quinta-feira, 26 de agosto de 2010

2329) Drummond: “Construção” (25.8.2010)


(Drummond, por Beatrix Sherman) 

Estou comentando nesta coluna os poemas de Carlos Drummond de Andrade em seu livro de estréia Alguma Poesia, que está comemorando 80 anos de lançamento. Embora a obra de CDA seja variadíssima e cheia de fases, é possível dizer, sem cometer absurdo, que todos os traços principais desta obra já estão presentes em seu primeiro livro. (Não se pode dizer o mesmo, por exemplo, dos livros de estréia de João Cabral ou de Jorge de Lima.) 

Dos poemas iniciais pegarei hoje dois que se aproximam pela temática. Não sei se a construção civil era um tema habitual na época, mesmo entre os Modernistas. Haverá alguma coisa assim em Mário, em Oswald? Talvez haja em Bandeira, que já era moderno e urbano antes de todos os demais. Em todo caso, há dois poeminhas aqui que são quase que um só. “A rua diferente” diz: “Na minha rua estão cortando árvores / botando trilhos / construindo casas. // Minha rua acordou mudada. / Os vizinhos não se conformam. /Eles não sabem que a vida / tem dessas exigências brutas. // Só minha filha goza o espetáculo / e se diverte com os andaimes, / a luz da solda autógena / e o cimento escorrendo nas fôrmas”. 

 A filha é Maria Julieta, nascida em 1928. A cidade não é Itabira, é Belo Horizonte, que na época do livro de Drummond tinha metade da população que Campina Grande tem hoje. Drummond registra a entrada dolorosa da cidade na puberdade urbana, num poema em que o “eu” só aparece indiretamente (“minha rua”, “minha filha”). O poeta não toma partido, fala da melancolia dos vizinhos e da alegria da garota. O bota-abaixo da cidade é como o bota-abaixo da poesia modernista. Os apegados à paisagem velha ficam assustados; os jovens se divertem. Drummond, neste poema, rigorosamente não toma partido, apenas constata. (E quem constata uma mudança sem tomar partido é porque é a favor.) 

O outro poema, “Construção”, prefigura a canção homônima de Chico Buarque, ao falar que “um grito pula no ar como um foguete”. Não diz se é a queda de um operário, embora ela seja sugerida pelo verbo em outro verso mais adiante: “o sol cai sobre as coisas em placa fervendo”. A palavra “andaimes” liga este poema ao anterior, pendura os dois no mesmo varal temático. 

“Construção” emprega imagens sonoras (valha o oxímoro) ao dizer que “o sorveteiro corta a rua”, porque isto me sugere mais o som (não sei se o grito, a buzina, sineta, ou que diabo um sorveteiro usava naquele tempo) do que a imagem do sorveteiro passando. E também imagens térmicas (é verão, indicado pela placa fervendo e pelo sorvete). 

A frase final (“E o vento brinca nos bigodes do construtor”) é uma sinédoque (a parte pelo todo) ou um plano de detalhe cinematográfico: o tranquilo sorriso de triunfo do capitalismo em expansão, indiferente à temperatura ou aos acidentes de trabalho. É talvez parente do “homem atrás dos óculos e do bigode” do “Poema de Sete Faces”. É um sujeito sólido, frio, de poucos amigos. É o Mundo Moderno.




terça-feira, 24 de agosto de 2010

2328) O “Ulisses” húngaro (24.8.2010)


(outro livro, com o autor na capa) 

Cada país tem sua obra literária equivalente, em certos aspectos, ao Ulisses de James Joyce. Em geral são romances enormes, das primeiras décadas do século, quando um certo tipo de Modernismo literário atingiu o seu auge. 

Esse Modernismo misturava grandeza épica, investigação psicológica heterodoxa (o freudianismo era heterodoxo, naquele tempo), experiências radicais de linguagem e narrativa, imersão na cultura da metrópole e registro de seu ritmo descontínuo, da superposição e entrelaçamento de realidades sociais e linguísticas. 

