quarta-feira, 3 de novembro de 2010

2391) Verso livre obrigatório (3.11.2010)




(Glauco Mattoso)

O poeta Glauco Mattoso publicou há pouco na revista eletrônica Cronópios (http://tinyurl.com/27ll855) um artigo cujo mero título já sugere volumes de texto: “Verso livre obrigatório versus forma fixa voluntária”.

Nesta cadeia verbal encravam-se inúmeras polêmicas travadas entre os poetas contemporâneos nas últimas décadas.

Polêmicas desnecessárias, porque baseadas em equívocos, falácias, mal-entendidos; mas importantes, pois revelam a espantosa variedade de usos que a poesia tem para esses indivíduos.

Essa poesia aparentemente tão imprestável, chamada por Paulo Leminski, com ironia e carinho, de “inutensílio”.

Tudo começou quando o Parnasianismo era um governo comodamente refestelado nas poltronas do poder literário. Entre os parnasianos, vigorava a rima, a métrica, a estrofe regular, o poema como um conjunto de formas fixas que era preciso preencher com palavras, tendo cuidado para que não houvesse sequer uma sílaba tônica fora do lugar, sob pena de fazer desmoronar a estrutura inteira.

O Modernismo irrompeu janela adentro e jogou na lareira o regimento interno. Agora podia tudo. Verso sem rima, verso de qualquer tamanho, linguagem errada das ruas, regionalismos, barbarismos, poema de qualquer jeito, poema falando de qualquer coisa.

Isto acendeu uma luz de esperança nos olhos de inúmeros sujeitos doidos para ser poetas, mas sem muito traquejo para manejar as formas. Era um pouco como o que ocorreu depois no punk rock.

Os rapazes não conheciam as notas, nem as cordas, nem os acordes; mas morriam de vontade de subir no palco, dar aqueles pulos, aqueles gritos. A estética punk bradou: Pode tudo agora! E abriu-se uma cadabra que até hoje não voltou a se fechar.

Glauco Mattoso questiona o fato de muitos poetas de hoje rejeitarem as regras de versificação, e não apenas as rejeitarem para si próprios (um direito de qualquer um), mas afirmarem categoricamente que essas regras devem ser extintas e que não se aplicam mais à produção da poesia. Diz Glauco, em sua peculiar ortografia:

"As ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias ‘abolido’ as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação. Sempre admirei auctores iconoclastas que ousaram transgredir valores vigentes, como Mario e Oswald no modernismo ou Augusto e Haroldo no concretismo, para não fallar na constante inquietação creativa de Bandeira e Drummond. Mas, quando reaffirmo que lhes applaudo a coragem e a irreverencia, é justamente por saber a que poncto conhecem, elles todos, cada norma que se propuzeram a contestar. Quando quizeram, tanto Mario como Augusto compuzeram impeccaveis sonetos, e só não os fizeram em quantidade porque estavam interessados em outras alternativas estheticas.” 

Não se deve, diz ele, romper com a monotonia da regra para inaugurar a monotonia da quebra.








terça-feira, 2 de novembro de 2010

2390) O Ulisses argentino (2.11.2010)



Na sua enumeração dos equivalentes ao Ulisses de Joyce em diferentes países, Joshua Cohen elegeu como representante argentino Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948). Ao que eu saiba, este livro nunca foi traduzido no Brasil. 

Cohen justifica assim sua escolha: 

“O romance de Marechal, cujo título de grafia peculiar só pode ser mesmo traduzido como ‘Adão Buenosaires’, acompanha uma irmandade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre eles Jorge Luís Borges. Em sete seções, focalizadas sobre a formação estética de Adán, um pretendente a poeta, a homenagem cede lugar a uma reescritura de Dante, enquanto o espanhol falado na Argentina serve de brinquedo, é pervertido, é reinventado”. 

