segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

1658) O que é steampunk (5.7.2008)




Um dos meus ramos preferidos da ficção científica é o gênero chamado “steampunk”, histórias de FC ambientadas na segunda metade do século 19, de preferência em Londres. Como surgiu esse subgênero? Talvez tenha algo a ver com uma homenagem a escritores que foram pioneiros da FC e Fantasia escrevendo nesse período: H. G. Wells, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, H. Rider Haggard, Bram Stoker, etc.

O nome “steampunk” é uma “variante de “cyberpunk”. Este último fala dos marginais (“punk”) numa sociedade cibernética; o outro fala dos marginais numa sociedade movida a vapor (“steam”). Os romances “steampunk” transcorrem numa civilização em que as invenções fictícias coexistem com lampiões de gás, zepelins, balões, coches puxados a cavalo, locomotivas, etc. É o mundo de Sherlock Holmes, de Jack o Estripador, dos heróis de Charles Dickens, só que invadido de repente por alienígenas, homens artificiais, computadores mecânicos, máquinas do tempo, sociedades secretas, etc.

Em The Difference Engine, de William Gibson & Bruce Sterling, imagina-se que foi possível aos britânicos construir o gigantesco computador mecânico imaginado por Charles Babbage, que funcionava de modo parecido com aquelas calculadoras manuais que tínhamos antigamente nos escritórios – engrenagens, alavancas, rodas dentadas... Um computador assim jamais foi construído (seria, dizem, inviável do ponto de vista mecânico); mas Gibson & Sterling imaginam que ele foi construído, funcionou, e a partir daí colocam na sociedade inglesa de 1855 uma série de elementos transformadores que, na vida real, só vieram a acontecer 150 anos depois.

Um filme “steampunk” recente é O Grande Truque (The Prestige), em que Christian Bale e Hugh Jackman fazem dois mágicos de teatro envolvidos numa batalha de egos; o lado FC da história vem através da presença do inventor Nikolas Tesla, a quem cabe transformar o filme numa história legítima de FC.

O charme maior do “steampunk” é a mistura anacrônica entre o antigo e o futurista. Paradoxalmente, o futurista às vezes é muito próximo ao nosso cotidiano do século 21, principalmente no que se refere a informática, equipamentos eletrônicos, etc. E a tecnologia da época Vitoriana nos leva de volta a uma época em que havia uma crença ilimitada na razão da Ciência e nos inevitáveis benefícios que ela nos traria. A Ciência de hoje está inextricavelmente entrelaçada ao nosso cotidiano, aos nossos problemas. Engenharia genética, clones, DNA, tudo isto está permeado de comercialismo e exploração industrial. O programa espacial vive marcando passo. Os computadores dominaram o mundo, mas se nivelaram ao automóvel e à TV, banalizaram-se como meras engenhocas domésticas. O cenário Vitoriano, levando-nos de volta aos tempos de Julio Verne e H. G. Wells, nos transporta para um momento mágico da História em que tudo parecia ainda mais possível do que hoje.

1657) Acredite, Fluminense (4.7.2008)




Peço desculpas mais uma vez aos meus vinte e poucos leitores, principalmente leitoras, que não se interessam por futebol. Tenho que voltar mais uma vez ao assunto, mas não tem outro jeito, é uma disputa atrás da outra: final de Copa do Brasil, Eurocopa, Taça Libertadores... Esta última, curiosamente, me fez experimentar emoções novas, algo que um torcedor calejado como eu julgava impossível de surgir a esta altura de tantos campeonatos. Na quarta-feira 2 de julho, na casa de amigos, diante de um telão gigantesco e de cerveja farta servida por solícitos garçons, assisti a partida final travada no Maracanã entre Fluminense e LDU do Equador. E me vi, eu flamenguista de DNA, torcendo, sofrendo e me abatendo com a vitória-derrota do tricolor.

