quinta-feira, 19 de novembro de 2015

3976) O mundo não existe (20.11.2015)



Why The World Does Not Exist é o título irresistível de um livro do filósofo Markus Gabriel (Polity Press) resenhado aqui: http://tinyurl.com/nk9yge6

Discutir a existência das coisas parece ao leigo uma falta-de-ocupação às custas do erário (muitos que o fazem ganham salários em universidades públicas). Mas há uma questão sutil. Se formos incapazes de provar com rigor filosófico a existência do mundo, algo que nos parece tão óbvio (ou “evidente por si mesmo”), como poderemos provar verbalmente a existência de fenômenos mais controvertidos? Descartes tentou ressetar esse problema com seu “Penso, logo existo”, mas ele é como uma árvore podada que logo volta a crescer. 

Na verdade, não queremos saber se o mundo existe, e sim se dispomos de ferramentas filosóficas confiáveis para provar se alguma coisa existe ou não. Markus Gabriel comenta: 

“Seria esquisito se alguém, em resposta à pergunta ‘Ainda tem manteiga na geladeira?’ respondesse dizendo: ‘Sim, mas tanto a manteiga quando a geladeira na verdade não passam de uma ilusão, uma construção humana. Na verdade, nenhuma das duas existe. Na melhor das hipóteses, não temos como saber se existem ou não. De qualquer modo, bom apetite!”.

Isto me lembra uma comparação divertida de Ariano Suassuna (a quem esses questionamentos filosóficos não eram estranhos). Discutindo a afirmação de Kant de que não podemos afirmar a existência de algo exterior a nós, Ariano dizia:  

“É muito fácil discutir se aquele jasmineiro, se a imagem daquele jasmineiro, corresponde ou não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu garanto que, se fosse uma onça que entrasse aqui, nem Kant iria perguntar se por acaso se tratava de uma correspondência com o real.” 

Markus Gabriel afirma: 

“Se pensamos no mundo, o que entendemos é algo diferente do que queremos entender. Nunca podemos entender o mundo em sua totalidade. Ele é, em princípio, grande demais para ser abarcado pelo nosso pensamento. O mundo, em princípio, não pode existir, porque ele não pode ser encontrado no mundo”. 

O filósofo encontra uma maneira de compensar essa impossibilidade de abarcar o mundo total.  Diz ele que o que existe de fatos são “campos de sentido” onde percebemos as coisas, que são “um domínio finito de conexões significativas”. 

Esses campos de sentido (em alemão Seinfelde, num trocadilho com o sitcom da TV Seinfeld) podem abarcar infinitas coisas, inclusive, diz ele, coisas que são reais apenas porque pensamos nelas (existem, mas no plano das idéias): “elfos, bruxas, armas de destruição em massa em Luxemburgo e unicórnios no lado oculto da Lua vestindo uniformes da polícia”.




quarta-feira, 18 de novembro de 2015

3975) Palavras raras (19.11.2015)



Reunião de condomínio é sempre um saco. Eu só vou quando convocado oficialmente pelo síndico. Aí é mais um-saco ainda, tipo ontem. Se queixaram do som alto, do entra-e-sai durante a noite, da saia curta de A, do cabelo rasta de B, o trelelê de sempre.  A madame do 205 ergueu o dedo no ar, discursou, falou que era um absurdo, que alguma providência tinha que ser tomada, e por aí foi. Quando terminou eu fiz uma cara compungida e falei: “Está bem, está bem, afinal de contas estamos numa gerontocracia.” Ela entreparou, ajeitou o cabelo e disse: “Obrigada.”

Dona Lurdes ficava de vez em quando em pé de guerra quando via o Dr. Aurélio gastando demais com ternos caros, uísques importados, e principalmente sua coleção de jogos de xadrez de marfim, de jade, de pedra-sabão. Ele ria, dizia que tinha direito àquilo, ganhava bem. Uma vez ela disse: “Você só compra isso para se gabar diante dos amigos.” Ele respondeu: “Meu amor, todo homem tem direito a um sonho na vida.” Ela disse: “Aurélio, pare de tergiversar.” Os olhos dele se arregalaram e ele a abraçou, exclamando: “Sabia que eu sou doido por você?!”