Em cada país emergiu à superfície pelo menos um “iceberg” literário com esse perfil. Para o autor Joshua Cohen, que fez um levantamento dos “Ulisses” de várias culturas, o Ulisses húngaro é o romance Prae (1934) de Miklós Szentkuthy (1908-1988), que ele descreve assim: 

“Szentkuthy, cujo próprio romance nunca foi traduzido para o inglês, tem um ponto de contato único com o romance de Joyce: ele o traduziu para o húngaro. Seu romance Prae – o título é uma preposição latina, que significa ‘antes’ – apresenta personagens que se tornam cifras à medida que mudam de idade e de sexo (reflexos do Orlando de Virginia Woolf). Um ousado romance intelectual, preocupado com fenomenologia e outras tentativas de pensamento objetivo típicas da virada do século, ele se conecta ao livro de Joyce não apenas através do enredo, mas do seu argumento e suas metáforas”. 

Não parece existir muita coisa na Internet sobre Pré (seria este o título em português). Um blog espanhol traz um material razoável sobre o autor, inclusive uma curiosa foto sua em companhia da noiva (http://szentkuthy.blogspot.com/). O autor do blog, Jorgewic, comenta assim o romance: 

“Entre 1928 e 1931, começa a tomar forma na mente de Miklós o diário/romance Prae, um originalíssimo exercício de paródia filosófica visando os existencialistas alemães, tão em voga naquela época (Heidegger, Jaspers, Husserl). Nem mais nem menos que isto. Sem dúvida deve ter sido algo desconcertante naquela época: citações de livros inexistentes, matemáticas repletas de abstrações impossíveis, refutações fantásticas e comentários de uma categoria doutrinal surpreendente (e totalmente inventadas, na maioria dos casos), um grande aparato memorialístico e biográfico a serviço da estética mais impressionista (e muito joyceana, valha a expressão), um tumulto generalizado de idéias, psicologia, aforismos e expressões de corte ‘proustiano’ que em nada ficavam a dever ao autor da Recherche. Tudo isto era Szentkuthy, com apenas 20/25 anos, fazendo seu nome, um sujeito que se atrevia a edificar uma tamanha catedral literário-metafísica sem se encomendar nem a Deus nem ao Diabo, misturando Picasso, Planck, a Bauhaus, Huxley, Giraudoux, Einstein e outros. Seu estilo está por depurar (ele sabe que é uma questão de tempo), mas a brutalidade lógica de sua forma de pensar e sentir já se impõem, e não o intimidam”.




segunda-feira, 23 de agosto de 2010

2327) Um email nigeriano (22.8.2010)



“Caro senhor: estou incorporando contato para propor oportunidade excelente que você certamente não recuse. Ela é transação comercial sem riscos de sua parte, e a possibilidade de um lucro financeiro substancial. Eu sou o advogado e o executor do testamento para o Sr. Youssef Kingston de Lagos (Nigéria), e eu fui intitulado a essa função por esse cavalheiro antes de seu falecimento no Hospital Central de Lagos. Sr. Kingston, um músico do bem-conhecido e poeta de nosso país, morrido da falha múltipla dos órgãos, deixando nenhuns viúva ou filhos, e nenhuns parentes conhecidos. Eu fui nomeado por ele para ser seu executor, em um original assinado três dias antes de sua morte prematura na idade 32. Nesse original, o Sr. Kingston autorizou-me dispor, em minha vontade, de todos seus dinheiros e propriedades, dado que não teve nenhum parente e era grato para a ajuda que eu o dei ao longo dos últimos anos de sua carreira artística.

“Pelas leis de meu país, eu não posso administrar bens e finanças do Sr. Kingston em Nigéria, mas minha posição em Banco auxilia que eu transfira recursos do Sr. Kingston a uma conta bancária em outra país. Eu escolhi Brasil devido a liberalidade conhecido com que os bancos brasileiros operam esta sorte de transferência de fundos, e também porque eu pretendo, no próximo futuro, se aposentar de meu próprio trabalho aqui em Nigéria e ir viver em Rio de Janeiro. Seu nome foi-me dado por um conhecido mútuo que preferisse permanecer anónimo.

