sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

4037) Piadas científicas (30.1.2016)



A professora adverte um aluno: “Joãozinho, a sua redação ‘Meu cachorro’ está igual à do seu irmão mais velho.” O pirralho: “Claro, professora, o cachorro é o mesmo.”  (A lógica subjacente à piada é a mesma lógica dos economistas que aplicam uma fórmula e depois dizem que “o país é o mesmo”.)

Lucy, numa tirinha de “Peanuts”: “Só em problemas de matemática você pode comprar 60 melões e ninguém perguntar o que diabo há de errado com você.” (Provavelmente para Lucy a mentalidade humana, social, é mais vívida do que a mentalidade abstrata e operativa. Para ela tudo tem que ter significado humano. Se lesse livros policiais não leria S. S. Van Dine, leria Raymond Chandler.)

Dois irmãos preguiçosos estão deitados em redes, na sala da fazenda. Um deles pergunta: “Será que está chovendo?”. O outro diz: “Assobia chamando o cachorro, e vê se ele está molhado.” (A física subatômica faz isso. Na impossibilidade de presenciar certos eventos físicos, eles provocam os eventos, inserem neles um tipo de partícula que já conhecem, e depois examinam o que aconteceu com ela.)

Dois capiaus estão ao entardecer, mastigando talo de grama à beira de uma lagoa, quando um enorme dragão verde-azulado surge no ar e voa rumo sudoeste. Os dois ficam em silêncio, cada um pega outro talo de grama. Outro dragão surge, amarelo-alaranjado, cuspindo fogo, e voa como uma flecha rumo ao sudoeste. Um capiau diz: “Parece que o nim deles é pralá.” (O cientista pode estar interessado apenas na reiteração de tais ou tais fenômenos, mesmo que não tenha uma explicação sensata para eles.)

Essas piadas lembradas meio aleatoriamente são de fato científicas? Não foram pensadas assim, é claro. Toda piada é um pulo do gato, uma queda de asa, uma virada de mesa, uma dobrada de esquina a trezentos por hora, com segurança total. Ela é pensada em função da puxada-de-tapete final, a chamada punch line, que não tem necessariamente que provocar gargalhadas. Às vezes basta um “Ha!” de surpresa, mas dum tiro só, acusando o golpe. Piadas assim são exemplos de raciocínios abstratos dentro de uma situação fácil de entender, com uma lógica que parece absoluta até a virada final.

Um cara abriu uma barbearia no centro da cidade e botou; “A melhor barbearia do país.”  Um mês depois outro sujeito abriu outra, na mesma calçada, e anunciou: “A melhor barbearia do mundo”.  Com mais algumas semanas, um terceiro, metros adiante, inaugurou a sua, proclamando: “A melhor barbearia da rua”. (Na verdade, filosoficamente acho que ele criou um impasse, um loop moebius que volta sempre ao ponto de partida. Mas teatralmente quem ganhou o round foi ele.)




quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

4036) "O original de Laura" (29.1.2016)



Antes de morrer num hospital, em 1977, Vladimir Nabokov vinha trabalhando num romance, que acabou ficando incompleto. Ele afirmara já ter a história pronta na cabeça, mas seu método era meticuloso, punctilioso. Costumava escrever à mão, em pequenas fichas ou cartões, pautados, com lápis de grafite. Aqui e ali, ele borra linhas inteiras com o lápis, ou apaga com borracha palavras específicas, e sobre a mancha ele desenha outra, com letra miúda, clara, decifrabilíssima. Escreve lá no seu impecável inglês, mas como manuscreve com frequência as letras soltas, mesmo quando cursivas, isso dá a um texto-de-próprio-punho seu uma aparência meio cirílica.

Digo isso porque o que ficou do romance O original de Laura foram mais de 100 desses cartões, com fragmentos de várias cenas, diálogos, monólogo interior de um personagem, etc. Uma coisa ainda rarefeita demais para poder ser chamada de romance, mas como é de um conhecido enigmista, os demais enigmistas arregaçaram as mangas. Nabokov tinha pedido que queimassem os cartões, se o livro ficasse inacabado. A viúva não os queimou enquanto foi viva. O filho único e herdeiro, Dmitri Nabokov, publicou. Perguntaram-lhe com que autorização, e ele disse: “Sonhei com meu pai. Ele me disse que tudo bem.” 

