domingo, 18 de abril de 2010
1928) Os dois tipos de música (14.5.2009)
Muitas discussões sobre música popular e música erudita se encerram assim: “Essa divisão não faz sentido. O que existe mesmo é música boa e música ruim”. Tudo bem; mas falando em bom e ruim entramos num nevoeiro cerrado que faz empacar qualquer discussão mais séria. Quando tudo se resume a gostar ou não, ficamos desprovidos de um crivo externo de comparação. Precisamos de uma distinção que possa ser estabelecida “de fora”. Por isso sugiro uma: “Existem dois tipos de música: música para ouvir, e música para dançar”. Ou seja – podemos dizer que existe música para a mente, e música para o corpo. Existe música feita para ouvir e música feita para dançar, embora algumas músicas sirvam para as duas coisas, e muitas não sirvam para nenhuma.
À primeira vista é um Muro de Berlim nítido e intransponível. Música para ouvir, por exemplo, é João Gilberto; música para dançar é Zé Calixto e seus 8 Baixos. Numa temos o recolhimento intimista de quem, a sós, à meia-noite e à meia-luz, tilinta um uísque no copo quadrado, semicerra os olhos e se entrega aos desfrute do tom, do som, do timbre, da textura, do entrecruzar das harmonias, do modo como voz, violão, melodia e letra se entrelaçam. Na outra temos o resfolego frenético do instrumento, e as percussões sacudidas, segurando o ritmo implacável, daquele tipo que basta a gente ouvir para começar a balançar alguma coisa, seja lá o que for.
Isto não impede, contudo, que a gente escute Zé Calixto (ou qualquer música-para-dançar, do rock ao reggae) para curtir a beleza musical do que está sendo feito. Nada impede que ao som de uma bossa-nova sofisticada o sujeito conduza a “cavaleira” ao salão e ali se entregue à nobre versão vertical da mais antiga das artes. Alguém dirá: “Oi, e música clássica? Já se viu alguém dançar música clássica?” Bom, talvez ninguém dance John Cage ou o Cravo Bem Temperado de Bach; mas não esqueçamos as valsas de Strauss & Cia., que eram o filé da música dançante do seu tempo, assim como as músicas para balé clássico, que são compostas, sim, pensando em coreografia, pensando em passos a serem executados por corpos humanos. Será que os grandes balés de Tchaikovsky seriam ou não dançantes numa “balada” de hoje? Este é um detalhe circunstancial que não cancela o fato mais amplo de que aquela música foi feita para um tipo de dança, tão legítimo quanto qualquer outro.
O jazz era freneticamente dançado nos anos 1920, 30, 40. Vemos nos documentários antigos uma orquestra tocando no palco e centenas de negros mandando ver no salão. Sofisticou-se, intelectualizou-se, mas a pulsação dançante ainda estala o dedo ao longo das semifusas. Algo parecido se defende hoje para o frevo. Muitos compositores e instrumentistas querem que o frevo não seja apenas um pretexto para “fazer o passo” no Carnaval, mas uma música que cresça em si própria e possa ser ouvida pela beleza de música que contém.
1927) A Coisa Pública e a Privada (13.5.2009)

Os políticos costumam confundir a Coisa Pública com a Privada. Esta curiosa expressão, “coisa pública” (em latim, “res publica”) batizou nossa forma de governo, a República, em que todos os cidadãos contribuem com uma parte dos seus ganhos e nomeiam, a intervalos regulares, funcionários de confiança para administrar esse dinheiro. A Coisa é pública pela sua origem (a contribuição é de todos) e também pelo seu destino, porque o dinheiro deve ser empregado em obras de interesse de todos. Só que é uma dessas situações em forma de ampulheta, com dois imensos espaços ligados por um gargalo minúsculo. Para que o dinheiro investido por todos chegue às obras que são do interesse de todos, cada grão de areia deve passar por esse gargalo, que se chama Administração (da Coisa) Pública.