Era um debate entre estudantes, com revindicações à reitoria, críticas à grade curricular, e tudo o mais. A certa altura um rapaz de cabelo ruivo encaracolado pediu a palavra e disse: “Temos que marcar posição, precisamos reunir massa crítica para exercer pressão, mas me preocupa ver que os nossos colegas, em sua grande maioria, permanecem abúlicos.”  Houve um breve e interminável segundo de assimilação, mas logo um rapaz de barba preta ergueu a mão no ar e disse: “Não somente abúlicos, estão todos catatônicos.” Foi o começo de um boa amizade.

Quando alguém visitava a casa de Filipinho, e os pais dele sentavam de roupa trocada, fazendo sala, havia sempre um momento em que alguém olhava o retrato do avô dele na parede, com seu uniforme. Perguntavam quem era, a mãe de Filipinho explicava que era o pai dela. “Ele era oficial do exército?”, perguntavam sempre. E a mãe dizia, num tom meio casual: “Sim, ele era anspeçada.”  Filipinho não lembrava de alguém jamais ter perguntado o que era. Ele mesmo não tinha.

Estávamos tomando umas e outras na ampla varanda do apartamento de Vasco Teixeira, o conhecido publicitário. A conversa girava em torno de dinheiro. Um falava nos investimentos bancários, outro confessou ter conta na Suíça, “coisa pequena, por enquanto, mas coisa honesta”, outro mencionou mercados futuros e bolsa Nasdaq. Alguém perguntou: “E você?”  Eu dei um gole e falei: “Eu vivo do meu estipêndio.” Deu um branco geral, tela-azul em todo mundo. Vasco acabou perguntando: “Mais uísque, alguém?...”




terça-feira, 17 de novembro de 2015

3974) O repente (18.11.2015)



A arte do repentista não consiste apenas em inventar versos na hora, mas também em lembrar, no calor do momento, versos que fez ou que ouviu ou que pensou ou que lhe contaram, e que ele pode reproduzir parcialmente, para responder em questão de segundos, ao verso que o companheiro acabou de cantar. Sempre repito uma verdade que me parece indiscutível, na arte da cantoria: É impossível decorar aquilo tudo, e é impossível improvisar aquilo tudo. A cantoria mistura versos improvisados e versos lembrados, anotados mentalmente ou num caderno, e que na hora de cantar raramente saem da maneira como foram escritos, saem modificados, seja para melhor ou para pior, de acordo com a memória do cantador.

Cantadores decoram versos para cantar em ocasiões específicas, mas negam que o façam. Por que? Porque a cantoria é cercada de espectadores meio leigos e com espírito-de-porco, os quais, na hora em que ouviram um cantador dizer que decorou alguns versos, vão sair dizendo: “Eu não disse? É tudo decorado! Tive agora a prova! Fulano de Tal acabou de confessar que só canta decorado”. O Fulano pode ter confessado que decorou apenas um ou outro verso, mas para o anti-apologista (o que vai para a cantoria torcer contra os cantadores) era a prova que faltava para confirmar que aqueles caras não sabem improvisar, e portanto não são melhorres do que ele. Como qualquer outro ambiente que cerca uma atividade artítica, a cantoria está cheia desses negadores da arte.

Alberto Cunha Melo, em seu livro Um certo Louro do Pajeú (Natal: EDUERN, 2011), à pág. 24, diz: “É tempo de alguém ousar uma análise literária da produção do repente e do folheto. Quanto ao repente, um estudo comparativo de suas técnicas e resultados diante do automatismo psíquico praticado pelos surrealistas poderia colocar em confronto, por exemplo, o propósito de conciliar o urgente com o consciente, do primeiro, com o uso do urgente para abolir o consciente[,] do segundo”.

O cantador precisa conciliar o urgente e o consciente, ou seja, produzir em poucos segundos um verso que tem a obrigação de metro, de rima e de fazer sentido. Quem quiser que ache fácil. Quando ele recorre, premido pelo tempo (que é um dos fatores mais importantes na arte do improviso), a um verso ou pedaço-de-verso que já cantou há dez anos ou já ouviu há vinte, ele está fazendo algo que não faria se não tivesse apenas poucos segundos para pensar. Esta é uma expressão crucial na cantoria: “poucos segundos para pensar”. Tudo tem que ser feito nesses poucos segundos. Até mesmo um verso decorado, a repetição de um verso já cantado um dia, é uma pequena  façanha dentro de um quadro de urgência como esse.



segunda-feira, 16 de novembro de 2015

3973) Terror para crianças (17.11.2015)




Um subgrupo interessante da literatura de terror é o terror para crianças. 

