sábado, 24 de outubro de 2009

1316) “Sergeant Pepper’s” (1.6.2007)




“It was twenty years ago today...” 

Não, não foi há vinte anos, e sim há quarenta. Em 1 de junho de 1967 a gravadora EMI colocou nas lojas um LP dos Beatles com o excêntrico título (para a música da época) de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. A capa era mais excêntrica ainda: os quatro Beatles apareciam todos de bigode, vestindo uns uniformes de banda-de-música, cheios de galões, dragonas e alamares – e cercados por uma colagem de fotos de gente que passamos as semanas seguintes identificando e anotando num caderno. 

Outra excentricidade: o disco tinha capa dupla, abria-se ao meio como um álbum, e (eu não quis acreditar quando vi, considerei aquilo um favor pessoal de Deus para comigo) as letras vinham todas impressas na contracapa. Escusado dizer que decorei todas, e sei a maioria até hoje.

Quem me revelou o Pepper’s foi o saudoso e sempre presente Jakson Agra, na sua casa da Rodoviária Velha. No tempo do Cineclube de Campina Grande, era ali que nos reuníamos para ouvir música e conversar sobre cinema, poesia, política, e tudo o mais. (Para que ninguém pense que éramos uns intelectuais pedantes, vale lembrar que também jogávamos pôquer e Olho Vivo, comíamos rapadura com coco verde, e falávamos da vida alheia). 

Sergeant Pepper’s, com sua profusão barroca de orquestrações e efeitos eletrônicos, ícones “pop” e “melting pot” político, era a cara daquele tempo. Foi a primeira e talvez única vez em que uma capa de disco popular fotografou um século por inteiro.

O disco foi repetidamente eleito como o “melhor disco de rock” de todos os tempos, embora de rock mesmo ele tenha muito pouco. (Prefiro a distinção de Roberto Muggiatti, de que “rock-and-roll” é o que Chuck Berry e Elvis Presley faziam, e “rock” é o que os Beatles inauguraram nessa época) 

Hoje, há um consenso em achar que Revolver (1966) lhe é musicalmente superior (com o que eu concordo), mas Pepper’s introduziu o “disco conceitual”, sendo composto e gravado como se se tratasse do trabalho de uma banda fictícia, com as canções se sucedendo sem interrupção. Teve seus excessos, que as gerações de roqueiros futuros, previsivelmente, e sensatamente, desancaram.

O fato é que os Beatles são um desses casos raros em que alguém conquista dinheiro e poder quase ilimitados, e em vez de utilizá-los apenas para seu próprio lazer e enriquecimento, prefere reinvestir tudo aquilo nos seus próprios meios de produção, e muda para sempre uma arte, um mercado, uma visão do mundo. 

Nesse momento em que podiam tudo, os Beatles introduziram na música popular o experimentalismo eletrônico, a filosofia oriental, o cinema de vanguarda e muito mais. Criaram pontes entre universos que até então se ignoravam. 

As portas que eles abriram há quarenta anos nunca voltaram a se fechar, e são tão largas que a galera que veio depois achou desnecessário abrir outras. A música “pop” de hoje, a boa e a ruim, é filha daquele disco.




1315) “Os Imperdoáveis” (31.5.2007)



Revi em DVD este filme premiado de Clint Eastwood quando terminava a leitura de Cangaceiros de José Lins do Rego, e a transição de um para o outro foi macia, parecia um asfalto bem assentado. São mundos contíguos, nos quais, apesar das muitíssimas diferenças históricas e sociais (EUA da década de 1880, Nordeste da década de 1920) vigora uma mitologia milenar na qual retornam arquétipos cada vez mais antigos e cada vez mais robustos. Como por exemplo o Jovem Ambicioso: um rapaz imaturo que se deixa seduzir pelas lendas grandiloqüentes que cercam o mundo da violência e resolve entrar para o “pistoleirismo”, apenas para descobrir que as coisas não são tão românticas ou heróicas como ele imaginara.

