quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

1547) Altimar Pimentel (27.2.2008)



Como quase sempre acontece, conheci a obra de Altimar Pimentel bem antes de conhecer a pessoa. Aos vinte e poucos anos de idade eu estava descobrindo a cultura popular nordestina com os olhos deslumbrados de um Marco Polo que vê a China pela primeira vez. Em cada curva do caminho eu me deparava com um castelo gigantesco, uma floresta que encostava no céu, um lago maior que um oceano. Parecia não haver limite para aquela criatividade que borbotava sem parar através de versos, cantigas, histórias, encenações, folguedos, danças – tudo isto feito por escritores que não sabiam ler nem escrever, músicos que não liam partitura, instrumentistas que fabricavam seus próprios instrumentos, atores que todo dia eram obrigados a redescobrir a roda, a pólvora e a bússola.

Caiu-me nas mãos um exemplar de O Mundo Mágico de João Redondo (SNT, 1971), em que Altimar transcreve dez peças de mamulengo gravadas por ele na Paraíba nos anos 1960. Eu tinha visto (sem prestar maior atenção) algumas peças de mamulengo na infância, e posso dizer que descobri esse mundo no livro em que Altimar registrava com fluência tudo que caracteriza a criação oral improvisada: as repetições, as frases truncadas, as idas e vindas, os blocos de texto decorado intercalando-se aos diálogos espontâneos com a platéia, os fragmentos inteiros de uma história transpostos para outra por necessidade momentânea, os erros e correções em voz alta, os improvisos...

Altimar tem sua obra teatral própria, inspirada nesses criadores populares, como também o fizeram Ariano Suassuna, Luiz Marinho, Vital Santos e tantos outros. Mas para mim, que virei um cascavilhador da Literatura Oral, foram suas pesquisas e recolhas de textos que revelavam, a cada livro publicado, mais uma camada oculta dessa cordilheira de histórias que constitui a Paraíba, invisível para os que todos os dias caminham sobre ela olhando noutra direção. As Estórias de Cabedelo (v. “Beleza medonha”, 1.1.2004), as Estórias de Luzia Tereza, em que são registradas centenas de histórias-de-trancoso de uma paraibana anônima e fenomenal, os Contos Populares de Brasília (1998), um belo raio-X no imaginário dos candangos, os Contos Populares Brasileiros – Paraíba (1996, juntamente com Osvaldo Trigueiro) e tantas outras coletâneas.

Pesquisar literatura oral é como fotografar nuvens. É relacionar-se com algo que está fora do nosso alcance, que ignora a nossa existência e que muda o tempo todo. Registrar essas “literaturas da voz” não significa cristalizá-las, emoldurá-las, asfixiá-las no âmbar ou no formol. Ninguém imobiliza a cultura oral. O que Altimar fez foi fotografar no preto-e-branco da página esse espírito criativo de um povo. Precisaríamos, para dar conta do que a Paraíba tem, para que essa imensa herança não se perdesse por completo, de uns dez mil indivíduos como Altimar Pimentel. O fato de termos tão poucos os torna cada vez mais preciosos.

1546) Flamengo 2x1 Botafogo (26.2.2008)


(Diego Tardelli)

Alguns leitores (todos vascaínos) queixam-se da freqüência com que falo do Flamengo nesta coluna. (Vou comentar o quê, então? A derrota do Treze para o Campinense?!) Amigos, não gosto de fazer gozações com os perdedores, porque acho que a derrota já põe as coisas em pratos limpos – ganha quem pode, cala quem tem juízo. Também não estou querendo rivalizar com os coleguinhas do caderno esportivo, que analisam a postura tática das equipes, o desenrolar do jogo, os erros e acertos da arbitragem, etc. Meu propósito é extrair de alguns aspectos de um jogo de futebol alguma lição simbólica ou metafísica que nos ensine algo sobre o propósito da vida humana ou sobre o real funcionamento do Universo.

