terça-feira, 29 de junho de 2010
2207) E não ficou nenhum (4.4.2010)
Éramos turistas de vários países, numa excursão pela Europa. Chegamos pela manhã, de trem, numa capital qualquer, todos cansados da viagem. Uns esperavam a bagagem, outros já estavam nos guichês de câmbio adquirindo moeda local, outros consultavam mapas.
Era uma estação enorme, uma estrutura de ferro com aparência século 19. Eu comentava com o Guia que algumas estações européias eram tão bem providas de serviços, comércio, etc., que bem poderíamos conhecer apenas elas, sem o trabalho de circular pelas cidades propriamente ditas.
De súbito, alguém do grupo soltou um grito e caiu no chão. Correram várias pessoas a acudi-lo, formou-se o tumulto. Guardas se aproximaram, depois veio um médico, afobado, puxando um estetoscópio de dentro do casaco.
Logo fomos avisados de que nosso companheiro estava morto, um ataque fulminante. Isso nos causou inquietação e transtorno. Somente à tarde conseguimos fazer check-in no hotel.
Naquela noite, ao sairmos do restaurante, outra pessoa tombou no chão. A morte foi constatada sem demora, e uma perturbação crescente se apossou do grupo. Dormi mal, e creio que todos também.
No dia seguinte tentamos cumprir o roteiro pré-estabelecido de passeios, mas ao cruzarmos um parque uma senhora tombou nos braços do marido. Desta vez os policiais encontraram algo: um pequeno dardo, do tamanho de meio alfinete, cravado em suas costas. “Veneno”, disse um deles.
À noite nos reunimos no hotel para tentar entender o que acontecia. O Guia, um homem baixinho e metódico, estava acompanhando as investigações, e admitiu que as três mortes tinham sido assassinatos, cometidos pelo mesmo método. Um membro do nosso grupo estava eliminando os demais, cravando-lhes aqueles dardos, ou arremessando-os à distância.
Houve uma discussão acalorada em várias línguas. Afinal, não nos conhecíamos, nada tínhamos a lucrar com a morte daqueles companheiros casuais... À saída, parei no umbral da porta, e nesse instante senti algo passar voando perto do meu rosto. Virando-me, vi o Guia empunhando uma piteira diante da boca. Meus olhos cruzaram com os seus, e ele inseriu com calma um cigarro na piteira e começou a fumá-lo. Claro que, ao me virar, percebi o pequeno dardo cravado na madeira da porta.
Convoquei ao meu quarto dois companheiros com quem me entendia melhor, para tomar alguma decisão. Quando conversávamos, um alarido brotou no corredor. Corremos para lá. Os outros membros do grupo, inclusive o Guia, estavam dominando uma mulher loura, alta, que era uma das que mais reclamavam. Eles a tinham flagrado soprando um dardo contra outra passageira, já morta no chão.
Uma corda foi pendurada do teto; um laço foi armado às pressas. Quando ajudei a colocar seu pescoço no laço, ela conseguiu desvencilhar um braço e cravou no meu pescoço um dos seus dardos envenenados. Sabendo que meu destino estava selado, enfiei a mão no bolso e cravei-lhe no rosto um dos meus. Depois não vi mais nada.
2206) A laranja chupada (3.4.2010)

Numa entrevista recente ao “Globo”, o treinador do Santos, Dorival Júnior comentou o estado atual do nosso futebol, e fez uma comparação interessante. Disse ele que um dos problemas no atual futebol brasileiro é a ênfase excessiva dadas aos aspectos físicos e táticos do jogo, e pouca importância dada aos fundamentos técnicos. Ele lembrou o caso do vôlei brasileiro, que se tornou o melhor do mundo através de técnicos como Bernardinho e Zé Roberto Guimarães, que criaram uma filosofia de treinamento dos fundamentos básicos do jogo: recepção, passe, cortada, saque, finta, etc. Nossos times de vôlei são os melhores do mundo (ou estão consistentemente entre os melhores do mundo há 20 anos) devido a esse foco nos fundamentos. Sem fundamentos, não adianta tática, nem preparo físico, nada, nada.