Outro arquétipo – este apenas no filme -- é o Matador Aposentado, o sujeito que depois de fazer a fama e cair em desgraça imagina que poderá, como o Kid Morengueira dos sambas de Miguel Gustavo, comprar um sítio e criar galinhas. Ledo engano. Cedo ou tarde um Jovem Ambicioso surgirá desafiando-o para um duelo, ou então ele será forçado (como Eastwood aqui, e como o Shane de Os Brutos Também Amam) a tomar o partido de gente indefesa. Em O Dragão da Maldade, Glauber Rocha também mostra Antonio das Mortes tentando se aposentar mas sendo convocado para “uma última missão”. Este tema é tão recorrente, há milênios, que deve exprimir uma verdade psicológica profunda. Quem mata torna a matar. Quem uma vez sujou as mãos com sangue nunca conseguirá lavá-las, como ocorreu com Lady Macbeth. Cedo ou tarde, terá que matar de novo.

Um personagem arquetípico presente em ambos os filmes é o Bardo, o contador de histórias que imortaliza os heróis. No livro de Zé Lins é o cantador Dioclécio, que seduz a imaginação do menino Bento desde a sua infância no Exu, que canta depois as façanhas do seu irmão, o cangaceiro Aparício, e que nos últimos capítulos do livro aparece para ajudar Bento a fugir daquele ambiente condenado à violência insensata. No filme de Eastwood, é o escritor Beauchamp, um daqueles escritores de “dime novels” que percorriam o Oeste escrevendo livrinhos baratos com as aventuras de pistoleiros como Buffallo Bill ou Jesse James. Há outro ótimo personagem equivalente em Um de nós morrerá (“The left-handed gun”), a anti-convencional biografia de Billy the Kid feita por Arthur Penn. Em Os imperdoáveis, Beauchamp surge no vilarejo como um puxa-saco do pistoleiro English Bob (um papel menor, interpretado de forma magnífica por Richard Harris), depois passa-se para o lado do xerife Little Bill, e nas últimas seqüências está entrevistando Will Munny. Ele é covarde, servil, adulador – um retrato nada elogioso para os escritores, e tirarei satisfações com Clint Eastwood na primeira em vez em que o encontrar pessoalmente. Mesmo assim encarna um personagem essencial para um mundo em que, mais do que a verdade, publica-se a lenda: ele é o cara que registra a lenda.

1314) Escrever cansa (30.5.2007)




(ilustração: Franz Masereel)

A maioria dos aspirantes a escritor desiste no meio do caminho, e uma razão para isto é que escrever é uma coisa muito cansativa. 

À primeira vista parece que não, e muitos jovens derivam na direção da literatura porque ela parece um modo de trabalhar sem fazer força, diferente do ofício extenuante de quebrar pedras com uma britadeira ou de dirigir um ônibus urbano. 

Comparada a estes casos extremos, claro que a literatura lembra um oásis de sombra e água fresca, mas a verdade é que ela exige não apenas obstinação e paciência, como também um certo preparo físico.

Idéias todo mundo tem, mas não são muitas as pessoas capazes de sentar a uma mesa, seja diante de um caderno ou de um computador, e passar duas, quatro, seis horas seguidas tentando passar suas idéias para o papel, uma tarefa tão extenuante quanto somar à mão colunas e mais colunas de números com dezenas de algarismos. 

Escrever parece com isso: fazer contas de cabeça. É preciso estar ligado o tempo inteiro, mantendo na memória os resultados parciais até poder chegar na parte de baixo, pensar “345”, colocar o “5”, dizer “vai 34”, e prosseguir.

Essa necessidade de uma concentração quase desumana cobra seu tributo ao físico. O fato de um escritor passar o tempo inteiro sentado é enganoso. Escrever cansa, do mesmo jeito que uma viagem internacional de avião, daquelas em que o cara fica afivelado na poltrona durante 8 ou 10 horas, também cansa. 

