sábado, 27 de setembro de 2008

0563) Um Tsunami de números (7.1.2005)



O saite “Cockeyed.com” preparou uma curiosa comparação gráfica entre o atentado ao World Trade Center e o tsunami que devastou os países da Ásia. Segundo os caras, a Indonésia perdeu 53 Torres, o Sri Lanka 16, a Índia cinco, e assim por diante. Estes números, claro, já estão defasados. A quantidade de vítimas aumenta a cada dia que passa. E eu discordo um pouco da base de cálculo, que toma uma média de 1.500 vítimas por Torre. Pelo que me consta o número final (oficial) de vítimas do 11 de setembro foi de 2.749, mais os 19 terroristas (bem abaixo dos 6.300 que eram a estimativa feita nos dias seguintes).

Alguns artigos na imprensa têm comparado o número de vítimas e a população de seu país de origem, e ao que parece um dos países mais atingidos foi a Suécia. As praias atingidas pelo tsunami (Indonésia, Tailândia, etc.) eram um dos lugares preferidos pelos turistas dos países nórdicos. Havia cerca de 20 mil turistas suecos na região. No momento, 3.500 deles estão desaparecidos, provavelmente mortos. É mais gente do que morreu em Nova York no 11 de setembro. A última tragédia a que o país pode comparar esta foi o naufrágio de um “ferryboat” em 1994, quando morreram mais de 800 pessoas, entre as quais 551 suecos.

Em todo caso, esta algaravia numérica é para mostrar que eu também, como grande parte da imprensa e da humanidade alfabetizada, estou me entregando a uma reação nervosa típica de nossa civilização. Chama-se a isto “Quantificar o Impensável”. Toda vez que uma coisa é traumatizante demais, a gente a transforma numa coluna de números, e começa a compará-la com colunas parecidas.

Na primeira página de A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera comenta que 350 mil africanos morreram numa guerra tribal qualquer, e que isto não deixou marca nenhuma na História do Mundo. Na primeira página de Buffo e Spallanzani, Rubem Fonseca sonha com Leon Tolstoi molhando a pena num tinteiro e lhe dizendo: “Para escrever Guerra e Paz, repeti este gesto 1 milhão e 800 mil vezes.” Os números talvez não sejam estes, porque estou citando de memória, mas é o que menos importa. É o ato de contar coisas que nos sossega o espírito. Dustin Hoffman, em Rain Man, vê uma caixa de fósforos se derramar no chão e diz: “37”.

Saber quantos (não importa o quê) tem essa curiosa função pacificadora. Não é apenas o prazer do Tio Patinhas contando suas moedas e se orgulhando da sua fortuna. Contamos os infortúnios também, pelo poder mágico do número e da possibilidade de confrontação de séries numéricas (“Morreu um Maracanã de gente!”). Em colunas anteriores (“O império do número”, 17.7.2003, “O delírio quantitativo”, 9.11.2003, e outras) comentei essa perversão benigna de nossa mente. Sofremos muitos males sob a Ditadura da Quantidade, mas ela também nos ajuda a suportar as brabeiras da vida. É como contar os carneirinhos que entram pela porta do Matadouro, e adormecer em paz.

0562) Quaderna e os reis bastardos (6.1.2005)



A Editora José Olympio está para lançar uma nova edição do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, que estava esgotado e fora de catálogo desde 1976. Muito oportuno, até porque o autor tem muito mais visibilidade hoje na imprensa do que tinha na época do primeiro lançamento. Ariano é um sujeito polêmico, que diz o que pensa, e só pensa o que quer. No tempo da ditadura militar, muita gente via nele um sujeito excêntrico, que queria restaurar a monarquia no Brasil – ou seja, não o distinguiam muito bem de organizações de Direita como a paulista TFP (“Tradição, Família e Propriedade”). Ariano deu mais de mil entrevistas esclarecendo que sua admiração pela monarquia era de ordem puramente literária e simbólica, mas não adiantou muito. Foi rotulado como monarquista, e como monarquista ficou.

Ainda bem que o livro sai agora, e algumas pessoas que falam mal de Ariano terão a chance de conhecer sua obra. O Romance da Pedra do Reino é (à maneira de Cervantes) uma homenagem e uma sátira. Cervantes usou o Dom Quixote para satirizar os romances de cavalaria e seus leitores, mas por baixo de seu texto existe uma corrente de ternura e de admiração pelo universo anacrônico em que habita a mente do fidalgo. Cervantes admira os cavaleiros, admira a literatura de cavalaria, mas ao mesmo tempo sente que aquele tempo passou e que aquela literatura é insuficiente e insatisfatória para os novos tempos: ninguém é mais tão ingênuo assim.