A edição brasileira (Objetiva/Alfaguara, 2009, trad. José Rubens Siqueira) traz na página par, à esquerda, a reprodução de cada um dos cartões, e na página ímpar à direita a tradução do que está escrito nele.  Com fidelidade às peculiaridades de grafia, espaços em branco, disposição espacial das frases, etc.

Raymond Chandler cortava folhas tipo A4 horizontalmente, o que lhe dava dois retângulos de papel que, na máquina de escrever, viravam sua unidade básica. Cada segmento desses tinha sua própria unidade, mesmo que parte de uma cena maior (de ação, de diálogo, de narração, etc.).  Mas Chandler era uma metralhadora na máquina, ao passo que Nabokov parece ser aquele cara que anda com umas fichas e um toco de lápis com borracha no bolso do paletó. Os tempos mortos da vida já são muitos. Bora trabalhar.

Ah, sim, o livro é bom? Bem, tem muitos detalhes bem trabalhados, as frases surpreendentes, os adjetivos mordazes. Isso tudo pode estar presente numa obra mesmo que não haja história nenhuma, ou somente uma nesga dela, como é o caso. Mas não deviam ter queimado?  Não. Queimar é uma pena excessiva. Se o livro for ruim, publicar já é punição suficiente. O livro tem uma interessante subtrama, meio Colin Wilson, dos exercícios de um sujeito para criar uma imagem mental de si mesmo, imagem tão real que ele possa, obliterando-a na mente, obliterar-se no mundo.



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

4035) "O Soneto de Arvers" (28.1.2016)




Meu pai tinha esse livro, uma compilação de Mello Nóbrega, quando eu estava na minha fase áurea de memorização de sonetos, entre os dez e os quinze anos. Não só sabia a diferença entre decassílabo e alexandrino como podia criar exemplos passáveis de cada um. Nas primeiras vezes em que folheei a obra ela me fascinou porque os sonetos eram todos diferentes e todos iguais. Um dia parei para ler a sério e percebi que o soneto era um só, escrito pelo poeta francês Félix Arvers, e o que havia ali eram algumas boas dezenas de traduções portuguesas e brasileiras. Além de uma lista de paráfrases, paródias, possíveis citações, etc.  São no total 130, ao que parece.

O soneto de Arvers é merecidamente famoso como soneto de salão: “Tenho na alma um segredo, e um mistério na vida...”  O poeta conta sua paixão por uma mulher, à revelia dela, e diz que um dia ela própria, a inspiradora desses versos, irá lê-los num livro, e pensará consigo: “Quem será essa mulher?”, e não compreenderá. É um bom soneto, que entre nós poderia ser de um Bilac ou de um Guimarães Passos.

Uma visão radical da tradução literária pode nos sussurrar que um soneto em francês não é mais do que um conjunto de instruções, levemente esboçadas, para alguém escrever um soneto semelhante em português. Foi o que fizeram nossos tradutores de Félix Arvers. Uns mexiam na estrutura das rimas, outros a desobedeciam por inteiro, outros eram mais realistas que o rei. Trechos longos eram revirados de dentro pra fora para fazer tempos verbais coincidirem. Mas os elementos estavam todos ali. Havia uma coisa elástica, inquebrável, complexa, era uma idéia que vinha expressa de cem maneiras diferentes e parecidas. E essencialmente iguais, em termos do tipo de impacto a que um soneto se propõe. O soneto é como o conto para Cortázar: tem que vencer por nocaute. Ainda mais porque o soneto tem tamanho fixo, previsível, todo mundo sabe quando vai terminar.