Não era assim que eu via a questão quando garoto. Na minha infância, tínhamos uma noção obscura de que os políticos eram “As Pessoas Que Mandam no Mundo”. Alguém ou Algo lhes dava esse direito de mandar em todos os cidadãos: “É proibido fazer isso! É obrigado a fazer aquilo!” E o cidadão tinha mais era que obedecer as ordens dos políticos, senão ia preso. Eram como deuses. Vi, com o coração batendo forte, o carro aberto em que Juscelino Kubitschek adentrou Campina, dando a volta pelo Açude Velho e subindo a Rua Miguel Couto rumo ao centro da cidade. Contemplei à distância, agarrado à mão de Tia Adiza, os vultos ora de Severino Cabral, ora de Newton Rique, discursando em palanques iluminados, sob o pipocar das girândolas. Newton chegava ao microfone, esperava amainar a gritaria e dizia com voz calma: “Campinenses amigos...” E eram mais dez minutos de foguetão e “Vassourinha” antes que ele pudesse prosseguir no discurso.
“Quem manda em Campina?”, perguntava eu, ansioso, aos cinco ou seis anos. E minha mãe, taxativa: “O Prefeito”. Eu insistia: “E no Brasil?” E ela: “O Presidente da República”. Um dia, fui mais longe: “E quem manda no mundo?” Ela titubeou, mas a fé falou mais alto: “O Papa”. Eu digeri aquela informação e depois revelei meu plano: “Quando eu crescer quero ser o Papa”. Na verdade, não me movia a vontade de mandar em ninguém. A única coisa que eu desejava era que não houvesse ninguém mandando em mim.
A República mudou a forma de escolha dos governantes mas não mudou a atitude papal de submissão e respeito, herdada da Monarquia. O povo daquele tempo via os reis como representantes legítimos de Deus na Terra, a quem devemos obediência e louvores. E de certo modo é assim que vê ainda hoje os políticos, sejam eles vereadores, deputados, prefeitos, governadores ou presidentes. Em vez de vê-los como profissionais pagos para resolver um problema, são vistos como “As Pessoas Que Mandam Na Gente”. As repúblicas de hoje são como uma fazenda cujo dono vive nela sem saber que é sua. Pensa que o proprietário é o caseiro que a administra, e que vive nela à tripa forra.
1926) Ballard e a FC (12.5.2009)
Uma página de tributo ao escritor recém-falecido J. G. Ballard foi criada no saite Omnivoracious (http://tinyurl.com/cavvsj), com links para numerosos depoimentos.
Para quem quiser conhecer melhor suas idéias, antes de chegar aos livros propriamente ditos, um bom começo é o saite “Ballard”, em http://www.jgballard.ca/.
Ballard era um homem culto, de informação variada e surpreendente, além de extremamente articulado. É notável a sua capacidade de jogar idéias espantosas e verossímeis no colo do interlocutor, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Seu livro de ensaios e artigos A User’s Guide to the Millenium (1996) tem sido uma fonte permanente de temas para esta coluna. Um saite com um grande número de entrevistas, que vão de 1966 a 2008, é: http://tinyurl.com/y29w2d4.
Para os espectadores de cinema, Ballard tornou-se mais conhecido através de dois filmes. O primeiro deles é O Império do Sol de Steven Spielberg, a história de um garoto inglês que, durante a II Guerra Mundial, se perde dos seus pais em Xangai, onde moravam, e acaba passando o resto da Guerra num campo de prisioneiros. É a infância do próprio Ballard, que ele recontou num livro autobiográfico e Spielberg adaptou com sensibilidade e estilo. O outro filme é Crash de David Cronenberg (não confundir com Crash – No limite, filme vencedor do Oscar há alguns anos). Baseado num livro de Ballard, é a história de um grupo de homens e mulheres que têm fixação erótica em automóveis, em acidentes de carro e em pessoas mutiladas por esses acidentes. Com James Spader e Rosana Arquette, é um filme doentio, incômodo e verdadeiro sobre o fetichismo do corpo e da máquina, e o impulso simultâneo do auto-erotismo e da auto-destruição.
Uma das grandes influências na obra de Ballard foi o Surrealismo dos anos 1920, e talvez por isto sua ficção científica destoe tanto da FC norte-americana, que parece não ter tomado conhecimento de André Breton e seus seguidores. O que é uma pena. O Surrealismo e a obra de Freud, que para Ballard estão sempre próximos, lhe serviram para criar o conceito de Espaço Interior (“inner space”) que ele contrapôs ao Espaço Exterior (o sistema solar, as estrelas, a galáxia), domínio preferencial da FC clássica. Ballard argumentava que o mundo da mente era mais amplo, mais surpreendente e mais acessível do que a Via Láctea, e não via motivo para que a ficção científica se limitasse a “ir lá para fora” sem dar muita importância ao que ocorria “aqui dentro”.