Ora, o meio literário argentino é tão cheio de fofocas e de intrigas quanto qualquer outro. No diário que manteve durante décadas de convivência com Borges, Adolfo Bioy Casares conta que ele e o autor do “Aleph” se referem de maneira depreciativa a Marechal, chamado por Bioy, citando uma expressão de Samuel Johnson, de “a barren rascal” (“um canalha estéril”). 

O menosprezo de ambos por Marechal deve-se sem dúvida ao fato de este último ter sido peronista, algo que Borges não perdoava a ninguém. Sobre o livro, Borges lembra: 

“O nome de Adán Buenosayres, quando estava ainda no manuscrito, ou quem sabe quando era apenas o projeto de outro romance, era ‘Fulano (que tem o mesmo número de sílabas que Leopoldo) Varangot’. Ele o abandonou porque todos faziam gozação com ele chamando-o de Leopoldo Varangot”. 

Ninguém comenta os clássicos com mais inteligência do que Borges, mas seu julgamento dos contemporâneos é frequentemente desdenhoso, ranheta. 

Julio Cortázar foi um avaliador mais generoso do livro de Marechal, que comentou em 1949 num longo artigo em que lhe aponta qualidades e defeitos; ainda assim acabou sendo acusado de “aderir ao peronismo”. Assim ele descreve a obra de Marechal: 

“São sete livros, dos quais os cinco primeiros constituem o romance e os dois restantes amplificação, apêndice, notas e glossário. No prólogo se diz exatamente o contrário, ou seja, que os primeiros livros valem antes de tudo como introdução aos dois últimos, ‘O Caderno de Capa Azul’ e ‘Viagem à Obscura Cidade de Cacodelfia’. (...) Os livros VI e VII podem ser desprendidos de Adán Buenosayres com sensível benefício para a arquitetura da obra”. 

 Talvez se possa ver aí uma influência futura sobre O Jogo da Amarelinha, em que tais capítulos de comentários vêm apostos ao romance como “Capítulos Prescindíveis”. 

Cortázar elogia o uso de variadas vozes pelo autor e conclui: 

“Estamos criando um idioma, por mais que incomode aos necrófagos e aos professores normais de letras que creem em seus títulos. É um idioma turvo e quente, torpe e sutil, porém cada vez mais próprio à nossa necessidade de expressão.” 

Ignorado em sua época, o romance de Marechal parece emergir aos poucos, com o passar do tempo.






segunda-feira, 1 de novembro de 2010

2389) Um romance em um mês (1.11.2010)




(foto: Valeriana Solaris)

Nenhum povo aborda a criação literária de maneira mais pragmática do que os norte-americanos. Para horror de muitos artistas, vigora ali a idéia de que escrever um romance não é muito diferente de aparar a grama do jardim (uma atividade típica daquele país). 

Existe lá uma espécie de concurso ou desafio anual chamado National Novel-Writing Month. Todo mês de novembro, milhares de escritores aspirantes topam esse desafio: escrever ao longo dos 30 dias do mês um romance de 50 mil palavras. 

A revista “Wired” publicou um artigo dando algumas dicas interessantes (e que servem, misturadas a uma pitada de bom senso, para empreitadas literárias em geral). Afinal (diz o websaite NaNoWriMo - http://www.nanowrimo.org/) “o objetivo não é produzir um best-seller, nem grande literatura, é dar partida num projeto que por razões variadas você não conseguiu fazer decolar”.

Dica 1: 
Planeje, antes de começar. O desafio é escrever o livro em 30 dias, mas isto não o impede de tomar notas, fazer um resumo ou escaleta, organizar o enredo para saber para onde está indo. 

Organize seu mês de maneira a garantir um máximo de tempo livre. Você terá que produzir uma média de 1.700 palavras por dia. Em alguns dias não vai dar, mas quando as coisas estiverem indo bem você vai ver que pode duplicar ou triplicar esse número. 

Planeje a manhã seguinte, para não “dar um branco”. Anote as primeiras idéias para começar no outro dia já sabendo o que vai fazer. 

