quinta-feira, 9 de setembro de 2010

2342) “Os Cronolitos” (9.9.2010)




The Chronoliths (2001) é um romance de ficção científica do canadense Robert Charles Wilson, que tem uma premissa admirável. 

Numa certa madrugada de 2021, numa região rural da Tailândia, ouve-se uma explosão que parece a queda de um meteoro. Na manhã seguinte, polícia, exército e uma multidão de curiosos aflui para o local, e encontra ali, erguido magicamente da noite para o dia, um maciço obelisco com dezenas de metros de altura, no meio de uma tremenda devastação provocada pela onda de choque. 

Na base do monumento, feito de uma matéria desconhecida, lê-se uma inscrição, num misto de inglês e mandarim, celebrando a vitória de um tal de Kuin numa batalha que teve lugar em 2041 – vinte anos no futuro.

Este é apenas o primeiro dos cronolitos, que nos anos seguintes começam a aparecer por toda a Ásia e a se espalhar pelos continentes. Fica óbvio que num futuro próximo esse líder chinês adquiriu tamanho poder militar e científico que é capaz de enviar para o passado os monumentos celebrando suas conquistas. 

Hitler dizia que o III Reich se estenderia mil anos no futuro; Kuin vai mais além, estende seu império na direção do passado.

O romance de Wilson acompanha Scott Warden, um norte-americano cuja complicada vida pessoal vai sendo marcada (e seriamente avariada) pelo surgimento dos cronolitos e do culto fanático que surge em torno deles – porque (muita gente pensa) se um imperador é poderoso o bastante para fazer isso, é melhor aliar-se a ele desde o começo, e ajudá-lo a fundar seu império. 

Assim, dentro da costumeira lógica em “loop” das histórias de FC com paradoxos temporais, os monumentos à grandeza de Kuin ajudam a fazê-lo emergir do anonimato e, pouco a pouco, alastrar seu império pelos continentes até chegar, no final do livro, aos EUA. E ele se vale, principalmente, dos cultos e das milícias kuinistas formadas por gangs de jovens marginais, insatisfeitos e agressivos das grandes cidades, do tipo que se deixa fascinar por um líder violento.

The Chronoliths foi publicado em 2001, meses antes do ataque ao World Trade Center, criando um sutil paradoxo entre ficção e vida: o aparecimento de monumentos fantásticos e a destruição de monumentos reais. 

A aparente megalomania da imaginação de Wilson é bruscamente reduzida pela megalomania real dos atentados. O invisível e onipresente Kuin do romance acaba sendo refletido no onipresente e invisível Osama Bin Laden do mundo pós-2001; a ameaça chinesa se transforma em ameaça islâmica. 

Poucas vezes um romance de FC estabeleceu essa relação de simetria e sincronicidade com fatos do mundo real na época do seu lançamento. O livro de Wilson cresce ainda mais de importância quando vemos que ele não se centra nos cronolitos, mas na vida de Scott, seu casamento desfeito, sua filha problemática, sua relação com a mãe de um adolescente kuinista. 

As catástrofes coletivas vistas pela ótica das tragédias individuais que deixam no seu rastro.





quarta-feira, 8 de setembro de 2010

2341) O "Jornal do Brasil" (8.9.2010)



"E vejam meu azar: comprei um Jornal do Brasil, emprego tinha mais de mil... e eu não arranjei um só!" O drama não é meu, é do personagem cantado por Jackson do Pandeiro no clássico "Meu Enxoval", em que o "paraíba" desempregado, depois de não achar uma colocação, acaba dormindo em frente em Teatro Municipal, na Cinelândia, aconchegado pela imprensa carioca: "O meu travesseiro é um Diário da Noite, e o resto do corpo fica na Última Hora".