O que são os fundamentos do futebol? São o drible, o passe, o chute a gol, a cabeçada a gol (os principais) e mais a matada de bola, a condução de bola, etc. Não sei como os técnicos dividem teoricamente essas coisas, mas eu divido assim: no futebol, técnica (fundamento) é tudo que envolve um jogador e a bola; tática é tudo que envolve dois ou mais jogadores e a bola. No capítulo da tática, portanto, estão aquelas coisas como a tabelinha, a triangulação, aquilo que Cláudio Coutinho chamava de “overlapping” (quando na lateral um jogador domina a bola, é ultrapassado velozmente por um companheiro e toca a bola para que este a alcance lá na frente), etc.
Nossos jogadores eram (até o tricampeonato em 1970) os melhores do mundo em técnica. Ninguém passava, driblava ou chutava melhor do que a gente. Os europeus nos sobrepujavam, quando era o caso, no preparo físico ou na esperteza tática, principalmente na marcação. Nossos jogadores eram os mais técnicos (os mais talentosos nos fundamentos) porque se criavam jogando com laranja chupada, bola de meia, bola de plástico furada, coco seco, tampa de garrafa. A variedade de movimentos musculares e de reflexos gerada por essas atividades lhes dava muito mais recursos quando se deparavam com a simplicidade de uma bola profissional, algo próximo de uma Esfera Platônica.
Mas hoje... Meus amigos, assistir qualquer campeonato estadual, ou mesmo o Brasileiro, nos dá os mesmos calafrios de um gramático folheando um livro de poesia matuta. Os jogadores brasileiros atuais (me refiro aos dos grandes clubes, não aos do Naviraiense) levam em média cinco ou dez segundos para dominar a bola quando recebem um passe feito à distância. Isso quando o jogador que fez esse passe à distância consegue colocar a bola a menos de três metros do que vai recebê-la. Nossos chutes a gol são uma antologia de videocassetadas. Dribles? No futebol brasileiro de hoje você tira uma dúzia que sabe driblar; para os demais, driblar é rodear o zagueiro empurrando-o com o ombro. Já está na hora de jogar a garotada na rua, com uma laranja chupada, para ver se salvamos pelo menos a próxima geração.
2205) A estratégia da distração (2.4.2010)
Circula na Internet um documento atribuído ao linguista Noam Chomsky, um conhecido crítico das políticas dos EUA. Chomsky é uma espécie de Michael Moore do meio acadêmico, que investe como um tanque contra aquilo que a gente chama “o complexo industrial-financeiro-militar” do seu país. O documento que circula talvez seja apócrifo (não encontrei sinal dele em parte alguma na Net, em inglês), mas não importa. As coisas que diz ou são corretas ou são deflagradoras de um debate importante e necessário, pouco importa quem tenha sido seu autor original. O documento enumera “Dez Estratégias” usadas pelos governos atuais para impor suas políticas e manter a população sob controle, um controle ainda mais eficaz do que o das ditaduras, porque as pessoas não sabem que estão sendo controladas, e esse controle se dá de uma maneira aparentemente agradável para elas. É o que eu chamo a Ditadura do Chiclete, contraposta à Ditadura do Chicote. O primeiro item da lista diz:
“1) A estratégica da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.
O século XX ensinou que a melhor maneira de evitar que a população tenha acesso a determinadas informações não é proibindo essas informações. Isso foi tentado por todos, desde Hitler e Stálin até nossa ditadura brasileira; e sempre existe uma minoria sólida, atuante e incansável que acaba dando um jeito de recuperar as informações proibidas e fazê-las circular. Muito melhor do que proibir é diluir. Em vez de proibir a obra perigosa de Fulano ou Sicrano, basta estimular a produção de obras de cem Beltranos (que dizem coisas parecidas, mas inócuas) e usá-las para fazer submergir as idéias indesejáveis.
O melhor lugar para esconder uma agulha não é num palheiro, é num agulheiro. Proibir a obra de alguém significa lançar sobre essa obra e esse autor os poderosos holofotes da atenção do Poder. Melhor aparentar desprezo por essa obra, e voltar os holofotes em outra direção. É possível até ceder a esses autores incômodos uma rádio, um canal de TV a cabo, com a garantia de que eles estarão diluídos no meio de 200 rádios e 200 canais dizendo coisas mais chamativas, mais sensacionais, menos problemáticas.
