quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

4192) Spielberg 70 anos (22.12.2016)




Dias atrás o diretor Steven Spielberg completou 70 anos, e recebeu homenagens nas redes sociais. Fiquei pensando se valeria a pena escrever alguma coisa a respeito, não apenas porque todo mundo está falando, mas porque ele é um dos cineastas que eu mais presto atenção.

Não direi que é um dos meus 10 preferidos, nem dos meus 20, até porque não costumo classificar coisas dessa maneira. Mas simpatizo com a persona pública dele, com o modo como ele filma, com muitas idéias que ele expõe nas suas entrevistas...

Enfim, me veio a idéia de fazer pequenas comparações entre ele e outros diretores, para deixar mais claro, por efeito de contraste, as razões por que gosto de algumas coisas dele e não gosto de outras.

Spielberg x Kubrick

Nunca deixei de comparar os dois diretores desde que Spielberg herdou de Kubrick, após a morte deste, a realização do projeto I. A. -- Inteligência Artificial (2001), aquela fábula de Pinóquio futurista, o menino robô que sonha em virar menino de verdade. Os dois são cineastas que exploraram a FC mas se dão bem em qualquer gênero.

Para mim quem colocou de maneira mais precisa a diferença entre eles foi Terry Gilliam nesta entrevista: http://www.openculture.com/2011/11/terry_gilliam_on_filmmakers.html. O que estraga o cinema de Spielberg, diz ele, é a obrigatoriedade do final feliz, da resposta reconfortante, ingrediente hollywoodiano obrigatório.  Filme de Hollywood é como uma refeição que precisa terminar com doce. Mesmo quando aborda assuntos amargos, Spielberg cede a esse dogma dramatúrgico.

Diz Gilliam: “Há uma frase bem esclarecedora de Kubrick sobre A Lista de Schindler. Ele diz que é um filme sobre o sucesso: ‘vejam que cara fodão, ele salvou uma porção de gente’. Mas o Holocausto é uma história de fracasso, do fracasso da Humanidade em impedir o assassinato de seis milhões de pessoas”. 

Eu completaria o comentário de Gilliam dizendo que o uso da música revela muito bem o espírito de cada um dos dois. Kubrick já fez milhões de espectadores darem um pulo de susto na poltrona meramente por causa da música: a valsa das espaçonaves em 2001, a canção nostálgica que sublinha o holocausto atômico em Dr. Fantástico, a impressionante e assustadora trilha de De Olhos Fechados, a ironia de justapor tortura e Beethoven em Laranja Mecânica...

Já Spielberg nunca deixa de usar o amaldiçoado indutor-emocional feito de violinos plangentes e teclados exuberantes para sugerir amor, ternura, nostalgia... Falta pouco para Spielberg filmar Kafka e botar Richard Clayderman na trilha sonora.


Spielberg x Lucas

É quase inevitável citar os dois juntos, porque são amigos, parceiros, começaram juntos, e os dois se destacam na sua geração pelo fato de serem dois cinéfilos, dois caras que não gostam de bebida, nem de drogas, nem de farra (eu quase diria que não gostam de sexo): gostam de cinema e nada mais. (Leiam os capítulos sobre esses dois monges perdidos num carnaval de cocaína e surubas, em Como a Geração Sexo, Drogas & Rock-and-Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, Ed. Intrínseca).

Os dois estão para o filme de aventuras juvenis assim como Francis F. Coppola e Martin Scorsese estão para o filme policial de sua época. Enquanto Lucas realizava a primeira trilogia de Star Wars (em 1977, 1980 e 1983), Spielberg produziu sua trilogia de Indiana Jones (em 1981, 1984 e 1989) No espaço de uma década, uma geração inteira de adolescentes sofreu um brutal upgrade em seu conceito de filme de aventura.

Comparando os dois: Spielberg é um diretor de cinema completo, com qualidades e defeitos que são a cara do cinema do seu país e do seu tempo. Lucas não é bom diretor, mesmo tendo iniciado a carreira com dois filmes fortemente autorais e satisfatórios (a distopia FC THX-1138 e o rito de passagem adolescente de Loucuras de verão).

Lucas é um produtor e idealizador em grande escala, mas como diretor involuiu ao longo dos anos. A trilogia do meio de Star Wars é constrangedora. Spielberg tem algumas escorregadas brabas, mas volta e meia vem com um filme que merece respeito, como Minority Report.



Spielberg x Hitchcock

Meus filmes preferidos de Spielberg são Encurralado, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Caçadores da Arca Perdida, O Império do Sol e Minority Report. (Com a ressalva de que não vi vários filmes importantes dele – ainda preciso ver o Soldado Ryan e aquele dos agentes do Mossad executando os terroristas de Munique.)

Alguém definiu Spielberg como “um animal cinematográfico”, e eu interpreto isso no sentido de que ele pensa instintivamente em forma de imagens em movimento, é algo que está nos seus processos mentais básicos. Outros cineastas têm uma idéia e depois pensam em como transpor essa idéia para imagens: Spielberg já pensa em forma de imagem. É como certo tipo de jogador de futebol, como Romário e Messi – quando a bola chega no pé, ele já sabe tudo que vai fazer.

Hitchcock é a mesma coisa, elevada a um grau que chega ao preciosismo. Muita gente criticava Hitchcock por sacrificar tudo ao efeito de linguagem.  Ele sacrificava a verossimilhança da história, a psicologia dos personagens, a verdade factual, tudo pelo prazer de criar uma cena bem feita. Eu acho que ele não conseguiria filmar de outro modo. Ao escolher uma história, era a forma cinematográfica que aquela história ia assumir que lhe interessava. Spielberg também.

Houve um aprendizado, claro. O livro de Peter Biskind que citei aí em cima fala do terror de Spielberg durante a filmagem de Tubarão ao perceber que seus diálogos em campo e contracampo, filmados no próprio mar, davam saltos incômodos na tela porque a cada plano o céu estava com uma luminosidade diferente.

Mas mesmo nos seus filmes mais fracos a gente percebe como ele dominou rapidamente essa percepção instintiva da melhor maneira de posicionar e mover a câmera e os atores, mudar o enquadramento, destacar o som, fazer o corte, encaixar o momento do diálogo... 

É o cinema ideal?  Não, mas é uma depuração perfeita do cinema-de-efeitos norte-americano, que teve entre seus criadores, é claro, o inglês Hitchcock, o irlandês John Ford, o austríaco Billy Wilder, o alemão Ernst Lubitsch etc.









sábado, 17 de dezembro de 2016

4191) Como enrolar o leitor (17.12.2016)



Qualquer literatura que dependa de mistério e de suspense precisa mentir para o leitor, ou, na mais santa das hipóteses, despistá-lo. Precisa evitar que ele perceba de antemão as surpresas que o autor está armando à sua revelia. Isso nos sugere em primeiro lugar o romance policial de mistério, aquele tipo de enigma: quem cometeu o crime, como conseguiu fazê-lo, que motivos tinha para isso.