Na mesma época eu tinha lido sobre a Pedra de Roseta, na História do Mundo Para as Crianças de Monteiro Lobato. O livro sobre o soneto de Félix Arvers era uma pedra-de-roseta poética. Quando eu não sabia uma palavra do original francês, era só procurar seus correspondentes topológicos nas traduções, e eu tinha em mãos um dicionário poético. E quando eu abria o livro, minha leitura não estancava na folha aberta à minha frente, ela penetrava como um laser (que não existia ainda) nas páginas amontoadas embaixo e via a estrutura da historieta de Arvers coleando, bruxuleando, saltando de página em página e se recompondo, inteira ou cheia de ruídos, em cada nova versão.




terça-feira, 26 de janeiro de 2016

4034) Os namorados de Mamãe (27.1.2016)



Quando é domingo de sol eu sempre tenho uma certa esperança de que ao se abrir a porta do quarto dela seja Alvinho, que sempre acorda de bom humor e geralmente me chama para jogar bola na praia durante uma hora, meia hora, enquanto Mamãe se levanta e faz todo aquele ritual dela, de tomar um café vagaroso sem registrar a presença de ninguém, folheando o jornal, lendo como se aquilo lhe custasse o maior esforço, dizendo: “Hã. Hum.” Alvinho é gente fina, mas até agora só veio nos sábados à noite.

Quando não é ele, é Dr. Rui. Esse é mais idoso, mais devagarzão, sempre levanta com Mamãe, preparam tudo juntos, trocando instruções, receitas, o tempo da torrada, o modo de tampar a frigideira para deixar o ovo bem estrelado, coisa e tal. Parecem um casal casado. Ele sempre me cumprimenta, lembra do meu nome, pergunta como estou indo nos estudos, eu sempre digo a mesma coisa, nem lembro o que.

Nos últimos meses tem aparecido um tal de Antonino, que eu não gosto muito. Eu estudo à tarde e nem vejo mamãe sair pro trabalho, mas às vezes levanto e ele está na sala, todo instalado, ouvindo música, mexendo nas revistas, comendo, bebendo, como se estivesse na casa dele. E quando conversamos os três, em geral durante o almoço, ele fica dizendo umas coisas sem a menor graça e batendo com o cotovelo em mim, como se dissesse: “Bora, rapaz, dá uma risada, afinal nós somos ou não somos dois malandrões? Ra ra ra.”

Pra ser desse jeito eu prefiro que seja como Seu Elias, que é tímido que dá pena, fica meio longe de mim com uma expressão de culpa, nunca me deu um bom dia, nunca me olhou nos olhos, e os únicos contatos que a gente mantém são quando estamos na mesa e um estende a mão e o outro se apressa e coloca ao alcance aquilo que está sendo procurado: o açúcar, a bolacha, o leite; e esses pequenos gestos quase secretos acabam sendo uma espécie de fumar-o-cachimbo-da-paz.

Mamãe se faz de doida mas presta atenção em tudo. 

Teve o caso de Dorival, que passou semanas vindo e deixou para sempre de vir depois que Mamãe o flagrou tentando me fazer botar um cigarro na boca. 

Teve o problema com aquele malucão que cismou que eu tinha tirado um dinheiro da carteira dele, Mamãe teve que fazer um verdadeiro histórico do que eles tinham gasto durante a noite, táxi, conta num bar, no outro, cigarro, dogão na calçada, táxi de novo, ele acabou me pedindo desculpas, mas nunca mais apareceu. 

Ou aquele louro de óculos, nem lembro o nome, que falou uma vez: “E esse moleque, precisa ficar aqui, vigiando a gente? Vai lá pra fora, vai, seu merdinha.”  Mamãe soltou da boca o canudinho do refrigerante e disse: “Pra fora vai você.  Filho da puta.”





segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

4033) O editor de FC (26.1.2016)




Faleceu dias atrás nos EUA, o editor e crítico David G. Hartwell, aos 74 anos, aparentemente de uma queda acidental em sua casa. Hartwell foi um desses editores que começam bastante jovens, têm a sorte de ser contemporâneos de alguns autores brilhantes, e têm discernimento para encaminhá-los ao seu público. Ele era fundador e editor de The New York Review of Science Fiction, uma das melhores publicações de críticas não-acadêmica, com cobertura variada da FC, fantasia e horror.