2204) O matemático e as baratas (1.4.2010)
Uma vizinha do cidadão afirmou à imprensa:
“Ele tem apenas uma mesa, um banquinho e uma cama com um lençol sujo que foi deixado ali pelos antigos donos – uns bêbados que venderam o apartamento para ele. Estamos tentando acabar com as baratas nesse quarteirão, mas elas se escondem na casa dele.”
O mundo da Alta Matemática é um pouco como o da Poesia Surrealista: abandonai todo o senso comum, ó vós que entrais. Perelman conseguiu resolver um problema chamado “a Conjetura de Poincaré”, por ter sido formulado pelo grande Henri Poincaré (1854-1912). Não discutirei aqui as sutilezas do problema, basta-me citar a descrição que está na Wikipédia.
Poincaré supôs (sem poder provar) que “qualquer variedade tridimensional fechada e com grupo fundamental trivial é homeomorfa a uma esfera tridimensional”. Ele supôs, mas não encontrou um meio de provar, e desde então os matemáticos vinham quebrando a cabeça atrás dessa prova.
Perelman, em suas noites insones tendo como ruído de fundo o ciciar das baratas, conseguiu. Ofereceram-lhe o milhão de dólares do prêmio proposto, e ele declinou: “Obrigado, já tenho tudo do que preciso, não quero ficar em exibição como um bicho num Jardim Zoológico”. E bateu a porta.
Há um filme brilhante e pouco conhecido que nos mostra por dentro o mundo desses indivíduos: Pi, de Darren Aronofsky. Foi feito com uma merreca, por uma equipe de uma dúzia de pessoas, pelas ruas de Nova York, filmando em preto-e-branco com uma camarazinha qualquer.
A Matemática é algo como uma droga poderosa. É um estado alterado de consciência que, se não for tratado com cuidado, pode engolfar a consciência por inteiro. Todo mundo sabe dos “idiots savants”, aquele sujeitos retardados, incapazes de falar direito, de entender coisas minimamente simples, às vezes incapazes de cuidarem de si próprios, mas que conseguem fazer cálculos mentais gigantescos em alguns segundos.
O grande matemático como Perelman é uma versão atenuada disto. Sua mente processa dados e fórmulas sem parar e não pode dedicar espaço para ações triviais como ir ao supermercado ou trocar de cuecas. Indivíduos assim deveriam ser financiados pelo Estado e viver numa espécie de retiro, apenas trabalhando, pensando, resolvendo conjeturas abstratas. Se o Estado sustenta criminosos num presídio, por que não sustentaria um matemático?
domingo, 27 de junho de 2010
2203) O destino indireto (31.3.2010)

O escritor Alberto Mussa conta que quando fazia um curso universitário de Matemática usou, ao pagar as cadeiras de Cálculo, um livro-texto diferente do que seus colegas usavam. O autor do livro era um russo, um tal de Piskounov ou coisa parecida, diz ele. Espalhou-se na faculdade a notícia de que ele estudava no livro de um autor russo (era a época da ditadura) e isso imediatamente lhe conquistou um enorme prestígio entre seus colegas comunistas. Um deles deu-lhe de presente um livro de poemas de Agostinho Neto, o presidente comunista de Angola – e a vida de Mussa mudou para sempre. Não que ele tivesse virado comunista, mas foi através do poeta angolano que ele descobriu a cultura e a literatura da África, sobre as quais viria a escrever numerosas obras.
Vilma Guimarães Rosa conta no livro Relembramentos que sua tia Maria Luiza, quando jovem, precisava dar mamadeira a um sobrinho, mas não tinha relógio e estava sozinha com o bebê em casa. Para perguntar as horas a alguém confiável, ligou para um número que viu na lista, e que imaginou pertencer a uma entidade religiosa. Não era: era uma pensão de estudantes. Um rapaz atendeu, os dois começaram uma conversa, depois um namoro, e acabaram casados pelo resto da vida.
