sábado, 21 de agosto de 2021

4736) O Homem que parou o Tempo (21.8.2021)




A imagem mais recorrente e mais expressiva (“a imagem icônica”, como se diz hoje em dia) do filme brasileiro O Homem que Parou o Tempo (2018) de Hilnando SM (no "Prime Vídeo") é o plano vertical das pernas do protagonista, os pés descalços afundados na areia, sendo envolvidos pelas espumas das ondas do mar, em suas idas e vindas, num movimento de invasão e avanço, e depois de recuo e sucção. Ele está imóvel, enquanto o mar (o tempo) avança e recua.
 
João (Gabriel Pardal) é um rapaz que programa códigos de computador (“a pior profissão de todas”) mas nas horas vagas parece estar desenvolvendo uma teoria própria sobre como imobilizar o tempo e concentrar toda sua energia e consciência no momento presente. Mora num conjugado minúsculo, e sua parede é coberta de páginas coladas com diagramas, fórmulas, gráficos, a parafernália habitual no cinema para sugerir uma atividade científica incessante.
 
Tem dois ou três amigos que insistem em trazê-lo para uma vida normal (festinhas, etc.). Compra maconha a um deles. Uma noite, indo a uma festinha, conhece na portaria do prédio uma garota, anda com ela pela praia – é nesses poucos minutos que o filme ganha uma certa vida, porque a atitude simpática e não-julgadora da garota o solta um pouco; mas tudo fica por aí.
 
O problema do filme é o de muitos outros: mostrar a crise de um indivíduo que tentou abarcar mentalmente um problema amplo demais, complexo demais. Não temos como saber se ele de fato equacionou o problema, se está mesmo a ponto de resolvê-lo. Não sabemos nem se o problema existe, ou se ele é apenas mais um maluco capaz de rabiscar equações.
 
O personagem e o filme estancam no meio do caminho. Nenhum dos dois consegue dizer o que está pensando, apesar de ambos despertarem a nossa simpatia e a nossa curiosidade.


É um pouco o que ocorre com The Sound of Silence (2019) de Michael Tyburski. Peter Lucian é um “afinador de casas”, um sujeito com ouvido absoluto cuja profissão consiste em examinar as casas das pessoas e eliminar os ruídos dissonantes ou conflitantes que prejudicam os moradores sem que estes percebam. Uma espécie de feng shui sonoro.
 
Interpretado por Peter Sasgaard, é um personagem mais maduro, mais circunspecto, e que transmite mais a idéia de um cientista incompreendido, um gênio capaz de perceber o que nós não entendemos. Mesmo assim, sua vida é uma sucessão de mal-entendidos, de pequenos fracassos profissionais. Todo mundo o acha fascinante. Todo mundo o acha esquisito. Todo mundo acha que ele está ficando doido.
 
O filme de Tyburski se torna mais bem realizado do que o de Hilnando SM por ser visivelmente uma produção mais profissional, mas principalmente porque consegue nos fazer penetrar pelo menos um pouco no mundo mental do protagonista. Peter Lucian explica a vários clientes e amigos sua teoria, dá pistas concretas sobre o que faz, vemos como ele atua, percorrendo os apartamentos com fones, diapasões, sei lá o que mais.
 
O delírio dele tem uma silhueta que nos é visível, tem um foco. Ficamos com uma noção do que está em jogo ali. E a trilha sonora consegue criar um clima cheio de efeitos e de harmônicos sutis, dando por vezes a impressão de que conseguimos ouvir o que aquele maluco alega estar ouvindo.
 
O João de O Homem que Parou o Tempo verbaliza aqui e ali suas intuições, mas elas não nos avançam grande coisa. “A gente fica com pressa e ansioso para chegar num lugar, aí acaba que a gente não vive o momento que está vivendo. (...) A gente fica muito preocupado em chegar ao nosso destino, e aí deixa de curtir este momento presente. Aqui, agora. O caminho.”
 
Quando ele some, no fim do filme, alguém entra no apartamento e vê o último bilhete que ele pregou na parede: “Deixar de existir agora para estar presente sempre”. Há um descompasso, uma distância, entre a atividade supostamente científica de João e a verbalização que ele faz para os outros, mesmo admitindo que ele tenta simplificar ao máximo o que pensa, porque sabe que seus amigos são leigos.
 
Não parece um jovem cientista equacionando o problema do fluxo do Tempo, um dos problemas mais fascinantes que existem. Parece um rapaz se queixando de que ele e a vida estão em descompasso.
 
Um problema semelhante, com uma solução completamente diversa destes dois filmes, foi encarado por Darren Aronofsky em seu filme de estréia Pi (1998). Max é um jovem matemático cuja obsessão é encontrar os padrões matemáticos que servem de base à realidade material. (Ou coisa parecida.)


Suas pesquisas o levam a entrar em contato com dois grupos muito diferentes. Um deles tenta fazer previsões matemáticas da flutuações da Bolsa de Wall Street. O outro tenta encontrar mensagens cabalísticas cifradas no texto da Torá.
 
O filme de Aronofsky é uma espécie de ficção científica que eu chamo de Ciência Gótica, pois de Ciência (no caso, a linguagem matemática, que não é propriamente uma ciência, mas um instrumento científico) tem apenas a fachada. O que ocorre por trás não é mais científico do que o que ocorre em Frankenstein ou em The Time Machine ou em Neuromancer.
 
O que distingue oi filme de Aronofsky dos outros dois é a quantidade de elementos dramáticos que ele consegue extrair dessa mania de Max pela Teoria dos Números e seus desdobramentos. De uma matéria tão árida ele extrai dois bons ganchos para ação dramática: investimentos na Bolsa, decifração cabalística das escrituras sagradas. Muito mais do que Tyburski consegue extrair de sua “pesquisa sonora” e do que Hilnando extrai de sua “pesquisa temporal”.
 
A ficção científica é muitas vezes acusada de ser difícil, de ser acessível apenas a quem tem profundo conhecimento da ciência. É uma crítica despropositada. A FC usa sistematicamente, há cerca de um século e meio, a Arte do Mumbo-Jumbo, como dizem os norte-americanos. A arte de produzir uma série de argumentos aparentemente profundos, mas coerentes, e expostos com inteligência.
 
Quando em 1895 H. G. Wells popularizou o conceito de que o Tempo seria uma “quarta dimensão”, isso lhe bastou para dar ao seu herói uma espécie de “automóvel temporal” e fazê-lo viajar pelo futuro. E não apenas viajar por ele, mas meter-se em aventuras, perigos, descobertas. A Máquina do Tempo não teria popularizado seus conceitos se o livro inteiro se resumisse a um grupo de cientistas discutindo diante da lareira.
 
O mumbo-jumbo científico, o arrazoado explicando o fluxo do tempo, a influência subliminar dos sons ou os padrões matemáticos da matéria pode muito bem ser explicado, até numa linguagem mais complexa, se isso acontecer no meio de uma história humana, movimentada, imprevisível, que desperte nossa atenção e nos envolva no destino de seus personagens. Foi essa a descoberta original da FC, com Julio Verne, Wells e todos os demais.
 
