quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

4303) Dias de poesia e festa (9.1.2018)




Este ano, a tradicional festa dos cantadores em São José do Egito teve, como mote de homenagem, “103 anos de Louro / 100 anos de Zé Catota”. Louro é o famoso Lourival Batista, um dos grandes cantadores do Pajeú, nascido em 1915 e falecido em 1992; Zé Catota (José Lopes Neto) era um poeta local menos famoso, mas igualmente querido, e foi bonito ver no último dia um neto e quatro netas dele subirem ao palco para recitar e agradecer a homenagem.

Tenho ido à festa nos últimos cinco anos, meio que tentando tirar o atraso. Desde os idos dos anos 1970 que meus amigos violeiros me chamavam para ir lá, curtir dois ou três dias de versos e de libação, que eram ainda mais animados no tempo em que Louro era vivo, com sua hospitalidade, sua verve trocadilhesca, seu senso de humor ferino.

Convivi com Louro durante alguns anos, viajei com ele, vi-o cantar em uma dúzia de Estados brasileiros. Nunca o vi em São José do Egito, que era sua fonte e seu castelo. Mas é assim mesmo; toda história é tecida de fios e vazios.

Desta vez, o pretexto profissional da minha ida foi duplo. Fui lançar meu romance Bandeira Sobrinho – uma vida e alguns versos (Editora Imeph, Fortaleza), história de um cantador da geração de Louro, poeta fictício onde tentei reunir traços humanos de muitos poetas cinqüentões ou sessentões com quem convivi quando tinha vinte-e-poucos.



O segundo pretexto foi mediar uma mesa-redonda de estudiosos e amantes da poesia, cada qual com seu foco de interesse e seu estilo de abordagem.

Gilmar Leite, filho de São José do Egito, apresentou seu livro Corpo e Poesia – para uma Educação do Sensível, resultado de sua tese de mestrado. Um debate freqüente entre nós, admiradores da Cantoria de Viola e da Literatura de Cordel, é sobre a distinção entre palavra (e poesia) falada e palavra (e poesia) escrita. Gilmar lembrou a importância da fala para a inspiração poética, e puxou uma recordação de Zeto, poeta da região, genro de Louro, que quando cantava ou recitava mobilizava o corpo inteiro e parecia entrar em transe.

A fala de Gilmar me trouxe à memória uma resposta de Allen Ginsberg, o poeta beatnik de Nova York. Perguntaram a ele por que tinha usado versos livres tão extensos em seu famoso poema “Uivo” (“Howl”), e ele disse: “Cada verso tem a medida exata do ar dos pulmões; eu vou dizendo em voz alta o verso, e quando o ar acaba eu corto e começo a linha seguinte.”  O corpo (o pulmão) usado como régua da métrica.

Em seguida veio Antonio José de Lima, “Tõe Zé”, outra figura muito querida do Pajeú, que lançou o livro Legado Filosófico de Poetas e Repentistas Semianalfabetos, onde ele compara trechos e frases de filósofos e poetas, desde a Antiguidade até a era moderna, com os versos dos cantadores humildes do Nordeste, que por vias transversas e heranças orais acabam chegando a reflexões semelhantes.

Tõe Zé se fez acompanhar por uma dupla de violeiros jovens, Bondoso e Silvano. No livro ele, “apologista” de muitos anos, recorre à extensa memória para trazer versos antigos e esquecidos, mas também cita versos de João do Vale, Patativa do Assaré e outros. O termo “semianalfabeto” sempre gera alguma discussão, porque algumas pessoas o acham um tanto ofensivo. Todo mundo lembrou a resposta famosa de Pinto do Monteiro, quando um jornalista começou a dizer algo tipo: “Seus versos são incríveis, o senhor, semianalfabeto...” e Pinto interrompeu: “Não, eu sou analfabeto mesmo. Semianalfabeto é você.”

Finalmente, Antonio Nóbrega trouxe uma pesquisa longa e bem documentada com exemplos sobre as origens da décima, a estrofe mais cultivada pelos cantadores, seja para glosar motes, seja para fornecer o esquema de rimas para gêneros como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o martelo alagoano e outros. As rimas da décima se organizam no esquema ABBAACCDDC, usado por Gregório de Matos no século 17, e que ainda está vivo no Nordeste, e ecoa diariamente no vale do Pajeú.