A literatura de suspense, o chamado thriller, precisa disso também, não porque haja nela propriamente um grande mistério a ser desvendado, mas dezenas de pequenas lacunas, omissões, coisas mal explicadas... É preciso que o leitor fique sem saber de dados essenciais. O efeito dramático dessa ignorância se reflete no protagonista, principalmente quando este está acuado, perseguido, na defensiva, enfrentando situações inesperadas e arriscosas; quando tem que tomar decisões fatais sem ter dados suficientes para isso.

O que significaram tal frase, tal atitude, tal gesto de alguém? O personagem, em perigo, é obrigado a examinar com intensidade tudo com que vai se defrontando no transcorrer da sua aventura. E o leitor também.

Cabe ao autor, então, ter seus recursos para, ao mesmo tempo em que faz jogo limpo com o leitor, obscurecer sua vista. Tem que dar ao leitor as informações miúdas, aparentemente desimportantes, que serão cruciais no desfecho. Mas dá-las assim como quem não quer nada, no meio de um diálogo, uma descrição, uma enumeração tediosa que o leitor lê, não valoriza, mas que recordará quando o véu se rasga e a explicação final cai no seu colo.

Agatha Christie, por exemplo, é mestra disso. Um dos meus exemplos favoritos é o daquele romance em que Poirot questiona (a propósito de um álibi, ou coisa assim) uma data qualquer, com um personagem. No aceso da discussão, o outo caminha até a parede e confere o calendário pendurado ali. Poirot queria apenas testar sua impressão de que o criminoso era míope; a data era mero pretexto.

Isso é uma bobagem, mas é como o drible de fingir que vai para um lado e ir pro outro. Por algum mistério, todos os zagueiros estão prevenidos contra ele, e ele continua funcionando.

Isaac Asimov, num dos seus formulaicos e divertidos mistérios dos “Viúvos Negros”, conta a história de um segredo de cofre ou coisa parecida, que não passava de uma fórmula, uma sequência de números e letras, datilografada nas velhas máquinas mecânicas (esta expressão não é tão redundante quanto parece) de 1976. No final do conto, ele mostra que o que vinha sendo lido por todos como um número 1 era na verdade uma letra “l” minúscula – pois nas máquinas antigas essa tecla era usada tanto para esse algarismo quanto para essa letra.

Diz Asimov: “Onde quer que alguma coisa, não importa o quê, possa ser vista de duas maneiras diferentes, eu tenho uma história de mistério na mão para ser escrita. Todo mundo vê do jeito errado, e só meu detetive vê do jeito certo.”

Isso é o Ovo de Colombo. Equivale a Garrincha avisar os russos que vai driblar pra direita e cruzar pro meio da área.

Outro exemplo: não quero citar diretamente a história original, para não dar spoiler, mas digamos que no auge de uma epidemia numa cidade moderna os médicos estivessem tentando desesperadamente identificar de onde provinha o contágio de tanta gente, e  alguém dissesse:

“O professor passou metade da noite checando os lugares onde os pacientes tinham estado, em busca de possibilidades de contágio. Oito eram estudantes na Faculdade X. Onze tinham estado na fila de uma mesma loja. Nove tinham trabalhado na restauração de um prédio e trinta tinham feito compras no Shopping Y.”

No fim do livro a gente fica sabendo que o lugar crucial para esse fato foi justamente o prédio restaurado; mas o autor soube deixar essa informação quase invisível. Primeiro, diluiu a informação vital no meio de três outras. Depois, indicou na tal restauração uma quantidade de “casos” menor que o exemplo anterior, e logo depois deu uma brusca subida, arrastando, para esse último registro, a atenção de um leitor que está calculando possibilidades numéricas de contágio.

Ou seja: a informação foi dada ao leitor, estava ali o tempo todo.  É essa arte de enrolar o leitor que o autor do romance ou conto de detetive compartilha com o mágico de salão: “Vou serrar esta pin-up ao meio! Vou explodir o cubo de água e ninguém vai se molhar! Vou tirar de dentro desta cartola uma coisa que não ocorreu a nenhum dos meus colegas!”

Tanto no mistério quanto no suspense, muita coisa depende da habilidade do autor em nos fazer ver as coisas de um modo X e logo depois demonstrar que não, a interpretação correta era Y. Um dos grandes defensores do “fair play” no romance policial (a atitude de dar ao leitor as informações necessárias para solucionar o enigma), John Dickson Carr, comenta isto num ensaio famoso (“The Grandest Game in the World”, escrito em 1946, em resposta a “A Simples Arte do Crime” de Raymond Chandler, de 1944).

Ao revelar a resposta do mistério, diz ele, o autor evoca detalhes que não foram corretamente interpretados pelo leitor:

“Seres humanos se movem ali, e não bonecos cheios de serragem, porque o autor nos descreveu suas inflexões de voz, e suas nuances de sentimentos, com o mesmo rigor com que descreveu a descoberta das tachinhas de metal  embaixo do sofá, por parte do Inspetor Hogarth. Ele não deixou de fazer um estudo dos seus personagens somente porque estava preparando seu enredo de trás para diante. Aquele giro com os olhos – mas é claro!  Aquela hesitação momentânea, quando Betty põe a mão no peitoril da janela, como para se apoiar – naturalmente!”.

E o leitor de romance policial atravessa o livro com o movimento pendular entre o “você não é mais esperto do que eu” e o “me engana que eu gosto”.








terça-feira, 13 de dezembro de 2016

4190) Algumas palavras sobre Gonzagão (13.12.2016)




Brincando, brincando, são 104 anos de nascimento de Luiz Gonzaga, e o pessoal não deixa de comemorar, lembrar, fazer homenagens. Que são sempre poucas, para a importância que teve o Rei do Baião como artista e como personalidade pública.

Anotei aqui algumas impressões sobre ele, alguns detalhes que sempre me vêm à mente quando o ouço cantando, quando o vejo dando entrevistas ou conversando nos palcos. Ou quando faço uma avaliação da importância que ele teve para a música.

Tecnologia
A invenção do baião no Rio de Janeiro foi (já escrevi sobre isso) um momento crucial na história da apropriação da tecnologia urbana pelos artistas populares nordestinos. Gonzaga e Humberto Teixeira tomaram de assalto um patamar tecnológico (gravadoras, rádios cariocas) que até então estava com porta trancada e segurança na frente. Com poucas exceções, e em fixas resttitas. Foi algo parecido com o que Leandro Gomes de Barros fez em 1895 quando se apropriou da tecnologia gráfica e começou a imprimir os poemas que antes eram recitados de memória ou copiados à mão. Foi parecido com Linduarte Noronha e sua equipe fazendo Aruanda no menos provável dos Estados onde pudesse aparecer um modo novo de fazer cinema brasileiro.

