nos dois jogos.

Grêmio e Inter parecem dois irmãos siameses de tragédia grega, duas faces de uma mesma moeda. Por alguma magia misteriosa, o destino de um está colado ao do outro, e tudo que acontece ao vencedor acaba acontecendo também com o vencido, e vice-versa. Já escrevi aqui (“Os jogos simétricos”, 11.7.2009) sobre dois jogos, em dias consecutivos, em que Inter e Grêmio foram eliminados em Porto Alegre por Corinthians e Cruzeiro em jogos com uma marcha do placar absolutamente idêntica. O que escrevi na época se aplicaria às finais do Gaúcho deste ano: “Simetrias improváveis aparecem quando menos se espera, e nos dão a impressão de que vimos a repetição de um padrão, de um ornato, a justaposição de duas coisas que alguém tornou iguais porque isso lhe dava algum tipo de prazer estético.”

segunda-feira, 16 de maio de 2011

2557) A telenovela, quem diria (15.5.2011)



Numa entrevista à Revista E, do SESC-SP (abril 2011, número 10), Lauro César Muniz lamenta a queda de qualidade das telenovelas atuais em relação às da época em que ele criou sucessos como O Casarão, O Salvador da Pátria, etc. Muniz, que é da velha escola de dramaturgia da Globo, lembra o quanto era difícil, durante a ditadura, lidar com a censura exercida sobre um meio tão popular quanto as novelas. Imaginamos que só quem sofreu na unha da censura foram o Cinema Novo, o Cinema Udigrudi e outros movimentos de contestação pura. As telenovelas também sofriam, não porque fizessem propaganda do socialismo (embora tivesse comunistas notórios como Dias Gomes), mas porque eram vistas por dezenas de milhões de pessoas. Censor que se prezasse tinha que ficar de olho.

“Dialogávamos com os censores”, diz Lauro César. “Nossos argumentos eram bons e eles eram burocratas. Assim, conseguimos liberar algumas coisas, às vezes cedíamos em outras. Tentei colocar em cena um personagem judeu que tinha uma relação com uma não judia e fui censurado. Hoje, isso é feito à vontade. Relação entre negros e brancos não era permitido, assim como personagens homossexuais. Havia essa censura, e não conseguíamos passar por cima de tudo. Qualquer história que tivesse como mote luta de classes era muito visada. Não eram ingênuos”.

Quanto a mim (mero espectador), nem peço que as novelas de hoje abordem a luta de classes. Bastava que as situações não fossem tão caricaturais, os personagens tão grotescos, as situações tão clichê. Os diálogos das novelas (inclusive a das 8, que costumava ser a que tinha mais espessura como texto) estão uma calamidade. Quando estou visitando alguém e sou forçado a assistir um capítulo, a cada bloco tenho vontade de arranjar uma desculpa e sair da sala, porque fico constrangido de estar escutando aquilo. Preconceito? De jeito nenhum. Meu sonho na vida é ver uma novela que me dê vontade de acompanhar.

“Atualmente, a audiência dita tudo, com isso a qualidade das novelas caiu muito. Ficaram maniqueístas, esquemáticas. Todos nós estamos mostrando uma dramaturgia de mercado. Há algo perigoso que é o processo industrial, na medida em que os capítulos das novelas se estenderam e o público tem sido bombardeado pelo cinema ‘blockbuster’. Esse tipo de cinema que dominou o mercado influenciou as telenovelas. Prioriza-se a ação frenética e não a reflexão. Com isso, enchemos os nossos gabinetes de colaboradores – um grande mal. Virou o ‘fordismo’ da criação. (...) Apresentei por escrito ao Boni um projeto para diminuir o número de capítulos das novelas – hoje com mais de duzentos. Diminuindo, o autor poderia reassumir seu papel de escritor, podendo recuperar o seu estilo. Tempos depois, meu projeto foi engavetado. (...) Há uma inércia no processo, ninguém quer mudar. Só que a qualidade caiu muito, os melhores autores estão escrevendo mal suas novelas – falta estilo e autoria”.