“Conseqüentemente, eu preciso transferir responsabilidades financeiras deixadas por Sr. Kingston, além de endereço onde possa remeter seus recursos pessoais. Basicamente, estes consistem: 1) onze mil e duzentos cópias dos CDs gravados pelo Sr. Kingston com seu grupo “The Screaming Criminals”, CDs recusados por lojas sob as alegações da natureza estética e moral; 2) seis caixas de livros, panfletos, folhetos e magazines do coletivo artístico “Rape and Disorder”, grupo bem conhecido da imprensa e autoridades em nosso país; 3) onze latas seladas com fita crepe, com um peso total de dezoito quilogramas, nenhum conteúdo indicado. Em adição àquele, preciso o número de sua conta bancária pessoal, a fim fazer transferência de todos os títulos públicos, procurações e faturas deixados atrás por meu cliente, cujo balanço financeiro soma DOIS MILHÕES E DOIS CEM MIL DÓLARES AMERICANOS de pensões devidas a diversas ex-esposas, adiantamentos de companhias discográficas e editoras, além do ressarcimento de débitos acumulados a juros compostos junto a ex-locatários e ex-sócios. Eu sou certo que no ambiente financeiro brasileiro não será muito difícil para você extrair um bom lucro da herança do meu cliente. Eu agradeço-lhe para sua atenção, e olho para a frente para escutar de você. Sinceramente, Sr. Franklin Garrison, attorney-at-law.”

sábado, 21 de agosto de 2010

2326) “As esposas de Stepford” (21.8.2010)




Em O Bebê de Rosemary (1968) de Roman Polanski, um jovem casal que começa a ascender socialmente vai morar num grande apartamento no Central Park. Aos poucos, a mulher vê o marido se portando de maneira estranha, e descobre, para seu horror, que ele se juntou a um grupo de vizinhos satanistas que pretendem fazer com que ela engravide do Diabo e dê à luz o Anticristo. 

Em As esposas de Stepford (1975) de Bryan Forbes, um jovem casal que começa a ascender socialmente vai morar numa grande casa no subúrbio. Aos poucos, a mulher vê o marido se portando de maneira estranha e descobre, para seu horror, que ele se juntou a um grupo de vizinhos cientistas que pretende fazer com que ela seja substituída por um andróide programado para obedecer passivamente ao marido.

Estes dois filmes tão diferentes e tão parecidos são ambos baseados em romances de Ira Levin (publicados respectivamente em 1967 e 1972). 

Liguei a TV um dia destes e estava nos minutos iniciais de The Stepford Wives, que eu vira há uns 20 anos. Sentei no sofá e vi até o fim, mas como não vi os créditos iniciais não me lembrei (talvez nem soubesse) dessa participação de Ira Levin. Mas a certa altura pensei: “Danou-se, é igualzinho ao Bebê de Rosemary”. 

Isto mostra que é possível pegar a mesma história emocional (a mesma sinfonia macabra de alegria, depois ensombrecimento, depois angústia, terror e dilaceração final) e contá-la em duas histórias factuais muito diferentes, e até de gêneros diferentes. A mecânica é a mesma; o esqueleto dramatúrgico é o mesmo (claro, detalhes variam aqui e acolá); mudam apenas o cenário, os personagens e a natureza interna de alguns processos.

As esposas de Stepford (que foi grotescamente refilmado, com Nicole Kidman e Matthew Broderick) é um filme de FC meio desdenhado pela crítica; revendo-o agora, constatei o quanto é atual. Ele é o pesadelo de uma mulher independente perdida num inferno consumista, alienado. 