Planeje as coisas do seu jeito; não se preocupe em seguir conselhos ou modelos alheios. Cada pessoa é diferente.

Dica 2: 
Mantenha-se motivado. Adie refeições ou lazer para depois de cumprir sua quota diária. 

Se tiver um blog, informe seus amigos sobre seus progressos. Ajuda externa ajuda a manter o entusiasmo. 

Se estiver realmente cansado, dê um tempo, pense noutra coisa, mas somente depois de cumprir sua quota diária. 

Se estiver bem, mantenha-se ligado no livro, tome notas, prepare-se para a próxima sessão de escrita.

Dica 3: 
Evite distrações. Esqueça a Internet, a não ser para o essencial. Mantenha a família à distância. Ignore Twitter, Facebook, tudo o mais. Concentre-se na escrita.

Dica 4: 
Não ligue para os erros. Muita coisa vai sair mal escrita. Não faz mal, continue. O importante é chegar ao fim, e, no fim, ter um livro pronto para ser revisado. Se você ficar burilando eternamente a mesma página, ela vai ficar perfeita, mas você não terá um livro. 

Se for o caso, mantenha um caderno de notas (ou abra um novo arquivo) para ir anotando os trechos que precisam ser retrabalhados, e como fazê-lo. Isso vai ser uma fase posterior do trabalho: o importante agora é chegar ao fim. 

Muitos escritores são capazes de produzir dezenas de páginas brilhantes, mas nunca chegam ao fim de um livro. Se você tiver em mãos um livro pronto mas cheio de erros, não é difícil transformá-lo num bom livro, com mais dois ou três meses de trabalho.





domingo, 31 de outubro de 2010

2388) A história de Sidney Rosenblum (31.10.2010)




Não conheci meu pai, que morreu quando eu tinha meses de nascido. Minha mãe vendeu a casa em Los Angeles e, como queria ficar perto de minha avó, se transferiu para Lansing, onde eu cresci, até me formar na Michigan State University. 

Quando casei, fui ensinar em Nova York, e foi ali que o advento da cultura digital trouxe meu pai de volta. 

Ele tinha sido ator de teatro na Califórnia, e trabalhara de forma intermitente no cinema. Minha mãe falava pouco sobre ele. Desde cedo entendi que guardara mágoa pelas suas bebedeiras, suas infidelidades, e queria esquecê-lo. Sempre me disse que ele trabalhava fazendo pequenas pontas, em cenas de multidão, e que sua carreira a sério tinha sido no teatro. 

O teatro é mais uma parte da vida do que da Arte, e, como a vida, nada deixa atrás de si. Algumas vezes lamentei que a arte de meu pai (“era um ator vigoroso, tinha presença”, concedia minha mãe) tivesse se perdido para sempre. Então surgiram na minha vida o DVD e o Internet Movie DataBase.

Dediquei-me a pesquisar fichas técnicas e a obter cópias dos filmes em que meu pai trabalhou. Foram dezenas. Foi no máximo um coadjuvante, mas em muitos filmes tinha uma ou outra cena forte, com boas falas. Um taxista, um porteiro conversador, uma testemunha num julgamento, um mafioso, um soldado na guerra... 

Vasculhei milhares de jornais da época; nunca um crítico citou o seu nome. Mas dediquei-me a colecionar tudo que ele tinha feito, e por fim tive a idéia de montar uma edição conjunta de todas as suas cenas, ajudado por meus alunos da universidade. 

Tenho agora em DVD uma colagem que cobre, até onde estou informado, tudo que as câmaras registraram de meu pai.

Hoje em dia, uso isto como um manual de meditação. Quando estou deprimido, vou direto para 02:35:10, a cena da tempestade em The Sea Wolves. A água banha o convés, o veleiro se agita, o timoneiro grita: “Vamos sobreviver a este inferno!”. Corta para um marujo barbudo (ele), que, agarrado ao mastro, grita de volta, por entre o fragor dos trovões: “Inferno? Nunca me diverti tanto!”. 