Tudo isso sem falar nos quatro dias de shows e recitações. A família Passos cantando e recitando versos em lembrança ao seu patriarca, falecido em agosto; um show inesquecível de Cátia de França, roqueira e baiãozeira vigorosa no esplendor dos 70 anos; Silvério Pessoa lembrando canções de Ivan Santos e Rosil Cavalcanti. 

Uma boa mesa de glosas comandada por Jorge Filó (sempre com presença feminina acentuada), e baiões de viola com Valdir Teles e Diomedes Mariano.  Vi uma banda de coco azeitadíssima de Triunfo (PE), com uma vocalista de rapidez e precisão impressionantes, e que se apresenta em versão eletrônica como “Radiola Serra Alta” e em versão acústico-percussiva como A Cristaleira.

Vi a bela voz de Aline Paes acompanhada pelo pandeiro de Bernardo Aguiar e pelo violão onipresente de Greg Marinho. Os shows da família Marinho, filhos e netos de Louro que (com a “Página 21”, do Recife) produzem o evento: desde Tonfil cantando MPB até Val Patriota cantando dor de cotovelo, Bia Marinho desfiando um belo repertório de canções suas e de outros, e seus filhos Antonio, Greg e Miguel Marinho liderando a banda Em Canto e Poesia, em cuja apresentação Nóbrega deu uma bela canja e me chamou para cantar estrofes (inclusive não-gravadas) de nossa ciranda “Carrossel do Destino”).

A festa de Louro é como a Lua: cresce agora, diminui mais tarde, depois volta a crescer, e se mantém há cerca de meio século abrindo com poesia o ano civil do Pajeú. Hoje são seus netos que tomam a frente, amanhã serão seus bisnetos. As crises políticas e econômicas vêm e passam, e a poesia continua firme e leve, fotografando a alma do tempo.

Um dia eu ainda vou recortar todos esses dias que passo na Festa de Louro, sair juntando todos os trechos e depois emendar o último no primeiro pra fazer um loop. Aí resolve tudo.

Quero deixar de ser eu
porque ser eu é ser muitos;
eu sou tantos outros juntos
que nenhum prevaleceu.
Eu tenho um lado judeu
tenho outro palestino
um lado novaiorquino
e outro de Kandahar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do Destino.









segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

4302) "Martín Fierro": um romance de cordel (8.1.2018)



(ilustração: Molina Campos)

É curioso que o livro considerado pelos argentinos como a epopéia nacional argentina, a obra canônica que define a nação de Julio Cortázar, Ricardo Piglia e Jorge Luís Borges, seja uma espécie de romance de cordel.

O Martín Fierro (1872, 1879) de José Hernández é descrito em geral como um poema épico, pela sua longa extensão e temática guerreira. Borges, num ensaio famoso (El “Martín Fierro”, 1953, com Margarita Guerrero) acrescenta que isso só se dá porque alguém convencionou que todo povo precisa ter um Ilíada ou uma Eneida.

Diz Borges que a tradição homérica cria um senso de obrigação de tal peso que no século 18 Voltaire se obrigou a escrever a Henriade para que não faltasse um epopéia à literatura francesa.

Não faltou à argentina. O Martín Fierro foi um enorme sucesso popular desde 1872, quando foi publicada aquela que é hoje sua primeira parte, intitulada El gaucho Martín Fierro. A vendagem impressionante do livro fez o autor publicar sete anos depois A volta de Martín Fierro.

Desde então as duas partes são editadas em conjunto. O livro de Hernández tornou-se um desses clássicos compostos de duas partes lançadas com um longo intervalo, como ocorreu com o Dom Quixote de Cervantes, o Fausto de Goethe e os livros da Alice de Lewis Carroll.


O Martín Fierro é uma história de aventuras e desgraças ambientada no pampa argentino. Fierro é um pequeno agricultor com mulher, filhos e um ranchinho. É recrutado na marra pelo exército, para combater os índios. Daí em diante, sua vida nunca mais se apruma. Vira desertor, comete crimes, é preso pelos índios e passa anos como cativo. Quando volta, muitos anos depois, a mulher morreu e os filhos contam os problemas por que passaram.