O Fluminense perdera o primeiro jogo por 4x2. Precisava ganhar por dois gols para empatar a disputa e ir para os pênaltis. Levou um gol aos cinco minutos de jogo, o que transformou o placar acumulado (critério que se usa nesse torneio) em 5x2 para a LDU. Pois o tricolor correu atrás, e Thiago Neves entrou para a História, fazendo três gols que viraram o placar para 3x1 (ou seja, 5x5). Mas aí vieram os pênaltis. Os aziagos, os fatídicos, os inapeláveis pênaltis. Dizem que pênalti é loteria. Não é. Pênalti é treino e tranqüilidade, duas coisas que obviamente faltaram aos cobradores do tricolor. O Flu perdeu três, todos eles mal batidos. Um por Conca, o melhor do time; outro por Thiago, o homem dos 3 gols históricos, e o último por Washington, um centroavante que admiro, mas que fez nessa noite talvez a pior partida de sua carreira. Na hora de bater, estava visivelmente acabrunhado e sem forças.

Teve outra coisa. O goleiro da LDU, que já tinha defendido o primeiro pênalti (Conca), fez uma catimba no segundo. Quando Thiago partiu para a bola, ele abandonou o gol caminhando e dirigiu-se ao juiz fingindo que ia reclamar algo. O chute entrou, mas o juiz, desconcertado, mandou repetir a cobrança. Isso matou o Fluminense. Quando um jogador bate um pênalti numa circunstância como aquela, ele concentra toda a adrenalina que lhe resta (após 120 minutos de esforço) naquele único chute. Se for obrigado a repeti-lo, chuta sem força, sem convicção, extenuado. Foi o que aconteceu com o bravo Thiago Neves, que na segunda vez chutou fraco, em cima do goleiro. Isso desorientou de vez o Flu, e na cobrança seguinte Washington também chutou fraquinho, no goleiro. Acabou, fim de jogo, chau e bença, bata o prego na tampa do caixão.

Chorar? O cara sempre chora (eu, flamenguista, quase chorei vendo o drama alheio em redor). Mas ergam a cabeça, colegas. O Flu foi vice-campeão, e cumpriu jornadas memoráveis, no Maracanã e fora dele. Caiu lutando, de cabeça erguida. Quem pagou mico foi o Flamengo, naquele vexame de 3x0 contra o time do México. Se meu time tinha que perder na Libertadores, quem me dera que fosse da maneira como o Fluminense perdeu.

1656) “Poesia” e “romance” (3.7.2008)




(a 1a. imagem da pesquisa do Google para a palavra "romance")

Certa vez, num debate, uma senhora da platéia opinou: 

-- Eu não sei por que consideram João Cabral um dos maiores poetas brasileiros. As coisas que ele escreve não têm poesia nenhuma. 

Eu perguntei: 

-- O que é poesia, para a senhora? Que poesia é essa que a sra. não encontra nos poemas dele? 

E ela disse: 

-- Ora!... É uma criança sorrindo, um pássaro cantando, uma mãe vendo o filhinho adormecido... Poesia é isso! 

Não manguem, companheiros, porque ela tinha lá suas razões. Durante muito tempo (milênios, ao que parece) era voz geral de que a poesia existia para falar nesses assuntos, reproduzir essas imagens.

O que há é que a poesia lírica brasileira dedicou-se a esses temas durante muito tempo. São temas simples, entendíveis por qualquer leitor (e leitora), de fácil ressonância afetiva. Estão para a literatura assim como estão para a pintura os quadros a óleo representando crepúsculos, jarros de flores, praias com coqueiros. 

Os leitores que gostam disso consideram que a função da poesia escrita é falar sobre isso, e se quedam perplexos quando Cabral vem falar de cabras.

O que aconteceu foi uma contaminação da forma literária, a poesia, por um conteúdo específico que se cultivou através dela por algum tempo. A poesia pode e deve falar de qualquer coisa. É uma forma de criação verbal sujeita a regras quanto a sua forma, sem restrições ou obrigatoriedades quanto ao assunto. 

