terça-feira, 5 de janeiro de 2016

4015) Livros do ano 5 (5.1.2016)



Eu não vivo pesquisando a literatura sobre o Sertão e suas variantes (Cariri, Pajeú, etc.), mas ela não para de me chegar de todos os lados. Fala-se que basta ler Euclides da Cunha ou Guimarães Rosa para saber o que é o Sertão. Não basta. O ponto de vista de um autor é só o dele, por mais rica que seja sua experiência. Nenhum grande autor esgota um assunto; seus livros são o que se chama de “condições necessárias mas não suficientes”. O Sertão (qualquer tema, aliás) é um bufê self-service. Não adianta ficar se servindo de um prato só, por mais bem feito que seja.

Dou o exemplo curioso de dois irmãos escritores com a mesma origem e vivências semelhantes, com dois livros diferentíssimos e complementares que li este ano. Cariris Velhos (2008, http://tinyurl.com/n3sjqlm), de Pedro Nunes Filho, é uma obra de história cultural onde a memória da terra ganha discernimento e foco por meio da pesquisa sobre a colonização desta região da Paraíba. Já No Sertão Onde Eu Vivia (2014, http://tinyurl.com/lf8kguo) de Zelito Nunes é uma recolha de anedotas e episódios pitorescos onde brota o jeito de pensar sertanejo – caririzeiro, pajeuzeiro, etc., porque são tudo cores da mesma luz.

O Sertão, para um urbanóide como eu, é precedido pelas histórias que se contam sobre ele, e que são as roupas com que ele se traja para ser visto em público. Histórias como as assombrações de Maldito Sertão (2012, http://tinyurl.com/ntbp8nv) de Márcio Benjamin, as histórias de fantasmas, coisas ruins, feitiços, criaturas da noite. Ou como os encantamentos de O Monstro das Sete Bocas (2015, http://tinyurl.com/mefb9x7) de minha irmã Clotilde Tavares, onde se misturam lendas orais, enredos de cordel ou de Trancoso, numa cadeia de narrativas-dentro-de-narrativas, com personagens que viram narradores.

O lado cruel do Sertão se revela em livros como O Dragão (reedição de 1999, http://tinyurl.com/pgfeadc) de José Alcides Pinto, um apocalipse a prestação, contando a vida de um povoado lá no calcanhar das botas de Judas, fustigado pela seca, pelas enchentes, pelas epidemias, pela violência onipresente entre pessoas crestadas por um sol indiferente e alucinógeno. É o Sertão mitológico de Euclides e de Rosa, aquele onde “a luz assassinava demais”.

Para entendê-lo, pode ser útil a leitura da obra e da vida do inventor do cordel nordestino, em Leandro Gomes de Barros - Vida e Obra (2015, http://tinyurl.com/kpbag9b) de Arievaldo Vianna. Os cordéis de Leandro são o Sertão, mesmo quando ele fala dos Pares de França ou da carestia recifense. Para ver o Sertão é preciso ser capaz de olhar para a cidade com os olhos do Sertão, e vice-versa. (Continua)




sábado, 2 de janeiro de 2016

4014) Livros do ano 4 (3.1.2016)



O pessoal me cobra às vezes uma cobertura da literatura nacional, nesta Coluna Prestes. (Chamo-a assim porque é uma coluna que está sempre prestes a dizer alguma coisa importante, promessa eternamente adiada para um futuro ainda fora de foco.) Lamento informar (ou melhor, regozijo-me em informar) que não sinto a menor obrigação de vigiar daqui a literatura brasileira, ou paraibana, ou japonesa. Quando não estou sendo pago para ler algo (resenhas, traduções, prefácios, pesquisas, etc.) leio por prazer, e por prazer somente. Se um livro não me prende, pode ser do meu melhor amigo ou do autor mais célebre do cânone: volta pra estante, e pego outro. Sou um homem livre para decidir o que vou ler. É só nisso que sou livre; é certamente pouco; e para mim é o bastante.