O humor de Almira & Gordurinha, autores da música, fala de uma época em que a imprensa impressa carioca tinha titãs da informação, da polêmica e da cultura. Diário da Noite e a Última Hora deixaram as bancas para repousar no silêncio das bibliotecas; agora foi a vez do Jornal do Brasil, que para muita gente continua sendo o símbolo de um jornal moderno e modernizador, na diagramação, no visual, no estilo, na abordagem, na prosa, no tratamento da cultura. Sem ele, teria sido muito diferente a história da música popular brasileira, do cinema brasileiro, da poesia, do teatro, dessa coisa toda enfim. Sem ele, aliás, não existiria sequer o Jornal Dobrabil de Glauco Mattoso.

Todo jornalista em atividade no Rio tem sua história com o JB; eu tenho a minha. Entrei lá em 1987 por obra e graça do escritor Sérgio Sant'Anna, que me indicou para substituí-lo numa página de comentários sobre TV, na Revista de Domingo, intitulada "Conversa ao Pé do Vídeo". Fiquei ali durante dois anos, fazendo duas colunas por mês (revezando-me com Ingo Ostrovsky). Meus editores eram Alfredo Ribeiro e Joaquim Ferreira dos Santos. Tempos pré-Internet, em que às vezes eu tinha de pegar um ônibus para levar as laudas datilografadas até o prédio do jornal. Meu último texto publicado ali foi uma entrevista que fiz com Ariano Suassuna, em 2007.

O JB encerrou sua edição de papel. Procurei um exemplar em vão, no derradeiro dia, mas tinha esgotado. Se o público viesse demonstrando tanto interesse assim, o jornal não teria acabado nunca. Mas, ao contrário do Diário da Noite e da Última Hora, o JB não morreu. Sublimou-se! Transcendeu-se! Virtualizou-se: deixou de gastar papel mas continua vivo, nos pixels luminosos e coloridos de uma edição on-line. E isto mostra as vantagens da Internet, amigos, que pode ajudar a extinguir os dinossauros de papel, mas também lhes proporciona um novo planeta, onde esses pesadíssimos e onerosos órgãos de imprensa veem-se metamorfoseados em criaturinhas mais ágeis, uma espécie de velociraptors céleres e dribladores. Morreu o JB? Não creio. Passou da página para a tela, o que não é muito diferente de passar da lauda datilografada para a página em off-set. Porque - e chegamos agora ao Q.E.D. desta conversa toda - jornalismo (como literatura) é texto. Os jornais dos brasis agora têm como sobreviver, sem precisar de papel e tinta, porque o texto, este sim, não morre nunca. O texto é uma alma imortal que a humanidade inventou para si própria.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

2340) Drummond: “Europa, França e Bahia” (7.9.2010)




(charge de J. Carlos em O Malho)

Minha primeira lembrança desta expressão foi no famoso poema de Ascenso Ferreira, “Oropa, França e Bahia”, do livro Xenhenhém (1951). 

Só depois de algum tempo percebi que ela já estava neste poema de Drummond em Alguma Poesia (1930), e bastou-me esfregar a lâmpada do Google para o Gênio emergir, de braços cruzados, e me informar que a frase já surgia no Macunaíma de Mário de Andrade, que é de 1927. Não pedi ao Gênio que buscasse mais longe; meu assunto se detém aqui.

O Modernismo brasileiro foi mais um de tantos movimentos (do Romantismo ao Tropicalismo, do Regionalismo ao Armorial) que tentou definir a brasilidade num país onde todos se sentiam estrangeiros e, ao mesmo tempo, diferentes de todos os estrangeiros que conheciam. 

Este drama de conceituar o que é ser brasileiro, claro, só ocorre às nossas elites, aos brasileiros que leem livros e discutem abstrações. O povo, mesmo, fala a sua Língua Geral, trabalha, brinca seu samba ou seu fandango, brasiliza 24 horas por dia, pratica o Brasil sem conhecê-lo de fora.

O poema de Drummond é uma contemplação irônica da Europa com que nossos “mazombos” sonham, felizes na sua ilusão de exílio, no seu consolo de serem elite no único lugar do mundo onde seriam elite: este continente exótico de gente escura e sem modos. 