Por um lado, parece um gênero fácil, porque se supõe que as crianças se aterrorizam mais do que um adulto calejado, mais provido de defesas. 

Por outro lado, o objetivo da literatura de terror não é só aterrorizar, mas aterrorizar divertindo (é uma literatura de entretenimento, que se deve ler pelo prazer da história) e provocando (deve haver nela alguma coisa que cutuque a mente do leitor e o faça examinar melhor seus medos, suas angústias, etc.). Ou seja: mais dois fatores onde se deve considerar a diferença de mentalidade entre crianças e adultos.

R. L. Stine é o autor da famosa série de livrinhos Goosebumps, que deu origem inclusive a uma série de TV de sucesso nos anos 1990. Os livros de Stine venderam 350 milhões de exemplares em 32 línguas, de modo que ele parece entender um pouco do assunto. 

Numa entrevista ao saite Motherboard, diz ele: 

“A parte mais difícil em escrever horror, para mim, é: a linha entre ser tedioso e ser demasiado assustador é tênue, e é preciso ficar bem no meio. Se você for muito cuidadoso, os garotos vão perder o interesse. Se você vai longe demais, vai perturbá-los. Minha regra básica é: você pode ir bem longe, desde que os garotos saibam que aquilo é uma fantasia, que aquilo não pode acontecer.”

Stine é o tipo do autor cujo sucesso vem do fato da cabeça dele ser parecida com a cabeça dos seus leitores. 

“Uma das razões de Goosebumps ser tão popular,” diz ele, “é que a garotada se identifica com os monstros, não com os protagonistas. Às vezes, garotos dessa idade sentem-se como monstros. São zangados. São frustrados. Querem sair soltando rugidos por aí. Não têm autocontrole e querem assumir o controle das coisas. É parte do fascínio deles.”

Alguns autores vendem milhões de livros escrevendo coisas que parecem não lhes exigir muito esforço. Não há relação entre esforço e sucesso numérico. Stine se admira de ter lido tão cedo Edgar Allan Poe, um dos seus autores favoritos. 

“O medo nunca muda,” diz ele, “o medo do escuro, o medo de descer ao porão, o medo de que haja alguma coisa embaixo da escada. Isso não muda nunca.” 

A literatura de terror funciona um pouco como uma vacina. Um elemento estranho é inoculado na mente do garoto, provoca uma reação, mas tudo ocorre num âmbito sob controle. O organismo faz contato com a ameaça num contexto seguro. Aprende a identificar a ameaça, a controlar as descargas químicas que ela produz no organismo. 

É um processo educativo como qualquer outro, uma experiência virtual que nos prepara para encarar com segurança as experiências reais que um dia virão.



domingo, 15 de novembro de 2015

3972) O artista e o povo (15.11.2015)



(Milton Nascimento)

A toda hora vejo postagens nas redes sociais compartilhando canções de MPB do tipo que eu gosto, deste ano ou de 30 anos atrás.  Ezra Pound dizia que certas obras são novas no instante em que nascem e continuam novas 500 anos depois. São como a água que brota de uma nascente: é aquele filete de líquido, sempre o mesmo e sempre feito de uma água nova que parece ter surgido do nada naquele instante.


E aí começa o chororô. “Não se fazem mais canções como essa hoje em dia.” “Ah, a MPB está decadente.” “A música ruim tomou conta.” “Os compositores brasileiros desaprenderam a fazer grandes canções como A Banda ou Disparada.”  E por aí vai. Pois eu não acho. Acho que grandes canções no formato da MPB tradicional estão sendo compostas e gravadas a cada dia, a cada ano. Como eu viajo muito, me hospedo de vez em quando na casa de amigos, que não são necessariamente músicos, mas têm um gosto musical parente do meu.  Nunca deixo de ficar conhecendo discos de gente que eu nem sabia que existia, com músicas de grande qualidade. Como eu raramente compro CDs hoje em dia (isto é outra questão, que não vou abordar agora) anoto os nomes e títulos para ouvir online.