As mulheres de Stepford parecem esposas de candidatos do Partido Republicano: passam o dia maquiladas, com cabelo armado, trajando vestidos longos e estampadíssimos, com chapéus de sol; devotam-se às tarefas domésticas, e obedecem cegamente aos maridos. Não, “cegamente” não: obedecem de olhos abertos e com um inextinguível sorriso nos lábios. Numa cena em que a protagonista entra sem avisar na casa da vizinha, ouve o casal no quarto, e a amiga, que é casada com um panaca, gemendo de êxtase e dizendo que ele é “o maior, o campeão”.

Sim, os maridos (são todos cientistas, o que em círculos republicanos não está muito longe de serem todos satanistas) copiaram todos os detalhes da aparência de suas esposas, transferiram tudo para andróides bem programados, e, digamos, descartaram a versão biológica. 

Um pesadelo cruel e philipkdickiano que mistura Hustler e Popular Mechanics, com uma colher de Casa & Jardim e dois dedos de Vampiros de Almas.





sexta-feira, 20 de agosto de 2010

2325) Autores que não li: Proust (20.8.2010)



A frase famosa é de Jorge Luís Borges, já não me lembra onde: “Que outros se orgulhem dos livros que escreveram; eu me orgulho dos livros que li”. Bela humildade, a de Borges, mas eu sou mais humilde do que ele, e me orgulho dos livros que não li. Este orgulho eu os divido com os fantasmas dos homens que escreveram esses livros, como se dissesse a cada um deles: “És grande, ó Tetrarca! Eu, que tantos templos já invadi, não me julguei digno sequer de acessar o teu. Tua inteligência é maior que a minha. Agora vai embora daqui, antes que eu perca a paciência e te aplique uns cascudos!” Já dirigi esta reprimenda a Marcel Proust, o dos bigodes encerados, ou, como diz um irreverente amigo meu, “aquele escritor que molhava o biscoito”.

De Proust só li as primeiras 50 páginas de um ou outro livro, e os trechos transcritos em ensaios que devorei de olho atento e caneta em punho, sublinhando para sempre. Deixei-me intimidar pelo tamanho do Em Busca do Tempo Perdido, pelo elenco de centenas de protagonistas e milhares de figurantes. Curiosamente, nunca me intimidei pelo famoso “parágrafo proustiano”, que dura páginas e mais páginas, e cria na sintaxe o que as gravuras de M. C. Escher criam na perspectiva. Isso antes me deleita que me assusta. Meu medo sempre foi ter que interromper a leitura por um mês e depois não conseguir mais distinguir o Marquês Fulano do Barão Sicrano, porque confesso que quando um sujeito ostenta um título eu fico com dificuldade de enxergar o sujeito.

Uma vez vi num sebo carioca um balcão tomado por uma “chegada” recente: cerca de 300 livros de e sobre Proust. Fiquei vendo aqueles volumes em meia dúzia de idiomas, de todos os tamanhos, uns antiquíssimos, outros recentes, e todos mostrando na lombada o recorrente nome. Me bateu então o peso da repercussão de uma obra que é como uma avenida por onde todos têm que passar e eu (ai de mim) nunca passei.

Há cerca de dois anos, num evento literário, encontrei Ariano Suassuna e ficamos conversando num grupo de pessoas. Um comentário de alguém levou Ariano a citar uma frase de Proust, e depois fazer um longo elogio do autor francês. Aí ele virou-se para mim e disse: “Você gosta de Proust?” Era tão fácil dizer que gostava! Mas eu confessei que nunca tinha lido. Ele bateu com a mão na perna e exclamou: “Mas precisa ler! Tem que ler! E nós temos inclusive traduções excelentes, como as de Mário Quintana, por exemplo”. Passou uns cinco minutos elogiando Proust, e eu já estava com uma desculpa na ponta da língua: que são 8 ou 9 volumes, é muita coisa, não tenho tempo... Mas aí Ariano encerrou: “Ave Maria, é tão bom que só de falar está me dando vontade. Ano que vem vou ler tudo de novo”. Quando alguém com mais de 80 anos diz isso, tem que ter um significado. Pra mim (que nunca li Proust) é o seguinte: que enquanto um indivíduo tiver uma alma viva, um cérebro funcionando e um coração batendo, nenhum tempo é tempo perdido.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

2324) Amnésia (19.8.2010)



O romance policial “noir” retorna obsessivamente a um pequeno número de temas, sendo a obsessão um deles. Outro é a amnésia. Alguém deveria fazer uma tabulação estatística de todas essas histórias que começam com um sujeito acordando num quarto, sem lembrar quem é e onde passou os últimos dias, e, em geral, ao lado de um cadáver desconhecido. 