No Romance da Pedra do Reino, Ariano trata de modo parecido a monarquia. É uma instituição gloriosa e anacrônica, conforme a vemos através dos olhos de Dom Pedro Dinis Quaderna, que, um pouco à maneira do Tartarin de Tarascon, de Daudet, é ao mesmo tempo um quixote e um sancho-pança. É um pretenso fidalgo deslumbrado pela grandeza cavalariana e pelas regalias sociais dos aristocratas, e um pícaro, um espertalhão cheio de truques e negociatas, disposto a qualquer manobra para satisfazer sua ingênua sede de fama literária e prestígio social. Diz Quaderna, no Folheto 53:

“Pode dizer, Excelência! Eu absolutamente não me incomodo mais de ser filho-da-puta! Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe, coitada, é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do Cariri e portanto irmã por vias travessas de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Antes, eu ficava danado da vida quando alguém falava nessa filho-da-putice nossa. Mas lá um dia, numa discussão, Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças, descendentes de Dom João I e Nuno Álvares Pereira, são várias vezes bastardos e netos de padre! Depois daí, fiquei descansado e perdi a vergonha!”

A nobreza real sonhada por Quaderna é forjada de vilipêndios, traições e adultérios; de delírios de grandeza e carnificinas entre mafiosos. É a tragédia shakespeariana de sempre, com gibão de couro e peixeira na cinta.

0561) Queremos filmes iraquianos (5.1.2005)



O New Statesman resenhou recentemente um livro de Atom Egoyan e Ian Balfour, Subtitles: on the foreigness of film, onde são discutidas questões sobre dublagem e legendagem de filmes estrangeiros. Existem países onde a legendagem é prática corrente (como sempre foi o caso aqui no Brasil), deixando-se a dublagem para os filmes infantis, ou para cópias especiais de filmes de sucesso. Em outros, todo filme é dublado. Um dos maiores sustos que tive na vida foi entrar num cinema na Espanha para assistir o primeiro Batman e descobrir que o mesmo era dublado. Era estranho passar a noite inteira ouvindo falar em “Hombre Murciélago”.

O autor do artigo cita a certa altura a crítica norte-americana B. Ruby Rich, que, defendendo a importação de filmes não-americanos para os EUA, diz: “É mais difícil matar pessoas quando você é capaz de ouvi-las falando. É mais difícil bombardear um país quando você já viu suas cidades em filmes aos quais se afeiçoou.” Eu, que sou um sujeito cheio de preconceitos, posso atestar a verdade desse argumento. Durante muitos anos detestei solenemente o Irã. Na minha mente, era uma porção de mesquitas repletas de aiatolás vociferantes e de assassinos fundamentalistas revirando o mundo à caça de Salman Rushdie. Foi preciso que filmes iranianos começassem a passar aqui no Rio de Janeiro para eu me tocar que o Irã não é muito diferente da Paraíba. É um país de gente comum, sacrificada, alegre, tentando viver suas vidas da melhor maneira possível. Tem suas excentricidades religiosas, mas quem somos nós, que vivemos à sombra de Frei Damião e do Padre Cícero, para estranhar as devoções alheias?

Nunca vi um filme iraquiano, mas, por associação de idéias, acabo imaginando (v. “O Iraque é aqui”, 23 de dezembro) que a diferença entre Iraque e Irã é mais ou menos como a diferença entre Alagoas e Sergipe. Para ser sincero, não acho que o brasileiro médio precise ver filmes iraquianos para se convencer de que aquele povo é parecido com o nosso. Quem deveria passar por esta higiene mental era o público norte-americano, para quem todas estas guerras são benéficas, mesmo que matem metade da população do país, porque a metade sobrevivente terá enfim a possibilidade de lanchar num MacDonald´s e de ver filmes de Julia Roberts.

