quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

1433) “Borges” de Bioy Casares (17.10.2007)



Acabo de adquirir o que tornou-se talvez o livro mais grosso de minha biblioteca, onde predominam volumes que têm a silhueta de Gisele Bündchen ou Naomi Campbell. O imenso pacote chegou todo amarfanhado, envolto pelo Correio num plástico protetor. Desembrulhei-o e me deparei com a obra encomendada algumas semanas atrás na Abebooks, e que me custou, incluindo preço e frete, cerca de 64 reais. Borges, de Adolfo Bioy Casares (Buenos Aires: Ediciones Destino, 2006) é um volume quase cúbico, com 1.680 páginas, contendo excertos do diário que Bioy Casares, grande amigo de Borges e seu principal parceiro literário, manteve ao longo de várias décadas de convivência com o autor de O Aleph.

O livro é dividido em capítulos cronológicos, que vão de “1931-1946” até “1989”. De cara me decepcionei, porque esse primeiro capítulo, curtíssimo, resume justamente os anos mais importantes da obra de Borges: os livros de ensaios em que forjou sua concepção de literatura (Otras Inquisiciones, Discusión, Historia de la Eternidad) e os volumes de contos (Ficciones, El Aleph) que mexeram no software da literatura ocidental. Não importa. Cada página aberta ao acaso tem episódios enriquecedores e úteis. Borges não foi apenas um escritor de gênio, foi um Google literário, do qual era possível extrair a cada instante uma comparação inesperada, uma informação obscura, um paradoxo desconcertante.

A imensa maioria das entradas do diário, sempre no presente do indicativo, começa assim: “Come en casa Borges” (algo como “Borges janta aqui em casa”). O jantar ou almoço na casa de Bioy, algumas vezes por semana, era o pretexto para várias horas de conversas literárias que o anfitrião resumia em seus cadernos após a partida do visitante. Faz lembrar as copiosas anotações com que Simone de Beauvoir documentou seu casamento mental com Sartre. As primeiras 150 páginas cobrem os anos até 1955. Borges visita Bioy quase todas as noites: os dois lêem e selecionam textos para suas antologias, trabalham em contos da série “Bustos Domecq” e comentam o cotidiano da vida social e literária de Buenos Aires. Falam dos colegas escritores usando uma rudeza inesperada em dois “gentlemen”, e com um sarcasmo devastador. Narram episódios em que as madames e moçoilas da sociedade portenha ostentam um prodigioso esnobismo, associado a uma ignorância e desinformação que muito diverte a ambos.

A cegueira progressiva de Borges, que se submete a cirurgias periódicas, é uma lenta tragédia que os submerge pouco a pouco. Borges e Bioy se divertem inventando frases mal escritas (com barbarismos gramaticais ou absurdos estilísticos) ou comparando versos abomináveis escritos pelos seus contemporâneos. O encarte de fotos traz pelo menos duas raridades: Borges de óculos, Borges de calção. Fragmentado, episódico, superficial, redigido às pressas, é um livro mais revelador sobre o escritor argentino do que as biografias que já li.

1432) “Paris te amo” (16.10.2007)


Está em cartaz este filme-antologia em que vários diretores contribuem cada qual com um filme de curta-metragem. A principal vantagem deste formato é que aproveitamos cada história quando ela nos interessa, e quando não é o caso basta esperar que passe logo e venha a próxima. Em Paris, te amo a idéia original era de dedicar um episódio a cada um dos vinte “arrondissements” da cidade. O perigo, neste caso, é que o filme seja feito em torno dos “cartões postais”: um casal que marca encontro no Arco do Triunfo, um suicida que vai pular da Torre Eiffel, um grupo de turistas fotografando os quadros do Louvre...