A ode à tecnologia está presente, principalmente, na canção “Respeita Januário”, onde ele reafirma orgulhoso o sua  conquista do poder high-tech da capital (a “sanfonona” de 120 baixos) e ao mesmo tempo o orgulho do artista popular: “Eu não sei pra que tanto baixo, porque espiando bem ele só toca em dois. Januário não. O fole de Januário só tem 8 baixos, mas ele toca em todos 8”. Tem toda uma teoria da Estética nessa música.

Respeita Januário:



Largueza
Gonzagão tinha um sorriso largo, franco, que iluminava o rosto em forma de lua. Sorriso de quem não tem medo. Mesmo já velho, abatido pela doença e pelos desgostos, sem poder andar direito, cantar direito, quando ele via algo ou alguém que o alegrava o sorrisão voltava inteiro. Não só o sorriso: o coração era largo, brigava mas perdoava, todo mundo cabia ali dentro. (O bolso era largo também.)  O sorriso parecia o abrir de uma sanfona. A voz era larga. Voz de quem já cantou muitas noites em cima de um caminhão, numa praça, e tinha que cantar mais alto do que a sanfona, porque não tinha microfone.

Boiadeiro:



Política
Poucos artistas se misturaram tanto com a política, não no sentido da militância, mas na convivência misturada que caracteriza o artista nordestino evoluindo entre coronéis, deputados, fazendeiros, prefeitos, vereadores , “homens por nós escolhidos para as rédeas do poder”. Qual o nordestino que nunca pediu um favor a um cidadão desses?  No tempo das vacas magras, quando passou o tsunami do primeiro sucesso, Gonzagão botou o trio no carro e saiu de Brasil afora, de cidadezinha em cidadezinha. Riscava na frente da Prefeitura, descia, avisava: “Diga ao prefeito que Luiz Gonzaga está aqui e queria humildemente uns minutinhos de atenção dele”. Descolava hotel, refeição, gasolina e cachê para aquela noite.

O povo de Exu lembra os longos esforços dele para a construção da estrada que ligou o município às cidades em volta. Gonzagão foi lobista, “lobista do povo”, como ele mesmo se apressaria a acrescentar. A convivência com políticos está no início mesmo de sua carreira. Ele contava que na época em que passava a noite tocando “In the Mood” na sanfona, na zona do Rio, um grupo de estudantes cearenses, tendo à frente o futuro ministro Armando Falcão, ficavam lá da mesa lhe pedindo para tocar as coisas do Nordeste. Esse toma-lá-dá-cá nunca mais parou.

Vozes da Seca:



Oralidade
Quem melhor do que Gonzagão cultivou, em cima do palco, a arte do monólogo entremeado às canções? Eram cinco minutos de conversa e uma música, oito minutos de conversa e outra música. Herdeiro da imensa informalidade dos forrós de candeeiro, para ele não tinha essa coisa do roteiro-de-ferro do show business. Ele aprendia tudo e botava no bolso para usar quando lhe desse na telha.

Muita conversa; e ao se juntar com parceiros igualmente loquazes como Zé Dantas, que era um tesouro de cultura oral, produzia canções-não-canções como “Sá Marica parteira”, que na verdade não tem nada a ver com a canção do show business (letra + melodia + arranjo), é um interminável monólogo puxado pelo resfolêgo da sanfona, cheio de efeitos sonoros de-boca (“piriri, piriri, piriri...”, “nheeeééém-pááá!”), sem primeira e segunda parte, sem refrão, um misto de teatro de palco e anedota radiofônica. Eita caminho largo para a música brasileira, caminho largo onde tão pouca gente já passou!

Samarica Parteira:



Gonzagão foi contraditório como todos os grandes artistas populares que saem da pobreza, chegam à riqueza, e insistem em continuar segurando ambas as pontas de um cordão tão comprido. Contraditório como quem, mesmo amado e endeusado por milhões, ainda se dirige a certas figuras com o tratamento respeitoso de “Seu Dotô”.  Contraditório ao assinar composições que só eram suas pelas beiradas, graças à adição de um riff de teclado, de um refrão concebido na hora de gravar, mas que o fazia com o coração aberto de quem sabia que aquilo ali, num sentido artístico bem profundo, era tudo seu.

Numa entrevista antiga, o repórter lhe perguntava no final como ele via toda a sua trajetória, a vida, a obra, tudo que realizou. E ele já velhão, cansado, tranquilo, alargou o sorriso e disse:

-- Isso estava escrito. Deus quis, aconteceu. Foi bom pra mim.  É bom pro povo.

Precisa mais?














domingo, 11 de dezembro de 2016

4189) O Livro do Juízo Final (11.12.2016)




Doomsday Book (que acabei de traduzir para a Suma de Letras) ganhou os três prêmios principais da FC norte-americana: o Hugo, o Nebula e o Locus. O livro é de 1992, e depois Willis publicou mais títulos nessa série de viagens no Tempo envolvendo historiadores de Oxford: To Say Nothing Of The Dog (1998), Blackout (2010), All Clear (2010) e outros.

O livro é contado em paralelo, do ponto de vista de Kivrin Engle, a estudante que viaja no Tempo, rumo ao passado, e do seu professor, James Dunworthy, um historiador cinquentão para quem a idéia de mandar uma moça de vinte anos à Idade Média é condená-la à morte e a algo pior do que a morte.

Kivrin salta para o século catorze. No ano de 2050, de onde ela saiu, primeiro a Universidade e depois toda a cidade de Oxford são varridas por uma epidemia de gripe, tão perigosa quando a famosa Gripe Espanhola que matou dezenas de milhões. Natal sob epidemia e quarentena. Todo mundo doente, instalações interditadas. Como trazer a estudante de volta?

Willis é uma escritora bem humorada, e confessa uma influência das comédias screwball norte-americanas dos anos 1930-40, de Preston Sturges, Frank Capra, Howard Hawks e outros. Isso não a impede de narrar com eficácia longas sequências trágicas. Qualquer manual de escrita criativa preparado nos EUA nos adverte que o mais importante é fazer com que o leitor se importe com o personagem, se preocupe com ele, acredite nele.  Na maioria de suas histórias, ela consegue.

Esse veio de comédia (menos presente em forma de piadas, e sim nas interações entre os personagens, e em certas ações absurdas que as pessoas não conseguem deixar de executar) ajuda a diluir o sentimentalismo que nos faz simpatizar com A e antipatizar com B. Seus tipos começam caricaturais, mas Kivrin, ao conviver com os aldeões do século 14, tanto confirma informações livrescas que trazia como quebra a cara porque nem tudo é como tem no livro.