Dizem que, nas antigas execuções por decapitação ou fuzilamento, a tradição de cobrir o rosto do condenado com um capuz provinha do receio de que se os carrascos cruzassem os olhos com os dele poderiam acabar se comovendo com sua expressão de súplica ou de terror. A gente mata com mais facilidade alguém com quem não tem uma relação próxima. Um carrasco (ou um Fuzileiro Naval) pode dizer a si próprio que é apenas um funcionário público, está apenas cumprindo uma ordem judicial, que não há nada de pessoal naquilo, e que não conhece aquele cara que está ajoelhado diante dele, com a cabeça apoiada no cepo, esperando o machado.

0560) Ou escreve ou endoidece (4.1.2005)



Peguei no ótimo saite literário The Elegant Variation uma pequena lista de instruções para escritores profissionais. Faço esta especificação pelo fato de que os escritores amadores não precisam de instruções, uma vez que só escrevem quando sentem-se inspirados. Os profissionais, no entanto, são obrigados a escrever todos os dias, tenham idéias ou não, vontade ou não. 

Vai daí que a Internet fervilha de páginas de conselhos, táticas e métodos para fazer com que estes pobres coitados cumpram seus prazos e não passem vergonha.

Ainda acho que o método mais eficaz é o que chamo “Método Garcia Márquez”, por ser o adotado pelo nobre escritor colombiano. Dizia o velho Gabo que só conseguira produzir todos aqueles livros porque tinha com sua mulher um acordo. Todos os dias, a uma determinada hora, ela o trancava pelo lado de fora numa saleta onde havia apenas uma mesa, uma máquina de escrever, papel em branco e (creio) uma moringa dágua e um copo. 

Ali ele tinha que passar seis horas por dia, escrevesse ou não. Depois de uma hora de tédio, sem fazer nada, o desespero era tão grande que ele sentava à máquina e acabava escrevendo.

Não é muito diverso o método que achei preconizado na lista, só que esta vem com mais detalhes, que julguei muito úteis. O leitor que confira, e me diga depois.

“Duas horas por dia. Nada de TV, de Internet, de livros, de telefone. Ou escreve, ou endoidece. Escrever cartas não conta. Ler não conta. Pesquisar não conta. Revisar o que foi escrito na véspera não conta. Só há duas opções: escrever texto novo, ou ficar olhando o monitor. 

"Algumas vezes, você vai ter um surto de inspiração e escrever sem parar durante três horas. Isto não lhe dá o direito de no dia seguinte reduzir o prazo para uma hora. São duas horas por dia, não importa o quanto tenha feito na véspera. Não adianta pedir para lavar o banheiro, consertar o vazamento, limpar a caixa-de-areia do gato. Não há desculpas. Você tem que usar aquelas duas horas para escrever.”

Tão pouco, não é mesmo? Creio que foi Rémy de Gourmont quem disse que toda sua obra foi produzida durante algumas horas de trabalho logo depois do despertar: “Trabalhava algumas horas, e o resto do dia era dedicado a viver.” 

Que cronograma esperto! Os indivíduos noturnos, como eu, depositam todas as suas esperanças neste apagar-das-luzes do dia, após a meia-noite. O dia inteiro foi passado em compasso de espera, pesquisando na Internet, respondendo emails, lendo. A hora da onça beber água é depois da meia-noite: aí o cabra diz a que veio. 

É pena, porque muitas vezes o dia foi tenso ou cansativo, e somente quando o relógio nos mostra 4 ou 5 da manhã, e não escrevemos nada ainda, é que temos de jogar a toalha e admitir que aquele foi um dia perdido. 

Duas horas! Dêem-me duas horas de trabalho vibrante e ininterrupto, todos os dias, e eu botarei no bolso Garcia Márquez, Rémy de Gourmont e todos esses pés-de-chinelo.




0559) Amílcar Quintella Jr. (2.1.2005)




Ofereço um milhão de dólares a quem me conseguir informações a respeito desse autor de um dos mais curiosos poemas épicos da literatura brasileira. 

Amílcar Quintella Jr. publicou em janeiro de 1957, pela Editora Iva (São Paulo) o livro A Atlântida – Poema épico de confraternização universal, com 360 páginas e doze Cantos, dos quais o mais longo é o Canto IX (154 estrofes) e o mais curto o Canto VIII (64 estrofes). 

As estrofes são as famosas “oitavas camonianas” de que é composto Os Lusíadas, com oito versos rimando ABABABCC. O livro tem prefácio do seu editor, Elói Braga Jr., e de H. de Brito Viana.