E para os que desdenham a história de aventuras, basta às vezes um mistério de peso e uma imagem marcante. Kenoma (1998) de Eliana Caffé, nos mostra um cientista-louco sertanejo, um gênio selvagem que construiu num sertão remoto uma máquina do Moto Perpétuo que se parece a uma enorme roda-gigante artesanal, feita de metal e madeira.


Ele não compartilha suas fórmulas. Os roteiristas do filme (E. Caffé e Luís Alberto de Abreu) não precisaram inventar o Moto Perpétuo. Bastou-lhes conceber a situação básica, produzir um objeto visualmente impactante (direção de arte de Clóvis Bueno) e contar com o “fulgor satânico” do ator José Dumont.
 
Tanto na fantasia quanto na ficção científica, as explicações são necessárias, tanto sobre a origem dos dragões quanto sobre a natureza do ciberespaço. Mas o leitor (= o espectador) precisa delas apenas para se situar: ele vai ao livro e ao filme em busca do conflito humano. Se o conflito for empolgante e conseguir arrebatá-lo, ele consegue até mesmo digerir as racionalizações mais profundas de um Arthur C. Clarke ou de um Stanislaw Lem.
 


 




quarta-feira, 18 de agosto de 2021

4735) Primeiras Estórias: "Sequência" (18.8.2021)



Na obra de Guimarães Rosa os animais aparecem de maneira curiosa.
 
Existem fabuladores contemporâneos que não se pejam de fazer um bicho falar, mesmo numa estória que transcorre nos dias de hoje, povoados por automóveis e televisores. 

Existem outros onde os animais aparecem como representações arquetípicas do inconsciente pessoal ou coletivo, e cada entrada deles na estória parece acompanhada por uma orquestra – inaudível; afinal, estamos em um livro.
 
Nos livros de Rosa muitas vezes alguma coisa acontece em torno de animais que parecem estar vivendo num mundo só deles, onde eles sabem coisas, se relacionam de maneira complexa com coisas que só a eles dizem respeito, e conseguem fazer isso apesar de estarem misturados a um mundo confuso de seres humanos dos quais não conseguem se livrar.
 
Talvez o melhor exemplo disso seja o “burrinho pedrês” do conto que abre Sagarana (1946). Nessa noveleta contam-se mil estórias humanas (os vaqueiros contam uns para os outros), mas a verdadeira estória que está sendo contada é a do burrinho que, dentro de suas limitaçõezinhas, ajuda a levar a boiada. Ele vai, ele volta, e ainda escapa com vida de uma enchente. E no fim a gente descobre que era a estória dele, que estava sendo contada: os vaqueiros são mera figuração de luxo.

(ilustração de Poty para "O burrinho pedrês")


Não vou nem falar na “Conversa de Bois”, no mesmo livro, onde temos acesso até a um diálogo telepático, mediúnico, entre os bois-de-carro que estão trasladando um defunto rumo a seu ponto final.
 
O que quero mesmo usar para comparação é “A estória de Lélio e Lina” (em Corpo de Baile, 1956), onde um vaqueiro larga um emprego, sai sem rumo, encontra no caminho um cachorro perdido e começa a segui-lo. Tal como Augusto Matraga, viajando igualmente sem rumo, seguiu o voo das maritacas, e acabou encontrando lá na ponta do trajeto a sua hora, a sua vez, e o facão de Joãozinho Bem-Bem.
 
O vaqueiro Lélio é levado pelo cachorro para aquela fazenda, à qual o cachorro pertencia. E a dona do cachorro é Dona Rosalina, uma senhora idosa e bonita, acolhedora e amiga, a quem Lélio acaba se apegando mais do que às moças de sua idade; e o resto está na estória.
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/02/4438-estoria-de-lelio-e-lina-2622019.html
 
Assim começa “Sequência”:
 
Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava.
 
Vacas não viajam, não é mesmo? Viajar é um verbo humano. Pressupõe intenção, planejamento, destinação, chegada.
 
A vaca é “uma rês fujã”, que fazia parte de uma boiada oriunda “do Pãodolhão”. Rebelde, ela se desgarra da boiada e começa a refazer o trabalhoso trajeto de volta, em busca do seu lugar de origem. Dada a noticia de que a vaca fugiu, Seu Rigério, o destinatário da boiada, fica meio enfarruscado, o que faz um dos seus filhos, “o rapaz”, não nomeado, montar no cavalo e partir em busca da desgarrada.
 
E o conto é isso, a vaca voltando, esquipando de campos afora, atravessando rios, acompanhando cercas até descobrir uma brecha, mas seguindo o GPS milenar dos bichos, “fronteando o nascente” enquanto o rapaz a busca “indo de oeste para leste”. Nestas indicações, aliás, veja-se a adequação da terminologia ao personagem. Porque uma vaca não está indo do oeste para o leste, mesmo que siga nessa direção; ela se guia pelo sol que vê ou pelo que lembra.
 
E este continho inteiro é a descrição dos variados ambientes por onde passa a vaca fugindo a trote lento e o rapaz teimoso que a persegue “à espora leve”, sem perder de pista.
 
O conto se deslinda nos últimos parágrafos, quando a vaca por fim irrompe na fazenda do seu dono anterior, o Major Quitério, do Pãodolhão, seguida já de perto pelo rapaz.
 
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma rede de pessoas. As quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: “É sua”. Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos.
 
Ou seja: toda essa fuga da vaca teve como consequência (teria tido como intenção?!) arrastar o rapaz até a outra fazenda, onde ele conhece a moça, apaixonam-se e casam.
 
Tal como o cachorrinho conduziu Lélio até a fazenda onde morava Lina, o que resultou noutro tipo de desfecho.
 
No meio disso tudo, os analisadores de detalhe não deixarão de perceber pistas de que para Guimarães Rosa seguir um animal é seguir o inconsciente humano. Não porque o inconsciente seja superior ao consciente, mas porque é sua metade. Vamos reconhecer que o inconsciente também se emociona e se confunde, a intuição muitas vezes nos faz dar com os burros nágua, o instinto de vez em quando nos faz cometer ruindades. O mesmo vale para a consciência, a racionalidade, o raciocínio.
 
O recado que essas estórias nos dão não é a mensagem simplória de: “Siga o inconsciente, ele é mais sábio do que sua mente raciocinadora”, é algo simples como: “Alterne seu raciocínio e sua intuição do mesmo jeito como alterna sua perna direita e sua perna esquerda, ao caminhar.” E pronto!
 
Seguindo a vaca, o rapaz cumpre um percurso simbólico que não deixa de ter um clima de cerimônia de iniciação, como quando ele se descalça e atravessa um rio, “liso e brilhante, de movimentos invisíveis”.
 
Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou – de peito feito. Àquelas quilas águas trans – às braças. Era um rio e seu além. Estava, já, do outro lado.
 
O rio aparece de variadas formas na obra de Guimarães Rosa, mas muitas vezes como uma fronteira, um limite, um portal que dá acesso a outro mundo. E nesse trecho vê-se também o gosto lúdico do autor, brincando com as palavras – partindo e invertendo a palavra “tranquilas”, talvez para sugerir os movimentos alternados de idas e vindas dos braços de quem nada.
 