São mil histórias; cada um de nós sabe várias. É a moça que acompanha a amiga a um estúdio, onde a amiga vai gravar alguma coisa, e alguém lhe pede que faça um teste ao microfone, ela canta e vira mais cantora que a amiga. É o rapaz que vai se matricular na Faculdade, vê uma moça bonita se matriculando noutro curso e, num impulso, matricula-se ali sem outro interesse, e vira um luminar daquela ciência.
Luís Buñuel nunca tinha pisado no México. Estava meio exilado e desempregado em Hollywood quando em 1946 recebeu um recado de uma amiga, no México, chamando-o para produzirem juntos uma peça. Don Luís foi para lá. No hotel, ficou sabendo que a peça que tinham em mente fora liberada para outro produtor. Buñuel ficou no México até morrer, e realizou ali 20 filmes.
É o que eu sempre digo: "Sorte não é sonhar avestruz, jogar avestruz, e dar avestruz. Sorte é sonhar avestruz, jogar camelo por engano, e dar camelo". Em tudo que tem interferências do Acaso a gente percebe o lado aleatório da coisa, mas percebe também (ou está ansioso para perceber) a presença de um enorme Dedo empurrando os personagenzinhos nesta direção, depois naquela... Luís Buñuel tem uma afirmativa terrível: “O Acaso não pode ser uma criação de Deus, já que ele é a negação de Deus. Estes dois termos são antinômicos, excluem-se um ao outro”. Escutaram, amigos, mil catedrais desabando? O contrário de Deus não é o Diabo, que é feito da mesma essência dele e no máximo encarna o seu pólo oposto. Deus é criação, controle, onisciência, determinismo, ordem; é isto, e tudo que combinar com isto. O contrário de Deus é o Acaso. Se pudermos um dia provar a existência do Acaso provaremos a inexistência de Deus.
2202) Messi (30.3.2010)

A Copa do Mundo já está em contagem regressiva no “Globo Esporte” e eu me preparando. O Brasil inteiro se prepara para torcer por mais um título da Seleção. Eu, não. Já sei que o título é praticamente impossível. A Fifa e os poderosos chefões do futebol não nos permitirão ganhar dois títulos consecutivos em 2010 e 2014; e se é pra ganhar somente um, prefiro (e acho que Ricardo Teixeira também) ganhar a Copa que vai ser disputada aqui, na nossa casa. Fica mais redondo, não é mesmo? Esqueçam o título.
Torcer pelo Brasil é minha segunda prioridade. A primeira é ver grandes jogos, grandes craques, grandes gols. A Copa é o Woodstock do futebol. Eu pertenço a essa espécie pouco ortodoxa que gosta mais de futebol do que de um time, ainda que seja o do Brasil. A maioria dos torcedores tem com o futebol uma relação composta em partes iguais de política, militarismo e religião; meu relacionamento com ele é de ordem estética. Se numa final de Copa, jogo empatado, Brasil x Argentina, um argentino fizer um gol de placa tirando o título do Brasil, acho que vou aplaudir tanto quanto se fosse um gol brasileiro.
O sujeito capaz dessa façanha é o baixinho Lionel Messi, que anda comendo a bola há tempos, e que nesta Copa, aos 22 de idade, vai ter a chance de mostrar a razão de sua presença neste planeta. Messi é uma figura. Aliás, o que nos atrai nos grandes jogadores (como nos grandes artistas) é a sua individualidade. Não há dois craques iguais. Mesmo craque de estilos semelhantes (digamos – Beckenbauer e Ademir da Guia) podem ser distinguidos de olhos fechados. Cada craque é um cara que se especializou ao máximo em explorar criativamente uma combinação improvável, rara, de qualidades físicas, técnicas e psicológicas.
Messi é baixinho, maciço, veloz, canhoto, excelente driblador, ótimo finalizador, um pulmão incansável, uma capacidade rara não somente de iniciar como de definir as jogadas de gol. Não apenas goleia com abundância, mas é expert em atrair sobre si três defensores e tocar a bola de biquinho para um companheiro desmarcado mandar para as redes. Dias atrás, em uma semana fez oito gols: 3 no Valência, 2 no Stuttgart e 3 no Saragoza. E faz dando a impressão ilusória de simplicidade, de que o gol já estava pronto e ele se limitou a executá-lo.