sábado, 14 de maio de 2011

2556) O futuro dos Bancos (14.5.2011)



Fiquei sabendo que as filas enormes e demoradas nas agências bancárias não são produto do acaso e da incúria, mas da solércia e do planejamento. Cheguei num Banco e peguei minha senha de atendimento. Isto já era um bom sinal. A maioria dos Bancos com senhas de atendimento oferece também cadeiras para os clientes poderem sentar enquanto esperam. Dos quatro caixas à minha frente somente um estava ocupado. Cada pessoa que ia até ali demorava como se estivesse renegociando a dívida externa de Serra Leoa. Eu estava com minha continha simples na mão, o dinheiro exato, era somente pagar, pegar umas moedazinhas de troco e correr pro abraço.

Logo vi que o abraço ia demorar meia hora, uma hora inteira. Dei um suspiro e comentei com o cidadão grisalho ao meu lado: “Eles deviam saber que num dia como hoje vem mais gente”. Ele tirou os óculos, limpou com o lenço e respondeu: “Eles sabem. Fazem isso de propósito”. Eu: “É, tem razão. Fazem só pra maltratar a plebe. A gente merece!” Ele: “Não, não. Isso é uma determinação que vem de cima. Eles querem estimular o uso das máquinas, do auto-atendimento. Querem que o cliente fique desestimulado de pedir ajuda aos caixas, e aprenda a fazer tudo sozinho”.

Lembrei de um texto de Bruce Sterling onde ele lembra como antigamente, nos filmes, o pessoal pegava o telefone e gritava: “Telefonista, ligue-me com a polícia!”. Hoje em dia ninguém faz isso. As telefonistas são desnecessárias, porque todo mundo aprendeu a discar, e a saber de cor (ou ter anotado) os números de que precisa, inclusive a polícia. Perguntei: “Mas eles acham que vão conseguir? Minha tia-avó toda vez que quer saber o saldo perde meia-hora na fila. É uma questão cultural”. Ele: “Bem, as tias-avós, com todo respeito, são uma espécie em extinção. Os Bancos confiam que dentro de algumas décadas todo mundo achará o auto-atendimento a coisa mais natural. Em breve, não haverá mais caixas: a agência será um salão cheio de máquinas onde as pessoas entrarão, farão seus pagamentos e depósitos, abrirão suas contas, registrarão senhas, farão sozinhas tudo que hoje pedem que os caixas façam por elas. E tem mais. O próximo passo é, sutilmente, fazer com que as pessoas passem a executar tarefas que nada têm a ver com elas, tarefas que são do Banco. Pedirão ao cliente que faça tais ou tais cálculos, que preencha tais ou tais formulários.. Uma infinidade de pequenas tarefas simples do dia-a-dia do banco passará a ser feita pelos clientes, que assim passarão não apenas a pagar taxas, mas a trabalhar de graça para os Bancos.”

Silêncio. Pausa. Comentei que ele estava muito bem informado; era jornalista, por acaso? “Não”, disse ele, “na verdade sou o neto dessa moça aí (e mostrou a jovem loura, no caixa) e vim vê-la de perto. Depois retornarei para 2071”. “Boa piada”, disse eu, fazendo de conta que não via a aura azulada em torno dele, e que não sentia o cheiro de ozônio da sua vestimenta.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

2555) A literatura autobiográfica (13.5.2011)



(do Codex Seraphinianus)

Na sua biografia de Jorge Luís Borges, a escritora Maria Esther Vásquez relata com bom humor as incontáveis entrevistas que Borges, na velhice, dava para crianças de 10 ou 12 anos que as professoras mandavam bater à sua porta. Ele, talvez por solidão, invariavelmente as recebia, e dava as mesmas respostas às eternas perguntas. Diz ela que todas essas entrevistas infantis começavam com “Quando o sr. descobriu que era escritor?” e terminavam com “Que conselho daria a um jovem que quer ser escritor?”. Acho que minha única semelhança com Borges (apesar dos meus ingentes esforços) é o fato de já ter respondido dezenas de vezes essas perguntinhas-vírus que ninguém consegue extinguir.