Drummond faz caricaturas da França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Suíça, Rússia... Seus versos são um equivalente verbal às charges políticas de Ângelo Agostini, J. Carlos ou Raul Pederneiras, aos cartuns políticos de revistas como O Malho, Careta e Fon-Fon

A Europa ilustre aparece aqui distorcida e cômica, vista pelo olho desafiador do “humour” (Drummond já usou a palavra assim, indicando sua conotação britânica, distanciada, cheia de “understatement”). Uma coleção de clichês sarcásticos em que a velha Europa aparece despida da grandiosidade colonial, reduzida à condição de Império em crise.

Drummond é quase profético, neste poema pós-I Guerra Mundial, ao descrever a Alemanha como um lugar onde “homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros / dentro de alguns anos”, cabendo apenas a ressalva de que a II Guerra foi, claramente, uma continuação da primeira, após uma pausa para rearmamento. 

E demonstra uma simpatia de cineclubista-de-esquerda pelos “sujeitos com um brilho esquisito nos olhos (que) criam o filme bolchevista”, o que me lembra um soneto de Vinicius de Morais em homenagem a Eisenstein, talvez o único soneto da poesia brasileira cuja chave-de-ouro é em russo.

É um dos primeiros poemas em que Drummond define uma brasilidade às avessas: não descrevendo o Brasil, mas descrevendo o mundo lá fora e através disto criando, implicitamente, um olhar brasileiro, um modo brasileiro (irônico, deslizante) de encarar a Europa que nos criou e nunca deixou de nos fascinar. 

“Olhos brasileiros sonhando exotismos”: os exóticos são eles, o centro do mundo somos nós, mesmos que não saibamos quem somos.







domingo, 5 de setembro de 2010

2339) O Ulisses indiano (5.9.2010)




Entre os “sósias literários” do Ulisses de Joyce, o escritor Joshua Cohen aponta, no continente indiano, o romance All About H. Hatterr (1948), escrito por G. V. Desani, que ele descreve assim: 

“Nascido do Quênia, criado no que é hoje o Paquistão, e tendo morado no Reino Unido durante a II Guerra Mundial, Desani estabeleceu-se por fim na Índia e ali criou um dos romances mais originais retratando o declínio do Império britânico. Seu livro é uma reconstrução artificial e amalucada dos modos de falar o inglês na Ásia, e acompanha o personagem título – meio malaio, meio inglês, cheio de exclamações – enquanto este consulta sete sábios em sete cidades, tentando descobrir não apenas o significado da vida, como o dessa história que está sendo contada”. 

O livro apareceu em 1948 e recebeu elogios de muitos críticos, entre eles T. S. Eliot. Depois de cair na obscuridade foi recuperado nos anos 1970 com uma reedição prefaciada por Anthony Burgess. Seguiu-se outra década de esquecimento, até que Salman Rushdie, ao receber em 1981 o Booker Prize por Midnight Children declarou que seu romance era influenciado pela obra de Desani. 

Como se vê, não é uma obra das mais fáceis, e suas eventuais ressurreições são provocadas pelos elogios de autores cujos experimentos linguísticos e narrativos deixam bem claro qual o tipo de romance eles apreciam. 

Segundo uma resenha anônima no saite DooYou, Desani nasceu em 1909 no Quênia, de família indiana. Depois da I Guerra Mundial, viveu por algum tempo em Burma e na Índia, onde estudou sânscrito, filosofia, budismo e ocultismo. Depois de viver na Inglaterra, emigrou pra os EUA em 1970 para ensinar da Universidade de Boston, e depois na Universidade do Texas, em Austin, onde faleceu em 2000. Sua única outra obra publicada é Hali & Collected Stories

O resenhador comenta que o livro de Desani pode agradar aos leitores que gostam de Laurence Sterne, James Joyce, Anthony Burgess ou Salman Rushdie, e que um longo trecho dele foi incluído na antologia de literatura indiana Mirrorwork, organizada por Rushdie e Elizabeth West. 