As músicas existem, o que não existe é um sistema oficial de comércio musical (rádio, TV) fazendo por elas o que fez por A Banda e Disparada. O sistema multiplicou-se por dez em tamanho, já está decadente, mas tornou-se um toma-lá-dá-cá monetário, um aluguel de espaço eletrônico para quem pode pagar mais. E isso não é somente para a “música ruim”. Me lembro que quando Maria Rita lançou seu primeiro CD (aquele que vendeu um milhão de cópias) o Jornal Nacional da Globo deu chamada ao vivo do palco do Canecão. Não lembro de ter visto isso com nenhum outro lançamento de MPB. Fez por que? Porque o disco era bom? Porque era ruim? Não: porque alguém meteu a mão no bolso e pagou uma bela grana. Se todo mundo que compõe as bandas e disparadas de 2015 tivesse essa grana, teria acesso ao mesmo espaço.


Milton Nascimento cantava que “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Digo eu que hoje, ironicamente, cabe ao povo ir aonde o artista está, e ele está na Web. O que gostaríamos, meio egoisticamente, era ligar a TV no horário nobre e ver ali as obras-primas da 2015. Não vai ser possível. As obras-primas certamente existem e nada devem às de meio século atrás, mas mesmo aquelas só são consideradas obras-primas pelo impacto que tiveram, não apenas pela sua beleza. Nunca mais terão esse impacto, porque o sistema é cada vez mais mafioso e inacessível. A música que em 1960 brotava na vitrine brota hoje no quintal, e é preciso ir até ela, porque ela não vai mais poder vir até nós.








sábado, 14 de novembro de 2015

3971) Pena de Morte (14.11.2015)





(ilustraçao Francis Bacon)

Carlos Drummond tem um verso famoso que diz: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.”  Eu troco esse último verbo por “matar”. Matar é o que querem os delicados de hoje, os que se horrorizam com as barbaridades diárias praticadas por pessoas diferentíssimas deles em numerosos sentidos. A barbaridade é tanta (dizem eles) que o único remédio é agarrarmos os bárbaros em plena rua, subjugá-los, arrastá-los, atá-los ao poste e matá-los a pauladas. Depois, filmaremos tudo com celulares para servir de advertência aos outros bárbaros.

Quem são os bárbaros, afinal? Somos todos nós. O bárbaro é o bicho-animal dentro de cada um, com um milhão de anos de luta pela sobrevivência, o bicho que mata, o bicho que come carne, o bicho que rói os ossos, o bicho que bate com um osso grande no tapir e depois joga o osso na direção da Lua. Como diz Caetano Veloso: “A mais triste nação / na época mais pobre / compõe-se de possíveis / grupos de linchadores” (“O cu do mundo”).

Dias atrás William Gibson comentou no Twitter: “Sujeito branco racista pratica matança numa escola. Armado de espada. Resultado: 2 mortes. Mais difícil matar gente com espada. Não é automático.”  Gibson parece estar se referindo ao fato de que com arma de fogo automática basta apertar o gatilho uma vez, e fazer o gesto de varredura em semicírculo. Ou seja: para matar 20 pessoas não é necessário apertar o gatilho 20 vezes. Vi na Internet um bárbaro, filmado na cadeia, rindo com deboche dos crimes que cometeu: “Revólver? Quero não. Eu gosto é de machado, de faca, preu sentir a dor do cara na minha mão”. Diante disso, quem não tem vontade de desistir da humanidade?

Nem todos, é verdade, defendem que esses caras sejam mortos em plena rua. Preferem que sejam mortos entre as paredes de uma prisão, na cadeira elétrica ou câmara de gás. Preferem a morte legalizada, aprovada pelos legisladores, preferem a sanção oficial para algo que já se faz artesanalmente, a pau e pedra, por esse Brasilzão afora. O filósofo popular Neném Prancha poderia dizer: “Pena de morte é um castigo tão sério que o carrasco deveria ser o Presidente da República”.

“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem todos se libertaram ainda.” A pena de morte, seja através dos linchamentos de rua ou das cadeiras elétricas do governo, é sempre a confissão de uma derrota, o reconhecimento de que somente um criminoso pode nos livrar de outro criminoso.  Cada vez que um ser humano precisa matar alguém para puni-lo por matar alguém está demonstrando que a civilização ainda não começou.




quinta-feira, 12 de novembro de 2015

3970) Augusto de Campos (13.11.2015)



No último dia 9, em Brasília, o poeta Augusto de Campos foi o principal homenageado da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura, a pessoas e entidades que se destacaram nas artes e no ativismo cultural em nosso país. Algumas semanas, antes ele já havia recebido no Chile o Prêmio Pablo Neruda, que pela primeira vez foi concedido a um escritor brasileiro. A cerimônia no Palácio do Planalto teve também uma presença de destaque de dois discípulos de Augusto: Caetano Veloso, que ao longo da cerimônia cantou algumas canções (“Tropicália”, “Alegria Alegria”, “Um Índio”, “Língua”, "Elegia") e Arnaldo Antunes, também agraciado. O filho de Augusto, Cid Campos, também cantou algumas de suas parcerias com o pai.