Chamei o livro de Hernández de “romance de cordel” pelo fato de que esse épico argentino não foi escrito nos hexâmetros de Homero nem organizado nas oitavas de Camões. É um poema em sextilhas, basicamente, com raras interpolações de outras estrofes, como a quadra.

A sextilha de Hernández é diferente da nossa sextilha cordelesca. Ambas são estrofes de seis versos com sete sílabas. (Os argentinos dizem que esse verso é octossílabo, mas eles contam a última sílaba átona, e nós não.) Nossa sextilha nordestina tem o esquema de rimas ABCBDB, com o segundo, o quarto e o sexto verso rimando entre si. A sextilha de Hernández segue quase sempre o modelo abaixo (traduzo a estrofe inicial do poema):

Aqui me ponho a cantar
ao compasso da viola,
que o homem a quem assola
uma pena extraordinária
como a ave solitária
com o cantar se consola.

Seria portanto um esquema ABBCCB, mas não é preciso muito exame para perceber que esse curioso formato não passa de uma décima decapitada, uma décima tipo ABBAACCDDC da qual foram cortados os quatro primeiros versos. Não faço idéia da origem desse formato.

(ilustração: Molina Campos)

Em todo caso, é curioso que esse poema de tema rústico seja aceito pelos eurófilos argentinos como um retrato fiel de sua nação. Talvez seja a eterna ilusão do Bom Selvagem tornado mau pelo atrito com a civilização. Ou aquela dívida atávica de toda cultura urbanóide para com o mundo rural que lhe mata a fome. Ou o fascínio milenar dos versos contendo o que Ariano Suassuna chamava de espírito cavalariano e aventuroso.

Em todo caso, Borges, no seu livrinho, propõe uma discussão importante sobre o gênero da obra. Diz ele que não se pode confundir a natureza do poema com as epopéias genuínas, que são outro tipo de literatura; mas que o MF tem, sim, uma faceta épica, porque parece mais com as sagas nórdicas e com a Odisséia do que com os versos de Verlaine.

Ou seja: quem lê o poema o lê para conhecer as peripécias da história, não para admirar a beleza do fraseado. O MF é épico porque é narrativo, é aventuroso, é de prender a respiração e de arregalar os olhos.



E Borges esclarece:

Além disso, a palavra [epopéia] pode nos prestar outro serviço. O prazer que proporcionavam as epopéias aos primitivos ouvintes era o que hoje proporcionam os romances: o de ouvir que aconteceram tais coisas a tal homem. A epopéia foi uma pré-forma do romance. Assim, descontado o acidente do verso, caberia definir Martín Fierro como um romance. Esta definição é a única que pode transmitir com exatidão o tipo de prazer que nos dá e que coincide, sem causar espécie, com sua data, que foi – quem não o sabe? – a do século novelístico por excelência: o de Dickens, o de Dostoiévski, o de Flaubert. A épica exige a perfeição dos personagens; o romance vive de sua imperfeição e complexidade.
(p. 94-95, trad. Carmem Vera Cirne Lima)

Daí minha afirmação, lá no início, de que o poema nacional argentino é um cordel. Não é por acaso que chamamos de “romances” os cordéis longos, de histórias aventurosas. Isso nada tem a ver com o nosso conceito de romance em prosa (Guerra e Paz, Menino de Engenho, etc.). Tem a ver com os romances em versos da cultura ibérica, o famoso Romanceiro Popular.

O Martín Fierro é uma dessas narrativas em verso com começo, meio e fim, ricas de episódios intermediários, narrativas que não têm a ambição realista, e sim a volúpia da imaginação e da aventura. São realistas por reflexo, porque revelam de forma quase inconsciente a realidade física e mental das pessoas que escrevem e leem essas histórias.

José Hernández fez com as sextilhas dos payadores do pampa o que um seu contemporâneo, igualmente erudito, como José de Alencar, poderia ter feito caso dominasse as formas poéticas de outros contemporâneos de ambos, como os poetas da Escola do Teixeira – Francisco Romano, Silvino Pirauá e outros.

Talvez uma das razões para a celebridade e o sucesso perene do Martín Fierro seja o fato de que o povo argentino reencontra ali, entre tantas outras coisas, a sua poesia oral, inclusive com a realização, na II Parte, de um desafio de viola, ou payada en contrapunto, entre Martín Fierro e outro payador.