O poema é de especial interesse para nós, paraibanos. Ele descreve a vida dos habitantes da Atlântida, a destruição de seu continente, e a sua fuga em barcos através do Oceano. Eles chegam ao litoral de uma região chamada “Beracil”, onde, num local por nome “Pará-Hibã” encontram um riacho que denominam de “Im-gá”, e em seu leito um rochedo onde decidem gravar inscrições contando sua história. 

Cedo a palavra ao Poeta (Canto XII, estrofes 20 e 21):

O rochedo que vedes sobre o rio, 
por tudo e em tudo nos será sagrado: 
assemelha fantástico navio, 
em meio às mansas águas ancorado. 
Para o porvir, ao tempo em desafio, 
há de levar, por vossas mãos lavrado, 
a mensagem da nossa trajetória, 
e a das contínuas épocas de glória.

Nele, nossos artistas mostrarão 
as três primeiras levas, esculpidas; 
depois as dez seguintes gravarão, 
pelo vosso Profeta conduzidas: 
Neste quadro rupense ficarão, 
para ser algum dia revividas; 
e o mundo saiba tudo o que fizestes, 
e que jamais na luta esmorecestes.

A teoria de Quintella sobre as inscrições na Pedra do Ingá é fascinante, mas mais fascinante é a dimensão gigantesca da obra poética em que a expressou. O poema tem momentos de vívida descrição, fartura de rimas e de imagens, e em tudo e por tudo pode ser considerado um bom poema épico. 

Quem foi Amílcar Quintella Jr.? A bibliografia que aparece no volume enumera o livro de poemas A Capela da Estrada (1933), a comédia dramática Cair das Nuvens, uma versão poética da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, com o título Poema do Trabalho (1952), e alguns “romances radiofônicos”. 

A Biblioteca Nacional, do Rio, possui exemplar de A Atlântida, além de uma adaptação do próprio autor em forma de “roteiro cinematográfico” (79 páginas datilografadas), que lembra mais uma peça de teatro do que um roteiro, por constar apenas de diálogos, sem indicações técnicas ou decupagem.

Descobri este livro há cerca de dez anos, quando pesquisava a história da ficção científica no Brasil, e ele continua a ser um mistério. O poema é dedicado “A Assis Chateaubriand, cuja atuação jornalística tem ligado o Brasil a mais países do que muitos tratados internacionais.” Quintella teria sido um jornalista dos Associados que pretendeu homenagear o patrão através de seu Estado natal?









0558) Some strange music (1.1.2005)



Sou um fotógrafo sem câmera. Numa época saturada de arte conceitual, quem pode me negar o direito de tirar retratos puramente mentais das coisas que vejo à minha volta? Lá vou eu batendo pernas pela cidade, e quando vejo alguma cena interessante não preciso de mais do que alguns segundos para dar uma paradinha, prestar atenção com bem muita força, e depois seguir em meu caminho rumo ao Banco, que fecha daqui a cinco minutos. Pronto: a foto está tirada. O problema é que ainda não resolvi a questão de como criar um “fixador” mental, porque daí a poucos minutos ela volta a se dissolver em moléculas de esquecimento e entropia.

Dias atrás entrei no metrô e, quando o trem partiu, olhei em volta. Num banco próximo, havia um casal de adolescentes. Ambos vestiam o habitual coquetel de incongruências dos jovens de hoje, onde as roupas são cuidadosamente escolhidas para não combinar entre si. Estavam de mãos dadas, e dos ouvidos de ambos pendiam os fios dos fones de dois “walkmen”, o dela dentro da bolsa de pano bordado, o dele fazendo peso no bolso de cima da jaqueta de camuflagem do exército. A moça tinha uma expressão zen, beatífica, olhos entrecerrados, rosto ligeiramente voltado para cima: devia estar escutando as transcendências célticas de Loreena McKennitt ou os móbiles sonoros do Massive Attack. A cabeça dele, no entanto, mexia-se de um lado para o outro, ritmadamente, feito uma lagartixa com soluços, e não me perguntem que banda punk que ele devia estar escutando, pois não faço idéia dessas coisas.