Comentando a obra de William Burroughs, com a qual ele tanto se identificava, disse Ballard: “A conclusão a que Burroughs chega em sua obra é de que a guerra entre a sociedade e a liberdade individual, uma liberdade que consiste apenas em ser um indivíduo, nunca pode acabar, e em última análise a única escolha que nos resta é viver em nossos próprios pesadelos ou nos pesadelos dos outros”.
1925) A escova elétrica (10.5.2009)

Entre os muitos absurdos do mundo tecnológico um dos meus preferidos é a escova-de-dentes elétrica. Já experimentei essa engenhoca. Você coloca pasta, encosta nos dentes as cerdas da escova e aperta um botão. A escova começa a zumbir e a vibrar, e as cerdas se movimentam ritmicamente, friccionando os dentes. Você fica ali paradão, atrofiando os músculos do braço, enquanto o aparelho vai consumindo seus volts ou watts de energia, sugados da hidrelétrica mais próxima.
As invenções científicas surgem de um preguiçoso que fica tardes inteiras pensando: “Deve existir uma maneira de conseguir isso sem fazer força”. As invenções mecânicas básicas (a alavanca, a roldana, o plano inclinado, a roda, etc.) apareceram assim. Foram necessárias, concordo, para as grandes obras de arte arquitetônica, porque sem elas não teríamos as Pirâmides ou as catedrais góticas. Mas deram origem também a um sem-número de besteiras, principalmente nos últimos cem anos, quando o mundo ocidental industrializado foi tomado por uma febre rubegoldberguiana para a construção de engenhocas inverossímeis, abstrusas e irrelevantes, cujo único objetivo era evitar que um mané fizesse um dispêndio mínimo de energia muscular.
Quando eu era pequeno as pequenas invenções da ficção científica eram fonte permanente de inspiração para que O Preguiçoso Em Mim sonhasse com um futuro estilo Os Jetsons. Quantas vezes fiquei na mesa do almoço, tentando cortar um bife recalcitrante, e imaginando uma faca com o cabo oco, dentro do qual houvesse um mecanismo de tração, fazendo com que bastasse a gente encostá-la no bife e apertar um botão, para que a lâmina ficasse indo-e-vindo velozmente, e a gente se limitasse a apoiá-la no bife.
O controle remoto da TV já foi apontado como a grande conquista científica do século 20, maior que a energia atômica ou os voos espaciais. Só estou esperando a hora em que tenhamos um que nos permita apagar ou acender a lâmpada da sala sem que a gente precise erguer da poltrona a nossa crescente adiposidade.
Aos olhos das pessoas que inventam e fabricam essas coisas, a economia de esforço muscular se justifica por si mesma, é um bem em si, um valor absoluto. Ela tem como efeito colateral a tecnologia oposta: a do esforço muscular sem finalidade alguma: as esteiras e bicicletas ergométricas, os puxa-ferro das academias. Nada disso tem qualquer utilidade a não ser recuperar o tônus muscular que deixamos atrofiar-se usando os demais aparelhos. Isso gera o divertido círculo vicioso em que pagamos por um instrumento elétrico para que ele nos poupe esforço físico, e depois pagamos por outro instrumento elétrico para fazermos um esforço físico sem qualquer utilidade prática. Quando a FC diz que os homens um dia viverão para servir às máquinas, amigos, não estão dizendo que um dia teremos um computador na Presidência da República (embora provavelmente venhamos a ter, e rodando Windows).
1924) Slinkachu – a vida em miniatura (9.5.2009)
Gosto de quem faz pequenas interferências, às vezes quase imperceptíveis, na paisagem urbana, como Banksy, e de quem faz interferências gigantescas e despropositadas, como Christo.
Também gosto de trabalhos que envolvem algo feito em escala minúscula: esculturas em palitos de fósforos, ou textos escritos na cabeça de um alfinete.
Essas duas pequenas artes estão misturadas no trabalho do artista conhecido como Slinkachu, e que pode ser visto, entre outros saites, aqui: http://slinkachu.blogspot.com/.
Slinkachu pega pequenos bonecos, com alguns milímetros de altura, que ele retira de “kits” de joguinhos em geral, e os coloca em situações peculiares em certos lugares do ambiente urbano. A dois ou três metros de distância, os bonecos são praticamente invisíveis, a menos que a gente calhe de olhar exatamente para aquele ponto do chão. Fotografados de perto, e ampliados, eles nos dão a curiosa sensação de serem bonecos humanos em tamanho natural, engajados em algum tipo de atividade.