Aqui, o texto completo original, com comentários, glossários e ilustrações:


















segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

4301) Resoluções para 2018 (1.1.2018)




(ilustração: James Turrell)



Fazer como o doidim de Taperoá, que toda vez que lhe mostravam duas moedas escolhia sempre a menor, porque no dia em que escolhesse a maior a brincadeira acabava.

Fazer como Jorge Luis Borges, que considerava Waterloo uma vitória.

Fazer como Isadora Duncan, que disse: “Está soprando um vento frio, acho que vou de cachecol.”

Fazer como a cartuxa de Parma e a toutinegra do moinho, que viveram só para inspirar um título.

Fazer como Juquinha, que quando já estava na Faculdade reencontrou a professora e a levou para tomar umas cervejas.

Fazer como C. G. Jung, que entendeu que a blasfêmia não é para insultar quem ouve, mas para libertar quem diz.

Fazer como aquela moça da Bíblia que se deixou levar à tenda do general invasor e saiu de lá com a cabeça dele.

Fazer como os Harlem Globetrotters, que jogavam tão bem que não precisavam ganhar.

Fazer como a trapezista que explicou: “o segredo é não acreditar que tem a rede.”

Fazer como Raymond Chandler, que enxugava uma garrafa de uísque antes do almoço, e com isso economizava o almoço.

Fazer como a Princesa Isabel, que resssignificou o conceito de interinidade.

Fazer como Neymar, que quando soube do 7x1 na véspera pediu para ficar de fora, e aí inventaram uma "fratura da coluna vertebral".

Fazer como Raskolnikóv, que viu a merda que tinha feito e não sossegou enquanto a polícia não somou dois mais dois.

Fazer como Snoopy, que tinha plena consciência da importância da frase inicial de um processo criativo.

Fazer como aquela moça da NASA que conseguia dar uma mamadeira enquanto calculava uma órbita.

Fazer como o anarquista espanhol que entrou na cabine eleitoral, votou, depois puxou o detonador, e explodiu o próprio voto.

Fazer como Emily Dickinson, que ela mesma escrevia, ela mesma lia e ela mesma criticava.

Fazer como Lutero, que descobriu que para enfrentar o diabo não servia água benta, era preciso um tinteiro.

Fazer como o co-piloto do Boeing, que quando o piloto disse: “Fulano, me acode, estou morrendo, botaram alguma coisa no meu suco”, ele disse: “Fui eu.”

Fazer como Michelangelo que estava pintando, foi interrompido pelo Papa, e jogou uma caixa de ferramentas na cabeça do intruso.

Fazer como a dona da pensão que botou em cima da mesa uma terrina de arroz, uma de carne moída, e disse: “Quem não gostar vá almoçar na casa da puta que o pariu.”

Fazer como Sísifo, que considerava como seu objetivo fazer a pedra rolar de cima do morro até o vale.

Fazer como a roqueira punk que conclamou a multidão: “Bora, sobe todo mundo no palco, bora pular até essa porra vir abaixo”, e assim se fez.

Fazer como L. Ron Hubbard, que mandou a ficção científica às favas, inventou logo uma religião e ficou milionário.

Fazer como Lampião, que olhou Maria Bonita de cima a baixo e disse: “Venha, que eu vou lhe fazer a mulher mais feliz do mundo Já sabe como é o sistema. Se tiver coragem, pode vir.”

Fazer como D. Elaine, minha professora de Geografia, que no dia da prova anunciou para a classe: “Quesito único: Fale sobre agricultura”.

Fazer como Augusto dos Anjos, que publicou um livro intitulado “Eu” onde só existe meia dúzia de cisquinhos autobiográficos.

Fazer como Dolores Duran, que escrevia em qualquer papel, em qualquer hora, em qualquer lugar.

Fazer como Augusto Matraga, que matou um adversário e depois protegeu o corpo dele contra a turba enfurecida.

Fazer como Ana Maria, secretária da FURNe, que um dia me falou: “A vida passa e nós vamos ficar, aquecidos pelo calor imundo das árvores, sangrentas e miseráveis”.