O mundo está cheio de poetas que não gostam de ler poesia. Não é o meu caso. Minha dificuldade é que frequentemente não entendo os poemas, ou melhor, consigo acompanhar o que dizem, mas o texto não me produz novas sinapses. Não é culpa minha nem do poema, é que a experiência poética requer um mesmo diapasão, uma sintonia vibratória, que muita gente, aliás, não sente com o que eu próprio escrevo. Paciência; é do jogo.

Em todo caso, li (em alguns casos, reli) este ano, com prazer e proveito, livros como Por sobre as cabeças (João Andrade), 100 repentes memoráveis (Jomaci Dantas), Mini Sertão (Nonato Gurgel), Da preguiça como método de trabalho e Canções (Mario Quintana), Até nenhum lugar (Ademir Assunção), O mapa da tribo (Salgado Maranhão), Nômada e Experiências Extraordinárias (Rodrigo Garcia Lopes), Versos Pornográficos (Chico César), Outro (Augusto de Campos), Sonetos de Campos, Sonetos de Moraes e Critica Syllyrica (Glauco Mattoso), Cabeça de José (Patricia Galelli), Sociedade Vertical (Caco Pontes), Cavalo Alazão (Pedro Nunes Filho), Muito antes da meia noite (Cristiano Ramos), Compêndio para uso dos pássaros (Manoel de Barros), Pelos pelos (Alice Ruiz), Esculturas fluidas (João Paulo Parisio).

Na prosa, destaco entre outros títulos o romance de Maria Valéria Rezende, Quarenta dias, mergulho de uma professora paraibana nas ruas de uma Porto Alegre misteriosa e real (que me lembrou um pouco o clássico Noite, de Érico Verissimo), Enquanto Deus não está olhando de Débora Ferraz (uma João Pessoa sem nome e sem código de barras, mas reconhecível em cada descrição de bar, em cada detalhe da arquitetura, em cada rompante emocional e torção do diálogo de seus personagens),  e os contos compactos, às vezes elípticos, mas sempre minuciosamente burilados de Everardo Norões em Entre moscas. (Continua)




sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

4013) Livros do ano 3 (2.1.2016)



Uma das histórias mais antigas é a do jovem intelectual de província, cheios de sonhos literários (ou musicais, cinematográficos, etc.) que parte para a cidade grande e mergulha na vida boêmia, nas discussões estéticas e existenciais, e passa por experiências que, a depender de cada caso, o levarão à fama, ou às drogas, ou à fortuna, ou ao suicídio. Às vezes tudo isto junto.

Que melhor exemplo do que o Dylan Thomas de Portrait of the Artist as a Young Dog (1940, http://tinyurl.com/oqml4hj), que começa garoto, fotografando em contos curtos a vidinha interiorana do País de Gales, e no final já está jornalista e poeta, frequentando puteiros, e se preparando para seus voos internacionais futuros? Existe nele algo do Vivaldo de Numa terra estranha (1962, http://tinyurl.com/nrtkpar) em sua vida boêmia e meio sem rumo, e do (ator) Eric que foge para a França à procura de um ambiente menos asfixiante.

Paris foi um símbolo para uma geração inteira de norte-americanos, como James Campbell descreve em Paris Interzone (1994, http://tinyurl.com/o6ux4mb). O maior contingente era de escritores negros (como Baldwin), mais respeitados e mais bem tratados na Europa do que em casa. Paris recebia com civilidade tanto negros como homossexuais, e Baldwin sentiu-se duplamente em casa. E existia lá, ao mesmo tempo, um ambiente receptivo para uma certa literatura de vanguarda como a dos Textos para nada (1950-52, http://tinyurl.com/pbd2to9) de Samuel Beckett. O livro de Campbell dedica longos e proveitosos capítulos a editoras semiclandestinas como a Olympia Press, de Maurice Girodias, que publicava romances pornográficos e no meio deles lançou, além de Beckett, a primeira edição de Lolita de Nabokov.