Cansa pelo fato da gente precisar ficar preso àquela posição, e pela tensão permanente de estar com todas as lâmpadas da mente ligadas ao mesmo tempo, consumindo mais energia do que uma decoração natalina. Daí que muitos escritores intercalam sua atividade com caminhadas em volta do quarteirão ou, no caso dos mais displicentes, com idas freqüentes à cozinha e à geladeira.

Além do desgaste físico, há o desgaste social. Com exceção de Sartre, que escrevia à mão nas mesas dos cafés parisienses, o trabalho literário se dá entre quatro paredes, em isolamento. É uma atividade anti-social, que deixa o seu praticante com remorsos cada vez que sai para jantar com amigos: “Eu devia estar trabalhando...” 

Muitos atenuam este sintoma usando um caderninho de bolso, no qual, de quando em quando, fazem anotações sub-reptícias, para convencer a si próprios de que não estão malbaratando seu tempo.

É por causa dessa tendência forçada ao isolamento e ao silêncio que muitos escritores adotam técnicas contrárias: ditam em voz alta para um gravador ou para uma taquígrafa, por exemplo. Isto lhes permite “escrever” andando a passos largos pelo aposento, gesticulando, fazendo pequenas encenações teatrais dos diálogos entre seus personagens, indo à janela, sentando no sofá, levantando de novo... 

Escrever assim descontrai os músculos, alivia a coluna, previne as varizes. Ajuda a enfrentar essa atividade imobilizante e cansativa. Ser escritor só perde para ser Grande Mestre do Xadrez.



1313) Job Patriota (29.5.2007)




Recebi de Hilário Patriota o livro Na Senda do Lirismo, edição póstuma em homenagem a Job Patriota, recolhendo versos seus, depoimentos, entrevistas, fotos de família, versos em sua homenagem feitos por amigos. 

Job (cujo nome tem este “b” final à moda antiga, mas geralmente todo mundo escreve Jó) foi um dos grandes poetas de São José do Egito. Dizem que em São José até os canários cantam rimando, e a poesia é o destino universal de quem nasce naquelas bandas. Job, casado com Dasneves, filha do grande Antonio Marinho (ao que se diz, o único repentista a ter uma estátua em praça pública), viveu a vida inteira entregue à poesia. 

Conheci-o pouco; na verdade só nos encontramos uma vez, no começo dos anos 1980, quando alunos da Universidade Rural de Pernambuco me levaram para cantar ali, e depois fomos eu, Job e Rubens Braz tomar cerveja num bar das proximidades, até anoitecer. 

Fiquei com a imagem de um sujeito de aparência um tanto sofrida mas com um sorriso inesgotável, um carinho rude e sertanejo, e um amor total, uma disponibilidade total para recitar versos e falar sobre poesia até o Sol capotar de cansaço.

Quando trabalhava na barragem de Sobradinho, um peão pediu a Job que descrevesse o céu estrelado, e ele disse:

A Via-Láctea, o carreiro
chamado de São Tiago
mostrando em seu campo vago
sombras do chão brasileiro.
No Polo Sul, o Cruzeiro
como um mosteiro isolado
que tendo sido tocado
pela mão da Providência
dá uma certa aparência
de um maquinismo parado.

Job cantou muitos anos com Lourival Batista; não tinha a verve satírica e trocadilhesca de Louro, e seus versos talvez lembrassem mais os do outro Batista, Dimas, pelo lirismo e as imagens poéticas cheias de nitidez e simplicidade:

Aonde chega, a verdade
pede à mentira que fuja.
A virtude, esta é tão limpa
que o pecado não suja,
e a consciência, a moeda
que o tempo não enferruja.

A arte mais difícil do poeta é encaixar rimas escassas com estas (“...uja”) de maneira não forçada, de maneira a parecer que não havia outra palavra possível para dizer o que foi dito.