No encerramento do conto, ele pisca o olho para a tradição oral, referindo-se à “vaca-vitória”. Minha mãe e minha tia contavam estórias à gente, na infância, e terminavam às vezes dizendo: “Era uma vez uma vaca Vitória, soltou um peido e acabou-se a estória”. E a gente ia dormir com uma gargalhada sumindo no ar.
 

(Guimarães Rosa com seus pais, D. Chiquinha e Seu Florduardo)
 
 
 
 
 
 








domingo, 15 de agosto de 2021

4734) Erros criativos (15.8.2021)



(provas corrigidas de Un Coup de Dés")

Gosto de colecionar erros criativos, que podem ser de diversos tipos. Um dos mais frequentes é quando uma pessoa tenta fazer ou dizer algo, e por uma razão qualquer acaba fazendo ou dizendo algo diferente do que pretendia – e o resultado traz uma informação nova, um detalhe curioso que em circunstâncias normais talvez não ocorresse a ninguém.
 
Não é simplesmente o erro onde a gente manga do erro. É o erro que às vezes até parece intencional, porque o resultado poderia até ser justificado, mesmo que com um raciocínio um pouco tortuoso.

 
Meu amigo Mario Bag, ilustre ilustrador da minha obra literária, postou no Facebook tempos atrás:
 
Gastaram tanto tempo discutindo se o certo era dizer que alguém entrega algo "a domicílio" ou "em domicílio" que, talvez por causa do uso contínuo de "Home-Office" durante a pandemia, surgiu uma outra expressão (que já escutei de duas pessoas consideradas "do povo"): "ENTREGA A HOME-CÍLIO".
 
É um erro? É, se considerarmos que a pessoa entendeu mal algo que escutou e não reproduziu corretamente o que tinha escutado, como talvez fosse sua intenção. Mas o ruído que ela introduziu no termo, tentando fazer sentido dele, mostra que houve um entendimento do conteúdo.
 
Ou seja: a mensagem foi distorcida, mas a intenção significativa (indicar que se tratava de “algo relativo à residência de alguém”), se manteve, mesmo que por um caminho tortuoso.
 
São palavras distintas, porque em inglês “home” vem do proto-germânico “haimaz” (=lar), enquanto que em português “domicílio” vem do latim “domus” (=casa). A semelhança sonora, porém, resolveu poeticamente a parada.
 
O mais comum, no entanto, é que por ocasião de um erro de leitura ou de escutação o sentido vá pro espaço.
 
Li num artigo: “Fulano de Tal construiu canários para peças teatrais, óperas e desfiles de modas”. Na verdade trata-se de “cenários”. O que não me impediu de por uns cinco ou dez segundos erguer os olhos para a parede e visualizar um profissional num ateliê, parecido com um antiquário ou uma loja de taxidermia, rodeado por gaiolas de variados tamanhos exibindo canários artesanais em variadas cores, e posturas imóveis.
 
A literatura está cheia de exemplos de mensagens enriquecidas por ruídos telefônicos. Já mencionei, nesta série (consultem no blog a tag “Erros Criativos”) o caso do livro Naked Lust (“Luxúria Nua”), de William Burroughs. O título foi comunicado aos editores por telefonema internacional.  Por isto mesmo acabou virando oficialmente Naked Lunch  (“Almoço Nu”), e o resto é História.
 
Algo semelhante aconteceu com Gene Wolfe, o grande autor da série de FC “The Book of the New Sun”. O último romance da série intitula-se A Cidadela do Autarca (“The Citadel of the Autarch”). Ora, autarca é uma palavra rara mesmo em português, domínio em que talvez sejamos mais afeitos a elementos gregos do que o pessoal dos EUA. “Autarca” significa “soberano absoluto”.
 
Em 1981, por telefone, Wolfe informou o título da obra-em-progresso a Charles N. Brown, o saudoso editor da revista Locus. Brown não entendeu direito o que tinha ouvido e anunciou, no número seguinte da revista, que Gene Wolfe estava prestes a lançar o romance The Castle of the Otter (“O Castelo da Lontra”).
 
O que fez Wolfe? Correu às redes sociais, que nem existiam ainda, para clamar-se prejudicado? De jeito nenhum. Ele simplesmente declarou que “O Castelo da Lontra” era um nome excelente –  e publicou um ano depois um livro com esse título, reunindo material relativo à pesquisa e criação de sua série, dedicado a Brown e à equipe da Locus.

 
(Na revista do mês seguinte, Charles N. Brown pediu desculpas pelo erro e disse que o livro se intitulava na verdade “The Castle of the Autarch”. Wolfe comentou: “Ainda não chegou lá, mas está esquentando.”) 


("Oblique Strategies")
 
O compositor Brian Eno e seu parceiro Peter Schmidt inventaram um “baralho de conselhos” intitulado “Estratégias Oblíquas” (Oblique Strategies). São cerca de cem cartas, cada uma com uma frase impressa, que eles costumavam tirar ao acaso, quando estavam encrencados num problema criativo qualquer.
 
Uma dessas cartas dizia algo como: “Transforme o Acaso num aliado.” Ou seja: quando num trabalho criativo surge uma interferência não-prevista, mas o resultado é interessante, que motivo temos para eliminar esse “ruído”? Apenas o fato de que “não estava no roteiro”? Dane-se o roteiro. O roteiro é um ponto de partida para alguém começar a criar, não é uma descrição prévia de como deve ser a obra no final da criação.
 
Na série de TV “Twin Peaks”, de David Lynch, um dos principais personagens é o “espírito maligno” chamado de Killer Bob. É uma espécie de fantasma que persegue as pessoas e impele os homens ao estupro e ao assassinato. Como surgiu o personagem?  Durante uma gravação, o reflexo de um dos assistentes, um cara feioso, agachado numa posição que parecia ameaçadora, foi captado pela câmera. Em vez de cortar a imagem e filmar de novo, David Lynch a manteve, e criou o personagem, usando o assistente (Frank Silva) como ator pelo restante da série.
 
Era uma cena comum, com a personagem Laura Palmer sozinha em seu quarto. Ao ver pela primeira vez a imagem captada pela câmera, Lynch assustou-se ao perceber, por um ou dois segundos, a imagem daquele sujeito num quarto que se supõe quase deserto. Era como um fantasma obsessor. E ele entendeu de imediato que se mantivesse a imagem no filme o susto do público seria equivalente ao dele. Surgiu assim o Killer Bob.

 
(Killer Bob)
 
Reza a lenda que uma boa parte do críptico Finnegans Wake (1939) de James Joyce foi ditado pelo autor, acamado, a Samuel Beckett, que durante um bom tempo trabalhou como seu secretário. Durante uma dessas sessões, Joyce estava ditando o texto quando alguém bateu à porta e ele respondeu: “Pode entrar!”. 

Beckett, obedientemente, colocou o “Pode entrar!” no texto do livro. Joyce, ao que consta, se divertiu com o incidente, e o “erro” está lá até hoje.
 