Hartwell era mais inclinado à FC grandiosa, cósmica, FC pesada. Isso não o impedia de ser um grande fã de Philip K. Dick. É dele uma das frases que acho mais emblemáticas sobre o que é a obra de PKD. Perguntaram-lhe: “Quero ler Dick, qual o melhor livro para começar?” Ele disse: “Qualquer um. Em cada livro de Dick, mesmo os mais irregulares, todos os grandes temas dele estão presentes, de uma forma ou de outra. Qualquer um é uma boa porta de entrada.” E é exatamente isso.

Alguém devia escrever uma história da FC clássica através dos seus editores. Primeiro, Gernsback assentando as fundações do edifício. Em seguida, Campbell criando uma Golden Age em volta de si mesmo durante duas décadas. Depois a queda dos pulp magazines, a ascensão do formato digest: Horace Gold ( Galaxy), Boucher & McComas (Magazine of Fantasy and SF). A FC começou a ganhar malícia, ganhar um certo humor e um simpático cinismo urbano que começava a suplantar o simpático idealismo rural.

Vemos por um lado, nos anos seguintes, o espírito fã-histórico de Donald Wollheim como editor, e as aventuras anticonvencionais de Judith Merrill, que na sua seleção de melhor FC do ano incluía contos absurdistas, esquetes de autores famosos, poemas, trechos de romance. Nem tudo era FC, mas tudo ali dialogava. Dizem que uma editora muito importante foi Cele Goldsmith, que editou Amazing Stories, Fantastic, lançou muita gente boa.

Frederik Pohl, que editou Galaxy também, foi agente, mexeu a FC por todos os lados. Suas memórias são ótimas, o modo sem-nonsense como ele passa através das coisas. Outro grande editor foi Terry Carr, com as melhores antologias dos anos 1980.  No lado mais conservador, da FC tradicional, havia Lester & Judith del Rey criando sua própria empresa. No lado mais aberto a literatices, Gardner Dozois à frente da Asimov Magazine, e os sucessivos editores do Magazine of SF and Fantasy: Edward Ferman, Kristine Kathryn Rusch, Gordon van Gelder... Sem falar em Michael Moorcock fazendo um terremoto sozinho com New Worlds, na Inglaterra. Vivam os editores, os escolhedores de boas histórias para o nosso deleite e instrução.





sábado, 23 de janeiro de 2016

4032) Eu me lembro 8 (24.1.2016)



Eu me lembro que nos velhos álbuns de figurinhas como Céu e Terra cada envelope trazia 4 figurinhas, ou duas figurinhas duplas, ou uma figurinha quádrupla. 

Eu me lembro que nos cinemas as cadeiras eram de madeira e a gente se levantava, erguia o assento e depois o jogava pra baixo com força, fazendo “pááá!” quando o filme demorava a começar ou quando a fita quebrava. 

Eu me lembro dos museus de cera itinerantes que visitavam Campina e sua exposição de púbis masculinos e femininos com exemplos de todas as doenças venéreas imagináveis.

Eu me lembro de como era deserta e lamacenta a área entre o Açude Velho, a Maternidade e a feira, e de como um dia, indo com alguém ao encontro de minha mãe, enterrei a perna até o joelho num lamaçal preto e perdi um chinelo ou alpercata. 

Eu me lembro dos espelhinhos redondos de bolso e dos pentes Flamengo, e de como eu só me penteava com o lado mais cerrado do pente (hoje faço o contrário). 

Eu me lembro da correria dos meninos da rua para caçar tanajuras e fritá-las com óleo, e do nojo que eu sentia só em me imaginar comendo aquilo.

Eu me lembro que nos picolés vendidos nos carrinhos da rua o de “rainha” era o único com sedimento acumulado na ponta (no caso, a castanha moída). 

Eu me lembro que na lata do óleo vegetal “Don-Don” aparecia uma mulher com chapéu de mestre-cuca junto a uma lata idêntica, em tamanho proporcional, e assim por diante, numa construção-em-abismo. 

Eu me lembro que antigamente a gente podia ver duas ou mais sessões seguidas do mesmo filme pagando somente um ingresso, bastava ficar dentro do cinema.