Fazer como Groucho Marx, que esvaziava um revólver com uma piada.

Fazer como Lillian Hellman, que conseguiu passar quinze anos sem perguntar ao marido por que ele tinha deixado de escrever.

Fazer como Zabé, que morava na loca e vivia do vento.





quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

4300) Alguns livros de 2017 (28.12.2017)




Não faço listas dos “melhores do ano”, porque como não trabalho no jornalismo cultural não tenho a obrigação de ler os lançamentos recentes. Leio mais livros antigos do que livros recentes, não porque menospreze a literatura contemporânea, mas porque os livros antigos têm um histórico de referências, que despertam minha curiosidade. O que se segue abaixo é o registro de alguns bons livros que li este ano, por ordem aproximadamente cronológica. Ainda pretendo escrever mais a vagar sobre alguns deles.



Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto. O romance é um retrato de um intelectual mais velho feito por um amigo mais jovem, e de quebra uma série de quadros vívidos sobre o centro e o subúrbio do Rio de Janeiro, cheios das observações originais e bem argumentadas do autor. É um livro crepuscular e humano, menos satírico que Isaías Caminha ou Policarpo Quaresma, menos cruel do que Clara dos Anjos.



Os Invisíveis 1, de Grant Morrison. Uma das coisas mais curiosas nas HQ é o filão que mistura ficção científica e ocultismo, com rupturas brutais no tempo e no espaço. Pretendo avançar mais nesta série que tem algo de Philip K. Dick  e da “gonzo fantasy” de Tim Powers.



Circo Nerino, de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki. Pesquisando sobre circos, peguei com Eduardo Rios (o Escaramuça do Suassuna - o Auto do Reino do Sol) este álbum notável com a história (numa profusão de fotos excelentes) de um dos grandes circos brasileiros, que infelizmente nunca frequentei. (“Meus” circos foram o Tihany, o Gran Bartholo e o Garcia.) Biografias de inúmeros artistas, episódios curiosos, viagens pelo Brasil inteiro (há inclusive transcrição de um artigo de Ednaldo do Egypto, quando o circo passou pela Paraíba.)


The Life Cycle Of Software Objects, de Ted Chiang. Não sei ainda se vai ser este o título da coletânea de contos de Chiang (o autor de “A Chegada”, filmado por Denis Villeneuve) que traduzi para a Intrínseca. É um dos melhores contistas da FC contemporânea, um dos meus preferidos, e este volume, embora sem o peso de Stories of Your Life and Others, recheado de clássicos, tem histórias excelentes como “The Merchant at the Alchemist’s Gate”, uma narrativa de viagem no tempo no universo das Mil e Uma Noites. (A capa acima é da edição isolada do conto-título.)



Red Harvest, de Dashiell Hammett. O romance de estréia de Hammett é um clássico em que o Continental Op, o detetive anônimo, chega a uma das cidades mais corruptas do país e joga todas as quadrilhas dentro de um frenesi de extermínio recíproco. Política, mentira, traição, ação constante e uma versão cruel do “jeitinho americano” de liquidar bandidos.



Consternação, de Jadson Barros Neves. Contos ambientados principalmente na região do garimpo de Tocantins, uma fronteira rude com garimpeiros, pistoleiros assalariados, indivíduos sem rumo e sem escrúpulos, crimes passionais, assassinatos por dinheiro. Histórias ganhadoras de prêmios literários no Brasil e fora dele.




Conclave e Munich, dois romances de suspense de Robert Harris (o autor de Enigma), que traduzi para a Companhia das Letras. Harris tem um estilo seco, enxuto, detalhado e rápido que dá inveja. O primeiro livro é sobre os bastidores da eleição de um Papa; o segundo, sobre uma conspiração para matar Hitler durante a Conferência de Munique de 1938.


Now Wait For Last Year, de Philip K. Dick. Traduzi para a Suma de Letras este romance de Dick, que eu não tinha lido ainda. Achei uma ótima narrativa, meio desconcertante devido a freqüentes saltos irregulares no Tempo. Tem um dos melhores personagens messiânicos de PKD, Gino Molinari, líder da Terra numa guerra interestelar; drogas mirabolantes, um casamento cruelmente disfuncional e a empatia dickiana em alguns dos seus momentos mais verdadeiros.