É, como diz um comentarista anônimo de jornal, “uma Londres liliputiana” que aparece nessas fotografias, uma Londres invisível pela qual talvez os londrinos de carne e osso estejam passando diariamente sem perceber.
As fotos aqui (http://www.little-people.blogspot.com) são mais elucidativas. O artista tira uma foto em detalhe, que nos dá a tal sensação de que aquilo é em tamanho natural, e em seguida mostra fotos a uns dois metros de distância, em que mal vemos o bonequinho no chão, e depois mais longe ainda, quando por fim temos idéia do trecho da cidade onde o boneco foi colocado, mas o boneco em si já se tornou invisível.
É um skatista deslizando no interior da casca de uma tangerina; é o pai mandando a filha tomar cuidado enquanto lhe mostra uma abelha morta quase do tamanho dele; é o homem de paletó encostado a um palito de fósforo como se fosse um poste de rua; é o rapaz de casaco entrando numa caixinha de hamburger do MacDonald’s como se fosse uma espaçonave pousada; é a família confortavelmente instalada sobre a carapaça de um caracol...
São “cenas da vida minúscula”, como no romance de Moacyr Scliar. Cenas que curiosamente também só assumem pleno sentido quando são fotografadas e ampliadas. Faz parte da natureza do trabalho de Slinkachu que a obra física em si seja quase impossível de ver, e passe despercebida pela quase totalidade das pessoas, podendo até ser esmagada pelos sapatos de alguns. A obra existe mas é inacessível como obra – só podemos acessá-la quando ela é fotografada, ampliada, e pode enfim nos produzir aquela breve desorientação de ver pessoas normais numa terra de gigantes, ou quem sabe o contrário.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
1923) “As Veias Abertas da América Latina” (8.5.2009)

O mundo globalizado é uma graça. Durante a recente reunião da OEA, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, que é mais ator do que Ronald Reagan e mais camelô que Sílvio Santos, deu um jeito de se aproximar do presidente Obama e oferecer-lhe um livro: As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. O resultado mais imediato disto é que as encomendas do livro na Amazon Books dispararam, e a obra de Galeano já está em 95o. lugar entre os mais vendidos. Coisa que o nobre coleguinha uruguaio provavelmente jamais imaginou, embora mereça, e muito.
As Veias Abertas... é uma mistura de crônica surrealista, manifesto político e reportagem histórica. Galeano conta, baseado em milhares de documentos, a história do carnaval que as empresas européias e norte-americanas fazem em nosso continente desde que Colombo arriou âncora. São quinhentos anos de invasões, chacinas étnicas, extração brutal de riquezas vegetais e minerais, abusos colonialistas, repressão impiedosa de movimentos populares, ditaduras corruptas financiadas por investidores estrangeiros. É um dos livros mais aterrorizantes que já li, porque num momento parecemos estar lendo um daqueles delírios tropicalistas de Glauber Rocha ou de Astúrias, e no momento seguinte nos convencemos de que tudo aquilo aconteceu, está nos livros de História dos respectivos países, só que narrado noutro tom, dando outro viés aos fatos e outros adjetivos que protagonistas.
Galeano é, além de grande jornalista, um estilista capaz de nos fazer ler e reler uma história angustiante apenas pela beleza das frases. Nos anos 1970 li seus livros Vagamundo e A Canção da Nossa Gente interessado na análise política que ele prometia. Reli ambos apenas para saborear os parágrafos brilhantes, as frases cheias de observações agudas do caráter humano, das ambiguidades da luta política, das incertezas e desesperos do amor entre homem e mulher.
Em cada página do livro encontramos episódios surrealistas que parecem inventados por Garcia Márquez. Como este (pag. 178): “E cinco meses antes, no Cañadon del Arque, o helicóptero do general René Barrientos tinha-se chocado contra os fios do telégrafo e ido a pique. A imaginação não teria sido capaz de inventar uma morte tão perfeita. O helicóptero era um presente pessoal da Gulf Oil Co.; o telégrafo pertence, como se sabe, ao Estado. Junto com Barrientos arderam pastas cheias de dinheiro que ele levava para distribuir, nota por nota, entre os camponeses, e algumas metralhadoras que logo pegaram fogo e começaram a regar uma chuva de balas em torno do helicóptero incendiado, de tal modo que ninguém pôde chegar perto para resgatar o ditador enquanto se queimava vivo”. O livro está cheio de episódios assim – surrealistas, simbólicos – coisas que um leitor norte-americano médio talvez não acredite. Mas o presidente Obama tem um pé no Quênia, e sabe que tudo isso pode não ser realista mas é real.