Tem uma terceira, uma pergunta-do-meio que também retorna ciclicamente, como um cavalinho de carrossel: “Seus livros se baseiam na sua experiência pessoal?”. Existe em certos leitores a noção de que um livro é uma espécie de buraco-de-fechadura através do qual é possível brechar a vida pessoal do autor. Se uma mulher escreve um romance sobre uma personagem ninfomaníaca, o leitor pensa: “Arrá! Ela tem tendências!...” Se um autor escreve contos sobre viciados em drogas, o leitor pensa: “Está contando tudo que ele mesmo fazia”. E assim por diante.

Todo livro (toda obra de arte) se cria a partir das experiências pessoais do autor, até porque não ouvi falar, até hoje, de uma pessoa que tivesse acesso às experiências de outra. Enquanto não inventarem a Máquina da Telepatia ou a Pílula da Transmigração de Almas, cada indivíduo está confinado a si mesmo, para o bem ou para o mal. Tudo que sabemos dos outros é de segunda mão: pela fala, pela escrita, até mesmo pelo testemunho dos nossos olhos – o que, no fim das contas, transfere a experiência de Fulano (Fulano bateu com o carro) para mim (eu vi Fulano bater com o carro).

Quando o sujeito é escritor, tudo é autobiográfico, tudo vem de sua experiência pessoal, mas o leitor precisa entender que grande parte (em muitos casos, a maior parte) da experiência pessoal de um escritor é o que ele observa, é a comédia humana que ele vê desfilar diante de si. Há autores que preferem falar do que experimentaram; outros preferem falar do que viram; outros ainda gostam de contar o que imaginaram. Mas a maioria dos romancistas, enquanto escreve, muda o tempo inteiro entre estes três registros, assim como um motorista muda de marcha de acordo com as exigências do terreno e do veículo.

Um escritor que é (por exemplo) advogado ou médico tem, na sua vida cotidiana, um Rio Amazonas de experiências alheias em que se inspirar, um Niágara de histórias com que ele entra em contato de modo superficial, mas o bastante para lhe dar a fagulha inicial de uma idéia. Os personagens que cria não são ele próprio. São uma parte essencial (e reveladora) dele próprio, são a projeção subjetiva dele sobre fragmentos de histórias que viu, complementadas por longos trechos que ele fantasiou.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

2554) Harakiri (12.5.2011)



Este filme de Masaki Kobayashi, de 1963, é um clássico do cinema de samurais, e tem a verdade humana, o flagrante histórico-social e o arrebatamento épico daqueles grandes faroestes de John Ford ou Sérgio Leone. Eu o tinha visto apenas uma vez, em 1970, e ao revê-lo agora no DVD descobri que lembrava enquadramentos precisos, cenas inteiras, e a história, que é cruel e dolorosa. Um samurai empobrecido e sem patrão, um “ronin”, chega às portas da mansão de um poderoso clã e pede que lhe deem condições rituais de praticar o harakiri lá dentro. Havia na época um mau costume, entre samurais sem ética, de fingir querer praticar o harakiri para ser dissuadido à força de esmolas. Os homens do clã Yi forçam o “ronin” a praticar o harakiri com as espadas de bambu que levava consigo, o que torna sua morte humilhante e dolorosa. Algum tempo depois chega à casa um “ronin” mais idoso, fazendo o mesmo pedido. Quando o ritual é preparado, ele pede (bem ao estilo das narrativas orientais) para contar sua história e de como chegou àquela situação. E revela que é o sogro do “ronin” anterior, e diz que está ali para justificar a atitude do genro, e para vingá-lo.