A influência da poesia concreta (a poesia de Augusto e Haroldo de Campo e de Décio Pignatari) na música popular brasileira tem sido visível nesses artistas e em outros (Tom Zé, Walter Franco, José Miguel Wisnik, etc.). O primeiro livro de Augusto de Campos que li foi Balanço da Bossa, o qual me abriu os olhos para inúmeras questões relativas à composição popular, ao poema, à letra de música e ao Tropicalismo, que veio recolocar muitas dessas questões de uma maneira nova e que de início eu não fui capaz de compreender.

O trabalho de Augusto de Campos como tradutor de poesia é exemplar, mesmo quando discordamos de escolhas específicas para este ou aquele verso. Não somente os poemas em si, mas as discussões e teorizações que os acompanham. Traduzir é tentar entender num raio de 360 graus algo que está apontando numa direção só. Todo verso, por mais burilado que seja, é o colapsar de dezenas de versões superpostas dele mesmo. Feliz do tradutor que percebe essa nuvem de probabilidades verbais e encontra um equivalente em sua própria língua.

Ao agradecer o prêmio em seu discurso, Augusto fez a mais imprevisível (para mim) das citações. Falou: “Disse o escritor Rex Stout, através de um personagem famoso, o  anti-Sherlock Holmes de um dos seus romances policiais, uma frase singular: Só os pessimistas têm surpresas agradáveis”.  Ele se refere ao detetive Nero Wolfe, criado por Stout: um detetive obeso, gastrônomo, que cria orquídeas em seu apartamento em Nova York. A literatura é vasta e variada como um ecossistema. Pensando bem, traduzir poemas é como criar orquídeas, é como decifrar crimes, é como saborear iguarias. Que um poeta e erudito de primeira linha seja capaz de citar num discurso um dos grandes autores do romance policial é um testemunho das muitas surpresas agradáveis que a vida reserva até aos que não são pessimistas.




quarta-feira, 11 de novembro de 2015

3969) Para contar histórias (12.11.2015)



(ilustração: John Holcraft)

De vez em quando comento aqui os conselhos técnicos de escritores e roteiristas sobre a arte da narrativa. Não existem conselhos, regras ou preceitos universais. O que serve num caso não serve em outro. O que serve para literatura não serve para roteiro, e o que serve para teatro não serve para quadrinhos.

Se você quiser contar a mesma história em cada uma dessas linguagens vai ter que começar do zero em cada caso. Não importa se é a história do Dilúvio, a de Rumpeltiltskin, a da Guerra de Canudos ou a do macaco e o leão.

Emma Coats, roteirista da Pixar, tuíta de vez em quando pequenas pílulas de advertência técnica. Parecem coisas bobas ou óbvias, mas o escritor/roteirista principiante é mais consciente dos grandes problemas do que dos pequenos. É como um cara que vai fazer um rally pelo deserto, comprou GPS, traçou plano de navegação... e pode até desdenhar conselhos bobos como “leve um estepe” ou “encha o tanque”. Mas é na falha do óbvio que os grandes projetos desmoronam.

Diz Emma: “Simplifique. Mantenha o foco. Pule os desvios. Você vai pensar que está desperdiçando um material valioso mas isto o deixa livre.”

Anos atrás eu estava escrevendo algo, estava ansioso para mostrar o que ia acontecer quando o personagem chegasse a um Castelo, mas o diabo do personagem não chegava de jeito nenhum. Cada noite que eu sentava para escrever ele parava pra dar de beber ao cavalo, pra pedir informações aos camponeses na beira da estrada, para dormir, para comer... Era como um desses videogames onde não existe teleporte e você tem que percorrer fisicamente todas as distâncias. Foi com um grito de libertação que um dia perdi a paciência e escrevi: “E assim foi o trajeto de Fulano até o dia em que, numa curva do caminho, viu o Castelo à sua frente.”