Era uma França pós-Guerra, invadida e conquistada pela cultura pop norte-americana, o jazz, o romance policial, a ficção científica. Tudo isso convergiu para a obra de sujeitos fascinantes como Boris Vian, que ganhou de Françoise Renaudot a fotobiografia Il était une fois Boris Vian (1973, lido em julho). Vian escreveu romances policiais fingindo-se de autor negro dos EUA (Vou cuspir no seu túmulo, sob o nome de Vernon Sullivan), escreveu FC, foi membro do Collège de Pataphysique, foi trumpetista de jazz, grande compositor de cançonetas românticas ou satíricas. Sua vida e sua obra sintetizam essa época que, mais do que qualquer outra, gravou na memória do tempo a imagem de uma Paris libertária, igualitária, fraterna – mas somente nos cafés e nos bares onde cineastas, existencialistas, negros americanos, romancistas argelinos e músicos de jazz criaram uma república invisível das letras e das artes. (Continua)






quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

4012) Resoluções de Ano Novo (1.1.2016)



Inventar uma sopa que seja de carne e de feijão, em faixas alternadas. 

Descobrir onde foram parar todas as canetas Bic que perdi em 2015. 

Passar um telegrama para “Trupizupe, o Raio da Silibrina, Campina Grande, PB” e ver se chega. 

Ensinar os brinquedos da minha filha a se arrumarem sozinhos. 

Arranjar um clone para ir no meu lugar aos compromissos. 

Pintar “Guernica”. 

Comprar um armário que tenha uma porta secreta para o reino de Nárnia ou pelo menos para o cabaré da Nega Filomena. 

Juntar lençol, travesseiro, água mineral e livros, e passar cinco semanas num balão. 

Gravar um DVD toda vez que for a uma mesa de bar, vender e ficar rico. 

Arranjar um cachorro que saiba trazer meus chinelos e acender meu cachimbo. 

Tomar remédio para orelha grande. 

Comprar um ringue de boxe, botar na praça e cobrar dez reais por round, luvas incluídas. 

Remexer a casa toda, pra valer, até achar um objeto que, com sorte, eu vou reconhecer quando encontrar. 

Ter mais paciência com os outros. 

Pescar, logo na primeira tentativa, um peixe de 2,750 kg. 

Guardar um grão de arroz dentro de um diamante. 

Instalar na minha sala uma máquina de caldo de cana, um Banco 24 Horas e um telescópio. 

Vender meu cadáver, antecipadamente, a uma Faculdade de Medicina. 

Pegar o Expresso Transiberiano até a última estação e lá decidir se vale a pena voltar. 

Jogar uma partida de xadrez contra o computador e ganhar roubando. 

Localizar a cópia completa de “Sob o Céu Nordestino” que se perdeu em Paris após a morte de Walfredo Rodriguez. 

Pular toda noite o muro de alguma casa e abrir as gaiolas dos passarinhos. 

Atribuir uma letra do alfabeto a vinte e seis objetos aleatórios, e ir anotando as palavras que eles irão formando ao serem vistos no dia a dia. 

Cruzar a Paraíba a pé, da Ponta do Seixas à fronteira com o Ceará. 

Fazer um filme com uma cantoria em tempo real, sem cortes, em plano sequência, dure quantas horas durar. 

Zerar um videogame, não importa qual. 

Percorrer de moto todos os Estados brasileiros. 

Extrair a raiz quadrada da “Mona Lisa”, plantar o resultado no jardim e fazer um suco com a fruta que nascer. 

Montar num tubarão. 

Traduzir um livro meu para o inglês. 

Aprender a dançar tango para o caso de um dia alguém me chamar para ser ator num filme argentino. 

Tatuar no antebraço esquerdo que meu sangue é A-positivo e que sou alérgico a AAS. 

Publicar um poema de Adão Ventura com meu nome e ver quantos anos demora até alguém perceber. 

Assistir um filme no Cine Capitólio e outro no Cine Babilônia. 

Montar uma tapiocaria vendendo tapiocas em todos os sabores com que se vendem pizzas. 

Fazer o check-up que não fiz de novo no ano que passou.






quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

4011) Livros do ano 2 (31.12.2015)



Os dois últimos livros que li em 2015 não poderiam parecer mais diferentes um do outro, mas têm um inquietante detalhe em comum. O penúltimo foi a biografia Trotsky (1986) escrita por Paulo Leminski, e incluída no volume Vida (Ed. Sulina, 1990, ao lado das vidas de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus Cristo). O outro, que estou prefaciando para uma reedição da Alfaguara para este ano, foi A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells. O que os dois têm em comum? O terror da fome.