É um filme com mais de duas horas de duração, sucessivos flashbacks, muitos diálogos. Dos seus mais de 120 minutos talvez apenas uns 15 sejam dedicados a combates de espadas, mas estão entre os melhores que o cinema já fez, principalmente o confronto (em flashback) entre dois samurais numa campina agitada pelo vento. Kobayashi usa a tela larga tipo cinemascope, num preto e branco belíssimo (infelizmente prejudicado na cópia-para-colecionadores que os amigos me repassaram), mas que pode ser avaliado vendo-se o trailer no YouTube. Não é todo diretor que usa a tela larga para enquadramentos tão precisos, tão expressivos, tão cheios de movimento.

O filme também nos faz pensar sobre a época dos samurais. Tendo surgido como os defensores armados dos clãs feudais, os samurais ficavam inúteis numa época de paz, como a descrita no filme (em torno do ano 1630). Homens treinados para a guerra, tinham dificuldade de se adaptar a tempos pacíficos, e acabavam se transformando numa estranha forma de lumpen-proletariado, quase mendigos que, não obstante, eram especialistas numa função dificílima e arriscada. Tem a ver com os veteranos da II Guerra Mundial, do Vietnam, da Guerra do Golfo, etc. Indivíduos que se sentem mais à vontade numa brutal situação de combate, matando gente, do que em casa, aguando as plantas do jardim e ajudando a esposa a cuidar do bebê.

Kobayashi, além de fotografar admiravelmente, usa o som de maneira notável. Numa cena em que um homem pratica tiro ao alvo com arco e flecha, escutamos até o rangido do arco sendo dobrado. O tropel dos passos no chão de madeira, os gritos e arquejos durante a luta. A música, com instrumentos tradicionais japoneses, surge com extrema economia e eficácia. Um filme que vale a pena encomendar na loja oficial.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

2553) O que é mainstream (11.5.2011)



O conceito de “mainstream” literário é tipicamente um conceito da mentalidade norte-americana. O primeiro indício disto é que até hoje não temos um termo brasileiro que o exprima. Há quem use “corrente principal” (que parece jargão de engenharia elétrica), “tronco literário” (idem da engenharia florestal). Eu uso geralmente um circunlóquio como “a literatura propriamente dita”, que me parece horrivelmente vago. “Mainstream” é usado em inglês para exprimir um modo como os norte-americanos visualizam a literatura: um enorme rio que tem uma correnteza principal, como o Nilo, e que como o Nilo se subdivide eventualmente num delta de correntezas menores, que seriam os gêneros (policial, terror, amor, faroeste, etc.), as quais, contudo só existem porque são um mero desvio de uma parte das águas dessa correnteza maior, que é o rio propriamente dito.

Quando os norte-americanos falam “mainstream” eles estão querendo dizer algo como: “o moderno romance realista urbano, que descreve a vida de tipos humanos reconhecíveis em ambientes humanos reconhecíveis, e que nos faz revelações sobre a estrutura sócio-histórica-econômica do ambiente, e sobre o perfil psicológico dos personagens”. Este é o modelo literário dominante no mundo ocidental, desde a crítica literária da imprensa e dos jornais aos estudos universitários. O fato de corresponder a uma fatia muito estreita da produção literária não tem importância. A “corrente principal” não é principal por causa da quantidade, mas por causa do seu mero poder de se impor como modelo. Esse tipo de livro tem credibilidade e poder político, um poder meramente espiritual, mas nem por isto menos poderoso. Tem a maioria dos críticos, dos professores e dos acadêmicos ao seu lado. E é um modelo que vem sendo aperfeiçoado há pelo menos duzentos anos.

No Brasil, esse mainstream se divide no realismo social-histórico e no realismo psicológico. Quando um autor pertencente a uma destas tendências começa a exagerar certos traços, começa a se desprender do mainstream. Rubem Fonseca, por exemplo, volta e meia parece estar sendo empurrado para o gueto da literatura policial, mas sempre retorna à corrente principal. (Entre outras coisas, porque a crítica não quer abrir mão dele.) Como o brasileiro culto tem obsessão por História, o romance histórico é entre nós parte do mainstream, e não da literatura de gênero.