1922) Bloqueio no eu poético (7.5.2009)

Em seu segundo LP, lançado em 1967, Chico Buarque incluiu uma bela canção intitulada “Com açúcar, com afeto”. No texto de contracapa, comentando o disco, ele diz: “Insisti ainda em colocar no disco o ‘Com açúcar, com afeto’, que eu não poderia cantar por motivos óbvios. O problema foi solucionado com rara felicidade pela voz tristonha e afinadíssima de Jane, que ao lado de seus dois irmãos Morais, enfeitou a ‘Noite dos Mascarados’".
Vejam como o nosso poeta evoluiu mais do que um Pokemon! “Não poderia cantar, por motivos óbvios”. O motivo óbvio é que a letra da canção nos mostra uma mulher, na primeira pessoa, dirigindo-se ao marido ou companheiro, e dizendo que faz de tudo para prendê-lo em casa, mas ele só quer saber da boemia: “Com açúcar, com afeto, / fiz seu doce predileto / pra você parar em casa... Qual o que! / Com seu terno mais bonito / você sai, nem acredito / quando diz que não se atrasa...” A narradora da canção é uma típica mulher-de-malandro numa versão light. Afinal, o cara não a maltrata nem a explora – apenas quer se divertir, com uma inocência que não existe mais. Chega na madruga e ela o recebe: “E ao lhe ver assim cansado / maltrapilho e maltratado / ainda quis me aborrecer... Qual o que! / Logo vou esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro os meus braços pra você”.
O único motivo para Chico não cantar isto hoje só poderia ser a ira das feministas anti-amélia. Mas naquela época um homem cantar letra em nome de uma mulher ainda era uma coisa estranha. Surgiriam piadinhas de duplo sentido, etc. E tudo por que? Pela visão “naïf”, que ainda existe muito nas platéias artísticas, e que identifica o Eu do personagem com o Eu do autor. Se se ouve alguém cantando uma canção e dizendo “eu acho isto, eu fiz aquilo”, pressupõe-se que é o Eu do cantor ou do autor da música. Para essa mentalidade, todo texto lírico é autobiográfico.
Chico Buarque rapidamente rompeu com essa convenção e talvez seja hoje o compositor de MPB que mais escreveu (e gravou) canções na primeira pessoa com “eu” feminino. Não farei a lista porque nesta coluna não cabe, mas a constância e a competência com que ele explorou esse sub-gênero o fez ser chamado “o Chico Xavier da alma feminina”.
“Je est un autre”, disse famosamente Arthur Rimbaud. Eu é um outro; eu é outra pessoa. Quem pronuncia a palavra Eu não é tudo aquilo que eu sou, é apenas um setor que toma a frente, como um partido que chega ao poder e passa a falar em nome de todo mundo. Tem gente que comete um crime e diz: “Foi o Demônio que se apossou de mim”. Não foi o Demônio, meu camarada: foi o Eu. Quando pronunciamos esta sílaba o fazemos em nome de tudo que existe dentro de nós. Por que esperar, então, que quando um poeta diz “Eu” num poema esteja sendo autobiográfico? “Eu” envolve, como dizia Pessoa, “o eu profundo e os outros eus”, porque, como disse Mário de Andrade, “eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”.
1921) J. G. Ballard (1930-2009) (6.5.2009)

O trabalho tem atrapalhado minha vida de tal forma que somente no dia 1o. de maio fiquei sabendo que o escritor inglês J. G. Ballard havia morrido em 19 de abril. Sincronicidade? Dias atrás, sem saber de nada, peguei um volume dos contos de Ballard e fiquei me deliciando com suas histórias dos anos 1960. Contos de ficção científica sobre artistas que produzem, para o deleite de milionários entediados, novas formas de arte – estátuas cantantes, ou flores musicais. Histórias de catástrofes ambientais, num mundo onde tecnologia e fantástico se misturam. Uma aventura de Flash Gordon com personagens de Samuel Beckett e objetos-de-cena de Salvador Dali.