 
 
 







quinta-feira, 12 de agosto de 2021

4733) Tarcísio Meira x Paulo José (12.8.2021)



O cinema brasileiro perdeu de ontem para hoje dois arquétipos masculinos que ajudaram a dar-lhe forma. Não me refiro ao teatro porque nunca vi nenhum dos dois no palco, e não me refiro à televisão por considerá-la (de forma injusta, certamente) um mero arremedo do cinema.
 
Paulo José pertence longamente à minha memória de espectador, e lamento não poder dizer o mesmo de Tarcísio Meira, para o qual (também de forma injusta) sempre torci o nariz. Paulo foi para mim um grande ator, e mais do que isso: me dava a impressão de ser um cara real, um cara com quem você podia sentar numa mesa, ficar olhando o mar, tomando um chope e jogando conversa fora durante uma tarde inteira.
 
Tarcísio era essa coisa terrível, um galã, e em vista disso nunca me passava a sensação de que pudesse haver um cara de verdade dentro dele, como de um boneco de Olinda.
 
Para ser justo com o Tarcísio hoje falecido, registro que ele próprio afirmou, em entrevistas, que não aguentava mais ser um galã, que isso o incomodava. Acredito piamente. Nas raras vezes em que o vi ao natural, num talk-show ou numa entrevista jornalística, tive vislumbres do cara boa-praça que ele provavelmente foi.
 
Mas o galã o engolia, como já engoliu outros tão bons quanto ele. E como a “estrela” já engoliu tantas mulheres que queriam ser atrizes e até poderiam sê-lo, se o star-system tivesse deixado.
 
O que é um galã? É um boneco, um truçulho de papel machê com três metros de altura e sorriso congelado na carantonha de traços impecáveis, uma promessa de masculinidade indestrutível que nunca precisa ser realizada. As mulheres que sonham com ele não querem homens problemáticos, querem promessas tranquilizadoras.
 
Triste do galã, esse espantalho devorado por mil platéias de lâmias inocentes.
 
Tarcísio, coitado, foi obrigado pelo contracheque a carregar essa tralha nas costas a vida inteira, submetendo-se até a coisas constrangedoras como afirmar em plena tela que o Brasil iria morrer se não ficasse independente: deu nisto aqui.
 
As mulheres se apaixonavam por ele como quem se inscreve previamente num serviço de voluntariado qualquer. Poderia ter sido um ator muito melhor, e talvez até tenha sido, à revelia da minha indiferença. Em minha defesa, invoco aquele sorriso odontológico com que ele brindava as companheiras de close e de beijo técnico.
 
Só o enxerguei de verdade quando ele fez o Grande Sertão: Veredas  (1985) de Walter Avancini.
 
Torci o nariz mais uma vez ao ouvir falar que ele estava escalado para fazer o vilão Hermógenes. Quando o vi, a tela ficou do tamanho de uma tela de cinema. O seu Hermógenes fazia o chão ceder. Foi a coisa bronca. A parte com o cramulhão. Aquele ronco de caverna brotando dos gorgomilos, pulsando uma macheza raiada de maldade. Fez as mulheres fugirem, e nessa hora foi ator até a meia-lua da unha.
 
Fiz as pazes com ele, por fim, e debitei o resto na conta impagável do Mercado. E depois pude reencontrar um pouco desse seu lado verdadeiro, barbazul, soturno, no fidalgo sombrio que ele veio a encarnar em A Muralha (2000) de Maria Adelaide Amaral. Parece até que lhe fez bem a obrigação frívola de ser bonito e ter sorriso colgate nas novelas. Ele acumulava as pressões ctônicas que todo ator de verdade contém. Os carrêgos do mal-ser. E quando alguém lhe jogava em cima capote, chapelão e a memória genética de seus avatares escravizadores, ele fazia brotar dali o petróleo cru que já incendiou tantas feiticeiras, fazendo-nos lembrar de quem viemos.
 
Paulo José, coitado, surgiu no mundo como o contrário disso. Era o cara boa pinta de Ipanema, camisa banlon, sandália japonesa, rapaz de apartamento, carro esporte, calçadão ensolarado. Em Todas as Mulheres do Mundo foi o alter-ego de tudo que sonhávamos ser, alegre, despreocupado, fofoqueiro, conquistador desajeitado e irresistível.
 
Nem boto Leila Diniz na negociação, porque seria covardia, mas o cordão-encarnado de beldades que ele ia traçando nos reconciliou com nossa própria masculinidade adolescente e tateante, com mais jeito para a comédia zona-sul do que para a tragédia shakespeariana.
 
“Paulo” era alegre, mentiroso, contraditório, ora galinha, ora Romeu, tinha lá seus momentos poéticos, mas para nós, em quem a masculinidade se agigantava rodeada de tabus e deveres e terrores, parecia cochichar: “relaxa, trepar com uma garota também pode ser uma coisa divertida”.
 
Foi portanto com um terreno já aplainado que ele em seguida revelou seu lado sombrio; que nos acomodou à sombra de suas próprias angústias, em O Padre e a Moça. Todos nós, celibatários involuntários, entendíamos pra valer as angústias de um celibatário compulsório. Todos nós sabíamos o que era fantasiar em vão com Helena Ignez.
 
Paulo José foi se ampliando e se enriquecendo como ator, aos nossos olhos, e no Macunaíma era possível perceber, por dentro do personagem indigeníssimo e paulistíssimo, uma carioquice que não pareceu deslocada, porque o mito macunaímico nunca pretendeu ser municipal. E mais tarde, na alegoria da masculinidade frágil que foi O Homem Nu, ele conseguia passar para o público não apenas o aperreio sem limites de quem se sente perseguido por uma cidade inteira, mas também a malandragem de quem o tempo todo está pensando “quando eu contar essa, a turma não vai acreditar...”.
 
Esse rapaz atrapalhado mas leve foi uma herança que ele deixou para toda uma geração de rapazes que eram atrapalhados mas pesadíssimos, traziam às costas o peso da responsabilidade patriarcal, depois o peso da angústia existencial, depois o peso da revolução social, depois o peso do desempenho sexual... Com tantos bonecos de papel machê para carregar, era bem vindo o exemplo de um meio-malandro que nos tocava com o cotovelo, largava os bonecos todos e saía correndo. Mesmo nu e perseguido pela polícia.
 
Vi Paulo José em pessoa apenas duas vezes, em tantos anos de Rio. Uma vez, num lançamento de livro, ele subiu no palco e tocou algumas cançonetas num teclado, explicou que era um dos exercícios que fazia para combater o Mal de Parkinson, e que com isso estava virando pianista.
 
A vez seguinte foi numa festa, na casa de amigos, eu já estava na sala, de long-neck em punho, numa roda de papo, quando alguém apontou lá longe e disse: “Você viu quem está ali? Paulo José.” Ele estava num sofá, rodeado de amigos, numa conversa tranquila. Criei coragem, fui até lá, falei que era fã dele, trocamos algumas frases cordiais; ele apertou minha mão e sorriu como se me reconhecesse depois de tantos anos.
 
 





segunda-feira, 9 de agosto de 2021

4732) Ciência Gótica: o Termômetro de Medir Mulher (9.8.2021)



 
Este é o título curioso de um excelente estudo de Terry Castle, The Female Thermometer: 18th Century Culture and the Invention of the Uncanny (Oxford University Press, 1995), que eu tinha começado a ler anos atrás quando estava pesquisando para minha antologia Freud e o Estranho (Casa da Palavra, 2007) e agora peguei de novo até zerar o jogo.
 