Na sua introdução ao romance, Burgess diz que os “metecos” (“meteques”) são aqueles escritores com um background linguístico, racial ou político não-inglês. Vivendo na periferia de uma língua e de uma cultura que os ignora, eles usam a língua inglesa com sem-cerimônia e um certo desrespeito, produzindo efeitos que jamais teriam ocorrido a um nativo do idioma. 

Podemos pensar em Nabokov como um exemplo erudito e sofisticado desse grupo de autores para quem o inglês é um parque-de-diversões, e não uma tradição clássica a ser respeitada. Assim como Oswald de Andrade sonhava para a língua brasileira “a contribuição milionária de todos os erros”, Desani parece conseguir, com seu inglês asiático multicultural, uma língua “gloriosamente impura, como a de Shakespeare, Joyce e Kipling”, segundo Burgess.






sábado, 4 de setembro de 2010

2338) A cena do chuveiro (4.9.2010)




A famosa cena do assassinato de Janet Leigh no chuveiro, em Psicose (1960) de Hitchcock já foi mais analisada do que o sorriso da Mona Lisa ou o monólogo de Molly Bloom. 

No cinquentenário do filme, todo jornalista quer desencavar novos detalhes. Como sabem os cinéfilos, a cena do chuveiro foi dirigida por Hitchcock com base num story-board (sequência de desenhos plano-por-plano) concebido pelo artista gráfico Saul Bass, também autor dos letreiros de apresentação do filme. 

Foram (segundo o diretor) sete dias de trabalho e 70 posições de câmara para captar 45 segundos de filme.

Um artigo de Steve North na Salon traz uma informação que eu não tinha. 

Quando o vulto da “mãe” de Norman Bates entra no banheiro, de faca em punho, para assassinar Marion (a personagem de Janet Leigh), não é o ator Anthony Perkins quem está ali (Perkins faz o papel de Norman, inclusive nos momentos em que se veste como a mãe para cometer os crimes – acho que a esta altura não estou estragando a surpresa da história). Numa entrevista a North, concedida anos atrás, Perkins declarou: 

“Hitchcock estava receoso de revelar a natureza e o papel duplo de Norman, caso eu fosse visto na cena, talvez devido a minha silhueta característica, muito delgado e de ombros largos. (...) O dublê que ele usou era um sujeito de silhueta muito diferente da minha”. 

O diretor quis despistar o público, evitar que ele sequer imaginasse que aquele vulto era o de Perkins.

Fui conferir a informação no livro de Stephen Rebello Alfred Hitchcock and the Making of ‘Psycho’ (St. Martin’s, 1998), e de fato, no capítulo 7, em que se narra a filmagem, surgem mais detalhes sobre isto. 

Perkins estava ensaiando uma peça (Greenwillow) em Nova York, e Hitchcock o liberou durante essa semana. Em seu lugar, quem empunhou a faca, usando as vestes da Mãe, não foi um homem, mas uma mulher, uma dublê de 24 anos chamada Margo Epper. 

Ela é vista através da cortina de plástico, abrindo a porta do banheiro, aproximando-se, afastando a cortina (em contraluz), desferindo punhaladas, lutando com Marion, e finalmente indo embora, de costas. (Revi a cena agora; tenho o DVD, mas achei mais simples acessar o YouTube. Estarei ficando jovem?)

Margo Epper teve o rosto pintado de preto para reduzir o excesso de luz refletida pelos azulejos do banheiro. Diz a dublê que no seu dia de filmagem “não havia ninguém no chuveiro”, mas o fato é que ela e Marion aparecem juntas em pelo menos dois planos (há outros em que aparece um braço, que pode ser de qualquer pessoa). 

Janet Leigh teve uma “dublê de corpo” para os planos de nudez, uma “stripper” profissional chamada Marli Renfro. Outros dublês foram usados para outras cenas da Mãe, mas “quando ela aparece com a faca, sou eu”, diz Margo Epper. 