Leminski evoca, com traços rápidos e vigorosos, a devastação produzida na Rússia pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917. Além dos milhões mortos pela guerra, milhões morreram de inanição nas estepes da futura URSS. E Wells descreve o terrível mês subsequente ao desembarque devastador dos marcianos na Inglaterra. O terror de não ter o que comer, e as coisas que as pessoas roem com sofreguidão para não morrerem.

Quando a civilização colapsa, todo mundo continua precisando comer todo dia. Seguem-se saques, arrombamentos, assaltos, a maioria feita por pessoas que jamais colheriam sem autorização uma goiaba na goiabeira do vizinho. Mas a fome transforma todo mundo, primeiro em bandidos, depois em animais. Tal como acontece em Ensaio sobre a Cegueira (1995, lido em maio) de José Saramago, onde a fome é agravada pela cegueira. Saramago lembra Wells inclusive na ausência de nomes próprios nos seus personagens designados por detalhes (o médico, o clérigo, etc). E na lucidez sobre as coisas de que o ser humano é capaz.

Literatura fantástica? Não tanto quanto a terrível fome que devastou a Itália durante a campanha da FEB na II Guerra, descrita por Boris Schnaiderman em Guerra em Surdina (1964; lido em agosto). A fome dos pracinhas ilhados na neve, mas principalmente a fome da população local, e o modo discreto, tocante, como as jovens italianas se entregavam em troca de algumas latas de conservas, diante da família que fazia que não estava vendo. Uma área cinzenta separando sexo livre, estupro e prostituição, descrita de modo compassivo e honesto pelo autor.

Coisa do passado? Nem tanto, se pensarmos nos condôminos do High Rise (1975, lido em novembro), onde a fome e a sede levam aqueles profissionais liberais da Londres afluente do futuro à prostituição, ao crime, ao canibalismo. Se hoje há pessoas capazes de matar por um celular, o que não farão por um pedaço de comida, quando o possível colapso econômico futuro estancar a produção e comercialização de alimentos? Que pai conseguirá evitar a “necessidade de também ser fera”, quando somente as feras serão capazes de alimentar seus filhotes? (Continua)







terça-feira, 29 de dezembro de 2015

4010) Outros adeuses 2015 (30.12.2015)



Durante décadas de convivência minha com Elba Ramalho, o seu irmão Erácliton era sempre uma das pessoas mais animadas que havia em torno. Tocador de violão, puxador daquelas músicas tiradas “do fundo do baú”, fossem sambas ou forrós. Nas mesas do Refavela, o bar de Bel (em Campina), ou no terraço do apartamento da Lagoa, no Rio, ele era sempre uma risada de alto astral. O imprevisto o colheu ao atravessar uma rua em João Pessoa. Foi a primeira vez que nos fez ficar tristes.

Anabela fugiu jovem de Angola, quando a guerra civil passou o rodo no país. Veio parar no Brasil, morou na Paraíba, radicou-se em Mossoró. Viúva, sua casa reunia quem fazia teatro, literatura, música. Era magra, espigada, sempre com um uísque na mão e um cigarro nos dedos; ria muito, não tinha papas na língua, e com sotaque lusitano carregado não dava bola para a opinião do povo. Nosso último encontro foi numa farra das dez da noite às oito da manhã. Uma cirurgia problemática a levou do nosso mundo, mas não daqui.

A vida é cheia de simetrias. Meu pai era do Recife e veio ter os filhos, e criá-los, em Campina Grande. Seu Geraldo era de Campina e foi ter os seus no Recife. Era comunista da velha guarda (daí ter um filho chamado Lenine), o que significa aquela velha guarda humanista, amante das letras e das artes, para a qual o indivíduo tem uma importância tão grande quanto o coletivo. Grande papo sobre qualquer assunto, com histórias do arco-da-velha sobre uma Campina antiga onde ele e meu pai começaram uma amizade que se prolongo entre mim e seu filho.