Terry Castle é professora na Universidade de Stanford, com livros que têm como foco a literatura inglesa do século 18. Ela afirma, com bons argumentos, que embora Freud só tenha formalizado em 1919 o seu conceito do Estranho (Unheimlich em alemão, Uncanny em inglês) essa idéia estava impregnada na cultura e na literatura inglesa desde muito antes.
 
O século 18 foi um século interessante do ponto de vista da literatura européia. Ainda hoje traduzimos e estudamos no Brasil os franceses, os ingleses, os russos e os alemães do século 19; mas os anos 1700 na Inglaterra foram um momento crucial na criação das técnicas narrativas de onde resultou o romance moderno. Uma defesa bastante consistente dessa idéia está em A Ascensão do Romance (“The Rise of the Novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding”, 1957) de Ian Watt (Companhia das Letras).
 
Por outro lado, é também em grande parte o século da Revolução Industrial, uma época de ciência triunfante não somente por fazer descobertas conceituais, como as de Galileu e Newton, mas descobertas que resultavam em aplicações prática imediatas, como a máquina a vapor.
 
O “Termômetro Feminino” era um gracejo, é claro, e isso não o impede de refletir com clareza o espírito de sua época. Ele foi descrito em 1754 num artigo por Bonnell Thornton, como “uma invenção para medir a exata temperatura das paixões de uma dama.” Consistiria num tubo de vidro cheio de uma mistura composta inclusive pelos “extratos destilados do amor de uma dama”. Aplicado ao corpo de uma mulher, o líquido subiria ou desceria, como ocorre num termômetro, ao longo de uma escala assim redigida:
 
Abandono Despudorado
Galanteria
Comportamento Relaxado
Inocentes Liberdades
Indiscrições
Inviolável Pudor
 
Brincadeiras assim já datavam de mais de meio século, diz a autora, mas passavam agora a receber uma tintura de ciência popular, à medida que o povo em geral se convencia de que instrumentos análogos funcionavam de fato. O microscópio e o termômetro (diz ela) eram dois dos grandes triunfos teóricos e tecnológicos da Nova Ciência. A escala Fahrenheit foi introduzida na Europa em 1717, e depois as escalas Réaumur e Celsius, por volta de 1730-1740. A linguagem dos “instrumentos medidores” estava em voga.


(Termômetros e barômetros, c. 1710)
 
Ela cita (e ilustra) engenhocas análogas como o “Barômetro Espiritual” que flutuava numa escala entre os extremos do PECADO e da GRAÇA. Esta mentalidade se projetava inevitavelmente na literatura: em “O Homem da Areia” (1816-17) de E. T. A. Hoffmann o vilão que atormenta o personagem principal surge durante sua infância como “um vendedor ambulante de barômetros e termômetros”, indicando uma espécie de “ciência gótica” que resultará, mais adiante, no autômato de aparência feminina, Coppélia, pelo qual o protagonista Nathanael irá se apaixonar.
 
Esses instrumentos, que reagiam de forma quase mágica às mudanças observadas na natureza (temperatura, pressão, etc.) demonstravam possuir uma qualidade feminina, passiva, responsiva. Diz Terry Castle:
 
A estranha mobilidade da vida íntima do barômetro era feminina, de início; o novo objeto dava forma cômica às crenças tradicionais a respeito da hipersensibilidade da mulher e suas irracionais “venetas” relativas ao sexo. Mas a presença constante desses objetos na vida cotidiana – com suas respostas dinâmicas aos estímulos do mundo – encorajaram uma universalização da sensibilidade. Barômetros e termômetros externavam, por assim, dizer, o futuro da psique. (pag. 42, trad. BT)


(Terry Castle)

O livro de Terry Castle tem alguns temas centrais mas se divide em capítulos sobre assuntos bem específicos. Um dos mais interessantes é o capítulo 7, “The Carnivalization of Eighteenth-Century English Narrative”. Depois de estudar nos capítulos anteriores os bailes de máscaras, a cultura do travestismo e os personagens literários que se disfarçam usando roupas do sexo oposto, ela faz um reconhecimento geral do terreno literário, comentando as variadas circunstâncias em que a literatura dessa época abordou os bailes de máscaras e bailes de carnaval – “carnaval” compreendido aqui, é claro, no sentido veneziano, europeu.
 
Ela faz um balanço rápido de romances com essa característica; dos títulos citados, os que sei que já foram traduzidos no Brasil são Roxana (1724) de Daniel Defoe; O Vigário de Wakefield (1766) de Oliver Goldsmith; As Aventuras de Tom Jones (1749) de Henry Fielding; Pamela (1740) de Samuel Richardson; Fanny Hill (1748) de John Cleland.
 
Na Inglaterra do século 18, muito mais do que no Brasil, os bailes mascarados serviam como uma espécie de terra-de-ninguém onde a distância entre as classes sociais era contornada, e não só ela: a distância entre nativos e estrangeiros, homens e mulheres, velhos e jovens. A fantasia mascarada era uma espécie de denominador comum a todos.



Segundo a Profa. Castle, o primeiro baile de máscaras público dessa época foi promovido em Londres, no Haymarket, sob a direção do empresário suíço “Conde” John James Heidegger. Um espetáculo noturno, realizado em salões brilhantemente iluminados, aberto a todos que pudessem arcar com o preço do ingresso e da fantasia.
 
Além das clássicas fantasias de máscaras-negras e dominós, fantasias populares nessas ocasiões incluíam trajes estrangeiros exóticos, travestismo, paródias eclesiásticas (de freiras e padres), trajes ocupacionais pitorescos (pastores, leiteiras, etc.), assim como fantasias representando animais, seres sobrenaturais, além de personagens históricos, literários ou alegóricos. (pag. 103)
 
Entre as décadas de 1720 e 1780 esses bailes se tornaram “uma atividade irreprimível da vida pública urbana; não apenas uma diversão popular a mais, mas o próprio emblema da modernidade, a chancela da moda, do espetáculo e da excitação sub-reptícia”. Os bailes promovidos pelo Conde Heidegger atraíam de 700 a mil pessoas nos anos de 1720; anos mais tarde, bailes com venda de convites chegavam a ter dois mil participantes fantasiados.
 
A literatura da época (ela cita numerosas cenas, capítulos dos vários romances) aproveita dramaturgicamente essas ocasiões para intensificar a voltagem melodramática. Seduções, desvirginamentos, adultérios, mal-entendidos, conspirações, tudo acontece durante essas noites ruidosas, iluminadas, musicadas, em que ninguém reconhece ninguém e seja o que Deus quiser.
 
Um recurso dramatúrgico notável é a transformação íntima das pessoas (para além do mero fingimento) quando estão mascaradas e fantasiadas, como se um espírito “de fora” se apossasse delas. O que sem dúvida inspirou Oscar Wilde a dizer, um século depois: “Quer saber quem é uma pessoa, dê-lhe uma máscara, e ela revelará seu rosto verdadeiro.”