Mas a História (não a ciência histórica, mas isso que as redes sociais de hoje chamariam “a Narrativa, o arco civilizatório da humanidade”), para acontecer, precisa que a donzela desobedeça à proibição do pai (ou as advertências do sr. Dunworthy) e mergulhe no bosque escuro. Isso fica ainda mais interessante quando sabemos que Willis já praticava em 1992 o que alguns chamam agora a “Lei de (George R. R.) Martin”: quanto mais querido um personagem, maior o risco de vida que ele corre.

Connie Willis é uma escritora de gênero, ou seja, formada dentro da cultura de pulp fiction, dos fanzines e clubes, dos colecionadores e fãs. Um dos seus contos mais emotivos mostra, em Portales (New Mexico), turistas do futuro que vão àquele remoto sertão do faroeste porque foi lá que viveu grande parte da sua vida Jack Williamson (1908-2006), o veterano criador da “Legião do Tempo” e “Legião do Espaço”. Os turistas parecem já saber os menores detalhes da vida do escritor. Há uma corrente de emoção, mas subterrânea, na medida em que percebemos o significado de alguns detalhes, e de outros não.

Por outro lado, há momentos no Doomsday Book em que ela parece ceder ao zás-trás do melodrama. Um personagem, em menos de um mês, passa por severas doenças que quase o aniquilam, e fica com o cabelo completamente branco. Pelo que entendo, o cabelo pode até embranquecer, mas a partir daquel ponto apenas, começando a crescer já branco. Os cabelos que eram de outra cor não embranquecem em pouco tempo, a não ser em Ponson du Terrail ou Michel Zevaco.

Há uma hipótese em favor disso, indicando uma reação do corpo a algo contido no pigmento do cabelo, de modo que os cabelos com mais pigmento tendem a morrer e cair, enquanto o que há de cabelos brancos se mantém.

Talvez isso seja um detalhismo bobo, como o dos leitores de Julio Cortázar, surpresos pelo fato do personagem chegar depois de meses viajando e ligar a ignição do carro, na garagem, logo de prima. Cortázar dizia: ele deixou uma cópia da chave com algum vizinho, algum amigo, para ficar usando o carro, ou para dar-lhe uma esquentada de vez em quando. “Meus romances são fantásticos,” dizia ele, “não é por detalhes assim, é por outra ordem de coisas.”









sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

4188) O dia em que John Lennon morreu (9.12.2016)



“Onde estava você... no dia em que John Lennon morreu?”

Eu estava de passagem pelo Recife.  Estava resolvendo detalhes da publicação do meu primeiro livro, Balada do Andarilho Ramón e Outros Textos, que graças à indicação de Cavani Rosas e à produção de Andréa Mota saiu pelas Edições Pirata (leia-se Jaci Bezerra e Alberto da Cunha Melo), com capa de Cavani. Foram duas impressões apenas, uma de 80 exemplares e outra de 300, o que faz dele uma peça de colecionador. (Eu, pelo menos, sempre que vejo um, compro. Tenho dois.)

Na véspera, Andréa reuniu um grupo de amigos e fomos de ônibus para Itamaracá, para ver a apresentação de um bumba-meu-boi que se estendeu noite afora.

Um bumba-meu-boi, para quem não sabe, é uma espécie de peça teatral dirigida a quatro mãos por Bob Wilson e Zé Celso Martinez. Uma viagem ao Reino do Vai-e-Não-Torna. Uma sucessão de quadros em que os atores se sentem à vontade para esticar os improvisos e as brincadeiras (entre si ou com a platéia) pelo tempo que lhes der na telha. Quando vai com duas ou três horas, você se pergunta se aquilo não vai acabar nunca. Quando chega por volta das seis ou sete horas ininterruptas, você tem vontade que aquilo não acabe nunca.

E num certo sentido filosófico, um bumba-meu-boi não acaba nunca.

A gente assistia, cantava, aplaudia, dançava, tomava umas e outras, ia no terraço da casa de uns amigos para um cochilo de uma hora (dormir mesmo era impossível, o barulho é muito), voltava...

No dia seguinte, no fim da tarde, pegamos o ônibus de volta para o Recife. E ao chegar no famoso Beco da Fome (que ligava a Rua 7 de Setembro à Rua do Hospício), me deparo com a vida real em forma de notícia.

Se bem me lembro era Samuel Costa, o “Galileu”, que estava sentado numa mesa na calçada e disse: “Oi, mataram seu ídolo e você tá aí todo tranquilo?”.

Eu não acreditei. Sentei na mesa do bar e pouco depois começou o Jornal Nacional. Desabei. Felicidade que também na mesa estava uma ex-namorada minha que tomou as rédeas da situação, me ajudou a assoar o nariz, me trouxe de volta ao regaço da existência, rolou um momento “won’t you pleeeease help me?...”

No dia seguinte fui para Campina Grande, e não preciso dizer que na casa de Rômulo Azevedo e Íris Medeiros a situação estava mais pra “Cry Baby Cry” do que pra “I Feel Fine”. E começou nessa época (durou umas duas semanas) uma enxurrada de piadas de humor negro onde a gente exorcizava o sofrimento diante da surpresa, da crueldade gratuita, do absurdo total daquele fato.

De meia em meia hora um de nós coçava a barba e mandava:

-- Pois é, velho, disse na TV que quando ele levou os tiros ele gritou: “But why?”, e o cara cantou: “ ’Cause I’m the chapman... yeeeeh, I’m the chapman...”

E todo mundo estourava na risada.

Por que isso?  Catorze anos depois, quando Ayrton Senna morreu, esse festival de gracejos dolorosos tomou o Brasil de ponta a ponta.

Maldo eu que é porque a piada tem várias funções terapêuticas.

Quando você pega a fonte central de sofrimento daquele instante e faz uma piada sobre ela, você reafirma seu poder de decidir o que é capaz de lhe derrubar ou não. Ficar de coca e cair no choro é confessar a derrota. Fazer piada com a própria desgraça é um sinal de que a briga ainda não terminou.

Por outro lado, o humor negro cauteriza. Por cima de uma dor-de-agressão ele chapa uma dor-de-cura muito mais dolorosa, mas originada em nós mesmos. Como se a gente dissesse: “Ah, você acha que isso aí doeu?  Apois eu tenho uma coisa aqui que dói o dobro.”  A ciência moderna me desculpe, mas eu não acredito em mertiolate que não queima.

E terceiro, o próprio Lennon era assim. Emotivo e ácido, sensível e cruel, menino carente e machão repressor, “Nowhere Man” e “Bad Boy”.

Ele tinha a coragem (que a maioria de nós, poetas, não ousa ter) de escancarar musicalmente diante do mundo inteiro suas carências, suas inseguranças, suas brutalidades, seu medo, seu machismo, sua procura às-cegas dessas duas coisas que parecem tão inconciliáveis: amor e amor-próprio.

Paul McCartney era um sorriso, Lennon era uma fratura exposta. Só quem ia fundo na escuta das canções e na leitura das vidas percebe como cada um trazia o outro em seu reverso. Daí, talvez, a especialíssima tensão-positiva que a parceria dos dois produziu.