Glosando um mote sugerido pelo poeta Manuel Filó, disse Job: 

A paisagem do campo: que beleza!
Onde Deus escreveu o seu poema
cada árvore parece com um cinema
pelo filme da mão da Natureza.
Pelo gado de toda redondeza
o capim pelo chão fica pisado
como todo consolo machucado
tem o cheiro do hálito da criança,
toda sombra de pau que um boi descansa
deixa um cheiro de pasto mastigado.

Temos aí o ritmo impecável, a riqueza visual, e a delicadeza de comparar a pureza do cheiro do capim com o hálito da criança. 

Fala-se que Job foi boêmio desses de virar noite. Como tantos outros, deixou versos espalhados por onde passou, repentes como fotos polaróides de cada instante da vida: 

Às vezes estou deitado
vejo um lindo panorama
pelas brechas do telhado
colhendo da minha cama
as filigranas de prata
que a luz da lua derrama.




1312) A caridade (27.5.2007)


(Myrtle Reed)

A caridade é uma das três virtudes teologais, juntamente com a fé e a esperança. Alguns doutores da Igreja a consideram a mais importante, mas das três é a que tem conotações mais negativas. “Caridade” (ou melhor, a condição de precisar da caridade alheia) virou sinônimo de miséria, mendicância, etc. “Fazer uma caridade” é sempre algo humilhante para a pessoa beneficiada. O “caixão da caridade”, que algumas igrejas emprestam para que os muito pobres levem seus mortos ao cemitério (e depois devolvam) é considerado por alguns a pior das humilhações, de quem “não tem onde cair morto”.

Ninguém quer ser miserável, ninguém quer estar na condição de nada ter, de nada poder dar. Se você chegar na casa de taipa de um sertanejo e tudo que ele tiver for um pão seco, ele lhe oferece metade. Em parte é generosidade; em parte é para mostrar que não está tão mal assim, que pode, sim, abrir mão daquilo. O ser humano é movido por impulsos contraditórios de abnegação e orgulho.

Caridade é sinônimo de esmola, e virou moeda de troca no comércio espiritual. Tem sujeito que quer ir para o Céu, vê um mendigo na rua e bota um donativo no seu chapéu. Sai dali satisfeito, imaginando que com isto melhorou seu saldo-médio, seu crédito, seu investimento, ou sei lá que conceito financeiro é adotado nessa contabilidade de valores. Será que é assim que funcionam os julgamentos do Altíssimo? Duvido muito.

Myrtle Reed, escritora norte-americana de cem anos atrás, disse: “Muita gente considera um ato de caridade dar a alguém suas roupas velhas e coisas de que não mais precisa. Não é caridade dar coisas das quais a gente quer se ver livre, assim como não é um sacrifício fazer algo que a gente não se importa de fazer”. Quando eu dou uma esmola, é um pouco nesse espírito. Vejo um guri com fome, um cara desempregado, meto a mão no bolso, dou a ele um real, dois reais, não importa quanto. Nem me passa pela cabeça que Deus (caso exista) bote isso no prato onde está escrito “CÉU” de uma balança com meu retrato. Não tem nada a ver com Deus. Dei o dinheiro pra o cara comprar um pão, isso fica entre mim e ele, e peço que esta ressalva seja registrada em ata.

Quando estou com livros sobrando em casa, chamo o pessoal da “Berinjela” e concedo-lhes 200 livros a troco de crédito. Não acho que tenha feito uma caridade: estou me livrando de algo que não me faz falta e que me tomava espaço. Uma negociação onde ambos os lados saem ganhando, mas, caridade? Nem pensar. Dar uma esmola é a mesma coisa.