 
Castle relaciona essa temática com as teorias da “carnavalização” propostas por Mikhail Bakhtin, e atualmente muito estudadas no meio acadêmico brasileiro, com a obra de Rabelais e de outros autores da Renascença. Ela adverte:
 
O espetáculo popular enfatizava a união, reduzindo a separação; a mudança, predominando sobre as formas fixas e imutáveis; e o caráter eternamente incompleto do ser. Com o desenvolvimento das modernas noções de individualismo, contudo (aquilo que Bakhtin chamava de “o ser completamente atomizado” do racionalismo) essa metafísica popular viu-se superada. Um mundo de indivíduos separados, sem semelhanças e sem conexão dialética uns com os outros, assumiu seu lugar. (...) Enquanto os temas e as imagens do carnaval são essenciais na obra de Rabelais e dos seus contemporâneos, eles se tornaram circunscritos e problemáticos na literatura da época seguinte, o Iluminismo. (pag. 117)
 
Literariamente, sugere Terry Castle, o emprego dessas cenas de carnaval, com a profusão de detalhes, as técnicas de visualização, a multitude de pontos de vista, as identidades imprecisas, o movimento constante, deram aos autores europeus do século seguinte instrumentos para a criação, num patamar mais elevado, das famosas “cenas de multidão” ou de “motins urbanos” que recebe um tratamento mais complexo na obra de autores como Walter Scott, Victor Hugo, Charles Dickens, George Eliot, Gustave Flaubert e Émile Zola.
 
Para o romancista do século 19, diferentemente de seus antecessores no século 18, a transgressão não adota mais o formato de uma diversão inocente ou descontínua. Pode-se sem dúvida indagar se ela não se tornou a preocupação central, auto-consciente, da própria empreitada ficcional. (pág. 118).
 
 
 





sexta-feira, 6 de agosto de 2021

4731) José Ramos Tinhorão, 1928-2021 (6.8.2021)




Um amigo mais velho me disse, décadas atrás, que para marcar presença nos meios culturais brasileiros, para tornar-se conhecido e respeitado, era preciso polemizar, atacar pessoas (atacar suas idéias, claro), inventar disputas. “Por que?”, perguntei. E a resposta: “Na cultura brasileira, pelas nossas características históricas e sociais, há sempre uma briga de muita gente por pouco espaço. Em situações assim não prevalece a cooperação, e sim a competição. Ter inimigos é tão importante quanto ter amigos, desde que esses inimigos sejam também afeitos à polêmica. Essas pessoas falarão de nós com muito mais assiduidade e mais veemência do que nossos próprios amigos e seguidores”.
 
Não sei se a teoria procede; mas muita gente parece se comportar assim. “Falem bem ou mal, mas falem de mim”, já cantava Erasmo Carlos, que nem é tão polemista assim, é só um provocador bem humorado.
 
Erasmo: “Eu Não Me Importo”
 
Foi-se agora, aos 92 anos, um dos personagens mais polêmicos da cultura musical brasileira. José Ramos Tinhorão virou, para muita gente, o sinônimo de sujeito reacionário, quadrado, careta, inimigo da modernidade. Em muitos círculos onde convivi ao longo da vida, elogiá-lo era receber uma saraivada de gozações, quando não de provocações furibundas. Gostar dele era quase como gostar de Gustavo Corção.
 
E de fato, minhas divergências como os escritos de Tinhorão eram muitas. O primeiro arrepio de horror me percorreu a espinha quando o vi, num jornal carioca ou paulista, comentando algum disco recém-lançado por João Bosco. O autor de “Agnus Sei” estava então no movimento ascendente de sua primeira fase, em que cada disco era ainda melhor do que o anterior. Era o que a gente em Campina chamava de “fase trezeana” dele (Galos de Briga, Caça à Raposa, etc.).
 
Pois Tinhorão tinha o desplante de elogiar as letras de Aldir Blanc (também uma unanimidade entre nós) mas dizia que as músicas de João Bosco estavam erradas, eram malfeitas, estragavam as letras... Sei lá o que ele dizia. Eu jogava o jornal para longe, indignado. E de fato nunca cheguei a entender por completo.
 
Rapidamente me dei conta de que Tinhorão militava nas fileiras (a metáfora é proposital) dos defensores da música brasileira pura, sem influência do jazz, do rock, etc. Mas... e João Bosco? Era roqueiro, por acaso? Eu via em João (e continuo a ver, até hoje) a destilação pura, mas personalíssima, dos batuques afro, dos sambas urbanos, dos boleros luz-vermelha, das toadas dos Gerais...
 
Parece que aos poucos os próprios “perseguidos” por Tinhorão foram se acostumando ao jeito ranheta dele, não por gostarem de quem é ranheta, mas por reconhecerem o trabalho gigantesco e único que ele fez a vida toda pela história da música popular brasileira.
 
Aldir Blanc, citado numa excelente matéria de Fábio Victor sobre Tinhorão na Folha de São Paulo (14-2-2019), fez comentários bem humorados a respeito dele. Aldir alude ao fato de que “tinhorão” é uma planta venenosa, e de ter citado o nome do crítico num verso de “Querelas do Brasil” (“tinhorão, urutu, sucuri”):
 
"Acho que dei duas solas no Tinhorão, uma na música citada, outra em texto para o 'Pasquim', mas quero deixar muito claro que Tinhorão é sinônimo de polêmica enriquecedora e que sua obra crítica e histórica engrandecem nossa cultura. Eu não só respeito o Tinhorão. Também o admiro muito, graças ao meu amigo Nei Lopes, que me tirou de um antagonismo que não afeta o Tinhorão mas que me diminuiria. Mando de público um abraço agradecido para minha 'sucuri' favorita"
 
Folheando os livros de Tinhorão que fui encontrando por acaso nos sebos, e depois levando-os para casa, me dei conta de que ele era de fato uma pessoa única (mesmo que implicante), fazendo um trabalho raro, que poucos se dispõem a fazer. A busca, leitura e anotação paciente de fontes primárias, a escuta de milhares de discos com som precário, a comparação de datas, de nomes, o rastreamento de algo tão impalpável quanto semelhanças melódicas, influências rítmicas, inovações harmônicas, parentescos vocais.
 
Pesquisar literatura é mamão-com-açúcar, comparado com pesquisar música popular e cultura oral.



Quem, se não Tinhorão, poderia produzir uma obra como A Música Popular no Romance Brasileiro, em 3 volumes, onde ele sai pinçando em nossa literatura todas as referências a canções, toadas, versos, serestas, capadócios, violões, repentes, batuques?  Foi graças a ele que cheguei a Dona Guidinha do Poço (1892), de Oliveira Paiva, que tem trechos brilhantes de reconstituição dos folguedos sertanejos do Ceará no século 19, com repentistas improvisando versos em público. Quando a cantoria de pé-de-parede ainda nem existia.
 
Em 1989 viajei a Lisboa para receber o Prêmio Caminho de Ficção Científica. A Editorial Caminho, que patrocina o prêmio, é a editora que lançou José Saramago. Chegando lá, passei mais de uma tarde conversando com os editores Belmiro Guimarães e Zeferino Costa. E eles me mostravam os livros de Tinhorão que a Caminho estava lançando em Portugal, com elogios rasgados da crítica e dos leitores.
 