Mas quando se insiste muito num tema específico ele passa a ser identificado com o próprio conceito de Poesia.

Coisa parecida, e ainda mais complicada, se dá com a palavra “romance”. Muito antigamente, era todo o conjunto de narrativas feitas nas línguas românicas, ou seja, aquele monte de idiomas resultantes do Latim, falado pelos romanos. 

Depois passou a ser usado para designar narrativas em prosa de uma certa extensão. 

Do século 19 em diante, com o aumento da alfabetização e a expansão do público leitor, principalmente o público leitor de livrinhos bem baratos, proliferaram as histórias de amor, casamento, traição, fidelidade, etc. Histórias muitas vezes contadas do ponto de vista das personagens femininas: suas atribulações para achar marido, para vencer a concorrência e a maledicência das falsas amigas, para casar, para manter o marido fiel num mundo cheio de tentações... 

Enfim: romance passou a ser a narrativa em prosa que falava disso.

Ecos dessa confusão permanecem até hoje. Quando dizemos que alguém é “romântico” queremos dizer que é dado a gestos carinhosos, afetivos, que demonstram sensibilidade para com as mulheres. Ou seja: ele se comporta como os heróis daqueles “romances”. 

Os gêneros literários são definidos pelos teóricos através de suas características de forma, de estrutura, de uso da linguagem ou dos elementos narrativos. Mas o público não está nem aí para isto. O público classifica os gêneros pelos assuntos, que são, na maioria das vezes, tudo que o público consegue assimilar e perceber.






1655) Nas garras do terror (2.7.2008)



Quando estou batendo papo com o pessoal na faixa dos 20-30 anos de idade, gosto de recordar “pérolas de nostalgia” dos tempos da ditadura. Quem viveu naquela época passou por situações kafkeanas, absurdas, que hoje são motivo de gargalhadas, mas que naquele tempo, quando a gente sabia que podia ser preso e talvez torturado por motivos absolutamente banais, eram de tirar o sono. Os jovens riem e dizem: “Mas não é possível! Como é que vocês agüentavam viver num tempo assim?” E eu respondo: “Não era muito diferente dos tempos de hoje, pelo menos na Europa e nos EUA. Leiam os jornais, leiam os blogs”.

As ameaças do terrorismo estão gerando pelo mundo afora fatos e situações tão risíveis e aterrorizantes quanto os que nós, estudantes, esquerdistas e cabeludos em geral, vivíamos durante os anos Médici e Geisel. De vez em quando registro esses fatos aqui nesta coluna. Primeiro, porque isto me diverte imensamente. Segundo, porque chamando a atenção para o absurdo disso pode evitar que a gente acabe enveredando pelo mesmo caminho. Terceiro, para reafirmar uma das minhas percepções literárias favoritas, a de qualquer comportamento humano parece absurdo e ridículo, se não compartilhamos todas as mediações e motivações que lhe deram origem.

Numa simples edição do blog de Cory Doctorow (www.boingboing.net) dois desses fatos são relatados. Diz uma manchete no blog: “Empresas aéreas européias testam câmeras-espiãs em cada poltrona para detectar terrorismo em sua expressão facial”. Um projeto muito high-tech: câmara estarão focando o tempo inteiro o rosto de cada passageiro, enviando imagens que serão examinadas por um software capaz de detectar intenções terroristas. Sinais suspeitos seriam, por exemplo, passar a mão no rosto repetidas vezes, ou suar excessivamente. Câmeras colocadas no teto se encarregariam de monitorar outras atitudes suspeitas, como alguém correr dentro do avião, passar um tempo excessivo nas proximidades da cabine, etc.