Como diriam os cantores sertanejos: “É o amô-ô-ô!” Cada um mergulhado em seu universo íntimo, em suas próprias sonoridades e fantasias, mas ali, juntos, mãozinha na mãozinha. Para você estar ao lado de outra pessoa não precisa necessariamente estar compartilhando a totalidade de suas experiências. E aqui tiro um chapéu que nunca usei para Akio Morita, o presidente da Sony a quem devemos a invenção do walkman, esta preciosa engenhoca que nos permite escutar música personalizada sem a necessidade de nos isolarmos para isto. Vejo muitos críticos do mundo de hoje (todos eles, como eu, nascidos no mundo de ontem) dizerem que o walkman afasta as pessoas. Pois naquele vagão de metrô carioca tirei uma foto mental da prova em contrário. O walkman permite estarmos juntos ouvindo músicas separadas. Quantas donas-de-casa, mundo afora, não vivem forçadas a escutar o que lhes é imposto por maridos pagodeiros ou filhos heavy-metal?

Julio Cortázar, em Rayuela compara um casal a duas árvores lado a lado, capazes de entrelaçar suas folhagens, mas com os troncos erguendo “duas paralelas inconciliáveis”. Esta é uma metáfora vetorial, cujo sentido depende da ordem da leitura. Sou mais otimista do que Cortázar, inverto a direção, e digo que todo casal consiste, de fato, em duas linhas paralelas, podem estar mil quilômetros distantes, mas desde que estejam de dedos entrelaçados podem ouvir o que lhes dá na telha.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

0557) Feliz ano novo (31.12.2004)




Não peça nada a Deus. Seria um contra-senso Deus fazer algo por você. Digamos que o Mundo estava com problemas, pediu a Deus que mandasse algum tipo de ajuda, e Deus mandou você. Agora, é entre você e o Mundo. Te vira, véi.

Não peça nada ao Destino. Esta é uma grave contradição filosófica, daquelas de fazer Aristóteles se revirar na tumba. “Destino” é um futuro que já aconteceu, que não pode mais ser modificado. Não perca seu tempo.

Não peça nada ao Acaso. O Acaso é quem governa este Universo, e é da natureza dele não escutar pedidos, mas aceitar interferências. Interfira, aja, interrompa, redirecione, transforme. O Acaso agradece.

Não peça nada aos Santos. Santo não é quem toma providências: quem toma providências é médico, bombeiro, mecânico, assistente social... Santo é quem sofre sem se queixar. Deixe que sofram em paz.

Não peça nada ao Governo. O Governo é um brontossauro de cinqüenta patas e trinta pescoços, caminhando aos trancos e barrancos através da jângal antediluviana. Esperar dele alguma coisa que se aproveite equivale a subir pela sua cauda e ir morar numa choupana em seu dorso, tentando convencê-lo a seguir no rumo desejado. Esquece. Melhor ir a pé.

Não peça nada aos Bancos. Por definição, Bancos só dão remédio a quem vende saúde, só mandam marmitas gratuitas para os donos de restaurantes, e só oferecem absolvição espiritual aos cardeais do Vaticano.

Não peça nada às Autoridades. Autoridades são programadas apenas para obedecer ordens. Ou você tem cacife pra já chegar falando grosso, ou então é melhor deixar pra lá.

Não peça nada à Mídia. A Mídia acha que o anonimato é contagioso, e que a Fama também. Olhe pra trás, e veja se ela está indo no seu rastro ou não. Problema dela.

Não peça nada à Sorte. Sorte foi feita pra gente abrecar pela abertura, encostar no canto da parede, e dizer a que veio. Se você tiver pegada, a Sorte se derrete todinha.

Não peça nada à Humanidade. Ofereça e faça antes que ela peça. Existe no Universo uma Lei de Conservação da Energia Psíquica. Mais cedo ou mais tarde alguém fará o mesmo com você.

E pronto. Feliz ano novo, bibibi, bobobó. Vá à luta, meu camaradinha. Tá olhando o quê?


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

0556) Os personagens da Pulp Fiction (30.12.2004)



A pulp fiction, as revistas de histórias populares que floresceram nos EUA entre as décadas de 1920-40, e à qual os nossos best-sellers contemporâneos tanto devem, é esnobada pelos críticos literários pelos seus evidentes defeitos, o que faz com que eles acabem se quedando desinformados para as suas numerosas qualidades. Como toda literatura destinada às massas, a pulp fiction recorre à repetição, ao clichê, ao exagero. É preciso seduzir o leitor (o qual se pressupõe um indivíduo comum, que leva uma vida rotineira), mostrando-lhe personagens extraordinários e acontecimentos sensacionais. A ficção popular precisa ser “larger than life”, maior e mais deslumbrante do que a vidinha a que o leitor está acostumado.