Não é o que ocorre, felizmente, e a rigor o único local famoso que aparece com certo destaque é o Cemitério do “Père Lachaise”, onde Wes Craven faz uma pequena homenagem a Oscar Wilde, e que reaparece nos passeios de uma desajeitada turista americana em “14ème Arrondissement” (Alexander Payne). O metrô surge no episódio “Tulherias”, onde os irmãos Coen colocam Steve Buscemi em mais uma roubada, e os inferninhos do “Pigalle” (Richard La Gravenese) servem de cenário para o “rendez-vous” de um casal maduro em busca de sensações novas. No mais, os episódios se prendem aos personagens, e a cidade surge como cenário e testemunha, e não pretexto.

Algumas histórias são meio absurdistas, como “Tour Eiffel” de Sylvain Chomet, onde um garoto conta como se conheceram seus pais, um casal de mímicos; e “Porte de Choisy” de Christopher Doyle, onde um vendedor vai parar num estranho salão de beleza oriental. Encontros e desencontros sentimentais aparecem em “Bastille” de Isabel Coixet, em que um homem desiste de se separar da esposa ao descobrir que ela tem leucemia; “Le Marais” de Gus van Sant, em que um rapaz faz uma declaração a outro que não sabe falar francês; “Quais de Seine” de Gurinder Chadha, onde um jovem francês descobre que o mundo não vai se acabar se ele paquerar uma moça árabe; “Montmartre” de Bruno Podalydès em que um desmaio na rua acaba aproximando um casal; “Place des Fêtes” de Oliver Schmitz em que ocorre o doloroso reencontro de dois jovens africanos; “Faubourg Saint Denis” de Tom Tykwer, sobre o namoro entre um cego e uma atriz; “Quartier Latin” de Frédéric Auburtin, em que um casal norte-americano troca farpas e confissões ao tratar do divórcio; “Quartier des Enfants Rouges” em que uma atriz paquera com o traficante que lhe vende haxixe.

O episódio de Alfonso Cuarón, “Parc Monceau”, em que Nick Nolte conversa com a filha, é feito num único plano, com a câmara em movimento seguindo os personagens. Uma história de vampiros com final feliz é o tema de “Quartier de la Madeleine” de Vincenzo Natali, e em “Place des Victoires” um cowboy fantasmagórico ajuda uma mulher a ter um breve reencontro com o filho morto. E os brasileiros Walter Salles e Daniella Thomas contam, em “Loin du 16ème”, a história de uma babá que cuida do filho alheio como se fosse o seu.

1431) Filmes sobre futebol (14.10.2007)




Um especial recente no Canal Sportv discutia a dificuldade de se fazer no Brasil um filme de ficção convincente sobre futebol. 

Os nossos melhores filmes futebolísticos são documentários à base de entrevistas, gols de arquivo, etc. Mas os filmes de ficção, com atores, por mais bem intencionados que sejam acabam sempre batendo fofo. Por que será? Tenho três hipóteses.

A primeira é que jogo de futebol encenado sai sempre falso. 

Ninguém é bobo, ninguém se ilude com aquelas jogadas coreografadas na prancheta e regidas a megafone. Todo mundo percebe que aquilo é uma porção de atores fingindo que driblam e fingindo que foram driblados, o goleiro saltando de mentirinha para que o gol aconteça, e assim por diante. 

É uma encenação sem os trancos-e-barrancos de um jogo verdadeiro. Isso vale para todos os filmes, desde aquele filme de John Huston com um elenco improvável que reunia desde Pelé a Sylvester Stallone, até o recente O Casamento de Romeu e Julieta de Bruno Barreto, com uns jogos Palmeiras x Corinthians bem esforçados, mas que não enganavam ninguém. 

A única solução possível seria vestir dois times com os uniformes desejados e prometer um “bicho” substancial pela vitória, para que eles jogassem pra valer, e fosse possível editar algumas jogadas e gols convincentes.