É possível que eu tenha feito algum gesto de caridade na minha vida, afinal não me considero um caso perdido. Mas não fico pensando a respeito, porque ficar pensando significa ficar acendendo uma lanterna e chamando a atenção de Deus: “Ei! Olhe aqui! Deposite na minha conta!” Só existe caridade quando quem dá abre mão de alguma coisa que lhe era importante. Só existe sacrifício quando existe prejuízo. Quando nada se perde, nada se pode querer ganhar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

1311) “Estamira” (26.5.2007)




Este impressionante documentário de Marcos Prado andou ganhando prêmios por aí e recebendo elogios da crítica. Consegui vê-lo em João Pessoa, na recente edição do Cineport, onde ele mais uma vez foi premiado. 

É um filme que nos marca pela tragédia humana que revela, e pela grandiosidade de suas imagens. Infelizmente, é o tipo do filme que aparece resumido assim nos roteiros de jornal: “Documentário sobre uma mulher esquizofrênica que vive de catar lixo na periferia do Rio”. 

Não é um resumo dos mais convidativos, e muita gente vai deixar de ver um dos melhores filmes brasileiros da atualidade.

Estamira é a personagem central, uma mulher nascida numa família de classe média que foi decaindo financeiramente até acabar praticamente na miséria. Aos 60 e tantos anos, ela cata lixo e mora numa casa humilde. 

Submeteu-se durante quatro anos a tratamentos variados em hospitais psiquiátricos. Durante esse período o diretor a acompanhou, registrando cenas do seu trabalho e fazendo entrevistas com ela e seus parentes.

Estamira é mais uma figura inesquecível na galeria de doidos iluminados brasileiros, junto com Artur Bispo do Rosário, com o Fernando Diniz cujos quadros aparecem em Imagens do Inconsciente, com a escritora Maura Lopes Cançado (autora de Hospício é Deus), com a protagonista do recente documentário Stella do Patrocínio

Todos eles são pessoas clinicamente consideradas doentes mentais, mas as coisas que pensam, dizem e fazem nos levam a reavaliar não apenas o nosso conceito do que é razão ou loucura, mas a pensar em como a sociedade é despreparada para lidar com suas próprias exceções.

O que mais empolga no filme é o modo como o diretor usa imagem e som escrupulosamente realistas para nos dar a sensação de que estamos mergulhados no universo alucinatório da personagem. 

Há uma cena magnífica filmada no lixão, quando uma tempestade se aproxima no horizonte, precedida por uma ventania que vai arrastando todo aquele lixo solto: sacos plásticos, papel, tufos de capim, pedaços de madeira, objetos pequenos, tudo sendo varrido por um vento que parece um princípio de furacão, enquanto Estamira, fincando pé contra a ventania, grita e esbraveja contra os elementos.

Simétrica a esta cena é a cena final, em que o diretor a leva para uma praia deserta, onde ela caminha em paz, mergulha os pés descalços na areia, aproxima-se do mar, cujas ondas parecem sentir sua aproximação e crescem, em paredões de espuma que se erguem a 10 ou 20 metros de altura e desmoronam com um ruído ensurdecedor. A onda arremete com força, derruba Estamira, que se molha toda, rola na areia, se reequilibra, ri, levanta, volta a esbravejar contra o Oceano sem que se entenda coisa alguma do que ela diz, porque o fragor da arrebentação é muito alto. 

Uma cena memorável, cinema puro, em que vemos a pequenez do ser humano diante das forças bravias do seu próprio Inconsciente.






1310) Milan 2x1 Liverpool (25.5.2007)



Dois anos atrás, Milan e Liverpool fizeram a final da Copa dos Campeões, que eu, pessoalmente, considero o melhor campeonato do mundo, melhor do que qualquer Copa do Mundo disputada por seleções. Mesmo antes da Seleção Brasileira pagar o mico histórico que pagou em 2006, eu já venho achando que os jogadores jogam melhor nos seus clubes europeus do que nas seleções dos seus países de origem. Uns dizem que é falta de patriotismo, outros dizem que é porque o clube paga fortunas e as seleções não pagam tão bem. Prefiro imaginar que o sujeito simplesmente passa 10 meses por ano jogando pelo clube. É uma convivência, é como um casamento, é um modo de vida. A Seleção aparece como uma obrigação periódica que vai tirá-lo do seu ambiente.