Quando essa pesquisa for feita, sugiro esses dois romances, que reli agora depois de muitos anos: A Cortina Negra (“The black curtain”) de William Irish (pseudônimo de Cornell Woolrich) e Morte Inglória (“To Dusty Death") de Hugh McCutcheon. Li ambos quando tinha uns 14 anos, comprados em sebos do Recife; reencontrei-os agora num sebo do Rio, sempre juntos. 

Ambos começam com o protagonista voltando a si numa calçada, socorrido por algumas pessoas. Levou uma pancada na cabeça. Fica de pé, diz que está bem. Põe-se a andar e aí percebe que está vestindo uma roupa que desconhece, encontra-se numa zona desconhecida da cidade sem saber o que foi fazer ali, e não sabe o que lhe aconteceu nos últimos tempos. 

Parece com aqueles testes de oficina literária, em que se dá um começo para cada escritor desenvolvê-lo ao seu modo. Estes dois romances são histórias de amnésia, mas ao invés de começarem com o protagonista amnésico, começam no momento em que, devido à pancada, ele volta a lembrar quem é – mas sem saber o que lhe aconteceu quando perdeu a memória. 

Em Cortina Negra, Frank Townsend volta a si para perceber que está desaparecido há um ano e meio, a esposa julga-se viúva e mudou de apartamento, e ele, provavelmente, cometeu um crime do qual não se recorda. 

Em Morte Inglória, Richard Logan volta a si para perceber que está desaparecido há três semanas e provavelmente cometeu um crime do qual não se recorda. 

Os dois protagonistas tentam reconstituir o que lhes aconteceu, sendo perseguidos pela polícia ou por bandidos, sendo abordados por pessoas que parecem conhecê-los por outro nome. Uma classificação prévia de histórias assim as dividiria em histórias com personagens amnésicos (como o conhecido filme Amnésia de Christopher Nolan, com Guy Pearce), e histórias com personagens pós-amnésicos, como estes dois exemplos. 

O personagem amnésico está em pleno torvelinho da perda da identidade, não reconhece ninguém, não sabe quem é, não sabe o que deve fazer; está totalmente no escuro. O personagem pós-amnésico conseguiu voltar para dentro de si próprio mas permanece com um buraco no passado, um espaço proibido, oculto por uma “cortina negra”. 

Eu diria que essas histórias, que sempre existiram, encontraram uma ressonância especial na mente dos leitores norte-americanos dos anos 1930-40. Uma Grande Depressão econômica fez com que milhões de vidas fossem bruscamente partidas ao meio – um bancário vira um mendigo, um comerciante vira um marginal. Perdeu-se a identidade anterior, e a vida atual é um pesadelo de onde é impossível fugir, e onde são praticados atos que a identidade anterior não praticaria.





quarta-feira, 18 de agosto de 2010

2323) “A Chinesa” de Godard (18.8.2010)



Este filme é descrito pelos detratores de Jean-Luc Godard como o seu filme mais chato. (Todo detrator de Godard o conhece pouco. Se acham La Chinoise chato, coitados, nunca viram One plus One ou Vent d’Est.) Afinal, que graça pode ter uma hora e meia de filme mostrando meia dúzia de rapazes e moças trancados dentro de um apartamento, falando sem parar? Anos depois, o Big Brother Brasil respondeu esta pergunta: os rapazes e moças teriam que ser “saradões” e “gostosas”, e deveriam conversar apenas o equivalente verbal a Cheetos, M&M ou Potato Chips.