O jogo de domingo passado, se não foi um primor de técnica, foi um desses jogos de matar de sede o torcedor – o cara tem medo de ir pegar a cerveja na geladeira, porque se sair pode perder um lance decisivo. Aos 13 minutos o Flamengo criou uma jogada pela esquerda com Juan e Ibson, e a bola foi rolada para trás, na entrada da área, onde apareceu nosso bravo volante Jailton e a mandou para o Espaço Sideral, quase derrubando de novo o satélite defeituoso que os EUA abateram dias atrás. Jailton é apenas o símbolo de uma geração inteira: os Destruidores do Futebol, jogadores especializados em bloquear, marcar, atrapalhar, esbarrar, segurar, calçar, empurrar, derrubar. Os técnicos adoram esses jogadores, que chamam de “cães de guarda”. São eles que deixaram o futebol brasileiro do século 21 igualzinho ao futebol alemão do século 20.

Segundo exemplo: o pênalte marcado a favor do Flamengo. Todo mundo viu o zagueiro do Botafogo puxando para cima a camisa do jogador do Fla. Derrubou-o, desequilibrou-o, impediu-o de fazer um gol? Nem por sombras. E, como disse o pessoal da TV, na mesma hora havia meia-dúzia de jogadores de ambos os times puxando a camisa uns dos outros, naquela promiscuidade equívoca que precede os escanteios. O juiz poderia ter marcado falta a favor do Botafogo. Dar o pênalte ao Flamengo foi aquilo que eufemisticamente chamamos de “decisão de foto íntimo”.

Terceiro: o golaço marcado aos 46 minutos por Diego Tardelli, jogador com que não simpatizo nem um pouco. Pelo que já li na imprensa, acho-o farrista, irresponsável, pretensioso. Não importa: o gol foi de uma calma, uma lucidez e uma perfeição técnica admiráveis. Quarto: a cabeçada na trave que um jogador do Botafogo deu no último segundo da partida (e quando a defesa do Fla rebateu para longe, o juiz encerrou o jogo, porque seguro morreu de velho).

São esses pequenos detalhes – erros, acertos, falhas, faltas de sorte – que decidem a maioria dos jogos de futebol. O Fla levou um gol quando dominava; virou o jogo quando o Botafogo se apavorou; foi salvo pela trave. Nem vi a entrega da Taça, fui beber alguma coisa. Jogo bom é o que você tem medo de sair da frente da TV, porque “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.

1545) A noite escura da alma (24.2.2008)




(James Blish)

Um mistério da humanidade que para mim não tem mistério algum é: por que motivo algumas pessoas preferem trabalhar de noite, e não de dia? Como pertenço a essa espécie, meu modo de ser me parece óbvio, e os outros é que são estranhos. 

A alta madrugada é o único horário propício para o trabalho intelectual. Para escrever, para compor, ou apenas para pensar. Frederik Pohl descreve assim esse período mágico: 

“O meio da noite é especialmente benfazejo para um escritor. O telefone não toca, ninguém bate à porta, as crianças estão dormindo. É possível produzir pensamentos longos e consecutivos”.

Esta última frase diz tudo. Quem escreve precisa desenvolver idéias até uma certa extensão, sem perder de vista tudo que foi pensado antes. É um pouco como fazer castelos de cartas. Tudo se apóia numa base muito frágil. Qualquer perturbação bota tudo abaixo e é preciso recomeçar do zero. 

Eu comparo escrever a fazer contas de cabeça, somar vários números de cinco ou seis dígitos. Se a gente é interrompido, esquece tudo que veio antes, e tem que recomeçar.

Outro escritor de FC, James Blish, saiu-se com uma versão interessante e científica para essa importância atribuída à noite. Seu conto “The Dark Night of the Soul” (1956) descreve o cotidiano em uma colônia espacial situada em Calisto, um dos satélites de Júpiter. Ali, vários artistas (pintores, poetas, músicos, etc.) são reunidos para trabalhar em tempo integral, e um dos cientistas explica por quê:

“A maior parte do trabalho criativo é feito durante a noite. Durante essas horas, a massa inteira da Terra está entre você e o Sol. Ela o protege de um tipo muito penetrante de radiação solar, feito de partículas chamadas neutrinos. Estatisticamente, essa proteção é irrisória, porque toda matéria é quase perfeitamente penetrável pelos neutrinos, mas parece que os processos criativos são sensíveis até à menor proteção”. 