Quando comecei a fazer meus primeiros shows musicais entre o Recife e Olinda, no final dos anos 1970, fiquei amigo de uma turma de jovens jornalistas no circuito que cobria do Bar do Ninho à Rua do Hospício. Entre eles reencontrei Juliana Cuentro, que era da antiga rapaziada da Rua Solon de Lucena, em Campina, filha de amigos dos meus pais. Éramos da mesma geração, e ela vibrava tanto com minhas músicas que fez uma das primeiras grandes matérias sobre o Trupizupe, que me deixou cheio de responsabilidades poéticas e com fumaças de cantor de verdade.

O fandom da ficção científica é um feudo de batalhas e disputas constantes, onde as preferências literárias e cinematográficas são defendidas como se fossem outras tantas pátrias ameaçadas pelas hordas bárbaras. Pierluigi Piazzi (ex-radialista, ex-professor de cursinho, fã de “Star Trek”) era exuberante, falador, eloquente na defesa dos autores que admirava e na gozação sobre os que não curtia. Deixou aos fãs de FC (e a dezenas de milhares de ex-alunos paulistanos) a editora Aleph, e mil histórias impagáveis.



4009) A ditadura do normal (29.12.2015)



O sujeito mora num país dominado por uma ditadura burocratizada. É de noite, ele está meio perdido num bairro miserável, periférico, tentando voltar para casa. Tenta passar despercebido. E nessa hora ele pensa: “Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas isso bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento”.  O trecho é de 1984 de George Orwell, e ele ilustra um princípio básico dos governos totalitários: “Por que esse camarada está fazendo algo de um jeito diferente?”.  

Isto lembra uma velha frase: “Na ditadura o maior perigo não é o ditador, é o guarda da esquina”. Se quem manda no país é Stálin ou Papa Doc, qualquer guarda de esquina pode fazer naquela rua o que bem entender. Quem decide não é o ditador, é ele, é a veneta dele, a idiossincrasia dele, o mau humor ou o bom humor dele. O perigo da ditadura é que todo guarda de esquina é, em sua pura essência, o próprio Stálin ou o próprio Papa Doc.

Vejam como são efêmeras as ditaduras. Papa Doc, o vampiro do Haiti, já foi o símbolo do Mal, na minha juventude. Apodreceu, caiu, foi substituído pelo filho Baby Doc, um gordão cheio de cordões de ouro no pescoço. Baby também foi pro espaço, e aqui estou eu, vivinho da silva, a usá-los como metáforas de si mesmos. Só o Haiti que não mudou. Ficou como aqueles personagens vampirizados que nem a estaca no coração de Drácula consegue recuperar para o mundo dos vivos.
Os sistemas de segurança têm (como vemos em 1984) bons exemplos de técnicas para fazer os dissidentes botarem as unhas de fora, esticarem as cabeças, tornarem-se visíveis e vulneráveis à guilhotina da repressão. A ditadura mais eficiente é a que é controlada por tecnocratas, sujeitos de imaginação basicamente analógica e de caráter basicamente à venda.  O totalitarismo exige previsão, planejamento, controle do futuro. É preciso saber não apenas onde Winston Smith está neste exato momento, como ser capaz de prever onde Winston Smith deverá estar no dia 16 de maio do ano que vem, e fazendo o quê. Tabular as médias, e assinalar os desvios.
Num quadro de controle como esse, o simples ato de voltar para casa por um caminho diferente chama a atenção, é indício de comportamento conflitante. Como no conto de Ray Bradbury “O pedestre”, em que não é propriamente proibido andar a pé pela calçada – mas é estranho, e o sujeito deve ser recolhido e submetido a tratamento. Ou como em O estrangeiro de Albert Camus, onde a certa altura o cara não sabe se está sendo julgado porque matou um homem a tiros ou porque não chorou no enterro da mãe, não se comportou como a maioria das pessoas se comporta.




segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

4008) Adeuses 2015 (27.12.2015)



Amílcar era cineasta e corintiano. Ria de incredulidade quando eu falava dos times por que torço: Treze, Flamengo, Sport, Atlético Mineiro... Para ele, time era paixão, e paixão não pode haver duas. Entre outras coisas em comum, tínhamos o cinema de Roberto Santos, seu mestre. Um dia ele largou São Paulo, perdemos o contato até por Facebook. Só voltei a ter notícias dele quando a doença estava em estágio avançado. Um amigo de sorriso calmo e luminoso, com que compartilhei menos tempo do que pude.