Me lembro de folhear com o polegar o exemplar maciço de Os Negros em Portugal: uma Presença Silenciosa (1988), e tentar explicar a Belmiro por que motivo Tinhorão era tão criticado no Brasil.
 
– Belmiro, Tinhorão é muito conservador para o gosto dos brasileiros da minha geração. Ele não gosta de jazz e de rock, de música norte-americana. E mais: desdenha a Bossa Nova, o Tropicalismo, toda a música que nós ouvimos e admiramos.
 
– E o que tem?! – redarguia ele. – Que diferença faz o gostar ou não, disto ou daquilo? Não veem o trabalho gigantesco que esse homem vive a fazer por si só?!
 
Não veem; não viam, não víamos. Porque ele não gostava de rock. Creio que existe em todas essas “críticas de opinião”, entre nós, uma insegurança básica. Quando alguém que é famoso ou conceituado discorda de uma opinião nossa, deixa de ser um possível avalizador de nossa opinião (que geralmente é intuitiva, afetiva, pouco fundamentada) e transforma-se num possível desmascarador de nossa possível ignorância. Um adversário, portanto.
 
Encontrei Tinhorão pessoalmente apenas uma vez, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1990. Estávamos ambos no estande das editoras portuguesas na Bienal, eu para autografar A Espinha Dorsal da Memória, ele com um de seus títulos pela Caminho, talvez o mesmo que eu tinha manuseado em Lisboa no ano anterior
 
Apresentamo-nos, e sentamos lado a lado na mesa, canetas a postos, à espera dos leitores. Começamos a conversar. Curiosamente, quase não falamos em música. Falamos de literatura, das diferenças entre Brasil e Portugal, dos amigos em comum. A certa altura ele pediu para ver meu livro. Expliquei a ele que era pesquisador também, e que vivia rastreando a ficção científica no Brasil. Ele por acaso conheceria algum livro do gênero, no Brasil do século 19?...
 
– Como não? – disse ele. – A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, uma escritora cearense obscura, no fim do século.
 
Bingo! Batia com uma dica que já me havia sido dada por Carlos Emílio Corrêa Lima, e isto resultou num artigo que publiquei sobre o livro no fanzine Somnium, em 1993.
 
Ficamos por ali, por umas três horas. Leitores vinham, olhavam para a cara da gente, e iam embora, como em toda Bienal. Ele não vendeu nenhum livro, a tarde inteira. Eu vendi um – para a filha dele, que veio cumprimentá-lo, e que ele convenceu a comprar um exemplar de A Espinha Dorsal da Memória.





terça-feira, 3 de agosto de 2021

4730) A palavra "vela" (3.8.2021)




Estava lendo um texto em inglês a respeito de pessoas que compram uma granja para produção de ovos de galinha. A certa altura, o texto diz, no depoimento de uma das donas da granja:
 
When you candle 22.000 eggs and those eggs are worth 2 1/2 cents each to you there is an extra element of satisfaction!
 
“To candle eggs”? Eu conheço “candle” como substantivo, significando “vela”, mas não tinha visto ainda como verbo. Fui ao pai-dos-burros, o meu manuseado Webster/Houaiss, e lá estava:
 
candle – (...) vt. examinar (esp. ovos) por transparência à chama de uma vela ou qualquer outra fonte de luz.
 
Bastou isso para me fazer lembrar as muitas vezes em que vi, no cinema ou na vida real, uma pessoa erguendo um ovo de encontro à luz do sol que entra pela janela, para “olhar por dentro” dele.
 
Tradutores que gostam de tomar cerveja sabem que tão impossível quanto pedir apenas uma saideira é ir procurar uma palavra no dicionário e olhar apenas aquela. A gente sempre fica curioso em peruar mais alguma coisa.
 
No caso, fiquei pensando na diferença entre “candle” e “vela” – por que razão a palavra inglesa é tão diferente da palavra em português? É sempre bom pensar nessas coisas. A primeira associação de idéias que me ocorreu foi comparar com outras línguas, e bingo! – está na cara que a palavra supostamente inglesa é de origem uma palavra latina, visto que vela em francês é “chandelle” e em espanhol é “candela”.
 
Por que do latim e não do grego? – a gente se pergunta às vezes. O indispensável Online Etymological Dictionary apaziguou minha inquietação, informando-me que na antiga Grécia as velas eram desconhecidas, pois aos gregos lhes bastavam as lamparinas a óleo. Foi com os romanos e os etruscos que elas se tornaram comuns.
 
Como confirmação dessa latinidade, bastou-me lembrar de duas musiquinhas.



“Mon ami Pierrot”
https://www.youtube.com/watch?v=z14y_YjbqVM



Buena Vista Social Club:
“Candela”
https://www.youtube.com/watch?v=4_7zkXv17QE

 
A origem da palavra é mesmo o latim, e lembrei mais ainda que no campo da ciência, óptica, eletricidade e áreas afins usa-se o termo “candela” como unidade de brilho para comparar duas fontes de luz.
 
E dessa raiz latina vieram palavras como “candelabro” (suporte oco onde se enfiam velas para iluminar um ambiente”), “candeia” significando qualquer fonte de luz mediante um pequeno pavio aceso, a qual por sua vez deu origem a “encandear”, esse verbo tão poético e tão nordestino, sinônimo de “ofuscar, tornar momentaneamente cego por um excesso de luminosidade”.
 
E olha só... Como candelabro em francês é “chandelier” acabei desconfiando (e conferindo) que o sobrenome inglês Chandler, que já consagrou o ator Jeff e o escritor Raymond, significa “fazedor ou vendedor de velas”. Como tantos sobrenomes europeus, tem como origem a atividade de ganha-pão de pessoas humildes.
 
Certo. Mas, e a nossa palavra “vela”, de onde vem? Curiosamente, vem do latim “vigilia”, o hábito de pessoas passarem a noite acordadas cumprindo um ritual qualquer, seja para encomendar um morto, seja para evitar ser apanhado de surpresa por um inimigo. Com esta última conotação desenvolveram-se do século 16 em diante, a partir do francês, palavras como vigiar, vigilância, vigilante, etc.

 
Velar, portanto, é ficar acordado, com ou sem vela acesa, mas é melhor com, para não esquecer os lindos versos da canção de Chico César, “Onde Estará o Meu Amor”:
 
Será que vela como eu?
Será que chama como eu?
 
A esta altura eu já estava meio perdido em divagações, e quis lembrar de que ponto tinha partido todo este fio de busca. Era a granja de ovos! E ela me trouxe por associação de idéias os versos inesquecíveis de João Cabral de Melo Neto em “O ovo de galinha” (em Serial, 1959-1961):
 
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
 
Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
 
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
 
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.
 
Então era isso. Pude traduzir:
 
Quando você examina 22 mil ovos em contraluz, e cada um desses ovos tem para você o valor de dois centavos e meio, isso traz um elemento extra de satisfação!
 