Quando lhe perguntam por que a colônia artística foi criada em Calisto, ele responde: 

“Primeiro, porque a esta distância do Sol o fluxo de neutrinos corresponde a apenas 3,7% do que experimentamos na Terra. O outro motivo é que por cerca de cinco horas a cada duas semanas, quer dizer, a cada ‘dia’ local, você está protegido não apenas pela massa do satélite, mas por toda a massa de Júpiter, que se interpõe entre você e o Sol. Durante esse período, você é capaz de utilizar suas forças criativas com um mínimo de interferência da estática dos neutrinos”.

A possibilidade de manter “pensamentos longos e consecutivos” é essencial para quem escreve. É como um compositor escrevendo uma sinfonia; ao escrever a parte de cada instrumento, ele precisa ter em mente tudo que os demais instrumentos estarão tocando naquele instante, lembrar o som de cada uma dessas combinações, etc. 

O pensamento linear é fácil de manter. Pensamentos complexos, simultâneos, em paralelo, só sem a interferência dos neutrinos.





1544) Minha vida em apenas seis palavras (23.2.2008)




Já falei aqui (“Contos com 6 palavras”, 26.4.2007) sobre os contos de seis palavras, um desafio inspirado no miniconto de Ernest Hemingway: “For sale – baby shoes, never worn” (“Vende-se – sapatinhos de bebê, sem uso”). (O conto nem é dele, mas isso é outra história.)

A revista online Smith lançou para seus leitores um desafio parecido: contar em seis palavras a própria vida. As respostas foram muitas e variadas. 

O quesito verossimilhança ficou um pouco fora de questão, pois os editores não poderiam checar caso a caso se o que cada colaborador afirmava de si próprio era verdade ou não – mas isto é o que menos importa. Você conseguiria resumir tudo em seis palavras?

Tentar a gente tenta. Algumas sínteses são cronológicas e bem-humoradas, como a de Dick Hadfield: “Feto, filho, irmão, marido, pai, vegetal”. 

Outras são visualmente eficazes: “Cabeça entre livros, pés sobre flores” (Heather Thomson). 

Outras são pessimistas até a medula, como a auto-avaliação de Patsy Wheatcroft: “Época errada. Classe errada. Sexo errado”. 

Outras otimistas, como a de Peter Elvish: “Companheira fiel, amor, risadas... e agora?” 

Tem uma que dá um calafrio incômodo: “Quatro casamentos, três filhos, depois câncer” (Gillian Johnson). E outra com um sabor de volta-por-cima: “Atropelada duas vezes, felizmente ainda viva” (Trudi Evans). 

Steve MacMullen impressiona pela sobriedade e ausência de ambição: “Desposei namorada de infância. Filhos. Contente”.

Na verdade não se trata de esperar dos colaboradores uma pequena façanha literária, apenas um poder de síntese satisfatório. Um tal de Patric se resume: “Nasci londrino, vivi fora, morri dentro” (no original: “Born London, lived elsewhere, died inside”). 

Jane Kirk demonstra bom humor: “Príncipe no cavalo branco nunca apareceu”. O desabusado C. North afirma: “Nenhuma nota dez, mas virei milionário”. O esperançoso Sunny Tailor pergunta: “Alguma chance de começar de novo?” 

E John Ball confessa com resignação: “Trabalhei toda vida, ainda pago impostos”. 

E Alexandra Lackey diz: “Nada de romance tipo Jane Austen”.

Quem quiser ver mais pode visitar o saite em: http://www.bbc.co.uk/radio4/today/reports/misc/sixwordlife_20080205.shtml. 