Outra matéria do blog é fornecida por um correspondente. No aeroporto de Heathrow, em Londres, ele foi obrigado pelos guardas de segurança a trocar sua T-shirt. Por quê? Porque o desenho da camisa mostrava um robô dos “Transformers” empunhando uma metralhadora. Ao que parece, os guardas acharam que isto punha em risco a segurança do vôo. Civilmente, europeiamente, os guardas explicam ao rapaz que ele precisa trocar de camisa. Ele tenta apelar para o bom senso: “Olha aqui, pessoal, isto é apenas um desenho. É um robô de uma série de filmes de animação.” “Claro,” diz um guarda, “é o Megatron”. Na verdade não é o Megatron (informa o correspondente), é Optimus Prime, mas convenhamos que a identidade do robô é o que menos importa num momento como este. O que faz o passageiro? Por sorte ele está viajando apenas com bagagem de mão. Antes os olhos compenetrados da segurança, ele tira a camisa perigosa, guarda-a na mochila, veste outra, e viaja em paz.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

1654) A Copa de 1958 (1.7.2008)



(foto meramente ilustrativa)

Num domingo igual a qualquer outro, eu e minha irmã Clotilde fomos à matinal das 10 horas no Cine Babilônia. As matinais daquele tempo incluíam um desenho animado curto, um episódio de série (com 30 ou 40 minutos) e depois um filme de longa-metragem. 

Não lembro qual era o filme desse dia, mas a série era com Superman, e o cartaz mostrava Superman amarrado a um poste, cercado por zulus que dançavam erguendo as lanças. 

Voltamos para casa por volta do meio-dia (morávamos ali pertinho, na Miguel Couto) e estava havendo uma festa. Meu pai e uma meia-dúzia de amigos bebiam em voz alta. No rádio ligado a todo volume, por entre um chiado permanente, a voz metálica do locutor não parava um instante sequer. Havia uma eletricidade no ar, os homens estavam afogueados e nervosos, embora exultantes. 

Minha tia nos levou para o quarto, e explicou: “O Brasil está ganhando a Copa...” Depois fui dar uma espiada na sala, e foi justo quando o locutor no rádio expandiu e alongou uma nota musical, fazendo com que aqueles homenzarrões gigantescos (eu tinha 7 anos) explodissem todos ao mesmo tempo, pulando, abraçando-se como meninos, derrubando garrafas, entornando baldes de gelo. 

Daí em diante a festa não parou mais. O rádio foi esquecido, a gritaria continuou. Guardei (talvez por não tê-la entendido) uma frase eufórica dita por um amigo de meu pai: “E ainda dizem que galo no terreiro dos outros não canta!” Daí a pouco parou um carro em frente de casa, e desceram pessoas dançando, com os braços para o ar. Meu pai foi recebê-las no meio da rua e só então percebi que por alguma razão os vizinhos sabiam do que estava se passando, porque nos terraços e nas janelas também eles gritavam, agitando bandeiras verde-amarelas. 

Lembro que na calçada houve um momento de contradição e perplexidade. Meu pai erguia os dedos e gritava para os recém-chegados: “4x2!” E eles retrucavam o gesto: “Cinco! Foi cinco!” Vim a entender depois que a gritaria lá em casa era tão grande que perdemos a irradiação do último gol de Pelé, marcado aos 44 minutos. 

Saímos dali em carreata. Era um dia tão excepcional que nós crianças fomos também. Fomos para o SESI, onde estava havendo uma festa muito alegre, com música tocando, e as pessoas se abraçando como se fosse o aniversário de cada uma delas. A certa altura, meu pai, já triscado pelo rumontila, subiu ao palco, pegou o microfone e gritou: “Minha gente! Viva o Brasiiiiil!” Fiquei meio constrangido (“Ele pensa que todo mundo escutou o tal do jogo!”), mas todos gritaram vivas e agitaram bandeirolas. 

A Copa mesmo eu só entendi nos anos seguintes, lendo, pela ordem, todos os números da “Manchete Esportiva”, que meu pai colecionou e encadernou. Sofri, de jogo em jogo. Mesmo sabendo o resultado, ler os relatos me arrastava de volta no Tempo, alternadamente temendo a catástrofe e acreditando na vitória final. Na vida é assim, primeiro a gente vive, depois entende, e quando entende, vive de novo.