A segunda razão é uma ampliação da primeira. O público de futebol, por mais ingênuo que seja em alguns aspectos, é muito bem informado sobre o mundo do futebol. Ouve resenha, lê jornal, acompanha noticiário, absorve futebol por todos os poros. Conhece as manhas e as mutretas do mundo esportivo. Nesse sentido, é muito mais malandro e crítico do que o público de música popular, que se liga apenas nas canções e no “glamour” das estrelas, e pouco ou nada sabe dos esgotos da indústria fonográfica ou dos sórdidos porões do showbiz. 

O pessoal de futebol sabe tudo que rola entre cartolas, federações, empresários, etc. Sabe das politicagens, das máfias, das conspirações. E em geral sabe muitíssimo mais sobre isto do que os autores do filme. Quando vê o filme, as ingenuidades saltam aos olhos.

A terceira razão é que o torcedor de futebol, em geral, não é um esportista que gosta do jogo pelo que ele tem de beleza estética ou de simbolismo metafísico. Ele gosta é da disputa, da batalha, da competição, da hora do vamo-ver. 

Gosta da expectativa que cerca mesmo os jogos mais insignificantes, mas nos quais, como dizia Nelson Rodrigues, ao apito do juiz abre-se uma janela para o infinito. No futebol de verdade, tudo pode acontecer, e tudo acontece em tempo real, como numa Cantoria de Viola. 

Quando um torcedor acostumado a isto vai ver um filme sobre futebol, não tem nem de longe a adrenalina que lhe é produzida pelo verdadeiro espetáculo, porque sabe que ali é tudo mentirinha, tudo encenação. Para emocionar um torcedor assim, seria preciso um gênio dramatúrgico que até hoje, ao que eu saiba, não apareceu.







1430) O Ministério da Poesia (13.10.2007)


(M. C.Escher, Gallery)

Suponhamos que o Brasil evolua, cresça, enriqueça, se desenvolva, a tal ponto que um dia tenhamos cerca de 100 ou 200 ministérios para administrar uma sociedade tão rica e complexa. Talvez o Governo julgue de bom alvitre criar o Ministério da Poesia, a quem caberá definir e executar as políticas públicas de fomento à atividade poética no país. Uma das primeiras coisas que o Ministério fará será regulamentar a profissão, com a exigência de diploma universitário. Um poeta terá que ser formado nesses cursos, que não brotarão do nada: serão cursos de graduação desmembrados a partir dos cursos já existentes.

Se esse fato se desse hoje, provavelmente os cursos de Bacharelado e Licenciatura Poética brotariam das nossas faculdades de Letras. Mas como isto não deverá ocorrer nem hoje nem num futuro imediato, não é impossível que venham a surgir no seio dos cursos de Comunicação e Marketing, direção em que a poesia atual vem se encaminhando de forma consistente nas últimas décadas.

Um convênio com o Ministério do Trabalho deverá regulamentar o exercício da profissão, estabelecendo a famosa “tabela de remuneração mínima”, como existe hoje para os músicos, que têm um piso de cachê para show ao vivo e para hora de estúdio. Digamos que a preço de hoje o poeta tenha garantido o pagamento de um real por linha, no ato da aceitação do poema pela revista ou pela editora. Nada mau. Uma mera revista de ficção científica, como a Asimov’s, paga aos poetas de FC um dólar por linha, mas estabelece um máximo de 40 linhas (se não, o cara mandava um troço do tamanho dos “Lusíadas” e ficava rico).

Aí vai começar uma questão delicada. Grupos de trabalho interministeriais, ou comissões mistas, reunir-se-ão em torno de imensas mesas de mogno, abastecidos por suprimentos incessantes de cafezinho, adoçante e água gelada, para definir o que é poesia. A tarefa parece titânica e inalcançável, mas não subestimemos, amigos, os poderes de uma Comissão Federal. Comissões federais bem podem repetir o famoso verso de Torquato Neto: “Eu posso, eu quero, eu quis, eu fiz”. Se a existência de Deus ou o tamanho do Universo não estão comprovados até hoje, foi porque não ocorreu a ninguém a criação de uma comissão mista para fazê-lo.