O requisito de que o texto seja autobiográfico é o de menos, porque na verdade o exercício consiste em aplicar nosso poder de síntese a qualquer assunto. Em oficinas literárias ou de roteiro, uma tarefa recorrente é: “Conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo, depois em uma lauda, depois em dez laudas”. Quem for capaz de manter a exatidão e a coerência nessas etapas, provavelmente será capaz de escrever um roteiro de 120 páginas. 

A concisão é uma virtude em declínio nesta época de espaço ilimitado no mundo eletrônico. Antigamente, escrevíamos pensando no número de toques por linha (eram 70) e no número de linhas por lauda (eram 30). Compactar qualquer história em seis palavras nos traz de volta um pouco dessa antiga disciplina.






terça-feira, 19 de janeiro de 2010

1543) O caçador de pipas (22.2.2008)



Esse tal de Mercado é uma coisa engraçada. Para os que mandam na cultura, ele é hoje o Júpiter Tonante, o Todo Poderoso. Os índices de Ibope, de bilheteria ou de vendagem são o crivo-de-Eratóstenes que elimina todo o redundante e chancela apenas o essencial, o que vale pra valer, o que são favas contadas. Vender é o que importa. Para eles, cultura que não pode ser vendida é inútil para o artista, e cultura que não precisa ser comprada não vale nada para o consumidor.

Sinal dos tempos, sinal do Fim dos Tempos, mas em vez de me cobrir de saco e cinza prefiro sentar no batente da janela, apontar a luneta e secretariar as peripécias. Por exemplo: sou um fã do filme Blade Runner, de Ridley Scott, que considero um dos 10 (ou um dos 100, ou um dos 435) clássicos da FC. Vi várias vezes, revi em VHS, depois em DVD. Em 1992 saiu a versão do autor (“Director’s Cut”) em que Scott cortou uma porção de coisas impostas na época pelo produtor. E agora, em 2007, saiu o chamado “Final Cut”. Das duas uma: ou os produtores esperam que o consumidor guarde lado a lado todas as versões, ou espera que a mais recente invalide as anteriores (e quem me garante que daqui a pouco não virá mais uma, invalidando a atual?).

O Mercado se volta hoje para os “completistas”, para aquela faixa endinheirada e fanatizada do público que, quando gosta de uma obra, está disposta a comprar todos os subprodutos dela. O grande sucesso livreiro atual é O Caçador de Pipas de Khaled Hosseini, cuja edição normal está à venda por R$ 39,90. Para quem já a leu, foi lançada (e está vendendo bem) a edição ilustrada, por R$ 69,90. Se não bastar, o cara pode comprar por R$ 29,90 o áudio-livro. O filme já está passando nos cinemas; em breve sairá em DVD, e... o céu é o limite. O Mercado ordenhará o texto de Hosseini sob todas as formas possíveis, até a última gota de leitura.

Alguns anos atrás, um cantor de sucesso se queixava: “Tenho canções inéditas suficientes para dois discos, mas a gravadora não aceita. Só querem regravações, discos temáticos, tributo a Fulano, homenagem a Sicrano. Só querem regravações de canções já conhecidas. Ninguém quer arriscar no novo”. A filosofia por trás disto é que se o público demonstra interesse por algo vale a pena oferecer-lhe essa mesma coisa sob qualquer pretexto. Reedições de livros com novo prefácio de A, nova introdução de B e comentário crítico de C. Versões remixadas de discos, versões remontadas de filmes. Versões colorizadas de filmes em P&B (isto, felizmente, parece que nunca colou). Regravações incontáveis de canções de sucesso. “Sessões Nostalgia” em que são recuperados até mesmo os filmes detestados trinta anos atrás (o bang-bang italiano, a chanchada, a pornochanchada, o filme-de-monstro japonês). Na defensiva, aposta-se na máxima do “um pouco mais daquilo mesmo”. Sinal de um Mercado em crise, apavorado, apegando-se à minoria que tem muito dinheiro e não sabe muito bem onde gastar.