Messi revelou-se no Barcelona na época em que Ronaldinho Gaúcho fazia lá o que ele faz hoje. Há um lance dos dois que define, para mim, o que é ser craque. Num jogo difícil, o Barcelona cercava o adversário procurando uma brecha. Ronaldinho viu Messi livre na ponta esquerda, lançou, e Messi entrou na área e fez o gol. O juiz anulou. Dois minutos depois, o Gaúcho recebeu a bola na mesma posição anterior, repetiu o passe e Messi repetiu o gol. Parecia um replay. Depois, o garoto (devia ter uns 18 ou 19 naquele tempo) pulou nas costas do Gaúcho, que o carregou em triunfo pelo campo, com a torcida toda de pé. Seria tão bom ver os dois frente a frente nesta Copa.
2201) Um quadro para os meus olhos (28.3.2010)
Eu estava sentado junto a uma janela do lado esquerdo. Olhei para fora. Do lado oposto da rodovia erguiam-se aquelas casa de tijolos sem reboco, aquela proliferação de paredes escuras e irregulares, cortadas por ruas de terra, com poças de lama, porcos, cachorros. As casas quase todas com antenas de TV em cima, e unidas pelo traçado dos varais de roupas.
Foi então que apareceram duas coisas ao mesmo tempo. Numa casa de dois andares, virada para a rodovia, surgiu na varanda do andar de cima, onde havia uma rede armada e uns vasos de flores, uma moça de blusa amarela e bermudas. A varanda tinha uma grade metálica fina que ia até a cintura dela. Ela andava, limpava poeira com um pano, ajeitava os vasos, passava por baixo da rede quando ia de um lado para o outro e deixava a rede balançando vazia.
No mesmo instante em que ela apareceu nessa varanda eu vi surgir na rua ao lado (porque essa casa ficava de esquina) um rapazinho com uma camisa vermelha, montado numa bicicleta. Ele deu uma volta na rua, parou a bicicleta em frente a algo que parecia uma birosca, desceu dela e começou a bater bola com outros rapazes diante da calçada (era uma daquelas ruas de terra que têm pequenos trechos calçados de cimento em frente a esta ou aquela casa).
Começou então um pequeno “pas de deux” cromático entre aquela mancha de amarelo brilhante e aquela outra mancha de vermelho sanguíneo. A mocinha ia para um lado em seu terraço, o garoto ia para outro do lado oposto. Um não enxergava o outro, porque a casa ficava de frente para a estrada e o lugar onde o rapaz estacionara a bicicleta ficava na rua ao lado, uns dez metros mais para dentro.
Mas aos meus olhos, aqueles dois retalhos de cor se destacavam no meio daquele pano de fundo cor de tijolo sujo. Havia os tijolos de barro vermelho-escuro, unidos pela grade cinzenta da argamassa, e havia em outras casas os tijolos cinza que se usam em outras construções. Quase nenhuma placa de propaganda. As roupas dos varais quase todas brancas ou de tons desbotados.
E aos meus olhos entrecerrados aqueles dois fragmentos de cores vívidas que se agitavam, como dois passarinhos na mesma gaiola, indo às vezes ambos para a direita e depois retornando para a esquerda.
Criou-se naquela instante uma harmonia de movimentos aleatórios entre duas pessoas que provavelmente ignoravam não só a presença mas a própria existência uma da outra; um balé browniano em que cada um se movia à revelia do outro, mas cabia aos meus olhos, que captavam tudo, projetar nesses movimentos um senso qualquer de harmonia, uma vontade de ordem, uma decisão de considerar que aquela micro-coincidência vista apenas por mim resultava em algo que valia a pena ver, e que um dia (hoje, depois de tanto tempo) valeria a pena lembrar.
2200) A literatura enumerativa (27.3.2010)
“O inventário obsessivo do apartamento da família em Franny e Zooey – há listas com uma página de extensão, uma das quais inclui ‘três rádios (um Freshman de 1927, um Stromberg-Carlson de 1933 e um RCA de 1941)’ – não é o tipo de detalhe que romancistas usam para capturar uma verdade psicológica ou social. Parece mais com os detalhes gratuitos e auto-gratificantes que as crianças usam na construção de seus mundos de fantasia”.