Quando estou muito autoconfiante, vou para 01:45:30, a cena em que Abraham Lincoln reúne seu conselho em Brothers in Arms. O presidente tem uma longa fala, cheia de alívio pela vitória na guerra, e vira-se, perguntando: “Concorda, senador Robinson?”. Meu pai, de pincenez, chinó e gravata de laço, diz: “As vitórias são como o vento, Sr. Presidente. Deixam uma sensação agradável quando passam por nós e vão embora”.

Outras vezes faço um acesso aleatório, deixo a escolha ao acaso. 

Como agora mesmo, quando apertei “Play” e o vi a cena da tumba do faraó em The Sands of Time. Um dos mercenários ergue um archote, iluminando uma cripta selada e pergunta: “E então, Buckley? Devemos abrir esta também?”. Mal vemos o seu rosto nas sombras, mas a voz inconfundível responde: “Não vai dar tempo. O que recolhemos já é riqueza bastante. Vamos embora”.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2013) 





sábado, 30 de outubro de 2010

2387) Os autistas voluntários (30.10.2010)



Greg Egan, um dos grandes escritores da FC de hoje, colocou um capítulo sobre o autismo em seu romance Distress (1995). O tema do livro é outro, e o autismo só aparece no capítulo 6, numa entrevista feita pelo protagonista, um jornalista investigativo. Ele dá voz a um personagem, James Rourke, pertencente a um grupo chamado Associação dos Autistas Voluntários (a história se passa em 2055). Nesse futuro hipotético, foi descoberta uma área do cérebro chamada “área de Lamont”, e se postula que o autismo resulta de uma lesão produzida nessa área por uma variedade de razões. O mais interessante do caso, no entanto, é a existência da própria associação. Descobertas as causas do autismo, esses autistas não querem ser curados. Preferem permanecer do jeito que são.

Diz James Rourke que a mente humana desenvolveu ao longo de milênios de evolução uma capacidade para compor modelos das outras mentes. Somos capazes de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Somos capazes de nos identificar com esses sentimentos, desenvolvendo um senso de intimidade, ou de empatia. A evolução foi fortalecida pelos laços monogâmicos que os homens criaram com suas companheiras. Intimidade, empatia e amor são três aspectos básicos do nosso quadro de valores emocionais.

O que ocorre quando um indivíduo – um autista – é incapaz de produzir esses modelos de outras mentes? Segundo o personagem, esse talento não passa, na verdade, de um talento para a auto-ilusão. As pessoas na verdade não sabem o que as outras pensam ou sentem: elas apenas imaginam saber. E como é necessário, por razões evolutivas, que sejamos capazes de manter essa ilusão, que “dá liga” a nossa vida em grupo, somos condicionados a achar que somos capazes de empatia e de compreensão, mesmo quando encontramos provas e mais provas de que isso não ocorre. Mas precisamos dessa ilusão para que a espécie continue evoluindo.

Os Autistas Voluntários do livro não querem alimentar essa ilusão. Eles consideram que não sabem e nunca saberão, intuitivamente, o que se passa nas mentes alheias, e que só podem se relacionar com outras pessoas através de processos mais formais e explícitos, como a linguagem verbal. Para eles, continuar autista é uma recusa a deixar-se enganar. E Rourke faz uma provocação final, ao comparar os Autistas Voluntários com os transexuais. Diz ele que nossa sociedade acha que é justo uma pessoa mudar de sexo para que seu corpo corresponda à sua imagem mental de si mesma. Por que então proibir que pessoas acostumadas a interagir sem emoções, sem empatia, sem intimidade com as outras, mantenham essa condição? Será que mudar de sexo é normal, mas não ter empatia é uma anomalia que precisa ser curada? Um autista pode viver sem abraços, sem olho-no-olho, sem demonstrações de afetividade e ainda assim ser querido e respeitado pelas outras pessoas, e sentir-se em paz consigo mesmo. Por que motivo a sociedade quer lhe negar este direito?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