Retomando: “Onde estava você... no dia em que John Lennon morreu?”

Eu estava no Recife publicando uma coletânea de poemas e canções onde, a certa altura, estão estes versos, da letra de uma música:

“E certa noite
a violência desce com seu punho selvagem
batendo em nossa cara e acordando a coragem
que a gente tinha, e nem sabia;
força tão funda, faca tão fria
brilhando na mão da nossa alegria;
tu me ensinaste, naquele dia,
menina,
em que eu vi nos teus olhos o Atlântico Blue”.








quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

4187) Os totalmente ricos (7.12.2016)




Segundo o Equality Trust, as 100 famílias mais ricas da Grã-Bretanha aumentaram sua fortuna em cerca de 57 bilhões de libras entre 2010 e 2016, um período em que a renda média do país sofreu uma queda. A Oxfam International afirma que o 1% mais rico da população mundial detém hoje mais riqueza do que os 99% restantes somados.

Pode não parecer, mas a riqueza absoluta é um tema recorrente na ficção científica. Não precisa envolver espaçonaves, alienígenas, robôs, pistolas desintegradoras. Estou falando da FC que especula o formato e a substância das sociedades futuras, partindo do nosso presente e exagerando alguns aspectos.

Riqueza é um deles. Para quem gosta de fazer FC sociológica, é interessante investigar, ficcionalmente, os limites do poder financeiro.

Alguém dirá que isso já é feito pelos romances mainstream tipo Sidney Sheldon ou Danielle Steel, a respeito de executivos milionários com suas esposas neuróticas entupidas de barbitúricos, suas amantes longilíneas e vorazes, suas tenebrosas transações em Wall Street, seu consumo conspícuo de bugigangas kitsch que custam os olhos da cara, suas férias em Aruba ou nas Bahamas.

A FC, no entanto, explora a ligação entre riqueza fabulosa + absoluta impunidade moral + alta tecnologia a serviço de quem pode investir pessoalmente nela algumas dezenazinhas, algumas centenazinhas de milhões.

Em “A Carícia” (“The Caress”, 1990) de Greg Egan (que incluí em Detetives do Sobrenatural, Casa da Palavra, 2014), um milionário recorre à engenharia genética para produzir seres híbridos e com eles reconstituir, usando criaturas vivas de carne e osso, uma pintura fantástica pela qual tem obsessão. Só isso. Ele quer ver o quadro “de verdade”; depois que vê, vai fazer alguma outra coisa.

Em “Death Do Us Part” (1997), Robert Silverberg descreve a vida de bilionários do futuro, capazes de prolongar indefinidamente a vida e a juventude. Ele começa o conto relatando a lua de mel dos protagonistas:

“Era o primeiro casamento dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida.  Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes.  E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Em “Neve” (“Snow”, 1985), de John Crowley (que incluí em Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, 2011), as pessoas ricas gravam suas vidas por completo através de uma “vespa”, um mini-drone com câmera que as acompanha por toda parte, para que nenhum dos preciosos momentos de suas vidas se perca para a posteridade.

No romance Holy Fire (1996) Bruce Sterling descreve minuciosamente como a ciência do futuro-próximo pode (a um custo financeiro imenso, claro) reconstruir uma pessoa idosa, rejuvenescendo-a – e o mundo se torna uma gerontocracia governada por indivíduos ricos, centenários, com aparência eternamente jovem.

O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta uma história parecida – a de uma mulher que tenta manter-se eternamente jovem e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira (“She”, 1887) de H. Rider Haggard.

Mais interessante do que a história em si, que é bem escrita mas sem grandes novidades, é a reflexão inicial de John Brunner sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.)

Diz ele:

“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB  de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)

“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.

“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”

Estes (dizia John Brunner, já nos idos de 1963) são os Totalmente Ricos.






domingo, 4 de dezembro de 2016

4186) Ferreira Gullar, 1930-2016 (4.12.2016)



A poesia de Ferreira Gullar me chegou através do LP de estréia de Caetano Veloso, onde ele cantava “Onde Andarás”, com letra do poeta. Um bolero dolente, e lá pelo meio virava uma espécie de tango onde o intérprete mudava surpreendentemente de voz, imitando Orlando Silva. Fiquei associando esta canção àqueles fins de tarde de domingo, quando o sol começa a se por e a gente está meio de bobeira, preparando a hora de voltar pra casa:

Onde andarás
nessa tarde vazia
tão clara e sem fim?
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema,
em que bar, em que cinema,
te esqueces de mim?

Gullar àquela altura (1968) já tinha publicado livros importantes, e não tardou para que eu me agarrasse à sua poesia, que sempre me pareceu, em seus melhores momentos, reunir o melhor de vários mundos: as cadências das redondilhas portuguesas (que ele explora tão bem quanto Cecilia Meireles), as imagens surpreendentes e inexplicáveis do surrealismo, a dicção das ruas que o aproxima das letras da MPB, o vigor imagético que (principalmente nas obras mais encorpadas, como o Poema Sujo) fazem o poema virar quase que um roteiro para uma viagem da câmera cinematográfica.

O Gullar teórico também marcou muito a minha geração, até porque ele fundamentava suas teorias sobre cultura e brasilidade não apenas na literatura, onde eu me movia mais à vontade, mas também nas artes plásticas. Tem dois livros dele que eu li intensamente (gostaria de reler agora) entre os 20 e os 30 anos, que foram Cultura Posta em Questão (1965) e Vanguarda e Subdesenvolvimento (1969). Me deixaram conceitos que aplico até hoje.

Nunca tive grande contato pessoal com ele, embora tenhamos participado juntos de mesas redondas, por mais de uma vez. Era um contato rápido, de cumprimentos, mas sem conversa, o que sempre lamentei.

Gullar era um esquentado, pelo que me dizem, e tem no currículo polêmicas famosas, primeiro com o grupo concretista de São Paulo, e mais recentemente com os governos do PT. Mas era também (os amigos me contam) um sujeito compassivo, humano, afetuoso. Era a impressão que deixava nas pessoas com quem conviveu.

Nós, paraibanos, devemos muito a ele, pelo extraordinário ensaio que fez sobre a obra de Augusto dos Anjos, quando estava no exílio. Publicado pela Paz e Terra em 1977, Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina é um desses casos em que um crítico, em meras 45 páginas, sem recorrer a grandes bibliografias nem a anos de pesquisa, mergulha direto nos textos, toca na sua medula e sai dali cheio de revelações.

Exilado em Buenos Aires, Gullar pegou o Eu de Augusto e de certa forma fez com que o lêssemos pela primeira vez. Uma façanha que eu só comparo à de Eric Auerbach, também no exílio, criando seu clássico Mimesis (1946) sem ter acesso a grandes bibliotecas, mergulhando direto na obra de Homero, Rabelais, Tolstoi, revelando  a mecânica entre a tradição coletiva e a inteligência individual dos autores.