Eu me lembro do Açude Novo por trás do atual Teatro Municipal, domingo de sol, e dezenas de guris, o tempo inteiro, subindo numa espécie de amuradazinha e depois tibungando dentro dágua. 

Eu me lembro do cheiro do linimento que minha avó Inez esfregava nas pernas antes de dormir, e que voltei a sentir quando entrava no vestiário do Treze, no estádio Presidente Vargas. 

Eu me lembro do restaurante Pérola, em frente ao colégio Alfredo Dantas, e de como eu olhava da calçada os guardanapos de pano branco enfiados nos copos e achava aquilo o máximo da elegância.

Eu me lembro de quando a gente pisava numa urtiga e tinha que na mesma hora mijar em cima para diminuir a coceira e a dor. 

Eu me lembro do Grand Canyon, o enorme buraco cavado pelas enxurradas que desciam do Alto Branco, a vinte metros de nossa casa. 

Eu me lembro de quando um amigo de meu pai esqueceu um par de óculos escuros lá em casa, e uma hora depois minha mãe me mandou na bodega, eu botei os óculos, todo vaidoso, e quando passei na esquina um guri falou: “Minha vó tem um oclo igual a esse.” 





sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

4031) O poder do real (22.1.2016)



Conta-se que mais de meio século atrás, houve em Campina Grande uma demonstração do Simca Tufão, o famoso carro capaz de andar equilibrado em duas rodas. 

Foi na Praça da Bandeira. O carro veio andando, e a certa altura tinha uma plataforma que se elevava em diagonal, os pneus do lado direito do carro subiram por ela, o carro se ergueu, a plataforma acabou, o carro prosseguiu dando voltas, triunfante, bem controlado, aí quando passou bem na frente de um véi, o véi falou: “Eita mentira da porra!”.

Estava acontecendo ali, diante dos seus olhos (que praza à terra não ter precisado deles por muitos anos) e mesmo assim ele achou que podia haver algo errado, alguma interferência, algum ruído informacional, alguma invasão do subjetivo! 

Mas, como assim – em plena rua, à luz do sol? “Sei lá,” responderia o velho, “a gente vê cada coisa nos palcos, nem digo nos cinemas, que ali é mentira mesmo, mas nos teatros, truques de vaudeville, portas falsas, jogos de iluminação, espelhos...”

Hoje, século 21, estamos aprendendo a duvidar da autenticidade das imagens virtuais que olhamos, em nossas telinhas e telonas, porque tudo pode ser imitado, tudo pode ser fabricado. Mas já naquele tempo o Véi da Praça duvidava da realidade consensual, duvidava da carne-e-osso, do feijão-com-arroz. Ele suspeitava de um hiato ontológico.

A Crise de Representação do Real não é o fato das fotos parecerem tão reais quanto os objetos, é que os objetos já parecem tão irreais quanto as fotos. 

Como transmitir um senso de realidade às coisas – na literatura, por exemplo? Talvez  ampliando nossa visão, deixando de ver só o que está na “foto” e vendo também o quadrado da foto, a mão que a segura ou a página que a exibe, e esse entorno seja a pedra de toque de sua realidade ou não. Fico com este parágrafo de Don DeLillo (The Names, 1982), em que um personagem recorda a curiosidade detalhista de seu pai a respeito dele quando era menino e morava à distância:

“Ele e o seu catecismo do mínimo, do acidental. Agora sei o que ele queria. Queria um retrato detalhado onde colocar minha minúscula, solitária figura. A única segurança está nos detalhes. Aqui temos uma ou duas certezas, os pequenos fatos do tempo e do clima que conectam pessoas à distância. Ele me perguntava como era a iluminação na minha sala de aula, quanto tempo tínhamos de recreio, quais os alunos a quem cabia fechar as portas deslizando os painéis corrediços. Eram perguntas formais, que ele me despejava em blocos compactos. Eu tinha que lhe fornecer nomes, números, cores, tudo que eu fosse capaz de registrar sobre as coisas em si. Isso o ajudava a me ver de uma maneira mais real”.





quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

4030) Os ritmos da prosa (22.1.2016)



(Bandeira e Augusto F. Schmidt)

Manuel Bandeira é a figura central de qualquer estudo sobre o ritmo e a métrica na poesia brasileira. De formação rígida no metro tradicional, foi ele quem demarcou com maior sutileza e variedade a nossa transição para o verso livre. Todos os outros poetas, neste aspecto, são pós-Bandeira. 