2386) Drummond: “Cantiga de viúvo” (29.10.2010)



É um dos poemas mais melancólicos de Alguma Poesia, o primeiro livro de Carlos Drummond, cujos 80 anos de publicação estamos comemorando. (Se o leitor ainda não percebeu, estabeleci o projeto de comentar aqui nesta coluna todos os poemas desse livro, até o final do ano.) É uma pequena história de amor tristonho, ou melhor, um curtíssimo episódio de uma história de amor. O poeta diz: “A noite caiu na minh’alma / fiquei triste sem querer. / Uma sombra veio vindo, / veio vindo, me abraçou. / Era a sombra de meu bem / que morreu há tanto tempo”. O poema começa com um metro menos comum (um octossílabo) e daí em diante sofre uma regressão à redondilha de 7 sílabas, bem confortável, bem folclore, com as irresistíveis aliterações e repetições das cantigas populares (“veio vindo, / veio vindo”).

O primeiro verso difere do restante, também, pela presença deste “minh’alma” tão Romântico ou Parnasiano, com apóstrofo e tudo. Porque daí em diante a linguagem relaxa, torna-se coloquial, modernista, com as heresias típicas do Modernismo, como iniciar a frase com pronome oblíquo: “Me abraçou com tanto amor / me apertou com tanto fogo / me beijou, me consolou”. É o ritmo oral, ritmo de romanceiro, que o poeta voltará a usar inúmeras vezes, e cujo ponto de síntese mais alto ele encontrou, talvez, no “Caso do Vestido”.

Uma primeira estrofe totalmente sombria (a cena não é necessariamente noturna, a noite é da alma; tudo isto pode ocorrer numa casa banhada de sol). Uma segunda mais terna, e até meio impudica (“me abraçou com tanto fogo”). E a terceira e última estrofe diz: “Depois riu devagarinho / me disse adeus com a cabeça / e saiu. Fechou a porta. / Ouvi seus passos na escada. / Depois mais nada... Acabou”. Em termos de linguagem, a linha mais modernista, para mim, é esse ótimo, tão desconcertante e tão coloquial “me disse adeus com a cabeça”.

Que sombra é essa que fecha portas, ao invés de passar através delas, e cujos passos se ouvem na escada? Mistério. Será uma mulher de carne e osso que veio visitar o viúvo, tão casmurro, coitado, para lhe fazer uns agrados? E que ele, até por fidelidade póstuma, identifica com a finada? Drummond tinha carinho pelos grandes solitários (“o sineiro, e a viúva e o microscopista”, em Sentimento do Mundo) e, tão jovem e recém-casado já se dava o luxo de imaginar as fantasias eróticas de um viúvo. A presença viva e atuante dos mortos é um tema constante em sua poesia, com exemplos mais evidentes em “Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte”, “Os rostos imóveis”, etc. Como num filme de Bergman os mortos passeiam por entre os vivos, sem serem percebidos. Vêm quando lhes dá na veneta, e somem sem explicações. Não são fantasmas, são fantasias ou devaneios diurnos, mas não são menos reais por isso. Fazem parte de nossos sonhos, parte de nós, que somos câmara escura para as imagens luminosas em que se tornaram.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

2385) Casal de artistas (28.10.2010)



(Sylvia Plath e Ted Hughes)

Uma vez alguém me falou, com toda seriedade: “Casal de artistas nunca dá certo. Todo artista tem personalidade instável. Para criar em paz, ele precisa da companhia de uma pessoa prática, com os pés no chão, que lhe dê segurança enquanto ele levanta voo, vai em busca das suas fantasias”. Como toda generalização, esta é uma ideia plausível, chega a parecer uma verdade evidente por si própria. Todos conhecemos exemplos que a comprovam. Por outro lado... Conheço inúmeros exemplos de casais de artistas (maluquíssimos, ambos) que vêm dando certo há muitos anos. E fico um pouco desconfiado com esse papo de que ser artista é alguém que precisa “ir em busca de fantasias”.