1653) “O Grande Golpe” (29.6.2008)




O “filme de assalto” é um dos gêneros cinematográficos que o público nomeia com a certeza intuitiva de quem sabe do que está falando. Os críticos o classificam como um sub-gênero do filme policial, e em inglês têm inclusive um termo específico para ele, “caper”. Os melhores filmes desse tipo obedecem a uma estrutura que acaba por transformá-los em parábolas metafísicas sobre Ordem e Caos. Um grupo de homens planeja o assalto perfeito, concebido nos mínimos detalhes, muitas vezes com uma cronometragem perfeita de cada lance, de cada ação. Na hora da execução, essa planejamento lógico é atropelado pelo que se chama “o elemento humano”. Em vez de um mecanismo funcionando com precisão de um relógio, o que vemos é o pipocar de pequenos acasos, distúrbios e imprevistos que corroem o plano por completo e o transformam num fracasso. Os filmes de assalto são a demonstração viva de que “a teoria, na prática, é outra”.

O Grande Golpe (“The Killing”, 1956) de Stanley Kubrick é herdeiro direto de dois filmes de John Huston em que um plano longamente elaborado dá com os burros nágua: O Tesouro de Sierra Madre (1947) e O Segredo das Jóias (1950). Kubrick conhecia e admirava ambos; e escalou no papel principal o mesmo protagonista desse último filme, Sterling Hayden, ator que voltaria a atual com ele em Dr. Fantástico, em 1963. Outro ator, Tim Carey, que faz aqui o papel do atirador de rifle, parece ter inspirado Peter Sellers em Dr. Strangelove, com sua fala de dentes trincados e um esgar permanente.

Kubrick inova com sua estrutura semi-documental, narração brusca, cortes rápidos, múltiplo ponto de vista, e a ação sendo descrita por um locutor impessoal, em “off” situando os fatos da fragmentada cronologia do assalto: “Meia hora antes disto, às 7 horas e 30 minutos, Fulano estava chegando no local combinado...” O múltiplo ponto de vista adotado embaralha a narrativa. Depois de mostrar uma cena pelos olhos de X, ele volta no tempo para mostrar o que vinha acontecendo com Y. Os executivos do estúdio chiaram. Exigiram que o filme fosse remontado em ordem cronológica. Kubrick, sem dinheiro e dependente dos produtores, até tentou, mas depois bateu o pé. A estrutura, que já estava toda no romance original de Lionel White, era o que o filme tinha de mais original. E ele estava certo.

Há muitos pontos de contato entre O Grande Golpe e O Segredo das Jóias. A diferença é que quando Huston dirigiu este, já era um veterano de 44 anos, e ”The Killing” era apenas o terceiro filme de Kubrick, então com 27. Os dois filmes têm um clima visual asfixiante, com aquela fotografia em claro-escuro que se tornou típica do “filme noir”. Os personagens são individualizados com traços rápidos: não são simplesmente o bandido 1, o bandido 2, etc., cada um tem um perfil, uma história, um conjunto de características que torna suas ações plausíveis, mesmo quando se comportam de forma inesperada.

1652) A vanguarda de Kenny G. (28.6.2008)



(Kenneth Goldsmith)

Eu tenho uma admiração instintiva pelas vanguardas, mesmo quando às vezes acho idiótico o que fazem. É a coragem de fazê-lo que me encanta. Outra coisa que nunca deixa de me seduzir numa vanguarda qualquer é ver que ela tem senso-de-humor. Um movimento vanguardista que consegue rir de si mesmo e do mundo é algo precioso. Nada mais chato do que o pessoal que revoluciona a Arte como se estivesse decretando uma falência ou invadindo Estalingrado. É o humor que me faz perdoar excessos em muitos grupos vanguardistas: o Surrealismo, a Patafísica, a Oulipo... Curiosamente são três movimentos literários franceses. Parece que só o humor consegue relaxar a crispação cartesiana dos francos.