O Internet Movie DataBase, entretanto, informa que em alguns planos da cena a Mãe foi interpretada por uma atriz chamada Anne Dore.... e a investigação continua.







sexta-feira, 3 de setembro de 2010

2337) O mundo em que vivemos (3.9.2010)



Ariano Suassuna conta que, quando era menino em Taperoá, não perdia um circo que passasse pela cidade; entre outras coisas, porque tinha peça de teatro. A maioria das peças eram bem amadorísticas.
E ele lembra de uma que se passava nos tempos dos cavaleiros de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. A certa altura da batalha, um nobre de armadura erguia a espada e dizia algo como; “Temos que morrer com honra! Nós, cavaleiros medievais...” E Ariano pergunta, embasbacado: “Oi, e o cara sabia que era medieval? Ele sabia que aquele tempo dele era a Idade Média?”

Corta para Jorge Luís Borges, dialogando com um entrevistador sobre um romance qualquer, no qual se questiona: aquilo podia acontecer, de verdade? É uma história fantástica? É uma história realista? Borges dá um suspiro septuagenário e encerra a discussão: “A verdade é que ainda não sabemos se o Universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico”.

Estes dois pequenos episódios mostram a nossa mania de superpor palavras ao mundo de verdade e ficar achando que o mundo obedece a essas palavras.

“Idade Média” é um nome que inventamos para uma época. Mesmo sendo mais específicos – digamos: “o ano 1327” – ainda assim isto não quer dizer nada, até porque no calendário judeu ou chinês o ano era outro. Numeramos os anos e intitulamos as épocas para comodidade nossa, porque sabemos que certos fatos ocorreram (a morte de Cristo, a batalha de Waterloo, o descobrimento do Brasil) e precisamos definir um “quando”. Mas juridicamente falando Cristo não morreu no ano 33 d.C. ou coisa parecida, porque essa nomenclatura é nossa, não era usada na sua época. É uma data inventada, artificial, atribuía “a posteriori”.

O mesmo quanto ao conceito de “Idade Média”. Talvez no futuro “Idade Média” seja a nossa.

Me lembra a história de Kurt Vonnegut Jr., do sujeito que chega ao futuro remotíssimo, consulta uma enciclopédia e lê algo como: “Depois da morte do profeta Jesus Cristo, seguiu-se um período intermediário de um milhão de anos em que nada importante aconteceu”. As abstrações que usamos só funcionam dentro da nossa mente. Não têm existência física.

Qualquer conceito generalizado tem as mesmas limitações. “Os brasileiros são alegres e gostam de música.” Isto é verdadeiro ou falso? Pode até refletir uma tendência estatística, ou um traço cultural que alguém pode confirmar viajando pelo país. Mas mesmo os brasileiros alegres não são alegres o dia inteiro, e não gostam de ouvir música o dia inteiro, ou não gostam de qualquer música (nem todo brasileiro que gosta de música gosta de Debussy, ou de Daniela Mercury, ou do Pato Fu, etc.). 

Infelizmente, temos que generalizar o tempo inteiro, e toda generalização desbasta as características individuais dos incluídos. Toda generalização é empobrecedora (inclusive esta). Nós as usamos como quem usa um pote imaginário para guardar água verdadeira.




quinta-feira, 2 de setembro de 2010

2336) Steampunk Blues (2.9.2010)



Um Belfegor fumegante bafeja calor de fornalha sobre as ruas iluminadas a lampião, com bruxuleios de fogo químico fazendo sombras dançarem nos tapumes que protegem as entranhas geológicas da metrópole, abertas pelas escavadeiras e pás dos homens empoeirados fincando trilhos para o avanço do leviatã de ferro. A névoa gelada desce do céu e envolve as gárgulas como um oceano invertido, empurrando a cidade para baixo, infiltrando-se pela gola dos sobretudos, misturando-se ao vapor quente, numa dança espiralada de neblinas que se condensam nas vidraças, gotas oleosas que escorrem deixando estalactites de luz iridescente. E nas manilhas subterrâneas de cobre rebitado circula o gás como um sangue denso e sem cor.