Histórias desse tipo não lidam com os personagens complexos a que nos acostumamos através da leitura dos grandes autores dos séculos 19 e 20. O leitor “popular”, o leitor de X-9 ou de Amazing Science Fiction geralmente não experimentou essas grandes obras. Ele se sente mais à vontade com personagens típicos em situações típicas: o Cientista Louco, o Repórter Destemido, o Arqui-Vilão, o Milionário Arrogante, a Lourinha Indefesa... Com dois ou três parágrafos, o leitor já percebe de quem se trata, já assinala o personagem com um rótulo que lhe é familiar, e pode continuar a leitura com o intelecto em ponto-morto.

Personagens caricaturais assim acabam não tendo muito peso, portanto o escritor popular precisa exagerar na descrição de suas características externas (para que o leitor, bem ou mal, consiga visualizá-los) e na descrição de suas reações emocionais. Veja-se esta descrição: “Enquanto avançava, seus olhos escuros pareciam calcinar a terra diante de si, irradiando uma claridade abrasadora que prenunciava sua reputação de severidade inflexível em todos os assuntos.” Não, coleguinhas, não é o Deus do Velho Testamento, nem o Odin das epopéias nórdicas, é apenas o Inspetor Fache de O Código Da Vinci. O escritor de pulp fiction precisa assombrar o leitor, o qual presume ter a sensibilidade um tanto embotada. Não é um policial qualquer, é um policial diante do qual o leitor exclama, impressionado: “Puxa vida!”

O autor da pulp fiction não está interessado em criar tipos humanos, está interessado em nos contar uma história interessante. Deus o abençoe por isto, numa época em que a chamada “literatura erudita” enroscou-se sobre si mesma num círculo vicioso de enredos minimalistas, personagens sem nome e ambientações abstratas. Os imitadores de Samuel Beckett ou de Clarice Lispector reduziram a uma caricatura o universo literário destes grandes autores. Vai daí, é bem vinda a injeção de vitalidade, de luzes, de cores, de concretude cotidiana, de imaginação e de tudo que os autores de pulp fiction e de best-sellers nos trazem. Seria excelente, para a literatura, que surgisse um seguidor de Dan Brown para cada um de Samuel Rawet. E vice-versa.

0555) Alguns filmes do ano (29.12.2004)


(A Arca Russa)

Todo crítico de cinema gosta de fazer sua lista dos “Melhores do Ano”, e resolvi fazer a minha. Não sou propriamente crítico de cinema, mas um comentarista de filmes, e a verdade é que vou muito pouco ao cinema. Não vi alguns dos filmes mais comentados deste ano: não vi Kill Bill, Peões, Olga, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Os Incríveis, As Invasões Bárbaras... Então não levem muito a sério esta lista, que não reflete o ano do mundo, mas apenas o meu. Alguns filmes foram lançados em 2003, mas só os vi em 2004. Sem nenhuma ordem de preferência:

DOGVILLE de Lars von Trier, um pesadelo sobre a crueldade e insensibilidade humanas, numa concepção cênica magistral que mistura cinema e teatro com rara eficácia. O RETORNO DO REI, o mais visualmente grandioso dos três filmes do “Senhor dos Anéis”, um filme para deleitar os olhos, e uma adaptação surpreendentemente fiel do livro de Tolkien. ALGUÉM TEM QUE CEDER, uma comédia meio bobinha, mas não é todo dia que você pode ver Jack Nicholson e Diane Keaton num mesmo filme, ambos mostrando na cara e no corpo a idade que realmente têm. A ARCA RUSSA, um plano-seqüência de quase duas horas de duração, no interior do Museu Armitage, em São Petersburgo. Uma experiência cinematográfica inesquecível, filme para comprar e ter em casa.

AS BICICLETAS DE BELLEVILLE, desenho animado francês com um traço invulgar, roteiro muito criativo, algo que deveria ser mostrado a todos os garotos que pensam que animação se divide entre Walt Disney e a Pixar. DIÁRIO DA MOTOCICLETA, um filme que só foi discutido por dois ângulos (“Che Guevara era bom ou ruim? O filme é brasileiro ou não?”), mas que seria um bom filme mesmo que fosse uma história de ficção, dirigida por um argentino. SHREK 2, uma gozação digital bem-humorada, intensamente referencial (tem uma citação ou paródia em quase todas as cenas).