A Hipótese Humana, de Alberto Mussa. Um romance policial ambientado no Rio do século XIX, com boas descrições de ambientes e tipos. Parte de uma série que fiquei com vontade de conhecer melhor.


The Edge Of Running Water, de William Sloane. Um romance esquecido de um autor bissexto, de quem eu já li e comentei To Walk the Night (aqui: https://tinyurl.com/yajmdedc). Sloane é um excelente escritor, e esta história tem momentos arrepiantes numa mistura entre FC e sobrenatural.


O Fogo Na Floresta, de Marcelo Ferroni. Um romance ambientado no mercado editorial (uma editora que está sendo comprada e reformulada por um grande grupo econômico), com uma protagonista que se debate de forma alternadamente cômica e trágica nos absurdos do mundo corporativo, do casamento, do adultério, das catástrofes financeiras, da maternidade e do cuidado com os pais idosos, tudo ao mesmo tempo como na vida real.


The Drowned World, de J. G. Ballard. Um dos primeiros romances-catástrofes de Ballard, mostrando uma Inglaterra submersa pelo aquecimento global, transformada num pântano semelhante aos do período Triássico.


Presos No Paraíso, de Carlos Marcelo. Um romance policial ambientado em Fernando de Noronha com algumas reviravoltas hábeis de enredo, recriação eficaz de ambiente humano e geográfico e uma alternância de pontos de vista que ajuda o leitor no esforço detetivesco. Do mesmo autor de O fole roncou, perfil histórico do forró nordestino.

Registro também os numerosos bons livros de poesia que li ao longo do ano, e destaco estes: João Paraibano, O Herdeiro Dos Astros (org. Ézio Rafael, Marcos Passos e Santanna o Cantador), Servir A Quem Vence (Astier Basílio), Velório Sem Defunto e Aprendiz De Feiticeiro (Mario Quintana), Miolo Da Rapadura (Klévisson Viana), O Vendedor De Berimbau (Chico Pedrosa), A Desmedula da Seta (Alan Mendonça), O Mínimo Possível (Adriano Cabral).

Além destes, outros livros interessantes que comentei neste blog durante o ano:

O Espírito Da Ficção Científica, Roberto Bolaño

No Tempo De Almirante, Sérgio Cabral

A Lua Vem Da Ásia, Campos de Carvalho

Santaninha, Arievaldo Vianna e Stélio Torquato

O Bigode, Emanuel Carrère.

O Horlá, Guy de Maupassant.

Baudolino, Umberto Eco

Mar Paraguayo, Wilson Bueno

Incrível! Fantástico! Extraordinário!, Almirante

Malpertuis, Jean Ray

The Yiddish Policemen’s Union, Michael Chabon.














segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

4299) Natal 2017 (25.12.2017)





(ilustração: Galina Kim)

...e o mundo gira a sua bolandeira
de planetas, satélites e luas
como giramos no vaivém das ruas
e no círculo astral do calendário.
Fim de ano é igual aniversário:
um ano a menos resta à nossa frente.
Quem quiser comemore este presente:
mas eu celebro o fluxo, e não o saldo,
a travessia, e não o esforço baldo
de guardar este rio em algum bolso.

As alcatéias cantam, e eu só ouço,
esperando chamarem minha senha,
escutando o machado sobre a lenha,
respirando a fumaça da fogueira,
vendo a vida passar Aleph-inteira
cada vez que me deito pra dormir,
sendo ainda capaz de ler, sorrir,
já que tudo é clicar aplicativos;
cada vez que desperto ao sol dos vivos
sou eu mesmo de novo, e sou um só.

E eu fui feliz, no meu Bodocongó!
Tocando, via o dia amanhecer...
Era uma luz que não voltei a ver
uma alegria de elevar balões
um aconchego de saber canções
sentimento de noite de luar
ascendendo na perpendicular
rumo ao zênite bom de um dia claro
sentimento tão puro, forte e raro
que deve ser produto da memória.

Sentir saudade é maquilar a História;
um direito de todo cidadão!
Ah, se não fosse a imaginação
como ficar em paz dentro de si?
Tudo quanto eu sonhei, pensei, vivi,
era o centro vital daquele Instante,
um “agora” em que todo ser pensante
tem ponto de chegada e de partida,
cartesiano zero, o “x” da vida,
onde o espaço e o tempo entram em foco.