Fiquei com um pouco de remorso por não fazer o relatório do que aconteceu a ele em todos os minutos da viagem, mas a verdade é que nada daquilo tinha interesse para a minha história. Bastaram alguns parágrafos, dando uma idéia do ambiente, da cavalgada, e pulei logo para o Castelo. Não precisava daquelas dez laudas que escrevi e depois tive que jogar no lixo.

Literatura tem algumas frases mágicas. Uma delas é “Vários dias depois...” Você não precisa contar ao leitor o que aconteceu nesses vários dias, a menos que tenha acontecido algo relevante para a história. Se não for o caso, pule direto para o próximo fato importante. O leitor não vai notar, e se for um leitor experiente vai até agradecer.

Eu resumiria o conselho de Emma Coats na fórmula: “Escreva somente o que for necessário para a história que você está contando.”






terça-feira, 10 de novembro de 2015

3968) O renascer da barbárie (11.11.2015)



“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”

A cena é de High Rise (1975), o romance em que J. G. Ballard descreve um condomínio de luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionais liberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.

O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade. Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da Noite.

Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas, investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de batalha.

“Sentados em círculo à luz das velas, aqueles neurocirurgiões, catedráticos de universidade e investidores no mercado financeiro demonstravam todo o seu talento para a intriga e a sobrevivência, exercitado por anos de serviço na indústria, no comércio e na vida universitária”. A explosão de barbarismo não é apenas o ressurgimento do troglodita ansioso por “segurança, comida e sexo”.  A civilização, por mais tecnológica e racional que pareça, está a serviço dos instintos básicos do troglodita, que é capaz de brotar como um Hulk furioso todas as vezes que o verniz das convenções sociais e da segurança econômica começa a se descascar. 



3967) Arrastão em Alphaville (10.11.2015)





Este ano marca o 40º. aniversário de lançamento de High Rise (1975), um dos romances mais perturbadores do inglês J. G. Ballard. O que não é pouco, visto se tratar do autor de livros como Crash (filmado por David Cronenberg, com James Spader). Ballard é um crítico cruel da sociedade tecnoburocrática, que ele vê como uma violentação constante da natureza humana.  Os impulsos animais são cobertos com uma capa de civilização consumista, escrava da mecanização, embrutecida mental e emocionalmente através da publicidade, da política, dos códigos de conduta.

High Rise descreve três meses na existência de um enorme condomínio residencial para profissionais de alto nível, na periferia de Londres. Nesse prédio de 40 andares, com 20 poços de elevador, encontram-se todas as instalações indispensáveis à vida civilizada moderna: escolas infantis, bancos, supermercados, piscinas, salões de beleza, quadras de esporte, salões de festa. E aos poucos se forma entre os dois mil moradores uma pirâmide social com os mais ricos nos andares superiores (e elevadores exclusivos) e os mais pobres nos de baixo. Tensões sociais começam a brotar, ao mesmo tempo em que a manutenção falha e os conflitos tornam-se brigas declaradas.

Ballard obtém o efeito do fantástico através da escalada gradual do absurdo no comportamento desses executivos, astros de TV, psicanalistas, publicitários, arquitetos, etc. Eles entram espontaneamente em conflito quando elevadores, lixeiras e outras instalações começam a falhar. Das discussões com insultos verbais passam às agressões físicas, aos espancamentos, aos crimes.  Eletricidade e abastecimento de água entram em colapso, e o prédio se transforma numa imensa lixeira onde clãs de profissionais liberais, empunhando facas e bastões, invadem os apartamentos dos andares rivais, estuprando suas mulheres e saqueando suas despensas.

De dia, os moradores vestem suas roupas elegantes, ligam seus carros de luxo e vão à cidade trabalhar. À noite voltam para o prédio e se dedicam a embriagar-se em orgias ruidosas.  Praticam arrastões ao longo dos corredores, uns subindo rumo ao topo como uma forma de conquista de um poder simbólico, outros descendo aos andares de baixo para dar uma lição aos inferiores.

Delirante e provocador em 1975, o livro, a cada década que passa fica parecendo mais uma profecia terrível sobre o que pode acontecer na vida real, se forem cortados alguns fios muito retesados que mantêm erguida e esticada a lona do circo civilizatório. O vôo acelerado rumo ao futuro high-tech pode nos levar num salto brusco para o tempo das cavernas. Um primata com sede de sangue empunhando uma chave inglesa.