Numa crônica reunida em Os Reis Vagabundos (1966) ele comenta um texto de Augusto Frederico Schmidt sobre a obra de outro poeta (modestamente omite que o poeta é ele próprio), e diz que vê a si mesmo como um catador de poesia na prosa alheia, um “desgangarizador” (expressão de Couto Barros, diz ele, para quem encontra pepitas de poesia na ganga bruta da prosa alheia). 

E avisa: “A poesia é como um rádium – o milésimo de miligrama constitui uma riqueza que não se deve deixar perder.”

Agulhado por uma imagem que o comoveu, Bandeira pega dois trechos de Schmidt, remonta-os, faz pequenas alterações a bem da sintaxe, e transcreve o poema que encontrou:

PALAVRA A UM POETA. 
A luz da tua poesia é triste mas pura. 
A solidão é o grande sinal do teu destino. 
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres te interessam realmente 
mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia dos teus desaparecidos. 
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de São João. 
E hoje estão para sempre dormindo profundamente. 
Da poesia feita como quem ama e quem morre 
caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza 
naturalmente 
- como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.


É um exercício interessante comparar essa descoberta dele com uma descoberta inversa, feita por um amigo, de um “poema” dele próprio num texto em prosa. Está no livro Opus 10 e intitula-se “Poema Encontrado Por Thiago de Mello no Itinerário de Pasárgada”. 

No Itinerário, a certa altura Bandeira fala das duas semanas que passou, em 1926, no Saco de Mangaratiba (RJ), e da longa viagem noturna de canoa, para pegar o trem de volta ao Rio de Janeiro. Essa viagem extenuante rendeu-lhe um longo poema composto mentalmente, num “subdelírio de extrema fadiga”, e do qual (como do “Xanadu” de Coleridge) se salvaram apenas as poucas linhas que intitulou “Oração no Saco de Mangaratiba” (em Libertinagem).

E se salvou também este trecho de prosa, em sua memória do acontecimento, que Thiago de Mello reorganizou assim, em linhas quebradas: 

Vênus luzia sobre nós tão grande 
tão intensa, tão bela, que chegava 
a parecer escandalosa, e dava 
vontade de morrer.  

Dessa noite de lúcido cansaço ficou-lhe também o título que deu a um dos seus livros mais conhecidos: Estrela da Manhã, de 1936.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

4029) A lista de Bowie (21.1.2016)



(David Bowie lendo sobre Buster Keaton)

Já disseram (e desmentiram) tudo que eu poderia dizer sobre David Bowie, então não me restou nada a contribuir senão comentar alguns títulos (os que li, ou que tenho para consulta) da lista dos seus 75 livros formadores, reproduzida numa das minhas páginas favoritas, Brain Pickings, de Maria Popova (aqui: http://tinyurl.com/gluf5rj).

A inglesidade de Bowie, sua essência de rapaz londrino, fica mais nítida na minha percepção quando o vejo citando livros como O Outsider (1956) de Colin Wilson, uma das bíblias dos “angry young men” daquela década, e o obscuro romance de Keith Waterhouse, Billy Liar (1959), do qual foi extraído um dos meus dez filmes favoritos, dirigido por John Schlesinger. Uma inglesidade que me parece reforçada por sua valorização de George Orwell (1984, Inside the Whale and Other Essays).

Mas foi o choque com a cultura pop norte-americana que transformou David em Bowie, e este caso de amor de mais de meio século me parece bem refletido quando ele enumera On the road (1957) de Jack Kerouac, A Sangue Frio (1965) de Truman Capote, Lolita (1955) de Nabokov, o póstumo e semi-obscuro A Confederacy of Dunces (1980) de John Kennedy Toole e os ensaios sobre o espírito do rock reunidos por Greil Marcus em Mystery Train (1975). São diferentes faces da América fascinante e transgressiva, a América que se acha representante de todas as Américas, a América ensolarada do rock e a noturna do jazz.