É mesmo.
 





sábado, 31 de julho de 2021

4729) "O Homem do Castelo Alto" (31.7.2021)



Acabei de ver hoje a primeira temporada da série de TV criada por Frank Spotnitz, tendo como base o romance de Philip K. Dick, o clássico The Man in the High Castle (1962). Primeiras temporadas são geralmente enganosas, quando a série é boa, porque as segundas, terceiras etc. têm justamente a missão de produzir reviravoltas em tudo que elas mostraram.
 
Então, não vou me deter aqui nas minúcias do roteiro, do quem está do lado de quem, de quem está mentindo, ou das consequências das muitas peripécias destes dez primeiros (e muito bons) episódios. Uma série desta natureza vive das viradas-de-mesa que produz.
 
Li o livro de PK Dick muitos anos atrás, na saudosa coleção “Asteróide” da Editora Sabiá; pretendo reler agora na tradução de Fábio Fernandes para a Aleph, enquanto vejo as temporadas restantes. Não leio para ficar de caneta em punho checando fidelidades e infidelidades ao original. Uma série é uma obra autônoma. Um filme não é uma transposição de um livro. É uma variante, uma expansão, uma obra nova criada a partir das idéias sugeridas pela obra original. Se há de haver “fidelidade”, que seja ao espírito, não aos detalhezinhos de enredo ou cenário.

 
A ambientação visual é muito bem cuidada, “de época”, numa paleta de cores que vai do marrom ao cinza-chumbo, do sépia ao azul-defunto, e não vou mais me alongar para não parecer avaliação de enólogo. Sempre haverá um nerd capaz de freezar a imagem e dizer que o cartaz tal não poderia estar ali, mas num filme o que vale é a atmosfera, a impressão cumulativa de detalhes visuais que se reforçam e se enriquecem.
 
É uma América empobrecida, encardida, sovada, cerzida, rebocada, onde as únicas partes reluzentes e triunfalistas são os edifícios do Reich e do Império Nipônico, as limusines dos militares, os foguetes intercontinentais cruzando os céus daquelas cidades anacrônicas e cheias de lixo.

 
Bom roteiro, boas interpretações dos atores, fotografia e montagem ótimas. O roteiro cumpre a função de criar uma permanente incerteza com base na violência e tensão do ambiente que descreve. Alguém talvez a rotule, ao invés de “ficção científica” ou de “História alternativa”, como uma série de “ação e aventura”. Eu a colocaria na prateleira de “Conspiração e Suspense”.

 
Para quem não conhece a história: a premissa é simples. Os Aliados perderam a II Guerra Mundial; os EUA foram invadidos e dominados. Na Costa Leste, do lado do Atlântico, instalou-se um governo da Alemanha nazista; na Costa Oeste, do lado do Pacífico, um governo do Império Japonês. Entre os dois, há uma imprecisa zona neutra, precária, pobre, cheia de refugiados e clandestinos.
 
A ação transcorre no começo dos anos 1960, quando os norte-americanos já se acostumaram a abaixar a cabeça diante dos invasores, mas existe uma Resistência “underground”. É uma história de espionagem, duplas identidades, pessoas com documentos falsos, encontros clandestinos, disfarces.
 
Philip K. Dick foi um dos escritores que mais absorveram o clima paranóico da Guerra Fria, da desconfiança permanente, da situação de nunca se saber ao certo quem é a pessoa em cujos olhos estamos olhando, a pessoa para quem trabalhamos, ou que trabalha para nós, a pessoa que dorme conosco na mesma cama. Um aliado, ou um enviado do inimigo?
 
Este espírito conspiratorial está presente na obra de PK Dick, principalmente em partes de O Homem Duplo (1977), Loteria Solar (1955), O Tempo Desconjuntado (1959). Pessoas meio perdidas num ambiente, sabendo que estão sendo caçadas por alguém (ou caçando alguém), sem saber ao certo quem é o amigo e quem é o inimigo.


 
A situação imaginada por PKD torna-se ainda mais rica de possibilidades dramatúrgicas porque trata-se de um povo oprimido por duas ditaduras que são adversárias uma da outra, e que vivem numa convivência tensa e fingida, apenas esperando o momento de dar o bote. Os norte-americanos ficam naquela situação da população de Tóquio tentando escapar da briga entre Godzilla e Ghidorah, algo assim.
 
Dick ficou muito marcado pela II Guerra Mundial, a que seus livros se referem com frequência. É curioso que no Homem do Castelo Alto (e nesta primeira temporada da série) não haja praticamente nenhuma referência à Itália, à Inglaterra, à França, à URSS – é como se esses protagonistas do conflito não existissem mais, para fins práticos.
 
Finalmente: o grande “gimmick” fantástico da obra original era o livro imaginário The Grasshopper Lies Heavy, onde era descrito um mundo alternativo onde os Aliados venceram a guerra. Na série de TV, o livro é transformado em filme – uma profusão de rolos de filme em 16mm que passam de mão em mão ao longo de uma corrente de “subversivos”, filmes que mostram (neste ponto a mudança enriquece muito a idéia original de Dick) mundos diferentes daquele. Como a invasão de uma realidade paralela, através da imagem cinematográfica.

 
O recurso lembra um pouco o filme vanguardista e anônimo usado como desencadeador do enredo de Reconhecimento de Padrões (2003) de William Gibson: “the Footage”, como a chamam, trechos de um filme maior que ninguém sabe de onde vem, quem fez, nem por que razão está sendo liberado aos poucos, e só para um pequeno grupo secreto.
 
PK Dick sempre encarnou o Mal, em seus romances, naquelas entidades impessoais, desumanas, sem empatia, fossem indivíduos ou organizações. Fosse um inseto, um viciado em drogas, um andróide assassino, um líder messiânico, um policial, ele via esse mecanicismo mental como uma expressão do Mal em si.
 
Nesta história, ele achou no Partido Nazista e no Império militar japonês duas encarnações perfeitas para essa imagem: entidades fortemente hierárquicas, insensíveis, poderosas, com um objetivo a alcançar e com a disposição de esmagar quem se atravesse em seu caminho.
 
No episódio 4, quando Juliana pergunta a Lem Washington (um dos membros da Resistência) se ele viu os filmes, este responde: “Meu trabalho não é assisti-los. Eu os passo adiante, e só.” Pode ser que o personagem revela outras facetas no futuro. Mas, em essência, é esse o comportamento que Dick critica, como quando o oficial nazista Smith explica a Joe Blake, no episódio 5: 

“Sabe por que motivo você falhou? Você é um simples componente, em uma máquina complexa, a qual só funciona se cada uma de suas partes fizer exatamente o que tem que fazer, em sincronia com as demais. Mas se você decide, sem saber o que os outros estão fazendo, simplesmente agir à sua maneira, cedo ou tarde a máquina vai se quebrar”.
 
Tanto as ditaduras quanto as Resistências tendem ao mesmo comportamento burocratizado, verticalizado, cala-a-boca-e-obedece, em que a caça e o caçador se espelham um no outro: como o humano e o andróide, o policial e o drogado, o médico e o louco. Para PK Dick, ninguém é bonzinho, ninguém está a salvo de a qualquer momento se transformar no seu oposto mais temido e mais odiado.