Referi-me dias atrás ao poeta Kenneth Goldsmith, o criador (ou pelo menos o defensor mais ardoroso) da Poesia Conceitual. Goldsmith é o autor de Day, o livro que copia integralmente um número do “New York Times”, de 1 de setembro de 2000. É um calhamaço gigantesco, que pesa não-sei-quantos-quilos e que a maioria das pessoas concorda ser ilegível. Conceitualmente, isto coloca uma interessante questão: é ilegível porque é em formato de livro, no entanto todos os dias milhares de pessoas compram o seu equivalente em formato de jornal. Ninguém se sente na obrigação de lê-lo por inteiro, não é mesmo? Fico me perguntando se a situação seria diferente caso o exemplar escolhido por Goldsmith fosse o de 12 de setembro de 2001.

O poeta (assim ele é chamado) tem senso de humor. Ele mantém um programa semanal numa rádio de Nova Jersey sob o nome artístico de “Kenny G.”. Na abertura do saite da “Poetry Foundation” (http://poetryfoundation.org/dispatches/journals/2007.01.22.html) ele diz: “Sempre fiquei meio desconfortável ao ser chamado de poeta. Se Robert Lowell é um poeta, eu não quero ser poeta. Se Robert Frost era um poeta, eu não quero ser poeta. Se Sócrates foi um poeta, então eu considerarei a possibilidade”.

Goldsmith usa textos não-literários para produzir suas obras, como Weather (2005), a mera transcrição de um ano inteiro de boletins meteorológicos. Ele nos adverte sobre a importância de considerar os aspectos meramente físicos da escrita: “Se digitarmos um livro inteiro de Kerouac, aprenderemos mais sobre ele do que imitando seu estilo”. Sobre o livro em que copia o “New York Times”, ele se defende com eloqüência: “É o maior livro que já foi escrito. Tem tudo ali. Tem paixão, tem amor, tem guerra, tem ódio, tem vitória, tem derrota, tem homicídio, tem luxúria. E tem cotações da Bolsa. Lembra? Eles costumavam publicar as cotações da Bolsa”.

Quem quiser conhecer mais sobre esse fascinante tipo de literatura (não, colegas, não estou sendo sarcástico) pode visitar a UbuWeb em: http://ubu.com/concept/. Esse pessoal está para a literatura assim como os técnicos de estúdio e os luthiers estão para a música. Alguém terá coragem de chamá-los malucos, ou de negar-lhes entrada no templo?

1651) LDU 4x2 Fluminense (27.6.2008)




Tenho por norma torcer por qualquer time brasileiro contra qualquer time estrangeiro, portanto me abanquei diante da TV, taça de vinho em punho, chegando de uma viagem cansativa, disposto a dar meu apoio ao time de Renato Gaúcho no primeiro jogo da decisão da Taça Libertadores da América. Como moro no bairro de Laranjeiras, a 500 metros da sede do tricolor, sinto uma remota simpatia pelo time, que tem bons jogadores e fez até aqui uma ótima campanha, inclusive desclassificando o Boca Juniors em duas partidas que ficarão na História.

Mas... Até parece que eu dou azar. Foi só eu começar a torcer por ele para o Fluminense sofrer um colapso, dar um branco, amarelar, tremer das pernas, cair dos quartos. O primeiro tempo do time das Laranjeiras, quando saiu perdendo por 4x1 dos equatorianos, foi algo de desastroso, foi um Pearl Harbour, um Waterloo, uma Hiroshima. O time do Equador deitou e rolou dentro de campo. Fazendo poucas faltas, trocando bolas com uma rapidez impressionante, e contando com o aparvalhamento unânime do time carioca, a LDU abriu o placar com 2 minutos de jogo. Logo em seguida Washington perdeu um desses gols que artilheiro é proibido de perder: cara a cara com o goleiro chutou em cima dele, e nem serve a desculpa de que a bola estava para o pé esquerdo. Menos mal que o argentino Conca empatou com uma cobrança de falta perfeita.