Lembrei dessa discussão por causa da recente descoberta de um poema de Ted Hughes, que chegou a ser Poeta Laureado do Reino Unido, uma coisa que os ingleses inventaram e que é a maior honraria literária entre eles. Hughes foi casado por anos com a poetisa norte-americana Sylvia Plath. É um dos romances-entre-famosos mais discutidos no mundo literário; infelizmente nunca li uma das muitas biografias de ambos e não sei os detalhes. Só sei que a certa altura, Sylvia, que era meio depressiva, não obstante ser ótima poetisa (ou “poeta” – tem um desses rótulos que as mulheres detestam, mas nunca decoro qual), enfim, Sylvia acabou se suicidando. E durante muito tempo Hughes foi acusado de ser o responsável pela morte dela. Não que ele lhe desejasse a morte, claro, mas (aí é que entra o tema deste artigo) diziam que teria sido melhor para ela ter casado com um sujeito mais sensaborão, mais careta, mas que lhe desse uma segurança emocional que ele, poeta também, sensível e instável também, parecia incapaz de lhe fornecer.

Essas discussões voltaram à tona agora, devido ao poema escrito por Hughes logo após receber a notícia do suicídio de Sylvia. Volta-se a repetir o chavão de que dois artistas juntos não podem dar certo. E no entanto conhecemos inúmeros casais de cineastas, atores, músicos, etc., que vivem bastante bem. Essas lendas têm origem naquela faixa do público para quem a Arte é uma atividade meio interplanetária, meio distante do mundo em que vivem. Pensam que um artista é alguém diferente dos simples mortais. Não é (mesmo que alguns artistas, por ingenuidade ou deslumbramento, tentem se comportar como se fossem). Os artistas têm os mesmos sentimentos, as mesmas inseguranças, os mesmos problemas de todo mundo – ressalvado o fato de que cada artista é diferente dos outros, como cada não-artista também o é. A única diferença do artista é ser capaz de produzir arte, assim como a do futebolista é saber jogar futebol. Fico pasmo quando um artista se suicida e alguém diz: “mas também, era um poeta, portanto tinha sensibilidade...”, como se um médico, uma advogada, um motorista, uma enfermeira, um administrador, uma engenheira, um radialista ou uma professora não pudessem também ter sensibilidade – na vida real.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

2384) Uma Ópera em 1787 (27.10.2010)




Um artigo de Richard Fairman no Financial Times (http://tinyurl.com/2c2are6) procura imaginar, baseado em documentos de época (cartas, memórias, etc.) como teria sido a première da ópera Don Giovanni de Mozart, que foi apresentada pela primeira vez no Teatro Nacional de Praga, em 29 de outubro daquele ano. 

Não sei se as avaliações dele são fundamentadas; em todo caso, dão o que pensar. Hoje uma ópera de alto nível é um evento exaustivamente ensaiado por semanas ou meses a fio por cantores, coro e orquestra. Em 1787, diz Fairman, 

“...Mozart ficou perplexo ao chegar em Praga e descobrir que o elenco ainda não estava pronto. Como era costume naquela época, ele havia deixado alguns números musicais para compor depois de chegar na cidade (a abertura, algumas árias e todo o final do segundo ato), talvez para adaptá-los aos recursos dos intérpretes. Mesmo adiando a estreia por duas vezes, parece que a abertura só ficou pronta na véspera do ensaio geral, e a tinta ainda estava úmida nas partituras na noite da estreia”.

Parece mais com o nosso showbiz MPB/Pop do que com o que entendemos por ópera, a menos que a gente lembre que a ópera era o MPB/pop daquele tempo. 

Hoje, o imenso repertório de óperas dos grandes teatros do mundo é em cima de partituras e libretos com séculos de idade. Um intérprete profissional que sobe ao palco para cantar Mozart ou Verdi já os vem cantando desde o Conservatório.