1542) As mães inocentes (21.2.2008)



No Almanakito que remete regularmente para seus leitores, a jornalista Maria do Rosário, sob o título “Mães Inocentes”, compara os filmes O Gangster de Ridley Scott e Meu Nome não é Johnny de Mauro Lima, dizendo: “A mãe do personagem de Denzel Washington sai da pobreza, com os filhos, para viver numa mansão cinematográfica. Desfruta de todo o luxo do mundo, sem problemas. Quando a coisa pega, ela dá sermão no filho: não mate polícia, nunca perguntei de onde você tira seu dinheiro (quer dizer que ela não sabia que o filho era traficante de heroína trazida do Leste asiático em caixões de soldados norte-americanos?????). No filme brasileiro, a personagem de Julia Lemmertz ganha jóia cara do filho e não desconfia que ele está arrumando dinheiro "fácil" com tráfico de drogas. No cinema, "mãe é mãe", né??”

No caso da mãe do americano Frank Lucas, eu me atrevo a supor (sem nenhuma informação além do filme, confesso) que a situação na vida real era muito diferente. A mãe não era cega nem boba, e sabia que o filho ganhava um milhão de dólares por dia vendendo heroína. Na cena em que ele pega numa arma para ir atrás dos policiais corruptos que invadiram sua casa, a matriarca, que é esperta, chama o filho à realidade. Vender droga é uma coisa, matar policial é outra muito diferente.

Quanto à mãe do personagem interpretado por Selton Mello no filme brasileiro, imagino (sem base, mais uma vez) que era assim mesmo, tintim por tintim. O filho dava festas toda noite para 30 ou 40 pessoas, e a mãe não sabia de onde vinha o dinheiro. Separada do marido, foi embora de casa e perdeu o interesse por tudo. O filho lhe dava jóias caras e certamente a sustentava. Para ela, provavelmente era mais cômodo limitar-se a saber que João “trabalhava com vendas”. Quando a gente tem medo da resposta, é melhor nem fazer a pergunta. “É o meu guri...”

Algumas mães são inocentes por excesso de afeto. Outras, por limitações mentais ou de informação – simplesmente não entendem o mundo em que os filhos vivem. Este é parcialmente o caso da mãe de João Estrela no filme. Fazer esse tipo de comentário sobre um filme inspirado em pessoas reais, e que ainda estão vivas, é sempre arriscado. Mas, levando em conta exclusivamente o que é mostrado no filme, a personagem de Julia Lemmertz é do tipo que prefere não saber. O filho está bem, vive atarefado, mantém a casa, tem uma bela namorada, centenas de amigos, dá festas de arromba, dá-lhe jóias de presente... Perguntar, pra quê? Se o filho fosse um fracassado, vivesse deprimido, jogado em cima de um sofá, sem emprego, sem conhecidos, somente vendo TV e tomando Coca-Cola, ela provavelmente cairia em cima dele com um-quente-e-dois-fervendo, no velho discurso do “vai trabalhar, vagabundo”. Mas sucesso não se questiona. Dinheiro é dinheiro. Como diziam os romanos, “pecunia non olet”, “dinheiro não fede”. Se dinheiro sujo fedesse, a Suíça já tinha sido interditada pela Organização Mundial de Saúde.

1541) O homem na capa do disco (20.2.2008)


Diz uma piada antiga que certa vez Henry Ford, no auge do sucesso de sua indústria automobilística, requereu uma audiência com o Papa. O papa o recebeu com cortesia, os dois trocaram amabilidades, e aí o americano explicou a razão de sua visita: “Eu gostaria que o sr. colocasse a palavra ‘Ford’ no Pai Nosso”. 

O Papa se assustou: “Que é isso, eu não posso”. Ford insistiu: “Falei com meus acionistas e estou pronto para pagar cem milhões de dólares”. E o Papa: “A oração faz parte da tradição cristã, não posso mexer nela”. Ford era persistente: “Santo Padre, estou autorizado a ir até 500 milhões de dólares, porque o merchandising seria muito positivo para nós”. 