Civilização da compressão ótica do espaço, do telescópio que vislumbra civilizações Rorschach nos platôs marcianos, da luneta que fiscaliza o bombardeio de “dreadnoughts” e de encouraçados, do microscópio que magnifica a guerrilha fervilhante das epidemias urbanas. Civilização do automatismo mecânico delirando nas imbricações barrocas da roda dentada com os pistões, do pêndulo com o diafragma, da turbina com a mola comprimida, da perfuradora de cartões com o código Morse. Civilização da moralidade bipolar e esquizóide, em que a histeria puritana ao norte se equilibra pela depravação boêmia ao sul, em que a tecnocracia colonialista produz no leste o excedente econômico a ser consumido pelas teorizações socialistas a oeste.

E passam charretes matraqueando cascos no pavimento diante dos salões de “music hall” em que operetas de temática chinesa se alternam com sessões mediúnicas, “strippers” do Hindustão e reconstituições de crimes famosos na lanterna mágica. E os casais burgueses levam as crianças às alamedas dos parques onde suas retinas guardarão para sempre a visão das esfinges de porcelana, dos dirigíveis de bojo prateado parecendo mais leves que borboletas, das estufas de cristal guardando orquídeas, macacos empalhados, dragões de jade, tartarugas que viram o Dilúvio, pavões e araras de cores lancinantes, plantas carnívoras, pigmeus na jaula batendo num pequeno tambor e mostrando dentes em forma de flecha.

Mais de mil anos foram precisos para erigir essa babel-babilônia que cartografa o mundo, que produz e exporta traçados astronômicos transformando o planeta numa esfera cartesiana de coordenadas e abscissas tridimensionais. Cumprido o milênio, nada mais previsível do que de dentro do Jardim emergir a Besta, não um Baphomet de cem metros de altura, mas uma besta multitudinosa e onipresente: os jovens punk de rosto pardo, com dentes escuros e cicatrizes esbranquiçadas, tatuagens de logotipos futuros loteando seu corpo, cabelos moicanos cor de radioatividade, piercings falantes que dialogam entre si, sujos, escoriados, armados de tecnologias digitais e navalhas vitorianas, de mentes velozes como a de um lagarto, filhos bastardos e inevitáveis de um coito no altar sacrílego de Hefestos e Moloch-Baal.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

2335) As mulheres andróides (1.9.2010)



(Orcinus Eva, de Jean-Luc Marcastel)

Quando Villiers de l’Isle-Adam escreveu seu romance de proto-ficção-científica, A Eva Futura (1886), talvez o seu principal intuito fosse fazer um cruzamento bárbaro entre a tecnologia do século 19 (usando como protagonista Thomas Alva Edison, então ainda vivo e em plena atividade) e a cultura clássica, simbolizada pelas estátuas famosas de Vênus, do ideal greco-romano-europeu de beleza feminina. Sintomaticamente, um romancista que tem “Adão” no nome cria um romance sobre uma “Eva” produzida artificialmente, à sombra da Árvore da Ciência. O livro de Villiers tem sido repetidamente reeditado e discutido pelo mundo acadêmico, que aliás não poupa críticas ao seu machismo, ou seja, à sua visão implícita de que a mulher ideal é aquela que tem um corpo perfeito e uma mente formatada (em linguajar contemporâneo, “uma cabeça feita”) pelo marido.

É mais ou menos esta a situação proposta pelo filme As esposas de Stepford (Brian Forbes, 1975), em que uma comunidade de yuppies norte-americanos decide matar suas esposas e substituí-las por andróides feitos à sua imagem e semelhança, mas totalmente submissas, voltadas para as tarefas domésticas e para, hmmm, os folguedos da alcova. Para os maridos envolvidos, aquela comunidade (é um desses vilarejos suburbanos de gente rica, uma espécie de condomínio fechado) é uma utopia onde tudo acontece de acordo com a sua fórmula de “o melhor dos mundos”. Do ponto de vista da protagonista, vivida por Katharine Ross, é um pesadelo distópico: ela é jovem, independente, e ao lado de uma amiga fica tentando convencer aquelas donas-de-casa floridas e sorridentes a reivindicar seus direitos. Só que as outras não querem! Querem manter a cozinha brilhando como um espelho, servir drinques para os amigos do esposo, e ser para eles uma versão mais sofisticada de boneca inflável.