Problemas surgirão; é a lei da vida. Os não-poetas se sentirão compreensivelmente marginalizados ao ser-lhes proibido o exercício não-regulamentado dessa atividade. Surgirá talvez um movimento reivindicando cotas, e aí em cada livro de poesias 10% das páginas serão reservadas para a inclusão de poemas redigidos por operários, campônios, médicos, engenheiros ou (mais provavelmente) concunhados e primos em terceiro grau dos membros da comissão ministerial, “para que a vivência e os benefícios morais da atividade poética sejam democraticamente estendidos a todos os setores representativos da nossa diversidade étnica e social”.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

1429) Esnobando a loteria (12.10.2007)




Dizem os céticos que o dinheiro não traz a felicidade. Outros, mais céticos ainda, afirmam que, por uma questão de Justiça Cósmica, a felicidade repele o dinheiro. Seria injusto para com o resto da Humanidade você ser rico e feliz ao mesmo tempo. Vai ter que escolher. 

Há casos em que um sujeito já é feliz, tem tudo que que precisa, mas, como não tem dinheiro, se mete em mil e uma empreitadas onde vislumbra a possibilidade de riqueza. No fim, joga a felicidade no lixo, fica sem uma e sem a outra. Melhor nem tentar, porque são incompatíveis. Não se pode ter as duas ao mesmo tempo.

No mês passado, esta questão filosófica foi recolocada em termos práticos quando um alemão recusou um prêmio de loteria de mais de 7 milhões de reais. O cidadão teve seu bilhete premiado e ao receber a notícia dirigiu-se à administração da Loteria, em Hanover, para dizer que não queria receber o prêmio. 

Seus argumentos são poderosos. Ele tem 70 anos, está aposentado, não tem dificuldades financeiras (é um aposentado europeu, não esqueçam). A mulher já morreu, e ele não tem filhos ou parentes próximos. Em suma: não tem muito o que fazer com tanto dinheiro, e confessa ter comprado o bilhete da aposta por uma mera questão de hábito.

Este episódio permite várias leituras. Na primeira, admiramos o desprendimento, o espírito Zen desse sujeito capaz de dispensar semelhante riqueza. Contemplando a vida do alto de seu Everest etário, o indivíduo descortina paisagens amplas, horizontes metafísicos, e não vai desperdiçar os anos de paz que lhe restam envolvido em querelas com gerentes de Banco, advogados, corretores da Bolsa, herdeiros remotos ou sei lá o que mais.

Outra leitura nos diz que o cidadão é um asno. Tudo bem que ele não queira o dinheiro para si. Mas sem dúvida ele conhece alguém que precise. Poderia aceitar o dinheiro e reparti-lo entre creches, hospitais, bibliotecas. Ou doá-lo a uma orquestra sinfônica local, já que ele é alemão. Ou ao time de futebol de sua preferência. Que diabo, será que esse velho é tão obtuso que não lhe ocorre nenhum destino útil para esse dinheiro todo?

Mas na mesma matéria fico sabendo que isto ocorreu na cidade de Hameln, na região da Baixa Saxônia, cidade que não é outra senão a popularíssima Hamelin, da história do Flautista que livrou a cidade dos ratos e, depois que as autoridades se recusaram a pagar o prêmio combinado, levou consigo todas as crianças e as escondeu numa caverna da montanha próxima. 

De imediato me veio ao écran da mente a imagem de um velho, não de 70, mas de 700 anos, caminhando devagar pelas ruazinhas da cidade, esperando um pagamento que lhe foi prometido mas que nunca chegou. 

Quem sabe a loteria foi um meio que o governo (ou o anônimo Destino) escolheu para liquidar a dívida e resgatar as crianças que há 7 séculos estão à espera, numa caverna da montanha? “Agora não posso mais trazê-las,” diz o velho, “perdi a embocadura da flauta”.