Havia uma certa descontração, por cima dessa pressa toda, talvez porque uma ópera nem sempre fosse (como um show de MPB de hoje nem sempre é) um espetáculo formal, tenso, onde nada pode dar errado. Em certos ambientes, o texto escrito (música e letra) era apenas um ponto de partida para improvisos dos intérpretes. 

Fairman cita Luigi Bassi, o jovem (22 anos) intérprete do papel título, comparando a estreia e uma performance posterior em Dresden: 

“A cena da ceia estava sem a espontaneidade, a liberdade que o Grande Mestre esperava. Em Praga, não cantamos esta cena da mesma maneira duas vezes seguidas. Sem ligar muito para o tempo, trocávamos piadas, piadas novas a cada noite, e ficávamos de olho na orquestra. Tudo era quase que falado, como se estivéssemos improvisando, de acordo com o desejo do próprio Mozart”.

E ele lembra que a audiência não ligava muito, porque apenas uma minoria das 800 pessoas que enchiam o Teatro de Praga iam lá para ouvir a música. O restante ia para “aparecer socialmente” ou para paquerar as cantoras. Não era raro que no intervalo entre dois atos de uma ópera um admirador conseguisse convencer uma cantora a sair com ele, e o resto da apresentação tinha que continuar sem ela. 

Já ouvi falar que Shakespeare começava suas peças com cenas impressionantes (um fantasma em Hamlet, bruxas em Macbeth) para fazer com que a plateia se calasse. Talvez ele e Mozart ficassem espantados com a gravidade quase religiosa com que são tratados hoje em dia, logo eles, tão populares, tão pop.






terça-feira, 26 de outubro de 2010

2383) A Presidência segundo P K Dick (26.10.2010)





O livro de estreia de Philip K. Dick foi Loteria Solar (1955), onde ele misturou a “pulp fiction” de ação & aventura da sua época e as ideias inesperadas que passaria a introduzir no gênero até sua morte em 1982. 

No ano de 2023, a escolha do Presidente (chamado de “Quizmaster”) é realizada através de um sorteio entre os ”power cards” dos cidadãos (uma mistura de cartão de crédito e CPF), de modo que qualquer um, em tese, pode ser levado à presidência de um momento para outro. 

A criação desse sistema visa a diluir as tradicionais formas de pressão política (partidos, etc.), e reflete um mundo (numa data futura que para Dick era muito mais distante do que para nós) influenciado pela Teoria dos Jogos:

“Minimax, o método para sobreviver ao grande jogo da vida, tinha sido inventado por dois matemáticos do século 20, von Neumann e Morgenstern. Tinha sido empregado na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da Coréia, e na Guerra Final. Estrategistas militares, e depois financistas, tinham experimentado com essa teoria. Em meados daquele século, von Neumann tinha sido nomeado para a Comissão de Energia Atômica dos EUA, como um reconhecimento da importância crescente de sua teoria. E em dois séculos e meio ela tinha se tornado a base do Governo”.

Essa sociedade começa sorteando bens de consumo para os cidadãos: 

“Mas, para cada homem que ganhava um carro, uma geladeira, uma TV, havia milhões que não ganhavam nada. Gradualmente, ao longo dos anos, os prêmios dos sorteios evoluíram de bens materiais para itens mais realistas: poder e prestígio. E, por fim, para o posto mais cobiçado: o de Quizmaster, o que distribuía o poder”.

A influência da Teoria dos Jogos de von Neumann é deixada explícita por Dick; o que não sei é se ele teria, em 1955, lido o conto de Borges “A Loteria de Babilônia”, que é exatamente isto, a história de uma sociedade que começa sorteando prêmios em dinheiro e evolui para o sorteio de “elementos não pecuniários”: benefícios e castigos. 

(O conto é de 1941, e não sei se em 1955 já teria sido traduzido para o inglês; sua primeira tradução inglesa em livro é de 1962.) 