O filme de Bryan Forbes é um ótimo retrato de sua época, década de 1970 quando o movimento feminista estava se alastrando nos EUA como incêndio no cerrado. Era a época do Relatório Hite (1976) de Shere Hite, My Secret Garden (1973) de Nancy Friday e outros livros que tratavam a sexualidade feminina de maneira aberta e independente – uma sexualidade politizada e contestadora, o contrário da exploração feita por revistas como Playboy, Hustler etc. A FC entra neste filme como um elemento provocador, dando tintura de pesadelo ao machismo, como se dissesse às mulheres: “É isto que eles fizeram de vocês: autômatos com genitália, empregadas domésticas maquiladas e bem vestidas”.

A presença da atriz Katharine Ross entre essas “Evas futuras” faz uma interessante conexão com o filme anterior da atriz, A primeira noite de um homem, em que ela larga um noivo no pé do altar e foge com Dustin Hoffman, recusando-se ao papel da esposa modelo de um yuppie republicano. A guinada conservadora dos EUA nas últimas décadas deixa todos estes filmes talvez mais atuais do que no tempo em que foram feitos.

2334) “Cortina Rasgada” (31.8.2010)



Alfred Hitchcock foi um dos diretores mais planejadores e meticulosos entre os grandes do cinema, porque há milhares de outros, igualmente planejadores e meticulosos, cuja obra passou em branco, porque de qualidades só tinham essas. Sua obra é valiosa para estudar a distância entre roteiro e filme, e ele próprio afirmou mil vezes que depois que escrevia o roteiro e mandava desenhar o “storyboard” o resto era mera execução. Em seus filmes tardios, como Cortina Rasgada, começa a ficar maior a distância entre planejamento e execução, entre idéia e resultado. As idéias continuam ótimas; a execução às vezes fica meio tosca, talvez pela idade avançada do diretor, ou problemas de produção que ele não tinha mais energia ou disposição para solucionar satisfatoriamente. A cena está meio capenga, mas é o tipo da cena que no roteiro está perfeita, como idéia e como intenção.

Todo filme de Hitchcock tem 7 ou 8 cenas cuidadosamente planejadas e dirigidas, as tais cenas que causam impacto e ficam na mente do espectador. O resto é matéria intermediária, cenas de diálogos, deslocamentos, explicações, a encheção de lingüiça dramatúrgica que conduz o público entre a grande cena anterior e a próxima. Hitchcock não é aquele tipo de diretor para quem toda cena é essencial. Seus filmes têm a silhueta de uma cordileira: picos elevados entremeados de vales rasteiríssimos. Quase todos são assim.

Revi hoje Cortina rasgada (1966), um filme problemático na época, porque abordou tema político do tempo da Guerra Fria (cientista dos EUA finge se passar para o lado comunista para roubar segredos de cientista da Alemanha Oriental). As “grandes cenas” que eu lembrava (e que todo crítico certamente lembra) são a da perseguição no Museu deserto, com os sapatos de Armstrong (Paul Newman) e do policial ecoando no piso; o longo e acidentado assassinato do policial na fazenda (Hitchcock: “Eu queria mostrar como dá trabalho matar uma pessoa”); a reconciliação entre Armstrong e Sarah (Julie Andrews), vista à distância, numa colina, sem diálogo; Armstrong induzindo o alemão a escrever no quadro-negro a equação que lhe faltava; a fuga no ônibus falso; o casal fugindo da polícia no teatro, com um falso alarme de fogo; a fuga final dos dois, em cestos de roupa. São praticamente estas as cenas hitchcockianas do filme. As demais, até Jean Negulesco dirigiria.