1428) “Novecentas Avós” (11.10.2007)




R. A. Lafferty é uma espécie de Hermeto Paschoal da ficção científica norte-americana, um sujeito com grande cultura clássica, com uma identificação profunda com o folclore e a literatura oral dos EUA, e que se vale da FC para contar umas histórias extravagantes, improváveis, às vezes hilariantes, que são um bem-vindo contraponto ao excesso de lógica cartesiana que acomete o gênero. 

No conto “Nine Hundred Grandmothers” Lafferty fala de um grupo de exploradores terrestres num asteróide habitado, onde eles atuam como representantes comerciais ou coisa parecida. 

O protagonista, Ceran, é um cara que se interessa mais pela cultura local do que por transações comerciais. Ele vive intrigado com o fato de os Proavitoi (como se chamam os nativos) terem em suas casas uma espécie de “bonecas vivas”, que andam, falam, etc. O chefe da expedição lhe dá ordens para que pesquise melhor esse aspecto – quem sabe as bonecas não são um produto interessante para ser vendido na Terra?

Ceran interroga seu intérprete local. Pergunta sobre a morte, e fica pasmo ao ouvir: “Nós não morremos”. Ele insiste, e o Proavitoi acha graça: “Olhe, meu amigo... acho que se morrêssemos, seríamos os primeiros a saber”. 

O interrogatório prossegue. Ceran fica sabendo que os Proavitoi não morrem com o passar dos anos; apenas sofrem uma perda de energia e vão sendo guardados pelos seus descendentes em casa, onde mergulham numa espécie de hibernação. 

Quando um Proavitoi atinge a maturidade (ou seja, quando completa dez gerações de descendentes mais jovens) ele tem o direito de participar do Grande Ritual, que ocorre uma vez por ano. É quando os antepassados são despertados do seu sono e contam aos mais novos o princípio de tudo, quando o mundo começou.

Os Proavitoi são especialistas em certos aspectos da biologia. Parecem ser capazes de expandir ou contrair corpos, como se pudessem fazer as moléculas diminuir de tamanho. Mas Ceran está interessado em saber como começou a história daquela raça, e consegue ser admitido à casa do seu intérprete, depois de descobrir que ele tem aproximadamente novecentas avós ainda vivas. 

Ali ele vai sendo apresentado a pessoas cada vez menores, e descobre que as tais “bonecas vivas” são os próprios avós e bisavós dos nativos, miniaturizados vivos. 

A certa altura, Ceran desce aos porões da casa, que estão cobertos de prateleiras onde se enfileiram antepassados cada vez menores. Ceran coloca uma dessas avós na palma da mão e lhe pergunta se mais abaixo, nos porões inferiores, as outras são menores do que ela. “Sim,” ela responde; “cabem na palma da minha mão”. 

Ele desce até o último porão, onde as avós não são maiores do que uma abelha. Pergunta-lhes, desesperado, como foi o começo de tudo, o começo de sua raça – mas com sua ansiedade consegue apenas fazê-las rir. E o som das suas risadas “era como o som de um bilhão de micróbios gargalhando”. Uma bela metáfora para o estudo da História.



(ilustração: Edward R. Flynn)



1427) Uma proposta irrecusável (10.10.2007)



Um amigo me disse certa vez, comentando fofocas políticas que circulavam nos bares da época: “Não existem propostas irrecusáveis. O que existe são indivíduos que vivem com o aceitador aberto.” O conceito de proposta irrecusável lembra um pouco aquela questão científico-escolástica: “O que acontece se derramarmos um solvente perfeito num recipiente invulnerável?” ou “O que acontece quando uma força irresistível se choca com uma barreira impenetrável?” Questões desse tipo são falácias, porque envolvem conceitos que se excluem. Se no universo existe uma força irresistível, então não pode haver uma barreira impenetrável. E vice-versa.