A obra de Ballard é uma das mais cruéis e premonitórias de toda a FC. É ao mesmo tempo caricatural e realista, uma versão em alto-contraste das perversões, fetichismos e indústrias-do-prazer de nossa civilização. Embora haja um conteúdo sexual nisso tudo, não é apenas de sexo que se trata, porque – por exemplo – grande parte do fetichismo de nossa Mídia Ambiente se dá através da propaganda e do consumo insaciável de novos modelos de roupas, de carros, de eletroeletrônicos, de cosméticos, de canções, de celebridades... As histórias de Ballard são pequenas fábulas mitológicas onde os deuses são substituídos por produtos industriais, o que inclui a indústria das imagens: propaganda, filmes de Hollywood, a política, as colunas sociais.
Um dos seus livros mais desconcertantes e polêmicos, The Atrocity Exhibition (1969), tem textos (seria questionável chamá-los “contos”) com títulos como “Plan for the assassination of Jacqueline Kennedy” e “Why I want to fuck Ronald Reagan”. Ballard usa esses nomes próprios, e (indiretamente) as imagens públicas que eles evocam, como alvo de pesquisas imaginárias sobre impulsos eróticos e agressivos, que tanto podem envolver o desejo sexual quanto fantasias de atentados homicidas. A vida real tem, consistentemente, confirmado suas hipóteses.
Ballard sempre foi na comunidade da FC uma presença incômoda, alguém que veio “desafinar o coro dos contentes”. A FC americana tende a ser um entretenimento adolescente, que na maturidade evolui para um otimismo tecnomilitar. Seu sonho é a colonização triunfal do Universo pela espécie humana (ou seja, os EUA). Ballard era da linha pessimista e desiludida que predomina no Reino Unido, e que vê a humanidade mais próxima de se destruir por seus próprios meios do que de transformar a Via Láctea numa extensão da Califórnia. Sua FC nunca teve o entusiasmo juvenil e a fé no futuro que vemos em Arthur C. Clarke ou Isaac Asimov. Seu mundo é freudiano e sombrio, dominado por forças que os personagens não percebem. Drogas, fetiches eletrônicos, dinheiro, perversões sexuais e impulso-de-Tânatos aparecem o tempo todo no raio-X de seus contos e romances. São fatores que parte da FC não sabe como lidar, porque contradiz seu ufanismo triunfalista em permanente lua-de-mel com a tecnologia.
1920) Os campeões regionais (5.5.2009)

Quem salvou meu fim de semana acabou sendo o Flamengo. O Treze perdeu para o Sousa uma decisão que, aos meus olhos distantes, parecia tranquila e sem sobressaltos. Perder de virada no Amigão, jogando pelo empate, é coisa para tirar o sono. Vocês que me expliquem, porque minha lógica e minha oratória têm limites. Quem tinha uma missão impossível para cumprir foi meu outro Galo, o Atlético Mineiro, que pelo segundo ano seguido conseguiu perder o primeiro jogo da decisão, para o Cruzeiro, por 5x0. Um time que sai de campo com um resultado assim não tem muita noção de para onde está indo, não é mesmo?
Como moro no Rio, só tenho o direito de assistir ao vivo este capenga Campeonato Carioca, em plena decadência. (Quem o diz não é o paraíba aqui, é a imprensa carioca.) Se você juntar os 44 jogadores de Flamengo, Botafogo, Fluminense e Vasco não dá um time capaz de chegar nas finais do Campeonato Paulista. É sempre uma disputa para ver quem é o menos ruim, o que erra menos, o que tem menos azar. Mais uma vez deu Flamengo.
Não há como não falar do Botafogo. Tem um time arrumadinho, veloz, dedicado, mas, como reza há milênios a cultura oral, “tem certas coisas que só acontecem com o Botafogo”. Este ano, tinha um time melhor do que todos os demais, e uma coisa que o Flamengo não tem: atacantes. O Flamengo chega onde chega, todo ano, por causa do goleiro Bruno, dos laterais-artilheiros Léo Moura e Juan, dos zagueiros-artilheiros Ronaldo Angelim e Fábio Luciano, e de meio-campistas-artilheiros como Ibson, Kleberson, etc. No Flamengo todo mundo é artilheiro, menos os atacantes, que são de uma incompetência patética, constrangedora. Se a gente passar num liquidificador Obina, Josiel, Zé Roberto e Emerson não dá um jogador capaz de jogar sequer pelo Campinense. O fato de um estabanado sem talento como Josiel ganhar 194 mil reais por mês merecia uma CPI.