O filme de Godard é um BBB fictício sobre os jovens maoístas que, um ano depois (o filme é de 1967) encheriam Paris de carros com os pneus para cima, barricadas, coquetéis Molotov e slogans incendiários. Quando vi A Chinesa pela primeira vez, em 1970, tive reações contraditórias. Um terço das palavras-de-ordem dos jovens maoístas eu não compreendia, absolutamente. Um terço eu renegava de corpo e alma. E um terço eu concordava com fervor. Não sei se cometerei a obviedade retórica de afirmar que hoje, quarenta anos depois, tive as mesmas reações, mudando apenas as palavras-de-ordem que as provocavam. (Não; melhor não dizer.)

Minha ingenuidade de cineclubista adolescente, na época, consistia em imaginar que Godard era maoísta e que o filme era uma apologia do que aqueles rapazes e moças estavam fazendo. Hoje, minha surpresa é que Godard não tenha sido explodido, por um homem-bomba maoísta, no dia seguinte à pré-estréia. Seu retrato dos jovens adoradores do Livro Vermelho é tão impiedoso quanto o que ele faria hoje sobre os participantes do Big Brother Brasil (que coisa, maoísmo e BBB continuam voltando juntos ao meu juízo!). Há detalhes tão impagáveis e irônicos que os considero injustos. Não é possível que jovens sensatos defendessem tais idéias. Mas é possível, sim. Tudo, quase tudo, é possível.

O humor de Godard. Um dos jovens pega um guidom de bicicleta, coloca-o na cabeça como um par de chifres, e encena uma tourada, brincando. Depois, joga o guidom no lixo; um vizinho o apanha e diz: “Que belo guidom de bicicleta!”. Ele comenta, maravilhado: “Os operários são criativos. Ele transformou um touro num guidom de bicicleta!”. Precisa mais? Véronique vai a um prédio para assassinar um diplomata soviético (os maoístas odeiam os soviéticos mais do que odeiam os capitalistas). Quando volta, percebe que confundiu o ap. 32 com o 23 e matou a pessoa errada; volta e mata a pessoa certa. Precisa mais?

Ainda assim, Godard consegue ver nesses rapazes e moças maoístas o que eles de fato são: rapazes e moças. Eram maoístas como poderiam ser qualquer outra coisa que lhes desse a sensação de que estavam vivos, de que o que faziam tinha importância para o mundo, de que estavam vivendo uma grande aventura, de que a vida era bela, e de que “se o marxismo-leninismo existe, tudo é permitido”. Hoje, tudo é permitido porque ele não existe mais.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

2322) Sugestões para o livro eletrônico (17.8.2010)



Há duas atitudes extremas que não me interessam. Uma é achar que o livro eletrônico vai acabar com o livro de papel (não vai) ou com a prática da literatura (menos ainda). A outra é achar que ele é um milagre, e que vai habituar as pessoas a ler oferecendo-lhes coisas que se afastam cada vez mais do texto, livros que contêm mais desenho animado do que texto. Como objetos são uma gracinha. Mas eu, que sou um produtor de textos, quero suportes físicos que ajudem e valorizem o texto, não que o empurrem para segundo plano. Não por interesse pessoal ou vontade de ficar rico – já estou na metade do 2o. tempo e não acredito em prorrogação; mas por amor à arte. À arte do texto.

Uma sugestão: já que o livro eletrônico tem espaço à beça, poderíamos promover edições de obras em que o leitor adquirisse não somente a tradução brasileira de uma obra clássica, mas também o texto original, e quem sabe em outras línguas (espanhol, inglês, francês), tudo incluído no pacote. No caso de clássicos em domínio público, ficaria baratíssimo.