O que acontece quando um indivíduo absolutamente honesto recebe uma proposta (desonesta) irrecusável? A questão aqui é mais sutil. Não estamos lidando com a nitidez dos conceitos científicos, e sim como o universo turvo da mente humana, refletido no espelho embaçado das palavras. Não existe proposta irrecusável. Sempre vai haver um desmancha-prazeres para quem as vantagens da proposta (dinheiro, fama, poder, o que fôr) nada importam, ou importam menos que seus próprios valores. E nem precisam ser valores grandiosos, como nobreza de caráter ou retidão de princípios. Basta ser o Ego. Tem sujeito que recusa uma proposta irrecusável só para humilhar o proponente, só para dizer: “Dane-se. Sou melhor do que você”.

Uma maneira diplomática de recusar uma proposta é cobrar um preço absurdo. O sujeito me oferece um emprego com salário de 2 mil reais. Como eu não quero recusar assim, “na lata”, digo que só iria por 10 mil. No outro dia ele me telefona, diz que consultou o Conselho Diretor ou coisa parecida, e que tudo bem, dez mil. E agora? Existe uma saída meio cara-de-pau, que é dizer: “Olha, Anacleto, se você aumentou de dois para dez com essa facilidade, então pode muito bem me pagar vinte. Só vou por vinte”. O que não resolve o problema, porque talvez ele volte a concordar.

Propostas irrecusáveis sempre envolvem dinheiro. Esse conceito foi criado por pessoas que têm muito dinheiro para tentar convencer a nós, que o temos quase nenhum, de que o dinheiro tudo pode. Digamos que um conhecido meu, esborrotando de rico, me chama para ir tocar violão na festa de aniversário dele. Eu digo, “Ora, Fulano, vai te catar, sou um homem ocupado”. Ele diz: “Cem mil reais, ‘cash’, à vista”. E agora? O cara pode gastar isso sem nem piscar o olho, e está falando sério. Vou ou não vou? Talvez não fosse, só pra desmoralizar o Capitalismo.

A vida empresarial e política está cheia de propostas irrecusáveis. Não o são porque envolvam fortunas fabulosas, mas porque são propostas feitas no momento certo ao indivíduo que está com a aceitação engatilhada. O proponente hábil sabe que em certas portas não adianta bater. A proposta irrecusável é aquela que ele já sabe ter sido aceita antes de ser formulada, e o valor financeiro é uma mera cortina de fumaça para desviar as atenções.

1426) O que faz escrever (9.10.2007)




Todo escritor se depara de vez em quando com a obcecada pergunta: “O que o faz escrever? Ou seja, qual a sua principal motivação enquanto escritor?” 

Se fizéssemos a pergunta equivalente a um camioneiro, a um alpinista, a um político, a um médico, talvez encontrássemos algumas das respostas que os escritores nos dão. 

Assim como um camioneiro, um escritor gosta de tentar reunir o máximo de duas coisas antagônicas: liberdade e responsabilidade. Ele gosta dos grandes espaços abertos (do espírito, no seu caso), do desafio constante de ir a lugares onde nunca foi, da excitação de rever lugares onde passou muito tempo atrás, e durante todo o tempo sentir-se responsável por algo muito valioso que não lhe pertence (uma tradição literária) mas da qual ele é, naquele instante do seu trabalho, o único defensor e guardião.

Assim como um alpinista, o escritor é seduzido pela possibilidade de ser O Maior, de atingir alturas que os seres humanos comuns nunca alcançaram. Ele sabe que quanto mais sobe mais seu raciocínio fica inebriado pelo ar rarefeito; que corre o risco de morrer de solidão e de frio; que um passo em falso pode precipitá-lo no abismo. Mas ele sempre acredita que pode dar mais um passo, ou seja, que pode escrever mais uma página. 

Um político dirá que tem uma responsabilidade para com um grupo de pessoas que acreditam nele, acreditam na sua capacidade de fazer coisas importantes e de melhorar o mundo. Pouco importa se o mundo tem sido muito pouco melhorado, seja por políticos, seja por escritores. O importante é achar que, se há ainda muita coisa a ser feita, nada melhor do que alguém candidatar-se a fazê-la.