Pois este mundo só existe “in loco”,
o átimo, o momento, o here-and-now,
o passo à frente, o quantum-leap, o vau,
o fotograma que “eppur si muove”.
Porque tudo que pulsa e nos comove
só pulsou desta vez, neste presente;
é o Tempo do corpo, e não da mente;
a mente é transversal, não-linear,
randomizada, ortogonal – lugar
capaz de superpor tempos distintos.

Então... vamos brindar brancos e tintos.
Eu morrerei, e tudo vai passar.
Meus átomos irão se dispersar
e nessa hora não serão mais meus;
só me faltava que existisse um deus!
Um síndico do cosmos, registrando
quem entrou, quem saiu, quem-onde-quando...
O tempo; o espaço; dois vetores; “x”.
E nesse encontro está tudo que eu fiz,
o ponto luminoso em que eu pisquei.

O ano se passou... e eu nem liguei.
Impressionante um ano como passa.
Como um poema escrito com fumaça,
ou ser humano escrito em carne e osso;
ou como passa este universo-esboço,
rascunho escrito em turbilhões de quarks
que me aceitou, como se a Groucho Marx
aceitasse algum clube dadaísta;
não importa; meu nome entrou na lista
e o convidado-trapalhão nasceu.

E aqui estou, por fim. Não mangue d’eu!
Mangue do mundo que me produziu,
mangue dos séculos, ou do Brasil,
que deu matéria pro meu torvelinho.
Sou só um velho contemplando um vinho
sem saber qual dos dois vai durar mais.
Deixo que o mundo me deguste em paz
como o degusto eu, que vou passando,
vendo, sendo, sorrindo, versejando
esta estrofe que emenda com a primeira...








sábado, 23 de dezembro de 2017

4298) Um poema de John Ashbery (23.12.2017)




(Morreu pouco tempo atrás nos Estados Unidos o poeta John Ashbery, que mereceu longos e elogiosos obituários. Na época o nome não me despertou nenhuma lembrança. Agora, remexendo em arquivos velhos, encontrei este poema que li e salvei há alguns anos, movido por alguma ressonância autobiográfica. É um belo poema sobre o processo criativo literário, familiar a todo escritor que de vez em quando vai à janela. Vai ele aqui com tradução minha. O original é de 1956, do livro “Some Trees”.)


O MANUAL DE INSTRUÇÕES
(John Ashbery)

Sentado à janela do meu prédio, olhando para fora,
penso como seria bom se não tivesse de redigir
um Manual de Instruções a respeito das utilidades de um novo metal.

Olho para a rua lá embaixo e vejo as pessoas,
cada qual passeando cheia de paz interior,
e sinto inveja delas. Tão distantes de mim!
Nenhuma delas tem que se preocupar
com a entrega do Manual no prazo combinado.

E, bem ao meu jeito, começo a sonhar,
apoiando os cotovelos na mesa
e me soerguendo um pouco para olhar pela janela,
e sonho com Guadalajara! A cidade das flores cor de rosa!
A cidade que eu mais desejo conhecer, e nunca conheci, no México!
Mas imagino vê-la agora, sob a pressão de ter que escrever o Manual de Instruções,
vejo a praça pública da cidade, seu coreto cheio de adornos!
A banda está tocando Scheherazade de Rimsky-Korsakov,
e em redor do coreto as garotas das flores
seguram flores cor de rosa e de limão,
cada uma tão atraente em seu vestido de listas em azul-e-rosa (oh! cada tom de rosa e azul!)
e ali perto a barraquinha branca onde mulheres de verde
distribuem frutas verdes e amarelas.

Os casais desfilam: todos estão em clima de feriado.
Primeiro, puxando o desfile, vem um sujeito elegante
vestido de azul escuro. Na cabeça traz um chapéu branco
e exibe um bigode, que foi aparado para aquela ocasião.
Sua querida, sua esposa, é jovem e bela; o xale dela é vermelho, cor-de-rosa e branco.
Suas sandálias são de couro, ao estilo americano,
e ela traz um leque, porque é encabulada, e não quer que a multidão veja seu rosto o tempo inteiro.