O Papa, desesperado: “Não, não, é pecado, saia daqui”. Ford retirou-se, matutando consigo: “Como será que a Fiat conseguiu?...” 

Muita gente fica famosa porque aparece, para manter o clima cristão, como Pilatos no Credo. Ou seja: a fábrica Fiat jamais desembolsou um centavo, mas a frase “fiat voluntas tua” (“seja feita a vossa vontade”) está lá para quem quiser ver. 

Descendo a um terreno mais profano, quantos de nós não dariam os 500 milhões de Henry Ford, caso os tivessem, para aparecer na foto da capa oficial de um disco dos Beatles? Pois essa sorte coube, de graça e à revelia, a um americano chamado Paul Cole, que morreu esta semana. Cole estava de férias em Londres, passeando com a esposa, e certo dia, quando ela quis visitar um museu, ele falou; “Já estou de saco cheio de tanto museu. Vá lá, que eu vou dar uma volta, e mais tarde a gente se encontra”. E lá se foi ele, bater pernas na ensolarada manhã londrina.  

A certa altura, parou junto a uma van da polícia estacionada junto ao meio-fio. “Parei do lado e comecei a conversar com o policial, perguntando sobre a cidade, o trânsito, essas coisas,” recorda Paul Cole. Eram cerca de dez da manhã do dia 8 de agosto de 1969. 

De repente, Paul virou-se e viu, num canteirozinho no meio da rua, uma escada em V no alto da qual um sujeito empunhava uma câmara fotográfica. E de repente quatro sujeitos de aparência estranha começaram a cruzar a rua, em fila indiana: um cabeludão de óculos e terno branco, um sujeito menorzinho de cigarro no dedo, outro de terno escuro e pés descalços, e por último um cara de imensa barba, vestindo camisa e calça jeans. Paul Cole pensou: “São uns malucos. Não se anda descalço em Londres.” 

Um ano depois, Paul estava em sua casa, nos EUA, enquanto a esposa ouvia o disco novo dos Beatles, Abbey Road, e tentava aprender a tocar no órgão a música “Something” de George Harrison. Quando pegou na capa do disco, ele teve um susto. Lá estava a van! Lá estavam os quatro malucos! E lá estava ele! (Cole é visível junto à cabeça de John Lennon, parado junto da van escura da polícia). A foto lhe rendeu entrevistas o resto da vida, e obituários no mundo inteiro quando morreu agora, aos 96 anos. Ficou famoso – e não gastou um tostão.







1540) O som de Godard (19.2.2008)



Estilo é algo que está em tudo que um artista faz e que você não encontra, daquele jeito, em nada feito por outra pessoa. Muitas vezes a gente não sabe pôr o dedo em cima e dizer o que caracteriza o estilo de Fulano ou Sicrano. Com um pintor, às vezes a gente pensa que são os temas, mas subliminarmente o que se impressiona são as cores. Com um cantor, a gente pensa que é o timbre da voz, mas é o jeito de dividir as sílabas. E assim por diante. O que nos pega no estilo de Fulano é muitas vezes algo que nossa mente percebe e decodifica intuitivamente, sem refletir, porque estamos com nossa atenção consciente fixada noutra coisa. Isso acontece muito com artes de entretenimento como a música, como o cinema. A gente está grudado nas ações dos personagens e não percebe que está percebendo os movimentos da câmara.

Para mim uma das coisas que marcam o estilo de Jean-Luc Godard, ou pelo menos do Jean-Luc Godard dos filmes entre 1959 e 1967 (o que prefiro, embora ele tenha feito bons filmes depois) é a sua maneira totalmente anticonvencional de usar o som. Vendo um filme de Godard estamos muitas vezes presos à história, ou ao charme dos atores. Ou estamos tentando fazer sentido de uma narrativa feita com cortes bruscos e seqüências que não seqüenciam as anteriores. E o tempo todo é a trilha sonora que nos invade lateralmente e nos dá aquela esquisita sensação de “estar vendo um filme de Godard”.