FAHRENHEIT 9/11 de Michael Moore, um salutar exemplo de que não são apenas os soviéticos que fazem filmes de agitação e propaganda, os americanos também têm uma queda danada para o gênero. CRÔNICA DA INOCÊNCIA, história de um garoto que pensa ser a reencarnação de um garoto morto, filho de outra mulher; curiosa experiência narrativa de Raul Ruiz, chileno especializado em filmes muito pouco narrativos. O ESPANTA TUBARÕES, um ótimo desenho animado digital na linha de “Procurando Nemo”, meio inspirado no conto popular do alfaiate “Mata Sete”, um cara pacífico que é tido como valentão. MÁ EDUCAÇÃO, mais uma viagem típica de Almodóvar em tornos de seus lugares comuns (cinema, homossexualismo, crime passional, igreja), como sempre com um roteiro cheio de reviravoltas e com excelentes atores.

E desculpe se achou a lista desigual, caro leitor, porque não é a lista dos melhores filmes que vi este ano. Estes são todos os filmes que me lembro de ter visto este ano. Hoje em dia sou acima de tudo um escravo do DVD e da TV a cabo, mas a casa do cinema tem muitas moradas.

0554) O thriller de mistério histórico (28.12.2004)



Alguns amigos se queixaram de que num artigo recente eu teria esnobado O Código Da Vinci, o best-seller do momento. Ledo engano, meus camaradinhas. Eu adoro este tipo de livro. Aliás, quando um dia publicarem minhas Obras Completas em papel-bíblia, os netos de vocês perceberão que passei muito mais tempo da minha vida defendendo a pulp-fiction americana do que analisando a obra de Guimarães Rosa, meu escritor preferido. Nosso mundo acadêmico vive a debruçar-se sobre o escritor mineiro, e torce o nariz para a ficção popular. Por uma questão de equilíbrio, prefiro estudar o que os outros não estudam.

Li o livro de Dan Brown, e não o achei um grande livro, comparado com outros do mesmo gênero, o thriller de mistério histórico. Gostei muito mais, por exemplo, de O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, que além da história bem concebida tem uma prosa rica e agradável, cheia de surpresas. Já O Quadro Flamengo, do mesmo Reverte, é mais propenso ao clichê e à escrita superficial, embora seja um livro de leitura tão fluente quanto o Da Vinci. No mesmo gênero, gostei muitíssimo mais de O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco (livro que muitos compraram, alguns leram e poucos gostaram). Por que? Porque sou manipulado pela crítica e acho genial tudo que Eco escreve? Nada disso, uma vez que jamais consegui passar da página 20 do intransponível A Ilha do Dia Anterior. A gente se identifica mais com uns livros, e menos com outros; isto é tudo.

O Pêndulo de Foucault me agradou porque, para além de suas aventuras inverossímeis e suas criptografias obscuras, era claramente um livro pessoal, como o era O Nome da Rosa. Ali há trechos de uma juventude nas cidadezinhas de uma Itália fascista, que parecem embebidos de verdade, de vida vivida, de um “saber só de experiências feito”. Estes trechos compensam as longas citações livrescas. No livro de Dan Brown, fica muito visível a colagem da pesquisa feita pelo autor, que a cada passo interrompe a narrativa para nos dizer o preço da construção de um prédio, ou a origem do nome de uma praça. Na pulp fiction, vê-se com nitidez o trecho que foi “cortado e colado” para dar a impressão de erudição. Não é algo que o autor sabe profundamente, é algo que ele copiou de um manual para impressionar um leitor menos informado do que ele.

Por que, então, eu perco meu tempo lendo estes livros? Resposta: gosto de mistério histórico, gosto de narrativas que exumam fatos do passado e criam teorias conspiratórias sobre eles, reinterpretando a História, a Arte, a Religião... Se o autor o faz com muito ou com pouco talento literário é algo que pesa durante a leitura, mas para mim é secundário. Não é o estilo literário que procuro nestes livros (embora seja um prazer encontrá-lo, como em O Nome da Rosa), é a viagem misteriosa, a decifração de códigos, a aventura de pensar que o mundo é misterioso e cheio de verdades que ninguém ousou desvendar.