Já o Botafogo tem Maicossuel, Reinaldo e Victor Simões. Tá certo, não são craques de encher os olhos, mas se passar os três num liquidificador dá um atacante e meio, que é muito mais do que o Flamengo tem há anos. E aí, na reta final do Campeonato, o que acontece? Dois deles se machucam. Não sei se o leitor estava vendo o jogo passado. Estava 2x1 para o Botafogo (o Fla viria a empatar no finzinho). O Flamengo perdeu a bola no ataque e o Botafogo disparou um contra-ataque rápido com seus três jogadores de frente. E de repente o que a gente viu foi Reinaldo desmoronando para um lado e Maicossuel tombando para o outro. Não houve esbarrão, não houve falta; nenhum jogador do Flamengo sequer tocou neles. Foram ao chão como se tivessem sido abatidos por dois atiradores de elite. Reinaldo torceu sozinho o tornozelo, Maicossuel estirou sozinho um músculo da coxa. O campeonato foi decidido nesse lance surrealista em que dois jogadores se machucaram a si mesmos num só lance. Coisas que só acontecem com o Botafogo.
1919) Vossa Excelência vá se... (3.5.2009)
O episódio recente do bate-boca entre dois ministros do Supremo (“Vossa Excelência me respeite!” – “Vossa Excelência não pode dar lição de moral a ninguém!” – “Vossa Excelência não está falando com seus capangas no Mato Grosso!”, etc.) trouxe de novo à discussão um aspecto que deixa intrigado o cidadão comum: é possível insultar e agredir verbalmente uma pessoa, e ao mesmo tempo manter todo o decoro típico de um relacionamento formal?
Ao que tudo indica, em breve ouviremos pela primeira vez na TV a cabo do governo a frase histórica: “Vossa Excelência vá se f...”.
Os três pontinhos que encerram o parágrafo anterior são o X dessa questão. Qualquer leitor mediano sabe a palavra a que eles correspondem, mas nenhum poderá me acusar de estar usando na minha coluna palavras de baixo calão, porque nenhuma delas foi usada. O que eu fiz foi sugerir habilmente um contexto em que cabem somente certas palavras, e deixar a responsabilidade por elas para o leitor.
Tudo isto tem a ver com a existência da censura em nosso país. É impossível uma cultura sem censura – citem-me um exemplo, por favor, porque desconheço. Em todo lugar existe algo que é proibido dizer, fazer ou mostrar.
Aqui no Brasil, driblar a Censura é um esporte nacional. Por exemplo, nas propagandas de cerveja na TV é proibido mostrar as pessoas bebendo a cerveja. Eles enchem copos, lambem os lábios, derramam espuma, brindam, abraçam-se, roçam-se nos acidentes geográficos de Juliana Paes, mas cerveja que é bom ninguém pode beber, e não bebe. Ninguém repara.
O que é isto? Uma “contrainte”, uma restrição auto-imposta ou forçada de cima para baixo pelas autoridades. Como dizer uma coisa, fazer todos perceberem que essa coisa foi dita, mas poder provar tecnicamente que não a disse em momento algum?
Nos tempos da ditadura militar, O Pasquim usava muito palavrão, e a Censura caiu em cima. O que fizeram eles? Substituíram os palavrões por asteriscos, e ficou tudo na mesma, porque todo mundo entendia: “Ora, vá tomar no (*)! – Meu camarada, você tem mais é que se (*)! – “Me disseram que ela está (*) com todo mundo de Ipanema!” -- “Ora essa, você que vá pra (*) que (*)!”. O uso foi tão banalizado que os próprios pasquineiros verbalizaram o proibido, criando a frase “Vá pra asterisca que asterisquiu!”, obra-prima de diplomacia, sutileza e escracho, que devia ser adotada em todos os espaços públicos brasileiros.
A ritualização das funções políticas exige determinadas formas de tratamento (“Vossa Reverendíssima”, “Vossa Magnificência”, etc.) e faz tanto caso delas que é mais grave deixar de usá-las do que, usando-as, mandar o presidente, o desembargador ou o prefeito se f...
A manutenção do tratamento formal protege o falante, o qual sempre poderá alegar que ofendeu o interlocutor mas, mantendo o tratamento, não ofendeu nem o “egrégio tribunal” nem o “colendo conselho”. E quem achar ruim que se asterisque.
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