Mas aí o Fluminense desandou de vez. A LDU fez 2x1 numa bola rebatida pela goleiro para a entrada da área, onde o equatoriano emendou de primeira para o gol, sozinho, num erro de marcação imperdoável. Fez 3x1 num escanteio cobrado no primeiro pau e muito bem desviado de cabeça por um atacante que teve um pouco de sorte, concordo, mas só tem sorte quem faz a jogada certa. E no final do primeiro tempo Washington, que viera ajudar a defesa noutro escanteio, ajudou o ataque – desviou o cruzamento e outro equatoriano empurrou para a rede.

No segundo tempo, o Flu voltou melhor, e conseguiu diminuir para 4x2. Se vencer por 3x0 no Maracanã, o que não é fora de propósito, será campeão. O jogo foi um castigo injusto para o pobre de Washington, porque se não fossem suas duas falhas (o gol que perdeu, e o gol que deu de presente ao adversário) o placar poderia ter ficado em 3x3. De um modo geral, o Fluminense conseguiu evitar um prejuízo maior. Seu resultado fora de casa é comparável ao resultado recente do Sport ao perder de 3x1 para o Corinthians, com a diferença de que no jogo da próxima quarta não será computado o critério dos gols fora de casa, e um placar de 2x0 para o Flu levará o jogo para a prorrogação.

Nem sei porque estou repetindo tudo isto, mas o jogo terminou há dez minutos e ainda estou avaliando as possibilidades de um time brasileiro ganhar a Libertadores no Maracanã, coisa que (segundo a TV) jamais aconteceu. O Flu tem futebol para fazer 3x0 ou 4x1, desde que a empáfia de Renato Gaúcho não o leve ao mesmo oba-oba que desclassificou o Flamengo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

1650) A escrita não-criativa (26.6.2008)



Artistas como Marcel Duchamp e Andy Warhol introduziram o minimalismo na criação artística. Não os estou comparando aos artistas minimalistas propriamente ditos, aqueles que se esmeram em usar o mínimo possível de elementos na composição de suas obras. Warhol e Duchamp reduziram a criação artística a um único gesto: o gesto da apropriação de algum material pré-existente. Duchamp pegava objetos que pareciam colhidos ao acaso e os expunha numa galeria, apregoando que eram obras de arte. Warhol pegava fotos de artistas ou de produtos industriais e os reproduzia em serigrafia colorida. A apropriação e a cópia viraram moda no meio das artes plásticas. Em alguns grupos, chegaram a virar dogma.

E não só lá. Li há pouco um relato (http://www.bookforum.com/inprint/015_02/2462) sobre a obra literária de Kenneth Goldsmith, o fundador do UbuWeb, saite que se auto-intitula “O YouTube da Vanguarda” e é um repositório inestimável de textos e clips de áudio e vídeo com os grandes artistas de vanguarda do século 20. Goldsmith é conhecido e respeitado como um dos líderes da Poesia Conceitual contemporânea, uma prática poética que usa algo da atitude apropriativa e copiativa de Duchamp e Warhol. (Imagino que ele se descabelaria de horror se visse sua arte resumida desta forma, mas é improvável que venha a tomar conhecimento desta coluna).

Por exemplo: no livro Day (2003), Goldsmith copiou, “ipsis litteris” um exemplar inteiro do New York Times. Notícias, colunas, comentários, cotações da Bolsa, anúncios, horóscopo, esportes, variedades... Todas as palavras desse exemplar do jornal foram copiadas, resultando num livro extenso, com mais de 800 páginas, pesando três quilos. (Está à venda na Amazon por 19 dólares, mais 12,50 de frete, se alguém se habilita.) Goldsmith também é autor de outras obras idiossincráticas como Número 111, em que ele relacionou todas as frases terminadas com o som de “r” que pôde encontrar, e depois as organizou por número de sílabas; Fidget, em que passou um dia inteiro descrevendo ao gravador cada movimento de seu corpo, e depois transcreveu tudo; e Soliloquy, em que gravou a transcreveu todas as palavras que pronunciou durante sete dias seguidos.