Diz-se que o primeiro filme feito por Godard com som direto foi Uma mulher é uma mulher (1961). Nos anteriores (Acossado, 1959; O pequeno soldado, 1960), talvez para simplificar o tedioso processo de sonorização, sincronização, mixagem, etc., ele desenvolveu uma maneira anti-convencional de tratar o som. Em numerosas cenas Godard elimina todos os ruídos de uma cena movimentada e deixa apenas um piano ao fundo. Vemos um casal conversando e não ouvimos o que dizem; carros passam, motoristas apertam a buzina, portas se abrem e fecham, e tudo que nos é dado escutar é aquele piano melancólico como se fosse um filme mudo passado nos antigos cinemas, com um pianista entediado ou distraído que não se preocupasse em adequar sua trilha sonora àquilo que passava na tela.

Godard é também um mestre da narração em “off” simultânea, ou seja, o personagem está descrevendo uma cena que está ocorrendo ali, diante dos nossos olhos. O rapaz faz uma pergunta à moça, e em seguida ouvimos sua voz, em “off”, dizendo: “Ela acendeu um cigarro e perguntou por quê”. E no instante seguinte ela faz exatamente isto. Em “O pequeno soldado”, a história é um longo flash-back, contada em “off” pelo protagonista; mas é típico de Godard essa maneira de fazer o passado tornar-se presente através da ação direto, enquanto que o tempo presente (o da voz que conta a história) fica superposto à ação do filme, como nesses DVDs em que nos é dada a opção de ver o filme escutando ao mesmo tempo os comentários e as explicações do diretor.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

1539) Munevada glimou vestassudente (17.2.2008)



Num número recente da revista
Língua Portuguesa (n. 26, de 2007) o poeta Eucanaã Ferraz contribui com uma excelente análise da poética de Vinícius de Moraes. 

O foco de Eucanaã é nas inovações lingüísticas de Vinicius, e boa parte de sua análise é centrada num dos meus poemas favoritos: “Sombra e Luz”, um delírio surrealista que li aos 10 anos de idade e que bouleversou meus conceitos do que era poesia, que até aquele período flutuavam em torno de Olavo Bilac, Castro Alves, etc. “Sombra e Luz” é um exercício de livre associação de idéias, de imagens, de vocábulos. 

A certa altura, diz Eucanaã: 

“Todo esse jogo chega a seu ponto culminante no verso que abre a segunda parte do poema: ‘Munevada glimou vestassudente’. Trata-se de uma língua estrangeira? Será um código? Como decifrá-lo? Depois de relutarmos contra a presença de um conjunto de signos vazios, resignamo-nos e deixamos de lado nosso impulso racional”. 

O verso de Vinícius é uma citação ao conto de Jorge Luís Borges “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, onde ele imagina um mundo paralelo ao nosso, cuja filosofia e linguagem se baseiam no idealismo, e não no materialismo. Ou seja, as idéias são mais reais do que o mundo físico, o qual muda arbitrariamente para adaptar-se a elas, ao contrário do que ocorre em nosso mundo. 

A certa altura, tentando explicar a língua de Tlön, diz Borges (Nova Antologia Pessoal, Ed. Sabiá, 1969, trad. Maria Julieta Graña e Marly de Oliveira Moreira): 

“Não há substantivos na conjetural Ursprache (língua primordial) de Tlön, da qual procedem os idiomas 'atuais' e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra correspondente à palavra ‘lua’, mas há um verbo que seria em espanhol ‘luezer’ ou ‘luar’. ‘Surgiu a lua sobre o rio’ diz-se ‘hlör u fang axaxaxas mlö’, ou seja, em ordem: para cima (upward) atrás duradouro – fluir luezeu. (Xul Solar traduz brevemente: upa tras perfluye lunó. Upward, behind the onstreaming it mooned”. 

Este conceito de uma linguagem sem substantivos, apenas com verbos, é um desafio desconcertante. (Xul Solar era um pintor meio surrealista amigo de Borges, e seu palpite certamente é verídico.) 