Minha edição de “O Jogo da Amarelinha” de Julio Cortázar é da Cátedra (Madrid), na coleção “Letras Hispânicas”. O livro tem uma introdução com 70 páginas, uma bibliografia de 12 páginas de e sobre o autor, um mapa de Paris, fotos das ruas citadas. É um livrinho de bolso, não muito caro (me custou cerca de 50 reais), com menos de 800 páginas. Se dá pra fazer isso no papel, por que não nos pixels? Ao invés de uma bibliografia meramente citando títulos, que tal o e-book trazer, como faixas bônus, o texto de algumas das dezenas de críticas já feitas sobre o livro? O trabalho seria apenas o de licenciar os textos originais e incluí-los nos direitos autorais, separando uns 2 ou 3% para isto.

Um e-book pode me dar a possibilidade de comparar, sem me erguer da cadeira, um trecho da tradução com o original, e com as soluções encontradas por outros tradutores. Como “O Jogo da Amarelinha” é um romance passado em Paris, eu poderia ter não somente o mapa específico do livro, salientando os trajetos dos personagens, mas acesso ao mapa Google com imagens de satélite da rua em seu aspecto atual (o livro é ambientado nos anos 1950).

Notas de pé de página, que incomodam alguns leitores, podem vir sob a forma de balões que surgem na tela quando clicamos num trecho assinalado. No caso de “Rayuela”, que tem uma proposta vanguardista de leitura (por capítulos salteados), seria possível reordenar os capítulos de acordo com alguma das ordens de leituras propostas e lê-los assim de uma só enfiada, o que no livro de papel exigiria ficar indo e voltando. Um livro sem capítulos como “Grande Sertão: Veredas” poderia ser desmembrado em unidades ou episódios, num gráfico em forma de árvore, e seriam acessados diretamente para consulta rápida, sem que fosse quebrada a sua forma original. Há muitas maneiras de usar a eletrônica para valorizar o uso do texto e a fruição do texto.

domingo, 15 de agosto de 2010

2321) A estética do Algo Me Diz (15.8.2010)




(ilustração: Istvan Orosz)

O folhetim não é apenas o território predileto da coincidência: é também o terreno mais fértil para a premonição. 

Premonição é aquela certeza intuitiva e inexplicável que às vezes nos assalta, sem motivo aparente, mas com uma pressão que não pode ser ignorada. Às vezes é uma ansiedade crescente que vai se acumulando ao longo de dias e semanas; outras, é como um raio que cai de repente ou uma mão que nos agarra pela garganta.

“Algo me diz que esse porteiro não merece confiança”, murmura um personagem para a esposa ao subir no elevador. 

Outro, às voltas com os milhares de páginas do inventário de um espólio, tem tempo de comentar: “Algo me diz que essa procuração assinada em 1948 ainda vai nos causar problemas”. 

Uma mãe, vendo o filho apaixonadíssimo por uma mocinha linda e atenciosa, murmura por cima dos óculos: “Alguma coisa me diz que essa garota não é flor que se cheire”. 

 Por que dizem isso? Dizem porque estão ouvindo a voz de Algo, mas não sabem exatamente o quê, e não conseguem rastrear o por quê. O “algo” que está tentando lhes passar uma mensagem é o Inconsciente. O cérebro humano tem a capacidade de processar informações em paralelo, num setor secundário, enquanto o setor primário está se relacionando com outros indivíduos, conversando, falando, ouvindo, cuidando dos fatos exteriores da vida. 

Mas lá atrás alguns processos estão comparando informações, reexaminando detalhes, detectando pequenas discrepâncias. E mandando recado para a parte dianteira da mente: “Ei, ei, tem alguma coisa errada”.

O folhetinista hábil planta essas premonições ao longo da narrativa para preparar alguma situação, seja confirmando as desconfianças, seja desmentindo-as – porque, sim, o nosso Inconsciente também se engana, também comete erros de juízo e de interpretação. 

Mas a inquietação de um personagem, desde que formulada sem muito peso na mão, pode servir para criar uma tênue linha de suspense, a possibilidade sempre latente de um fato inesperado, de uma reviravolta que quando sucede nos pega em parte de surpresa e em parte nos faz confirmar, com uma pequena sensação de triunfo: “Arrá! Eu bem que desconfiei”.