Gullar teve uma passagem não muito bem sucedida pelo poema-protesto na série Violão de Rua, na época do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Quando li um dos seus “cordéis” (acho que foi João Boa Morte, Cabra Marcado Para Morrer, 1962), não achei ali nada de cordel. Estrofe, sílabas, esquemas de rimas, tudo era uma salada.  Me pareceu uma contrafação, uma tentativa de pastiche feita por quem não conhecia bem o original, e os resultados, anunciados como “cordel”, acabavam passando para os leitores (e futuros poetas) uma imagem distorcida.

Era sintoma da época, em que a politização da literatura levava os autores a recorrerem, meio às pressas, a modelos populares que eles tinham ouvido cantar sem saber ao certo onde. Algo parecido com os versos de Antonio Callado em sua peça Forró no Engenho Cananéia (1964), onde o grande romancista perde a mão ao lidar com as formas poéticas populares.

Quando esqueceu os modelos e falou somente por si, Gullar produziu alguns dos mais belos poemas em redondilha da língua portuguesa-brasileira.

 Se eu tivesse que pegar apenas uma obra dele, faria como muitos: escolheria o Poema Sujo (1976), um poema-livro autobiográfico onde o poeta, a pretexto de falar de si mesmo, faz um retrato cruel e sincero do seu país.

Não li nenhum dos seus livros de poesia mais recentes, e lamento. Quando esses livros saem, recebem boa cobertura da imprensa, que cita, transcreve. A gente fica conhecendo 10 ou 20 poemas republicados nos jornais e na web, e de certa forma se dispensa de ler o livro, o que é sempre um erro. Não importa. Cada poema lido reafirmava sem susto o poeta que eu sempre soube.





sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

4185) Os 100 anos do samba (2.12.2016)



(da esq. para a dir.: Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal)


Estamos comemorando 100 anos do samba, data estabelecida em função da gravação de “Pelo Telefone” de Donga, em 1916. O jornal O Globo reuniu um enorme painel de compositores e jornalistas para que cada um fizesse sua lista dos “dez sambas fundamentais”. Não me arrisco a voar tão alto, não conheço o gênero tanto assim. Mas acho que todo compositor de MPB (como é o meu caso) tem seus sambas-referência.
O número de dez é a camisa-de-força obrigatória pra neguinho não chegar com lista de 237. Vão aqui, portanto, dez sambas “meus”, canções que na minha vida são referência estética, poética, afetiva, autobiográfica. Sem ordem de preferência.

1) PRESSENTIMENTO (Elton Medeiros & Hermínio Belo de Carvalho)
Pra quem não liga o nome a pessoa, é aquela jóia que começa: “Ai, ardido peito... Quem irá entender o teu segredo? Quem irá pousar em teu destino? E depois morrer do teu amor?”. Não só como samba, mas uma das canções de amor mais bonitas da MPB. Começa melancólica, reflexiva, em tom menor, mas vai se animando, o tom modula para maior (“Vem, meu novo amor, vou deixar a casa aberta!...) e vai subindo, em modulações sucessivas, a melodia vai galgando patamares cada vez mais altos, até terminar numa última frase triunfalmente lá em cima: “Tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado de se ter felicidade!”. Olha o braço como fica.

2) SAUDOSA MALOCA (Adoniran Barbosa)
Os Demônios da Garoa eram minha banda favorita aos 12, 13 anos. As músicas tinham humor, pareciam histórias em quadrinhos com seus personagens, suas narrativas aparentemente ingênuas mas cheias de sutilezas. “Saudosa Maloca” é o hino nostálgico, estoico, resignado, de todos os sem-teto de São Paulo e do mundo, dos invasores, dos squatters. Adoniran foi um contemporâneo de Noel que viveu mais do que Noel, foi precursor de Vanzolini e de Itamar; ninguém compreende sua cidade se não passar por dentro da obra dele.

3) UM APITO NO SAMBA (Luiz Bandeira & Luiz Antonio)
Das tantas músicas de Luiz Bandeira eu podia ter escolhido a clássica “Na Cadência do Samba (Que Bonito É)”, que, em sua gravação com a orquestra de Waldir Calmon, virou hino do futebol brasileiro como tema musical dos jogos do “Canal 100”. Mas o “Apito no Samba” faz a ponte entre o samba das Escolas, regido a apito, e o samba orquestral dos anos 1950, quando o balanço sambista encontrou tantas orquestras (Tabajara, etc.) dispostas a concretizar o que Jackson do Pandeiro sonhou e fez: o samba cadenciado, melódico, fluente, encorpado com orquestrações complexas e balançadas como as de Glenn Miller, que Jackson curtia tanto. É o samba épico dos anos 1950.

4) OLÊ, OLÁ (Chico Buarque de Hollanda)
Antes de surgir “A Banda”, antes de clássicos como “Quem te viu, quem te vê” ou “Roda Viva”, foi essa a primeira música que eu vi cantada na TV por aquele rapaz de smoking, gravatinha borboleta e cara encabulada. Era um samba, mas não era um samba! Era uma canção com formato próprio, melodia insinuante cheia de acordes que a mão não achava. Era uma canção sobre o samba, mas não era a mera exaltação, era outra dicção, outra filosofia. Tinha horas que parecia até ficção científica (“é um samba tão imenso que eu às vezes penso que o próprio Tempo vai parar pra ouvir”). E era uma canção-de-boêmio, aquelas que levam o ouvinte madrugada afora e, como o “Mr. Tambourine Man” de Dylan, se encerram com o nascer do sol (“quem passa nem liga, já vai trabalhar”). E ainda por cima deixou de herança na fala brasileira a fórmula imorredoura de quem vai pra farra: “a noite é criança”.

5) ALVORADA (Cartola)
E por falar em dia amanhecendo, não sei de música que fale isso com maior beleza e simplicidade do que Cartola: “O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo... E a Natureza sorrindo, tingindo, tingindo...”  Cartola é um desses sambistas como Elton, Jamelão, Nelson Cavaquinho, que parecem sobreviventes de uma guerra e quando pegam o instrumento pra cantar falam de tudo menos da guerra. Falam que quando um dia começa lá no morro ainda não existe a tristeza, o dissabor. Sofreram todas as desilusões, mas a ilusão da beleza continua intacta. E o sol quando nasce, nasce embelezando o mundo, “tingindo, tingindo”.

6) SEI LÁ, MANGUEIRA (Paulinho da Viola & Hermínio Belo de Carvalho)
Na linha dos sambas filosóficos, nenhum me estremece tanto quanto essa homenagem do portelense Paulinho à verde e rosa, que Hermínio cobriu com versos definitivos: “E a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais – que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, os pés recusam pisar”.  Uma dessas canções “nascidas clássicas” como diz a crítica, e o simples fato de ser feita por um não-mangueirense nos faz acessar o veio profundo do samba, que não é somente um estilo de música, é “um modo novo da gente viver”. Que o futuro o escute.