Voltando ao tema: em 2005, o Milan botou 3x0 no Liverpool e achou que a taça estava ganha. No segundo tempo, o Liverpool partiu para cima e encostou em 3x3. Nos pênaltis, o time dos Beatles ganhou o título merecidamente. Gerrard, capitão do Liverpool, afirma que na volta do intervalo os jogadores italianos tocaram com a ponta dos dedos na taça, ao retornar para o campo de jogo, o que segundo ele dá um azar danado.

Anteontem, a coisa foi diferente. Num jogo corrido e disputado, mas cheio de ferrolhos e de marcação duríssima, com poucas chances reais de gol, o Milan fez 1x0 no fim do primeiro tempo, numa cobrança de falta que resvalou no corpo do sortudo Inzaghi, que mesmo sem jogar nada foi o herói do jogo. No segundo tempo, os liverpudlianos partiram para cima, tiveram algumas chances, mas Kaká deu um jeito de botar Inzaghi novamente na cara do gol: 2x0. Tudo parecia liquidado quando o Liverpool aos 42 conseguiu um gol de cabeça, que deu emoção e desespero aos minutos finais, mas o jogo acabou com uma vitória merecida do Milan.

Um dos detalhes que acho mais interessantes nessa Copa é o fato de o jogo final ter sua sede marcada antecipadamente, sem que se saiba quem serão as equipes. Na final de 2005, Milan x Liverpool, um clube italiano e um clube inglês, jogaram em Istambul, na Turquia; anteontem, jogaram em Atenas, na Grécia. Ano passado, o Barcelona foi campeão derrotando o time inglês do Arsenal – em Paris.

Os melhores jogadores brasileiros disputam esse campeonato; nossa seleção está todinha ali. Os clubes são verdadeiras seleções internacionais, mesclando europeus, sul-americanos e africanos de grande talento. É o lado bom do grande capitalismo esportivo, num futebol onde, ao contrário do Brasil, os clubes têm estrutura e capital para usarem os empresários de atletas, em vez de serem usados por eles, como acontece com os clubes brasileiros em sua eterna pindaíba. Em vez de seleções nacionais repletas de estrangeiros jogando num país qualquer, temos jogos de ida e volta dos clubes diante de suas torcidas, sendo apenas a final em campo neutro. E durante cerca de seis meses a TV a cabo nos dá a chance de ver o melhor futebol do mundo.

1309) As árvores e a floresta (24.5.2007)


(Zé Lins, por Baptistão)

Num comentário sobre os romances do “ciclo da cana-de-açúcar” de José Lins do Rego, o saudoso presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, assim se expressou: “José Lins do Rego consignou um dos fenômenos sociais mais típicos da civilização latino-americana no século XX, e, com isso, deu vida a uma galeria de tipos psicológicos que ficarão para sempre em nossas letras”. É um juízo elogioso com o qual concordo em princípio, só que eu reverteria a ordem do argumento. Eu diria assim: “José Lins do Rego deu vida a uma galeria de tipos psicológicos que ficarão para sempre em nossas letras, e, com isso, consignou um dos fenômenos sociais mais típicos da civilização latino-americana no século XX”.

Parece bobagem, mas não é. Se Zé Lins conseguiu reproduzir em seus romances o que era aquele mundo dos Engenhos, que ele conheceu tão de perto, foi devido a sua capacidade de criar personagens e mostrá-los em sua relação profunda com o ambiente. Ao contrário da ficção sociologizante, que parte sempre de conceitos gerais como se lidasse com uma vasta equação matemática, Zé Lins reconta as histórias individuais dos moleques, das iaiás, das negras velhas, dos cambiteiros, de todas aquelas pessoas que marcaram sua memória, e, por entender em retrospecto (depois de adulto, depois de muitas leituras) a história social que aconteceu ali, ele consegue partir, como rezam os manuais literários, “do particular para o geral”.