Quando os shows de Elba Ramalho estrondavam no Canecão, com três mil pessoas de pé pulando ao som de ”Caldeirão dos Mitos”, a sanfona estava a cargo daquele paraíba moreno e magrinho que anos atrás tinha sido o esteio melódico e harmônico da banda de Jackson do Pandeiro. Severo ficava às vezes meio deslocado entre aquele grupo de cariocas, meio desconfortável com os figurinos “modernos” que era obrigado a vestir, e nas longas horas de camarim se aproximava de mim para trocar histórias da “Paraíba réa”.

Foram poucos meus encontros com Pipol, cujo nome não sei até hoje, figura querida na contracultura digital paulistana. Foi um dos criadores do websaite Cronópios, onde republicava meus artigos do JPB. Gravou para a web minha palestra sobre Edgar Allan Poe, até hoje um dos meus vídeos mais assistidos. Eu o saudava: “Power to the Pípol!”. Na competitiva São Paulo, ele se destacava pela precisão da ação e pelo alto astral do sorriso, sempre com um bonezinho e um par de óculos jonleno que me lembravam eu mesmo aos 25 anos.

Quando meus pais chegaram a Campina Grande, muito cedo ficaram amigos dos irmãos Félix e Mário Araújo. O primeiro foi morto quando vereador, num crime célebre em 1953. “Seu” Mário era uma espécie de tio a meia distância, morando perto do Ponto 100 Réis. Seus filhos eram quase que meus primos, ele nos dava a todos o mesmo carinho, os mesmos conselhos bem humorados, com seu riso baixo, discreto. Num ambiente carregado como o da política campinense, era referência de elegância, bom senso e bom caráter. Qualidades abstratas que fazem falta, mas nem tanto quando o ser humano concreto.

No Encontro Para a Nova Consciência, Pedro Camargo era o “mestre sem cerimônia”, o apresentador das mesas redondas e dos palestrantes. Mediava conflitos, informava a imprensa, entretinha o público com miniparábolas zen. Ao longo de mais de vinte anos, foram muitas as nossas conversas sobre filosofia, Tarô, cinema carioca, literatura fantástica, política. Dirigiu comédias no cinema, foi editor da revista “Ano Zero”, professor universitário. Um mestre sempre leve, sempre arguto, irônico, compassivo, solidário.




domingo, 27 de dezembro de 2015

4007) Livros do ano 1 (26.12.2015)



Esta é a época em que os críticos fazem listas dos melhores livros do ano, mas os críticos parecem ler somente o que foi lançado agora. Minhas leituras são aleatórias. Tenho muito mais interesse pela literatura de cem anos atrás do que pela atual. Não que uma seja melhor do que a outra. É mera veneta, cacoete mental; é como achar que qualquer rua de Istambul ou Toronto deve ser mais interessante do que a rua aqui do lado. Dito isto, vamos em frente.

Terminei este ano de ler a coletânea Ghost Stories of Henry James. James é um desses casos meio raros de autores de estilo refinado que escreviam caudalosamente. Como produziu esse sujeito! Seus contos de fantasmas são quase todos psicológicos, de clima, ambientação, ilustrações perfeitas para a teoria todoroviana da oscilação entre explicação real e sobrenatural. Vão do gótico puro de “The Romance of Certain Old Clothes” (1868) até o desdobramento físico em “The private life” (1892). Todos são muito bons. Há uma certa falta de surpresa nos desfechos, mas a literatura de James reside mais nos detalhes do que na estrutura, que é clássica, previsível.

Li este ano O Mago (2008) de Fernando Morais, biografia de Paulo Coelho, desmerecida por alguns por ter sido uma biografia “chapa branca” (autorizada). Biografias autorizadas podem ser boas, sim, menos para quem só pensa em escândalo. Morais traça com precisão o histórico do Mago, e mostra, curiosamente, que desde a adolescência ele sonhava em ser o escritor mais bem sucedido do mundo. Eu achava que ele era um roqueiro que virou best-seller meio por acaso. Não era. Foi um projeto profissional que, com desvios inevitáveis pelo temperamento malucão do personagem, e também da época, sofreu mil contratempos, mas se realizou.