7) LAPINHA (Baden Powell & Paulo César Pinheiro)
Eu quase furei o meu elepê da “Bienal do Samba” de 1968, com canções que ficaram na história (como “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola e “Pressentimento” de Elton) e foi vencida por Elis Regina com essa música de Baden Powell (que àquela altura eu já conhecia com “Canto de Ossanha”, etc.) e de um pirralho de 16 anos chamado Paulo César Pinheiro. Essa música sempre me deu uma emoção enorme e eu pensava: um dia vou morar no Rio e fazer samba. Ela tem uma estrutura clássica: primeira parte (ou refrão) tirada do folclore, e segunda parte “erudita”, fazendo uma variação melódica e poética, mais elaborada. E uma poesia que nos inundava: “ah, tanto erro eu vi, lutei, e como perdedor gritei: que eu sou um homem só, sem poder mudar, nunca mais vou lastimar...”

8) CONTO DE AREIA (Toninho & Romildo Bastos)
É um daqueles sambas praieiros onde Clara Nunes deitava e rolava: “É água no mar, é maré cheia, ô... Mareia, oi, mareia...” A letra cadenciada, melodia linda, cheia de imagens bonitas. É principalmente a estrutura desses sambas que me encanta, fugindo ao esquema primeira/segunda/refrão; não são estrofes longas de formato recorrente, mas guardam, dos sambas antigos do tempo de Donga, aquela estrutura de quadrinhas ou sextilhas superpostas, com células melódicas de quatro ou seis linhas que, quando se encerram, em vez de voltarem ao começo dão lugar a uma nova célula semelhante com letra nova, melodia diferente. Sambas encadeados, sambas-colagem, surpresas poéticas e melódicas que se renovam, um modo antigo e novo de fazer canção.

9) FESTA PARA UM REI NEGRO (Zuzuca)
Tinha que botar um samba-enredo de escola para representar o gênero. Qual, no meio de mais de mil? Este aqui (Salgueiro, 1971), o famoso “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá”, é um dos meus favoritos, inclusive porque lembra o auge da “Batucada de Lanka” dos nossos fins de semana em Campina, regados a samba, forró, suor e cerveja. Eita tempo bom; que o digam Biliu de Campina, Tadeu Mathias e Elba Ramalho, cujas carreiras começaram ali. O samba de Zuzuca é samba pra levantar arquibancada, com sua letra lembrando os velhos congados, estrutura simples (primeira + refrão), aquela clássica subida onde um milhão de pessoas eleva a voz em uníssono, até quem não sabe a letra (“que beleza...”), e o carimbo africano das sonoridades “ê / á” (que Chico aliás já evocara em “Olê, Olá”).
Com a Velha Guarda do Salgueiro: https://www.youtube.com/watch?v=2qvDJ9BXhA0

10) CONVERSA DE BOTEQUIM (Noel Rosa & Vadico)
Pois é, faltava Noel. O samba urbano, refinado, afiado. Samba crônica, como Lenine insiste em lembrar: o samba que fotografa um momento da História. Riqueza de rimas, de vocabulário, de detalhes fotográficos, da cenografia de época, da pequena malícia das relações de classe. O cotidiano do malandro folgado mas sem maldade, o bon-vivant, o flâneur de mãos nos bolsos indo de cabaré em cabaré, de café em café, esticando a noite para que o dia não amanheça. A noite de Noel foi curta, 27 anos somente, mas ainda hoje transborda para dentro das nossas.


Não é nada, não é nada, são dez sambas no meio de milhares. Se eu quiser, amanhã apago essa lista e faço outra tão-boa-quanto. Pra quem gosta de ouvir, de cantar, de fazer, de analisar samba, existe uma floresta amazônica de alegrias e tristezas a serem aprendidas, impregnadas, depuradas, sublimadas em forma de música. Viva o samba centenário! Tomarei uma em sua homenagem.














terça-feira, 29 de novembro de 2016

4184) O plágio involuntário (29.11.2016)




Um dos exemplos clássicos de plágio inconsciente é o episódio narrado pelo filósofo Nietzsche, incluído no seu Assim Falou Zaratustra (1883-1891). Ele diz:

Nesta época em que Zaratustra residia nas Ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia nitidamente: “É tempo, é mais que tempo!”. Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que era Zaratustra... “Vejam!”, disse o velho timoneiro, “vejam Zaratustra que vai para o inferno!” (capítulo XL, “Grandes Acontecimentos”).

Em O Homem e Seus Símbolos (Ed. Nova Fronteira, trad. Maria Lúcia Pinho), Carl Jung mostra que esse trecho corresponde quase exatamente a um trecho de um livro publicado meio século antes da obra de Nietzsche; e depois verificou-se que uma irmã de Nietzsche lembrava de terem lido o livro com essa cena. (Na qual são dois os homens que passam voando por cima dos marinheiros; sem dizer nada, eles mergulham na cratera do vulcão e ali desaparecem.)

Jung questiona os processos que levam uma imagem assim a ficar guardada na memória e depois ser evocada no ato da escrita, apresentando-se com tal força e tal poder de convencimento que nem por um segundo o escritor duvida ser ela de sua autoria.

Ou talvez duvide, como Paul MacCartney, que passou mais de um ano tocando “Yesterday” para Deus e o mundo e perguntando se conheciam aquilo. Todos diziam que não, e ele acabou gravando a música – e correndo o risco de pegar um processo bilionário. Processo não houve, mas alguns anos atrás descobriram uma canção antiga do repertório de Nat King Cole (que Paul provavelmene ouviu na época de garoto), com uma modulação parecida, e com algumas das frases e rimas contidas na letra.

Não é um plágio. Até porque são canções diferentes, que durante alguns trechos breves coincidem exatamente e logo voltam a se separar por linhas melódicas distintas. Pode haver aí o plágio inconsciente, ou o que Jung chama de criptomnésia, memória oculta. Oculta até do dono, que não sabe que a possui.

Freud mostrou, em seus estudos sobre os sonhos, como nossa mente adormecida cria seus filminhos oníricos através de processos de fusão, substituição, transposição, etc.  Nossa memória-desperta parece recorrer também a esses artifícios, quando o que tenta evocar não se apresenta instantaneamente. Quando não acha, ela inventa alguma coisa lançando mão do que efetivamente achou em suas buscas randômicas.