Hoje em dia essa ficção sociologizante, que teve um peso tão grande nas décadas do meio do século passado, está em baixa. Com o afrouxamento das ideologias de esquerda (que em grande parte sobrevivem apenas no meio universitário) os jovens literatos não têm preocupação alguma em “retratar condições sociais”. Não lhes falta assunto porque falam do seu umbigo, que por sinal é mais vasto do que seu vocabulário, então fica tudo em casa. Mas para quem quer ler os autores das gerações precedentes, é preciso entender que a literatura se dava então num outro “horizonte de expectativas” em que Autores, Leitores e Críticos avaliavam os livros de acordo com outros critérios.

Naquele tempo, escritores de esquerda bem-intencionados pretendiam descrever ambientes sociais de acordo com descrições generalizantes como “os intelectuais da pequena burguesia urbana apóiam os operários ms têm que enfrentam o conservadorismo dos camponeses, além do papel ambíguo da Igreja, que se divide entre o assistencialismo e o conformismo...” Munido de generalidades assim, os autores obrigavam os personagem a se comportar de acordo com tais abstrações, e o resultado eram personagem mecânicos, repetitivos. Zé Lins fazia o contrário. Tinha espírito de escritor capaz de desenhar cada árvore individualmente, sem perder de vista o modo como todas elas se juntavam para formar a floresta. Quem começa desenhando a floresta, jamais vai saber fazer uma árvore.

1308) I love America (23.5.2007)




A classe média brasileira experimenta há séculos um imenso movimento migratório mental rumo a outras culturas e outros estilos de vida que ela procura adotar como modelo, para limpar de si a sujeira de brasilidade que a contamina desde o nascimento. Quando o brasileiro começa a ganhar um dinheirinho a mais, toda sua ascensão social se volta para o estrangeiro. No começo do século 19 era Portugal, cem anos depois era a França, hoje em dia são os Estados Unidos. São culturas que imaginamos superiores à nossa: mais antigas, mais nobres, mais eruditas, mais elegantes, mais poderosas...

No caso da cultura norte-americana, sua sedução não é a antiguidade ou a sofisticação, e sim o poder do dinheiro e a superabundância de posses e lazeres que ele proporciona. Abrimos mão de aprender com os americanos algumas coisas positivas que eles têm – o profissionalismo, o respeito aos ofícios braçais e manuais, a simplicidade na linguagem (nosso linguajar acadêmico, um paródia opaca e atravancada do alemão e do francês, teria muito a aprender com a clareza norte-americana), a crença na autonomia e na liberdade individual. Em vez de imitar isto, imitamos o que os americanos têm de mais vulgar: a frivolidade, o consumismo, a passividade mental diante das telecomunicações, o provincianismo que se traduz em desprezo e desinteresse por diferentes culturas e diferentes maneiras de ver.

Quando uma loja brasileira em liquidação coloca um letreiro de “SALE” ou quando uma pizzaria anuncia “DELIVERY” na esquina estão na verdade querendo tornar-se membros de um clube que sempre os rejeitou. Nossos coleguinhas da América do Norte acham que somos plantadores de banana ou trepadores de coqueiro, mas, quem sabe? Talvez, se descobrirem que sabemos usar os termos ingleses com propriedade, percebam que somos seres humanos e civilizados iguais a eles, e facilitem nosso visto de entrada. Talvez, até, ingressos grátis para a Disneyworld – que aqui no Brasil nossa imprensa chama “a Disney”, com aquela pseudo-intimidade de gente inferior querendo se enturmar.