Um gênio? Um doido? Um picareta? Não creio. Para mim é um cara que nasceu desprovido do prazer de burilar frases e contar histórias (assim como há quem nasça desprovido de prazer sexual), mas que admira a literatura o suficiente para querer forçar seus limites e ver até onde ela agüenta. Seu amor pela literatura é intelectual, e se dá apenas na dimensão da escrita, não na dimensão da experiência humana ali contida. Ele é o caso extremo de autores como Michel Butor ou Robbe-Grillet e sua “ficção do olho”, registrando tudo que o olho do narrador ou do personagem vê; ou de Georges Perec e sua obsessão catalográfica. Acontece que Perec tem também a volúpia da fabulação, da contação de causos, que a Goldsmith parece ser inacessível.

1649) Dois milhões de celulares (25.6.2008)



Diz uma matéria recente aqui no JPB que neste mês de junho o número de celulares na Paraíba ultrapassará a marca dos dois milhões. Já é tempo de nós, jornalistas, começarmos a desalojar o microcomputador do seu trono de A Grande Revolução Tecnológica do Século 20, e começar a instalar ali esses curiosos aparelhinhos que estão se revelando como a primeira grande mutação dos micros. Sim, porque assim como um microcomputador doméstico não era apenas uma calculadora eletrônica, nem era apenas uma máquina de escrever, um celular há muito tempo deixou de ser um telefone. Ele é um micro-micro-computador multi-uso: telefone, câmera fotográfica, plataforma para acesso à Internet, etc. Com a chegada da TV digital, em breve estarei assistindo o Jornal Nacional ou o clássico no Maracanã enquanto passeio de metrô, com a telinha na mão.

O celular também está a caminho de absorver os cartões magnéticos de Banco. Por que não? Em vez de andar com um monte de visas e mastercards na carteira, bastar-me-á ter meu celular no bolso. Ao pedir a conta no restaurante, o garçom traz uma engenhoca na qual eu plugo meu aparelho, digito o número do meu Banco, da minha conta, a minha senha, e o valor da despesa, seja para débito imediato ou para cobrança na fatura do mês que bem.

Se eu tiver pachorra suficiente posso também usar o celular como máquina de escrever. Estou no botequim, degustando minha cerveja gelada com miúdos de galinha, e tive uma idéia brilhante para um artigo? Não há problema. Ali mesmo na tranqüilidade do meu recanto vou digitando o texto, e quando o tenho pronto ligo para o computador do jornal, e subo o arquivo.

O celular é calculadora, é agenda, é despertador. É também controle remoto, porque em alguns lugares já é possível ligar para o número do microondas e botar para esquentar a sopa que tomarei daqui a dez minutos, ou ligar para a geladeira e consultar (mediante um código pré-estabelecido) se ainda tem cerveja lá dentro ou se preciso comprar porque já está acabando.

O mais interessante é que a ficção científica nunca previu o celular, nunca previu os telefones pessoais, conduzidos no bolso. “Previu” coisas absurdas como helicópteros pessoais (uma espécie de mochila nas costas, com um motor e uma hélice), algo que se existisse transformaria o espaço aéreo das cidades num matadouro sanguinolento; mas não imaginou (pelo menos ao que eu saiba) que os telefones poderiam ser um dia despregados do fio e da parede, e conduzidos no bolso do usuário. Aqui e acolá viam-se “telefones de pulso” (como relógios) mas isso nunca se firmou. Em meu conto “Príncipe das Sombras” (1989) imaginei que o painel dos automóveis teria uma secretária eletrônica que receberia os recados quando o sujeito estivesse fora; retornando ao carro, ele ouviria as mensagens e se quisesse poderia fazer ligações “viva voz” enquanto guiava. Quem diria que o celular viraria pelo avesso, a tal ponto, as vidas de todos nós.