Kirsch prossegue dizendo que em suas obras mais tardias Salinger já não usava a ficção como um meio de explorar a realidade, mas como um substituto para ela.
Talvez essa visão crítica esteja sendo contaminada por tudo que sabemos de Salinger, sua fuga à publicidade, seu rompimento de relações com leitores, editores e críticos, sua transformação num eremita agressivo e mal-humorado.
Kirsch compara essa ficção catalográfica de Salinger com as histórias de fantasia que as três irmãs Brontë escreviam juntas na infância (historinhas cheias de listas), e diz que elas evoluíram dessas fantasias infantis para escrever O Morro dos Ventos Uivantes ou Jane Eyre, ao passo que Salinger pareceu ter cumprido o percurso inverso.
Ficção catalográfica é um mal ou um bem do século. Aí estão James Joyce, Georges Perec, Guimarães Rosa, J. R. R. Tolkien, Jorge Luís Borges e tantos outros que, quando a ocasião se apresentava, não hesitavam em encher suas páginas com copiosas listas.
A questão é que para esses escritores (e para Salinger também, acho) essas listas tinham efeito estético e afetivo. O exemplo escolhido por Kirsch é até meio infeliz para ilustrar sua tese, porque, mesmo não fazendo idéia do que são os rádios citados, não duvido que esses nomes tenham uma profunda repercussão na memória afetiva de milhares de leitores dos EUA. Eu mesmo, que não sou apegado a essas coisas, posso imaginar uma lista de marcas de rádios antigos que me deixaria com um nó na garganta.
Quando a lembrança é forte e emocionalmente carregada, basta o nome para, proustianamente, arrastar consigo mil e uma histórias.
Para os que sabem praticá-la, a ficção catalográfica não é um índice insensível e monótono de meros nomes. Cada item daquelas listas é uma ponta de iceberg.
O autor insinua (e o leitor aceita) que poderia escrever páginas a respeito de cada um. O catalografismo nasce de um conhecimento paradoxalmente amplo e minucioso (os dois conceitos puxam em direções diferentes) da realidade. Envolve uma noção de hipertexto “avant la lettre”, onde cada frase daquelas, cada nome, é na verdade um link. Um link para algo que o autor deixa subentendido e que cabe à fé do leitor aceitar ou não.
2199) Três histórias de fãs (26.3.2010)

A primeira história diz respeito a Spider Robinson, norte-americano, autor de histórias de ficção científica ambientadas num bar chamado Callahan’s, nome do seu proprietário. É um bar frequentado por alienígenas, viajantes no Tempo, etc., e ali se contam histórias divertidas. Robinson conta que certa vez estava com a esposa numa convenção de FC, e um grupo de fãs os convidou para jantar. Como estavam sem um centavo, aceitaram. Entraram num carro. Rumaram para o subúrbio, pegaram a estrada. O tempo passando, e tome estrada. Robinson e a mulher impacientes; e os fãs piscando uns para os outros e dando risadas. Uma hora e meia depois, pararam num restaurante, chamado, é claro, “Callahan’s”. Diz Robinson que não apenas a comida era horrível, mas descobriram que os fãs também não tinham grana para pagar o jantar.
Um cantor profissional me contou que chegou na cidade onde ia fazer um show à noite, e no aeroporto foi recebido por um sujeito que disse ser da produção local, encarregado de levá-lo para o hotel. Ele guardou a bagagem e o violão no carro do sujeito, e os dois seguiram. No meio do caminho o cara perguntou se o artista se incomodava de passar antes num local onde ele precisava pegar alguma coisa. “Tudo bem”, disse ele. Daí a pouco desceram numa casa onde estava rolando o maior churrasco, e o motorista anunciou: “Aqui está ele!”. O cantor teve que descer, sentar, fingir que bebia, até conseguir ligar para o verdadeiro produtor local ir buscá-lo; mas antes teve que pegar o violão e cantar algum dos seus grandes sucessos.
Affonso Romano de Sant’Anna narra o episódio ocorrido com Michel Foucault, em sua vinda ao Rio de Janeiro em 1973. Foucault veio fazer conferências na PUC-RJ, com cobrança de ingresso. No primeiro dia, ele e Affonso foram abordados por estudantes de filosofia que se queixaram de não poder comprar ingresso. O filósofo se dispôs a falar de graça para eles em outro horário. Depois, contou a Affonso que os estudantes o levaram para uma cobertura em Ipanema, onde ficou bastante claro que eram muito mais bem-de-vida que o próprio filósofo.