Foi certamente isto que motivou Vinícius a engendrar seu verso. “Munevada” é “lua (moon) cor de neve”. “Glimou” vem do verbo inglês “to gleam”, brilhar, cintilar. “Vestassudente” indica uma direção, através da palavra francesa “vers” (=na direção de), e “sudente” decerto indica o Sul. 

Não pode ser coincidência. O poema de Vinícius é dos anos 1950 (conheci-o na antologia da Editora Sabiá, que é de 1960). Nessa época, Borges já era famoso em Buenos Aires, e uma parte substancial dos seus textos tinha sido traduzida na França, graças ao entusiasmo de admiradores como Roger Caillois. 

Me parece óbvio que Vinícius leu “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” (ou algum comentário do conto que transcrevia o texto citado acima) e, como qualquer sujeito que gosta de brincar com palavras, tentou uma tradução pessoal da frase.








1538) O Bandido Gente Boa (16.2.2008)


(Frank Lucas)

Frank Lucas, o “gangster americano” interpretado por Denzel Washington no filme homônimo de Ridley Scott, é visceralmente americano em sua atividade (vendedor de heroína na cidade grande), em sua história racial (negro da Carolina do Norte emigrado para o Harlem), e até mesmo em suas conexões políticas (trazia a droga nos aviões que retornavam do Vietnam, graças à cumplicidade de oficiais do exército). Por outro lado, é um tipo que a nós brasileiros toca muito de perto: “o Bandido Gente Boa”. O Rio de Janeiro, que contemplo agora pela minha janela, está cheio deles.

O Bandido Mau, que é seu oposto, não dura muito tempo. O Bandido Mau se comporta errado com todo mundo. É, por exemplo, o psicopata descontrolado – porque até mesmo um psicopata pode se relacionar bem se for controlado, como é o caso do notório e nefário Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes. Seria exagero chamar o Dr. Lecter de “gente boa”, mas não há dúvida de que ele é um homem fino, culto, senhor de si, e que pode, se necessário (para passar incógnito, por exemplo) se comportar como se fosse um gentleman britânico, um sujeito tão fidalgo quanto o ator Anthony Hopkins.

Bandido Mau são as “almas sebosas” da periferia do Recife, ou é um desclassificado como Elias Maluco, ou um obtuso arrogante como o Tango que, no filme, Frank Lucas abate em plena luz do dia com um tiro na testa, diante de centenas de testemunhas. Quando Lucas lhe aponta o revólver, Tango provoca: “Vai fazer o quê? Me matar aqui, na frente de todo mundo?” Lucas lhe explode os miolos, guarda a arma e volta para sua mesa do café, limpando as mãos no lenço. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Esta é a lição que ele dá para os irmãos e primos, recém-trazidos da Carolina do Norte, e que assistiram toda a cena boquiabertos.

O Bandido Gente Boa é generoso com seus auxiliares e a população em geral, e implacável com os inimigos. Ele precisa dessa população, e na hora do aperto diz: “Eu posso contar com o Harlem, porque o Harlem sempre contou comigo”. O mesmo fazem ao chefões dos morros cariocas. Vejo no jornal de hoje a imagem do bicheiro Anísio, na Escola de Samba Beija-Flor, desfilando num carro de bombeiros enquanto aproveita uns diazinhos fora da prisão, garantido por um habeas-corpus. Os bicheiros cariocas são colegas de geração de Frank Lucas, que foi imperador do Harlem entre as décadas de 1960-70. Distribuem perus no Natal, cestas básicas durante o ano todo, financiam escolas de samba e times de futebol. Alguns são predadores truculentos; outros são chefes de família bonachões e afetuosos, fazem a linha “mafioso emotivo” que o cinema e a TV vêm ordenhando com sabedoria há tantas décadas. O Bandido Gente Boa está um passo além da linha da legalidade, e não se distingue muito do Político Populista que está um passo aquém dessa linha. A distância que os separa é a de um braço estendido. De um aperto de mão.