Também este ano terminei finalmente de ler The Crying of Lot 49 (1966), o mais curto dos romances de Thomas Pynchon, mas espantosamente concentrado. A prosa de Pynchon é pesadíssima de alusões culturais, mas em seus momentos mais leves é uma delícia de barroquismo pop. Este livro é um clássico das teorias da conspiração romanescas (ou seja, as que não se propõem como verdadeiras), sobre uma organização secreta de correios infiltrada nos EUA.

The third policeman (1967), de Flann O’Brien, é um dos melhores romances absurdistas que já li (há tradução brasileira). Uma sucessão de episódios fantásticos que parecem dar acesso a universos paralelos, ao Além-túmulo ou a delírios do personagem. Há momentos que lembram Alice de Lewis Carroll, outros que lembram Ubik de Philip K. Dick, outros que dão a impressão de um Jorge Luís Borges tentando escrever um romance policial metafísico. (Continua)




4006) Natal 2015 (25.12.2015)




(ilustração: Remedios Varo)

... e a gente arranca ao Tempo mais um ano
como quem despe as roupas da Verdade
e a deixa reluzindo, à claridade
que ela mesma produz, ao ver-se exposta.
A Verdade é mulher, e mulher gosta
de revelar-se aos poucos, mas inteira,
e a vida só é bela e verdadeira
quando exibe seu corpo em sombra e luz,
claro-escuro no ar, que nos seduz
e nos faz mergulhar no seu mistério.

Mas os tempos de hoje... Fala sério!
Será tudo um teatro dadaísta?
E o que terá fumado o roteirista
que escreveu o Brasil de atualmente?
Basta olhar para a comissão de frente
que encabeça a terrível procissão
nas praças e avenidas da nação,
pesadelo hi-tech e surreal.
E quem sabe onde está oculto o Mal
no coração humano? O Sombra sabe.

É Moby Dick o monstro, ou é Ahab?
A Natureza, ou o engenho humano?
Quem tem poder, ao sol de um fim de ano
de erguer a mão e despejar a chuva?
Não existe. O que existe é a saúva
de terno e de gravata, anel no dedo,
que todo dia acorda muito cedo
e rói sem pena o que possível for.
Perdoai (e evitai) o roedor:
está sendo roído, ele também.

Eu só sei que o Natal um dia vem.
Impressionante como ele não falta.
E todo ano a humanidade incauta
ouve a sineta que a faz salivar.
A igreja do vender e do comprar
reza missa após missa o mês inteiro.
Quem tem mais sorte vê raiar janeiro
e recomeça o ciclo, o carrossel,
outro tijolo ao muro de Babel,
outra volta cruel do parafuso.

E a cada livro que eu em vão produzo
feito um mudo pregando no deserto
em linguagem de Libras, fico certo
de que mais vale a dor de estar fazendo
do que a não-dor do não fazer, e entendo
que a resposta virá. Mas não pra mim.
Se assim for, maravilha; e sendo assim
“taca-le pau”, poeta, faz sextilhas.
Imperfeitas ou não, são tuas filhas,
serão um dia o que restou de ti.

Quando meu pai erguia um Bacardi
inebriava o mundo num sorriso,
mandava um chiste, um verso, um improviso...
e esse momento reverbera ainda.
Se o Natal é um dia em que se brinda
e transformam-se em vinho águas passadas,
então que venham renas, rabanadas,
pacumês, espumantes, Concha y Toro!
Gasta logo, se o Tempo é teu tesouro,
a moeda de ouro deste dia.

Que o mundo fosse outro, eu bem queria,
mas aceito este fato consumado,
de vê-lo assim, desnudo, desvendado
pelo excesso de ser que é sua essência.
Se ele um dia notar a minha ausência,
que faça bom proveito destes versos!
Estarão os meus átomos dispersos
sem notar que outra vez bimbalham sinos
e que nascem milhões de outros meninos
neste ciclo-espiral do circo humano...