Os interesses de Bowie pela psicologia se refletem na sua escolha de O Eu Dividido de R. D. Laing (que li numa antiga edição da Ed. Vozes) e de The Origins of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind (1976) de Julian Jaynes, livro que me foi indicado em outra obra de Colin Wilson. Jaynes estuda o caráter “dividido”, quase esquizoide, da consciência humana, capaz de se ver por dentro e por fora ao mesmo tempo, como se cada um de nós fosse dois, constantemente se vigiando, se interferindo, se ajudando, se sabotando.

Procurei FC e fantástico na lista de Bowie; além de 1984 encontrei obras também inglesíssimas como Nights at the Circus (1984) de Angela Carter e Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess. E obras cruciais sobre a criação artística: as entrevistas literárias de The Paris Review (ed. Malcolm Cowley), os ensaios de John Cage reunidos em Silence: Lectures and Writing (1961) e o extraordinário The Songlines (1986) de Bruce Chatwin, a descrição de uma Austrália mapeada pela poesia dos aborígines, um continente onde existe uma canção (ou pelo menos uma sextilha) para cada árvore, cada rio, cada monte, cada pedra no caminho.




terça-feira, 19 de janeiro de 2016

4028) "O Despertar da Força" (20.1.2016)



Sempre que testemunho os exageros de devoção de tantos amigos meus pela série Star Wars, repito mentalmente um mantra meio quilométrico no qual lembro a mim mesmo que eles viram o primeiro filme da série na mesma idade virginal com que eu vi Planeta Proibido e A Máquina do Tempo, e que foram os filmes de Lucas que cumpriram para eles a função revelatória, a função estrada-de-Damasco ou estalo-de-Vieira, de lhes arrebatar a imaginação. Vi o início da saga de Luke Skywalker com 27 anos, dos quais dez de cineclubismo e crítica em jornal. Era um pouco mais calejado do que um garoto de dez, e sei a diferença. Na minha frente ninguém fala mal de Fred Wilcox ou de George Pal.

O arrebatamento existiu, por vias transversas. Quando vi Guerra nas Estrelas (esse era o nome; depois arranjaram-lhe um apodo para dar simetria ao índice da série.) eu morava em Salvador e mexia com cinema dia e noite, mas me acreditava o único leitor de FC do Brasil. Só um ou outro amigo com quem dava para comentar um livro ou pedir dicas de filme. E num espaço de tempo muito curto vi o filme de Lucas e o Contatos Imediatos de Spielberg.

Esses dois caras estão há mais de 30 anos cantando um mourão-voltado de sucessos, um bate aqui, o outro responde acolá. Acho Spielberg mais à vontade dirigindo, seus filmes são mais soltos. Os de Lucas, mesmo os bons, nunca mais tiveram aquela soltura de American Graffitti. Mas Star Wars era igual ao cinema mental que fazíamos lendo livrinhos de bolso e pulp magazines antigos. Era futurâmica, era argonauta, era amazing. E era uma aventura pop; não tinha nenhum compromisso com o realismo, desde que fosse possível produzir um efeito melodramático.

O roteiro deste filme novo segue a planta-baixa de várias sequências que deram certo nos anteriores. Há repetição e há inversão de padrões, tanto nas triangulações de personagens quando nas estratégias de destruição do poder inimigo. O filme reconstitui personagens e situações em quantidade bastante para dedilhar o espectador da prima ao bordão. É bonito como alguns personagens envelhecem, e como continuam a ser nada mais do que eles mesmos.

Para corrigir os equivocados filmes anteriores, optou-se pela volta à primeira trilogia, e nesse sentido a preocupação-em- ficar-parecido talvez tenha manietado a imaginação do roteiro. Não há muita trama, há dois MacGuffins (o mapa, o sabre) que parecem o saco-plástico-com-um-milhão-de-reais de tantas telenovelas. Não importa; o que importa é que “the game is afoot”. Louve-se o novo elenco, e louve-se a ousadia dramatúrgica de ceder ao mais básico dos realismos, que é reconhecer que a morte existe.