Nem todo fã apronta situações desse tipo, é claro. Mas acontece tanto que dá o que pensar nessa relação meio canibalesca que o fã mantém com seu ídolo. Os jovens leitores que levaram Spider Robinson para aquela roubada estavam querendo não só homenageá-lo, mas querendo que ele achasse graça na piadinha deles. O pessoal do churrasco e os ouvintes de Foucault certamente eram admiradores sinceros de suas vítimas (não aprontariam aquilo com qualquer um), mas narcisistas, acima de tudo. Fizeram aquilo para sair dizendo coisas como “Fulano cantou no meu churrasco”, “Foucault esteve lá em casa semana passada...” O fã é capaz de extremos de altruísmo e de extremos de egoísmo, porque existe no seu Ego uma fome voraz que só o ídolo sacia. Quanto mais importante a gente se torna para um fã, mais cuidado precisa ter com ele.
2198) “O que fazer em caso de incêndio” (25.3.2010)

Este filme alemão dirigido por Gregor Schnitzler em 2001 (Was tun, wenn’s brennt?) conta a história de um grupo de anarquistas berlinenses que, depois da queda do Muro de Berlim, se deixa absorver e cooptar (este era o verbo usado pela esquerda aqui no Brasil, no tempo da ditadura) pelo Capitalismo triunfante. Um deles vira publicitário, outro advogado, uma vira socialite, a outra mãe de família... Somente dois deles continuam vestindo casacos de couro, hirsutos, radicais, vociferantes, morando em invasões urbanas (um deles anda em cadeira de rodas, o amigo lhe serve de anjo-da-guarda).
Acontece que eles tinham colocado uma bomba num prédio, e por defeito técnico a bomba não explodiu. Doze anos depois, explode por acaso. A polícia dá uma batida no apartamento dos dois malucos e confisca latas e mais latas de cinema underground feito por eles. E no meio das latas, existe uma mostrando o preparo e a instalação da bomba. O resto do filme mostra os dois recorrendo aos amigos aburguesados para tentar reaver (ou destruir) o filme que incrimina a todos – e de maneira especial aos que agora “se passaram para o lado do inimigo”.
Desde sua sequência inicial o filme se assemelha ao Watchmen recentemente dirigido (2009) por Zack Snyder. Em ambos, o mesmo tema da “volta dos que não foram”, ou seja, o retorno de um grupo de ativistas que na verdade nunca foi realmente extinto. Em ambos, a sequência inicial de apresentação dos créditos resumindo a situação para que o filme propriamente dito comece em seguida (em Incêndio, a preparação da bomba; em Watchmen, o triunfo dos governos de extrema direita nos EUA). Em ambos, os conflitos internos de ativistas políticos e sua dificuldade de sobreviver num país em que o Capitalismo ganhou a guerra política.
Mais curiosas do que as semelhanças, no entanto, são as diferenças entre os dois filmes. Watchmen, apesar de escrito por Alan Moore, um autor de ácidas HQs, não deixa de ser um super-espetáculo comercial. Entra no mercado como um “filme de super-heróis” destinado a grandes bilheterias e com foco nos adolescentes de todas as idades. O filme alemão parecia ser (pelo menos para mim) uma produção mais modesta porém mais independente, uma avaliação política de uma situação política.
Na prática é o contrário, e curiosamente Watchmen é o mais político dos dois. O filme de Schnitzler, apesar de simpático e bem realizado, parece um filme norte-americano pelos clichês que emprega, como a tipificação dos ex-revolucionários, e pela altíssima improbabilidade dos atentados, fugas, arrombamentos, infiltrações e escapadas do grupo. Tudo acontece com uma facilidade digna de seriados da Sessão da Tarde. A guerra da esquerda alemã já está servindo para gerar histórias de entretenimento sem compromisso. Se os revolucionários se dão bem no final do filme, é porque o filme é uma vitória do cinema capitalista de entretenimento.
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