Howard Schneider, professor de jornalismo na StonyBrook University (Nova York), lembra aos seus alunos que nossa mente gosta de misturar coisas que estavam separadas. Diz ele que acontece muito, por exemplo, do indivíduo ouvir um programa do horário eleitoral intercalado a um telejornal, e depois referir-se a algo que viu na propaganda política, pensando ter visto no noticiário da imprensa. (Deve ser por isto que existe a tradição de intercalar aos telejornais os drops de propaganda partidária. Para que na memória do eleitor tudo pareça ter sido escutado através de uma “fonte imparcial e objetiva”, criatura mitológica na qual muita gente acredita.)

Algumas pessoas me consideram um cara de memória excepcional, porque tenho certa facilidade para nomes, datas, versos, etc. O problema é que “boa memória”  não é uma qualidade que se aplica a tudo. Sou capaz de conversar durante duas ou três horas com alguém que acabei de conhecer, olhando no rosto, e não reconhecer a pessoa um mês depois, se ela não disser quem é. O que já me valeu ser considerado grosseiro, metido a besta, arrogante, etc. Não é isso. É um “branco” mesmo. Para usar uma metáfora contemporânea: era algo que estava na memória-RAM mas por um motivo ou outro deixei de “salvar no HD” e se perdeu.

Ainda não cheguei ao ponto de um amigo meu, que certa vez saiu com uma garota, e quando estavam na cama comentou: “Dias atrás saí com uma garota que tinha uma tatuagem igual essa tua.”  Ela disse: “Era eu, idiota.”

Já cometi lapsos absurdos de memória. Uma vez fiz um show em São Paulo juntamente com Lenine e com Gereba (ex-banda Bendengó). Lá pelo meio, eu e Lenine improvisávamos um “mourão voltado”, gênero de repente em que um cantador faz um verso perguntando, e o outro faz um verso respondendo. Eu e ele improvisávamos assim, e Gereba nos acompanhava ao violão. A certa altura, fechando a estrofe, Lenine perguntou: “ E pra que serve um violão?”  Eu apontei Gereba e disse: “Pra quem é predestinado...”  E fechamos com o refrão em uníssono: “Isso é que é mourão voltado / isso é que é voltar mourão”. Aplausos mil.

Dez anos depois, encontro Gereba novamente em São Paulo e ele me dá um CD com a gravação do show. Quando chegou nesse trecho, constatei que os versos estavam lá, mas fui eu quem fez a pergunta, e foi Lenine quem respondeu.

Por isso, dou sempre a todos o conselho antigo que me foi dado pela minha mãe: “Des – con – fi – e!”.






domingo, 27 de novembro de 2016

4183) Uma vez numa terra remota (27.11.2016)




“Uma vez, numa terra remota, havia uma donzela. Ela morava perto de uma grande floresta.  E o pai dela disse: ‘Não entre no bosque’. Mas ela era uma menina má e não obedeceu. Ela queria saber o que tinha lá dentro. Ela achou que ia poder entrar lá somente um pouquinho. A floresta é muito escura, e cheia de barulhos que dão medo. A donzela falou assim consigo mesma: ‘Eu não gosto disto aqui’, e ela tentou voltar, mas ela não conseguia mais avistar a trilha por onde viera, e estava ficando de noite, e de repente alguma coisa pulou em cima dela! Era um urso. E o urso disse: ‘O que você está fazendo na minha floresta?’ ‘Oh, senhor Urso, por favor não me coma!’, disse a donzela. ‘Eu me perdi e não estou conseguindo voltar para minha casa.’ Agora: o urso era um urso bom, mesmo tendo cara de cruel, e ele disse: ‘Eu posso lhe ajudar a sair de dentro da floresta’, e a donzela disse, ‘Mas como? Está tão escuro’, ‘Bem, então vamos perguntar à coruja’, disse o urso, “ela pode ver no escuro’. Ela continuou a falar, inventando à medida que avançava, sentindo um estranho conforto naquilo.

O parágrafo acima é uma síntese de uma cena aparentemente banal, uma moça de vinte e poucos anos, solteira, botando para dormir um menina de cinco, à qual se afeiçoou. A autora é Connie Willis, uma escritora muito popular e premiada nos EUA, autora de contos ora engraçados, ora sentimentais, mas sempre com leveza. Este romance, O Livro do Juízo Final (Doomsday Book, 1992) deverá sair pela Suma de Letras, com tradução minha.

Willis tem mais formação literária do que científica. Não quer dizer que ela não entenda de ciências, mas quando ela inventa aqui no seu romance uma máquina do tempo, ela, como H. G. Wells, fornece apenas informações genéricas sobre como a máquina é posta a funcionar. Não se dá o trabalho de explicar como se obtém um resultado tão espantoso, nem parece perder muito sono com isto. (Em termos das redes sociais de hoje, Willis é uma escritora de Humanas.) 

Seu interesse é o paralelismo entre os tempos, as rimas de pequenos acontecimentos ou dramas refletindo um ao outro através dos séculos, e alguém sendo capaz de perceber isso. Esta sua série de narrativas sobre viagens temporais leva historiadores de Oxford a diferentes momentos da História. Uma espécie de Túnel do Tempo.

“Firewatch” (1982), o conto que deu origem a esta série, mostra um desses estudantes vindo do futuro para ajudar a proteger a Catedral de São Paulo, em Londres, durante os bombardeios alemães na II Guerra.  

Nesse conto inicial já se menciona, meio indiretamente, uma aluna chamada Kivrin, que acabou de chegar da Idade Média, bastante abalada. Doomsday Book é a narração do que aconteceu a essa personagem citada de passagem em alguns parágrafos do “Firewatch”

O parágrafo transcrito no começo deste texto, a história da donzela que mergulha na floresta escura, é a própria história da mulher que a está contando, uma estudante de História na faculdade de Brasenose, em Oxford, que recua ao século 14 para examinar as condições de vida do campesinato inglês durante a Guerra dos Cem Anos.

Kivrin Engle, a estudante, traz um sobrenome em homenagem a uma famosa autora de viagem temporal, Madeleine l’Engle, autora do clássico juvenil A Wrinkle in Time (1963), livro que a geração de Willis (ela nasceu em 1945) provavelmente leu na juventude.  

Kivrin tem algo de quase Nikita, quase uma Lara Croft crononauta. Estuda plantas medicinais, latim, religião, equitação, toma umas quinze vacinas diferentes, passa o pente fino na história e na geografia da época. Instala um tradutor simultâneo no cérebro. Instala um minigravador camuflado no pulso e ativado ao pressionar juntas as palmas das mãos. Desse modo, ao se misturar ao mundo do passado, poderá gravar seus relatórios enquanto dá a impressão de estar rezando em voz baixa.

Em alguns momentos, Kivrin me lembrou também a Psicóloga, de outro livro que traduzi, o Aniquilação (Ed. Intrínseca) de Jeff VanderMeer. Uma mulher jovem, expedita, imaginativa mas atenta, capaz de se virar sozinha, e um tanto introspectiva. Disposta a saltar num abismo e saber que, mesmo que continue viva, essa pessoa que ela é agora deixará de existir durante essa experiência.