A coexistência de prêmios e castigos também está presente no livro de Dick, pois o Quizmaster eleito está permanentemente sob a ameaça de robôs assassinos que fazem parte do jogo. Ou seja, ninguém obtém o Poder sem algum tipo de risco.

A ideia de que um governante pudesse ser escolhido por sorteio sugere um sistema de poder tão bem estruturado que é capaz de diluir qualquer idiossincrasia do eleito, e de compensar suas deficiências. O governante seria uma espécie de figura decorativa, “rainha da Inglaterra”, servindo acima de tudo para manter diante da população a ilusão de que “qualquer um pode chegar lá”. Uma Mega-Sena política em que todo cidadão em dia com o Estado está automaticamente inscrito. O Poder pouco influi na sociedade, vira mero objetivo de disputa entre o que o ocupa e os que querem abatê-lo.






domingo, 24 de outubro de 2010

2382) A arte de se defender (24.10.2010)



Nos anos 1990 fui um grande fã do time de basquete do Chicago Bulls. Vivia ligado na TV a cabo assistindo os jogos da NBA, na época em que Phil Jackson era o técnico e Michael Jordan era o craque do time, ladeado por Scottie Pippen e outros. Era um timaço capaz de deslumbrar até um leigo como eu, que não percebo as sutilezas do jogo. A questão é que Jordan fazia coisas que contrariavam as leis da gravidade e do movimento, coisas que fariam até um marciano coçar a cabeça, incrédulo, e rasgar seu livro-texto de Física. O Bulls era um time com a volúpia de atacar – e uma incapacidade genética de se defender. Ganhava jogos por 110x100, ou por 130x120, o que equivale a ganhar no futebol por 4x3 ou 5x4. E houve uma época em que, escaldada por derrotas surpreendentes e dolorosas, a torcida do Bulls (cuja euforia e orgulho vejo hoje reproduzidos na torcida do Barcelona), quando via o time perder a bola, começava um coro ensurdecedor: “Defence! Defence!”. Já imaginaram o Nou Camp inteiro gritando: “Defesa! Defesa!”?

Temos a tendência de considerar que no esporte o belo é atacar, e que é feio defender-se. Por que? Talvez porque o torcedor não-apaixonado está mais interessado em ver um grande jogo, e não na vitória de A ou B. Para ver um grande jogo, é preciso que os dois times ataquem muito. E afinal de contas a palavra “goal” significa “objetivo” em inglês. O jogo existe para que gols aconteçam. Evitar os gols do adversário deve ser encarado sempre como uma segunda prioridade, não como a principal.

E, de um modo geral, para atacar é preciso um mínimo de talento e de tática, e para defender-se, aparentemente, não. Conduzir a bola até a área e acertar o gol requer habilidade individual e coletiva, inclusive para evitar que os defensores interrompam a jogada. Quanto a estes, basta-lhes interromper a jogada e sua função já foi cumprida. Devem existir umas 100 maneiras de fazer um gol, e umas 100 mil de evitá-lo. Prensar a bola, dar um bico pro lado, empurrar para a lateral, jogar para escanteio, chutar pro alto... Qualquer coisa que o zagueiro-zagueiro faça chama-se missão cumprida. Não precisa técnica nem muito talento. Aparentemente.

Há, contudo, quem faça da defesa uma arte. O futebol italiano é quase todo assim. Vi numa revista inglesa uma bela descrição de como as seleções italianas costumam se comportar numa Copa: “Atacadas, elas se retraem como uma mola de metal, e, ao retomar a bola, atiram-se para diante como o bote de uma serpente”. É mais ou menos como jogava o Inter de Milão do técnico José Mourinho, recente campeão europeu, eliminando inclusive o melhor time do mundo, o Barcelona. Em vez do chutão pra cima, uma ocupação sistemática do campo por um semicírculo de jogadores cercando a bola onde ela vá, prontos para tomá-la e desfechar o contra-ataque. Para muitos um futebol feio. Para os gurmês, um raro exemplo de defesa elevada à categoria de grande arte e de refinada estratégia.