Enfim: cada profissional tem razões múltiplas para fazer o que faz, mas ao que parece é apenas aos escritores que se faz essa pergunta. Parece que seguir qualquer profissão é algo óbvio, cuja necessidade não precisa ser explicada, mas ser escritor é uma missão misteriosa, desnecessária e que deve ser justificada tintim-por-tintim..

Talvez a melhor resposta, para qualquer profissão, seja: faço isto por que gosto, e porque é o que sei fazer melhor. Jogadores de futebol dizem isto o tempo inteiro: “Sou um sujeito de sorte, porque me pagam um bom salário para que eu faça a coisa que mais gosto”. Ninguém pergunta a um jogador por que motivo ele joga. Pressupomos que ele descobriu em si mesmo aquela habilidade, e que não viu motivo para se dedicar a outra coisa.

Com um escritor dá-se o mesmo. Ele descobriu muito cedo que 1) gosta daquilo; 2) sabe fazer aquilo bem; 3) vê naquilo a possibilidade de juntar duas coisas importantes, o útil e o agradável, ou seja, uma profissão que lhe dê sustento e uma atividade prazerosa que lhe dê algum tipo de realização pessoal. 

Escritores, no entanto, criam para si mesmo a imagem de alguém que sabe respostas secretas e bombásticas sobre as perguntas mais banais. Podem até saber, mas a resposta que melhor os explica é esta aqui acima, a mais banal de todas.






segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

1425) Hitler e minha mãe (7.10.2007)




Herdei de meu pai a poesia e de minha mãe a prosa. Esta é uma simplificação excessiva de uma situação mais complexa, pois o fato é que era Dona Cleuza quem me cantava folhetos de cordel e romances orais, e Seu Nilo quando estava na veia era um contador de histórias que não devia a nenhum outro. 

Mas não há dúvida de que foi ele quem me aplicou Bilac, Augusto, Castro Alves, até poetas hoje obscuros como Guerra Junqueiro ou Luís Dantas Quesado.

Já minha mãe costumava contar histórias sobre a época da II Guerra Mundial e seus reflexos no Brasil e em Campina. O monte de ferro-velho acumulado pelas autoridades para ajudar no esforço de guerra, ali na confluência entre as ruas João Pessoa e João Suassuna, em frente ao antigo Banco Industrial. Os blecautes que havia em Olinda (onde ela e meu pai moraram depois de casar), as luzes todas apagadas para não atrair a aviação inimiga (nunca entendi por que diabos Hitler iria querer bombardear Olinda). 

E havia uma historieta, provavelmente apócrifa, mas que para mim faz parte das lendas urbanas que um tempo de guerra é mais propício a criar do que um tempo de paz.

Hitler costumava aprisionar num país invadido, a Polônia por exemplo, centenas de crianças, e as trancafiava num imenso galpão. Ali os meninos e meninas eram deixados durante dias e noites sem comer, sem nada. 

Quando o desespero estava grande, entrava um oficial nazista de megafone em punho e gritava: “Vocês estão com fome?!” Havia uma gritaria que sim. E ele tornava: “Pois peçam comida a Deus! Vamos, gritem! Gritem bem alto para que ele ouça!” E saía. Os garotos começavam o maior berreiro: “Deus, me dê comida! Deus, me dê um copo dágua!”

Por motivos teológicos que não tenho espaço para analisar aqui, Deus não se manifestava, e um dia depois a fome tinha recrudescido ainda mais, devido à reversão da expectativa. Era o momento em que o oficial voltava. Perguntava se ainda tinham fome, recebia a resposta ululante que era de se esperar, e aconselhava: “Pois peçam comida a Hitler”. E ia embora. 

Os meninos, que a esta altura não tinham mais nada a perder, começavam o coro: “Hitler, me dê comida! Hitler, me dê água!”