Quando é que um conjunto de textos sai do mainstream e constitui um gênero? Eu diria que é quando ele cria um público próprio, um mercado próprio, um sistema de feedback (críticas, resenhas, publicações) próprio e passa a não precisar do sistema do mainstream. Ocorreu isso com a ficção científica dos EUA, e é irônico que ela, depois de se tornar independente do sistema maior, sofra hoje a nostalgia de não ser aceita por ele. Isso se dá provavelmente porque o mercado (apesar de imenso, comparado ao brasileiro) é pequeno, comparado ao mercado mainstream norte-americano.

terça-feira, 10 de maio de 2011

2552) A bomba do Riocentro (10.5.2011)



Lembro, como se fosse hoje, a noite em que explodiu a bomba do Riocentro, evento que completou agora trinta anos. Eu estava numa barraca de Olinda, perto do famoso Bar Atlântico, tomando cerveja com a rapaziada, e a barraca tinha uma TV ligada. Passava da meia-noite, acho. De repente entrou uma chamada do telejornal da Globo e o cara da barraca aumentou o volume. Paramos a conversa para escutar, porque foram logo falando em bomba. Estava havendo um show musical no Riocentro e terroristas tinham jogado uma bomba num carro com dois oficiais do Exército. Ficamos de olho pregado na tela. Apareceu um carro todo esfrangalhado pela explosão. E então veio uma imagem da mala do carro aberta, e o repórter dizendo: “Foram encontradas outras bombas na mala do carro. Não há pistas sobre a autoria do atentado”. Quando terminou a matéria eu perguntei; “Olha, se os militares estavam no carro, e alguém jogou uma bomba neles, o que essas outras bombas estavam fazendo na mala do carro DELES?”.

Este é um episódio curioso na minha vida porque desde a manhã seguinte nunca mais ninguém tocou no assunto “outras bombas”. Em vão li jornais dos dias seguintes sobre o atentado, cada vez mais convencido do óbvio: os militares estavam ali para jogar a bomba em alguém e deram uma mancada. Por conta disso, escrevi uns versinhos, finalizando uma estrofe de martelo, que eram muito aplaudidos na época, quando os cantava em público: “Sou gangrena depois da infecção, sou a presa dum bicho peçonhento, sou a bomba no colo do sargento, explodindo o infeliz do capitão”.

Sigmund Freud tem alguns ensaios muito interessantes sobre o que ele chama de falsas memórias, ou memórias fabricadas. Ao evocar um episódio do passado distante, colocamos nele coisas que não estavam ali. Não colocamos pelo impulso de mentir ou de falsificar, mas porque estamos montando às pressas um quebra-cabeças e, quando falta uma peça, a gente inconscientemente fabrica uma peça antes inexistente, mas que se encaixa naquele lugar.

Terei imaginado as bombas na mala do carro? Talvez. Mas o fato estava acontecendo naquele instante, estávamos todos tomados de surpresa, e me lembro que foi a visão das bombas não-explodidas que me fez achar, perplexo, que aquilo não tinha sido um atentado terrorista. O pessoal dizia: “Mas o locutor falou que foram os terroristas que jogaram uma bomba no carro dos caras”. E eu dizia: “Ok, nada contra. Mas então o que estavam as bombas não-explodidas fazendo justamente no carro dos caras?”.

O atentado do Riocentro é um dos maiores escândalos jurídicos da época da ditadura, porque foi alvo de uma pseudo-investigação, conduzida pelo Exército com uma desfaçatez sem medida. Coube à imprensa e às organizações de direitos humanos montar o quebra-cabeças ao longo dos anos. Mas ainda não sei se a imagem daquelas bombas na mala do carro existiu mesmo ou é fruto da minha fértil imaginação.