No momento culminante do filme ou no derradeiro capítulo da novela, quando tudo parece perdido, um personagem secundário aparece com a solução providencial e redentora. Passado o susto, as quase vítimas exclamam: “Mas Dona Fulana! O que foi que lhe deu, para a sra. se lembrar de tomar essa providência?” E ela responde: “Alguma coisa me dizia que isso ia acabar acontecendo”. 

Um personagem de romance folhetim ou de telenovela está sempre com o ouvido atento para esse Algo, para essa Alguma Coisa que volta e meia bate à janela de sua alma para lhe passar um recado. Feliz do personagem que dá ouvidos a esses recados, porque quem os plantou ali foi o Arquiteto dos Personagens, o Artífice Onipotente dos seus destinos, cujo identidade, por modéstia, é melhor calarmos.






sábado, 14 de agosto de 2010

2320) Pagu (14.8.2010)




Este ano completam-se cem anos de nascimento de Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, uma das figuras mais curiosas (e talvez a mulher mais bonita) do Modernismo brasileiro.

Pagu é ainda hoje uma espécie de nota ao pé da página do Modernismo, citada na maioria dos artigos como ex-esposa de Oswald de Andrade, como musa do movimento, e como romancista que escreveu um livro sobre operários (Parque Industrial, 1933) numa época em que estes eram meio que invisíveis para a literatura brasileira, com exceção dos comunistas. O que ela foi, aliás.

Foi também uma mulher irreverente e em certa medida escandalosa, cujos trajes e atitudes deixavam aflitas as famílias da época; uma espécie de Anayde Beiriz da Paulicéia Desvairada.

Para os cinéfilos brasileiros, Pagu é a mãe do recentemente falecido Rudá de Andrade, crítico de cinema, professor da USP e ex-conservador da Cinemateca Brasileira.

Para outros críticos, de pendores mais literários, é a mãe do escritor Geraldo Galvão Ferraz, aliás um entusiasta da ficção científica.

A biografia de Pagu é cheia de lances surpreendentes. Dirigiu peças de Arrabal e Ionesco, foi presa em Paris como comunista, trouxe da China sementes de soja e as introduziu no Brasil... Foi tema de canções, filmes e livros, e de um livro de Augusto de Campos; mas ainda falta uma dessas biografias extensas e detalhadas que dê conta da personagem fascinante que certamente foi.

Os eventos em homenagem ao seu centenário podem ser consultados aqui: http://www.pagu.com.br/blog/home/.

Falarei dela sob outro ângulo. A maioria dos jornalistas brasileiros em atividade digitou os caracteres “pulp fiction” pela primeira vez graças a Quentin Tarantino, que eles julgam ser o inventor dessa expressão. Não foi, e o Brasil teve “pulp fiction” durante muitos anos, embora fosse uma ficção traduzida, com poucos autores locais.

Um desses autores foi Pagu, que escreveu contos policiais publicados nas revistas da época, sob o pseudônimo de King Shelter (parece pseudônimo de roqueiro colombiano). Os contos policiais de Pagu foram reunidos pelo seu filho Geraldo Galvão Ferraz num volume intitulado Safra Macabra. Foram publicados entre junho e dezembro de 1944 na revista Detetive, cujo editor era Nelson Rodrigues.

Era uma época em que revistas populares de contos policiais (pulp magazines) eram publicadas no Brasil, tentando emular o sucesso que faziam nos EUA. Eram revistas como Mistérios, Meia Noite, A Novella, etc.

As que tiveram vida longa, como Detetive ou X-9 não revelaram autores nacionais, limitando-se a traduzir o material enviado pela matriz novaiorquina.

Ou talvez não. Assim como o pseudônimo King Shelter escondia uma intelectual de esquerda que dirigia peças do Teatro do Absurdo (mas precisava descolar uma grana para o aluguel do apartamento e o leite das crianças), talvez muitos outros nomes escondam personagens de cuja identidade nem suspeitamos.