E aí (ela gesticulava, encorpava a voz, abria os braços para sugerir uma encenação digna de Spielberg) abriam-se enormes clarabóias no teto e de lá desciam, mediante correntes e engrenagens, vastas plataformas de madeira cobertas com terrinas fumegantes, bandejas de pastéis e sanduíches, receptáculos cheios de macarrão com molho, carnes suculentas, jarras de água, de leite e de suco, frutas em abundância, e doces, doces, muitos doces. Os garotos atiravam-se sobre aquilo, balbuciando orações e agradecimentos ao Fuhrer.

Minha mãe não era nazista, caro leitor. Ela usava isto como um conto caucionário, uma parábola acauteladora. No fim da história ela aproximava o rosto, encatitava o olho, erguia no ar o indicador e sussurrava, com intensidade: “Des-con-fie!”






1424) Autópsias de livros (6.10.2007)





(uma "autópsia" de Brian Dettmer)

Já me referi nesta coluna (“Um documento humano”, 18.9.2003) ao artista britânico Tom Philips e seu livro A Humument, criado a partir da obliteração parcial do texto de um romance da época vitoriana. 

Philips pintou, borrou, rabiscou, cancelou o texto de cada página do livro; destacou, reaproveitou e conectou pedaços de frases em diferentes pontos da página, produzindo novas leituras que inexistiam na obra original. Esse trabalho pode ser visto em: http://www.tomphillips.co.uk/humument/.

Philips não é o único a fazer este tipo de obra, que segue conceitos estéticos bem contemporâneos como “intervenção”, “desconstrução”, “releitura”, etc. 

Acabei aterrissando no saite “Altered Books” (http://www.logolalia.com/alteredbooks/) e percebi que se trata de uma tendência coletiva. Os exemplos do Altered Books (de numerosos artistas) são mais simples do que o trabalho de Philips, e muitos, francamente, me parecem um papel carbono do que ele faz. Sem problema. As descobertas da arte jamais se democratizariam se não existissem a cópia, a imitação. Se todos os artistas fossem igualmente criativos, não existiria o diálogo estético, porque cada qual estaria falando uma língua exclusivamente sua.

Descobri agora outro trabalho curiosíssimo, o de Brian Dettmer, intitulado “Book Autopsies” (https://briandettmer.com/art/). Como o título indica, ele faz verdadeiras autópsias em exemplares de livros volumosos, pousando-os sobre a mesa, abertos, e recortando-os cada vez mais fundo. Os resultados se parecem com sítios arqueológicos que são escavados em camadas sucessivas, que ficam expostas umas ao lado das outras. 


Dettmer não apenas recorta e escava o interior dos livros, ele usa algumas dessas superfícies assim expostas para pintar, colorir, desenhar, pregar imagens trazidas de fora.

Claro que isto envolve a destruição do livro, mas trata-se da destruição de um único exemplar – desde que não seja um exemplar raríssimo, para mim o que se cria ali é mais importante do que o que se destrói. 

Dettmer nos mostra livros volumosos (enciclopédias, dicionários, etc.) que parecem desventrados, estripados, com as entranhas à mostra. Outros parecem revelar em seu interior circuitos eletrônicos, placas de chips. A quantidade de variações que o artista extrai desse método subtrativo é espantosa, ainda mais se considerarmos que, pelo menos em alguns casos, é possível abrir o livro em diferentes pontos e modificar a “moldura” das intervenções feitas.

Em alguns casos o artista privilegia as imagens internas do livro, preservando-as, e desbastando todo o resto. Em outros ele preserva frases, que passam a ser lidas em relevo, justapostas a frases que surgem páginas adiante. 

É o mesmo método de Tom Philips,s só que agora numa escala tridimensional. É uma nova forma de arte: destruir para criar; esculpir volumes de páginas com ilustrações e texto; produzir objetos recompostos através da mutilação.