Hitchcock queixou-se de pouca sintonia com o casal de protagonistas, e isso passa em todas as cenas românticas: a da colina é um bom exemplo de boa idéia (mostrar as emoções à distância, sem que se ouça o que o casal está dizendo) estragada por direção sofrível. A cena do quadro-negro é uma ótima variante do McGuffin hitchcockiano. Toda a história do filme repousa nessa fórmula matemática que Armstrong precisa trazer para seu país. Para o espectador, aquilo é grego. Mas ele tem que acreditar no valor dela, pela força dramatúrgica investida naquele conjunto de símbolos indecifráveis.

domingo, 29 de agosto de 2010

2333) A estética do Ah Se Eu Soubesse (29.8.2010)



Entre as frases clássicas do folhetim, do melodrama e da telenovela, um lugar de honra deve ser reservado para esta. 

Tornou-se tão famosa (e tão próxima da nossa vida real!) que os atores e atrizes mais calejados a dispensam. Diante da evidência estarrecedora da catástrofe, ou da revelação brutal de uma tragédia irreversível, de tudo aquilo que por um fio de cabelo não foram capazes de evitar, um ator como Anthony Hopkins ou uma atriz como Fernanda Montenegro deixam implícita a frase famosa. Afastam os olhos, olham para longe através da janela e suspiram. Está dito tudo. 

O “Ah, se eu soubesse!” é a lamentação póstuma de quem em certo momento teve o poder de guiar os acontecimentos numa direção melhor mas não o fez, ou por desconhecimento mesmo, ou por erro de avaliação, ou por ter dado prioridade a outras linhas de ação. 

Depois que a tragédia se desencadeia, não há mais como voltar atrás. Pode-se simplesmente imaginar como teriam sido as coisas, “se eu soubesse que ia resultar naquilo”. 

O romance policial de influência gótica celebrizou o clichê da heroína que assume riscos desnecessários, riscos que nenhuma pessoa sensata assumiria. O cinema reciclou um milhão de vezes essa personagem. É a fórmula que, segundo o crítico Bill Pronzini, foi batizada pela editora Lee Wright como “A Heroína Idiota no Sótão”. É aquela personagem que, ameaçada por um maníaco homicida, tranca-se em casa à noite, mas, ao ouvir um barulho suspeito no sótão, acende uma vela e sobe até lá para ver do que se trata. Por que? Porque se não o fizer não tem história, e fazendo assim angaria a identificação das pessoas (sempre são muitas) que fariam a mesma besteira. 

Ogden Nash é talvez o mais divertido poeta satírico norte-americano, especialista em poemas rimados AABBCCDD..., com linhas longuíssimas em verso livre que bem ou mal acabam desembocando na rima proposta. 

Ele publicou em 1940 um poema intitulado Don’t Guess, Let me Tell You (“Não adivinhe, deixe que eu lhe diga”) em que batizou esse subgênero policial como “The H.I.B.K. School”, a escola do “Had I But Known”, onde ele diz: 

Às vezes é Ah, Se Eu Soubesse que terrível segredo estava oculto por trás daquela fachada sorridente, eu jamais teria cruzado aquele portão; 
outras vezes é Ah, Se Eu Soubesse então o que eu sei agora, eu poderia ter salvo pelo menos três vidas contando ao Inspetor a conversa que ouvi através daquele buraco feito casualmente no chão. 

Como se vê, é um ingrediente para ser usado com moderação, como aquelas especiarias que em pequena quantidade acrescem sabor, mas quando postas com mão pesada dão a quem experimenta o prato a desconfiança de que aquilo está ali para disfarçar alguma coisa estragada. 

Porque um personagem que exclama “Ah, se eu soubesse!...” geralmente sabia o que lamenta ignorar. E talvez soubesse também que revelando aquilo iria encurtar o romance em 200 páginas e a telenovela em 80 capítulos.