Quem vos diz isto, caros leitores, não é um nacionalista radical, nem um americanófobo. Conheço e amo a cultura norte-americana mais do que grande parte da própria população deles. São um povo grande e admirável. Nós também poderíamos sê-lo, mas preferimos a atitude bajulatória e subalterna de achar que, por serem eles grandes, são a única forma acessível de grandeza. Quem ama a cultura americana como eu amo sabe a dificuldade que eles tiveram para fugir da sombra da Literatura Inglesa, do Teatro Inglês, da Música Européia em geral. Criaram (não sem conflitos, não sem sofrimento) coisas como a ficção científica, o jazz, o filme de faroeste, o romance policial “noir”, as novelas gráficas, o rock, o filme musical. Têm sua linguagem própria, sua visão-do-mundo própria, e devemos admirá-los por isso. Macaquear e adular os outros, e ter vergonha de nossa própria cara, isso jamais.

1307) O moído de Romário (22.5.2007)



“Acabou-se o moído de Romário / e o Gol Mil tá rodando na TV...” Pois é, amigos, em matéria de moído o futebol brasileiro há muito tempo não acompanhava uma novela tão comprida. Domingo passado, um juiz misericordioso apitou um pênalte, entregou metaforicamente a bola a Romário, e disse: “Vamos, cidadão, porque o País está parado há mais de um mês esperando essa bola entrar”. Estou exagerando, claro, mas tudo que cerca o Maior Baixinho do Mundo conduz à metáfora, à hipérbole, à prosopopéia. A bola, entrou, isso é o que conta. (Pelo meu gosto teria sido no Náutico, mas é pedir demais aos Deuses do Futebol).

Os mil gols de Romário reacenderam uma discussão curiosa, a das estatísticas que cercam o futebol. Uma das coisas mais fascinantes do Esporte é o fato de que nele a Humanidade descobriu como juntar dois universos aparentemente inconciliáveis: o Corpo e o Número. Nada mais concreto, palpável, único, individualizado do que o Corpo humano. E nada mais abstrato, imponderável, genérico e universal do que o Número. O Esporte (futebol incluído) é acima de tudo uma arte e uma ciência de utilizar as potencialidades do corpo (força, energia, flexibilidade, agilidade, coordenação motora, rapidez, etc.) para gerar estatísticas comparativas, e através delas estabelecer quem fez melhor e quem fez pior, quem ganhou e quem perdeu. Quando um nadador ganha a medalha de ouro (e o outro a de prata) por uma diferença de centésimos de segundo, isto é uma façanha do Corpo, mas estabelecida no domínio do Número, por um critério que o Corpo não distingue, e somente a Mente e a Máquina podem comprovar.

Romário fez mil gols? Ele e sua equipe dizem que sim, e aí entra a discussão sobre o que é um gol de verdade. Vale jogo amistoso? Vale jogo beneficente? Se eliminássemos esses golzinhos de partidas não-oficiais o Baixinho estaria com pouco mais de 900. O mesmo se diz das contas que atribuem 1.176 gols ao húngaro Puskas em cerca de 1.300 partidas, ou, num resultado ainda mais impressionante, ao craque carioca Friedenreich, das primeiras décadas do século 20, a quem são atribuídos 1.329 gols (bem mais do que os 1.283 de Pelé), mas que, descontados os gols não oficiais, teria marcado 554 gols em 561 jogos.
Parece conversa de sujeito desocupado em balcão de botequim, não é mesmo? As mulheres sentem um soberano desprezo pela categoria “Homem” quando nos vêem entregues a esse tipo de contabilidade. Para elas, o Corpo tem uma existência autônoma em si próprio, sem precisar de números de qualquer espécie. Nós, curiosamente, temos a mania do Número. O Corpo é uma máquina de produzir estatísticas, índices, escores. Só somos capazes de entendê-lo através de tabelas numéricas que descrevem suas performances. Pensando bem, é um milagre que a gente seja capaz de distinguir, sem recurso ao Número, quando um sujeito é um craque e quando é um cabeça-de-bagre.