Mas todo mundo está tão ocupado, com suas esposas ou suas amadas,
que duvido que notem a esposa do homem de bigode.
E aí vêm os rapazes! Vêm saltando e jogando coisas na calçada
que é feita de ladrilhos cinza. Um deles, um pouco mais velho, traz um palito entre os dentes.
É mais silencioso do que o resto, e finge não reparar nas moças bonitas de vestido branco.
Mas os amigos dele reparam, e gritam provocações para as garotas risonhas.

E no entanto isso tudo vai acabar,
quando os anos ficarem mais profundos,
e o amor os trouxer ao desfile por outros motivos.

Mas acabei perdendo de vista o rapaz com o palito.
Esperem! Ali está ele, do outro lado do coreto,
separado dos amigos, envolvido na conversa com uma garota
de catorze ou quinze anos. Tento escutar o que estão dizendo
mas parece que estão apenas murmurando coisas – palavras tímidas de amor, provavelmente.
Ela é um pouco mais alta do que ele, e abaixa os olhos com calma para os olhos dele, tão sinceros.
Ela está de branco. A brisa agita seus cabelos longos e finos de encontro ao rosto moreno.
Ela está visivelmente apaixonada. O rapaz, o rapaz do palito, está apaixonado também:
os olhos dele o demonstram. Afastando minha visão deste casal
vejo que houve agora um intervalo no concerto.
Os transeuntes estão descansando, tomando refrigerantes no canudinho
(o refrigerante está numa grande jarra de vidro, e quem o serve é uma senhora de azul escuro),
e os músicos se misturam a eles, com seus uniformes brancos, e conversam,
sobre o clima, talvez, ou sobre como as crianças estão se saindo no colégio.

Vamos aproveitar esta oportunidade
e entrar na ponta dos pés nesta ruazinha transversal.
Aqui vocês podem ver uma daquelas casinhas brancas com enfeites verdes
que são tão populares aqui. Olhem! Bem que eu lhes disse.
Dentro está mais fresco à sombra, mas o pátio está banhado de sol.
Uma mulher idosa de vestido cinza está sentada, abanando-se com um leque de folha de palmeiras.
Ela nos convida a entrar no pátio, e nos oferece um refresco para beber.

“Meu filho está na Cidade do México,” diz ela. “Ele os receberia também se estivesse aqui. Mas ele trabalha num Banco, lá.
Olhe, este aqui é o retrato dele.”

E o rapaz de pele morena com dentes de pérola nos sorri naquela velha moldura de couro.
Agradecemos a ela sua hospitalidade, porque está ficando tarde
e precisamos olhar melhor a cidade, antes de irmos embora,
olhar a cidade de cima de um lugar bem alto.

A torre daquela igreja pode servir – aquela em cor de rosa desbotada, de encontro ao azul vívido do céu. Entramos lentamente.

O porteiro, de uniforme marrom e cinza, pergunta há quanto tempo estamos na cidade, e se estamos gostando.
A filha dele varre os degraus, e nos cumprimenta quando passamos rumo à torre.

Logo chegamos ao topo, e a teia quadriculada da cidade se estende aos nossos olhos.
Ali está o bairro nobre, com suas casas rosa e branco, e seus terraços cheios de plantas se esboroando.
Ali o bairro mais pobre, onde as casas são azul escuro.
Ali o mercado, onde os homens vendem chapéus e espantam moscas,
e ali a biblioteca pública, pintada em tons de verde claro e bege.

Olhem! Lá está a praça de onde viemos, onde o pessoal passeia.
Agora há menos gente por lá, agora que o calor do sol ficou mais forte,
mas aquele rapaz e a garota ainda conversam junto ao coreto.

E aquela é a casa da pequena senhora—
lá está ela no pátio, se abanando.

Como foi breve, mas como foi completa, a nossa experiência de Guadalajara!
Vimos o amor entre os jovens, entre os casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
Ouvimos a música, provamos as bebidas, olhamos as casas coloridas.
O que nos resta a fazer, senão ficar? Mas isto não é possível.

E quando a derradeira brisa refresca o topo da velha torre,
eu giro a cabeça, e os meus olhos
se voltam para o Manual de Instruções – que me fez sonhar com Guadalajara.