domingo, 15 de novembro de 2015
3972) O artista e o povo (15.11.2015)
(Milton Nascimento)
A toda hora vejo postagens nas redes sociais compartilhando canções de MPB do tipo que eu gosto, deste ano ou de 30 anos atrás. Ezra Pound dizia que certas obras são novas no instante em que nascem e continuam novas 500 anos depois. São como a água que brota de uma nascente: é aquele filete de líquido, sempre o mesmo e sempre feito de uma água nova que parece ter surgido do nada naquele instante.
E aí começa o chororô. “Não se fazem mais canções como essa hoje em dia.” “Ah, a MPB está decadente.” “A música ruim tomou conta.” “Os compositores brasileiros desaprenderam a fazer grandes canções como A Banda ou Disparada.” E por aí vai. Pois eu não acho. Acho que grandes canções no formato da MPB tradicional estão sendo compostas e gravadas a cada dia, a cada ano. Como eu viajo muito, me hospedo de vez em quando na casa de amigos, que não são necessariamente músicos, mas têm um gosto musical parente do meu. Nunca deixo de ficar conhecendo discos de gente que eu nem sabia que existia, com músicas de grande qualidade. Como eu raramente compro CDs hoje em dia (isto é outra questão, que não vou abordar agora) anoto os nomes e títulos para ouvir online.
As músicas existem, o que não existe é um sistema oficial de comércio musical (rádio, TV) fazendo por elas o que fez por A Banda e Disparada. O sistema multiplicou-se por dez em tamanho, já está decadente, mas tornou-se um toma-lá-dá-cá monetário, um aluguel de espaço eletrônico para quem pode pagar mais. E isso não é somente para a “música ruim”. Me lembro que quando Maria Rita lançou seu primeiro CD (aquele que vendeu um milhão de cópias) o Jornal Nacional da Globo deu chamada ao vivo do palco do Canecão. Não lembro de ter visto isso com nenhum outro lançamento de MPB. Fez por que? Porque o disco era bom? Porque era ruim? Não: porque alguém meteu a mão no bolso e pagou uma bela grana. Se todo mundo que compõe as bandas e disparadas de 2015 tivesse essa grana, teria acesso ao mesmo espaço.
Milton Nascimento cantava que “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Digo eu que hoje, ironicamente, cabe ao povo ir aonde o artista está, e ele está na Web. O que gostaríamos, meio egoisticamente, era ligar a TV no horário nobre e ver ali as obras-primas da 2015. Não vai ser possível. As obras-primas certamente existem e nada devem às de meio século atrás, mas mesmo aquelas só são consideradas obras-primas pelo impacto que tiveram, não apenas pela sua beleza. Nunca mais terão esse impacto, porque o sistema é cada vez mais mafioso e inacessível. A música que em 1960 brotava na vitrine brota hoje no quintal, e é preciso ir até ela, porque ela não vai mais poder vir até nós.
sábado, 14 de novembro de 2015
3971) Pena de Morte (14.11.2015)
(ilustraçao Francis Bacon)
Carlos Drummond tem um verso famoso que diz: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.” Eu troco esse último verbo por “matar”. Matar é o que querem os delicados de hoje, os que se horrorizam com as barbaridades diárias praticadas por pessoas diferentíssimas deles em numerosos sentidos. A barbaridade é tanta (dizem eles) que o único remédio é agarrarmos os bárbaros em plena rua, subjugá-los, arrastá-los, atá-los ao poste e matá-los a pauladas. Depois, filmaremos tudo com celulares para servir de advertência aos outros bárbaros.
Quem são os bárbaros, afinal? Somos todos nós. O bárbaro é o bicho-animal dentro de cada um, com um milhão de anos de luta pela sobrevivência, o bicho que mata, o bicho que come carne, o bicho que rói os ossos, o bicho que bate com um osso grande no tapir e depois joga o osso na direção da Lua. Como diz Caetano Veloso: “A mais triste nação / na época mais pobre / compõe-se de possíveis / grupos de linchadores” (“O cu do mundo”).
Dias atrás William Gibson comentou no Twitter: “Sujeito branco racista pratica matança numa escola. Armado de espada. Resultado: 2 mortes. Mais difícil matar gente com espada. Não é automático.” Gibson parece estar se referindo ao fato de que com arma de fogo automática basta apertar o gatilho uma vez, e fazer o gesto de varredura em semicírculo. Ou seja: para matar 20 pessoas não é necessário apertar o gatilho 20 vezes. Vi na Internet um bárbaro, filmado na cadeia, rindo com deboche dos crimes que cometeu: “Revólver? Quero não. Eu gosto é de machado, de faca, preu sentir a dor do cara na minha mão”. Diante disso, quem não tem vontade de desistir da humanidade?
Nem todos, é verdade, defendem que esses caras sejam mortos em plena rua. Preferem que sejam mortos entre as paredes de uma prisão, na cadeira elétrica ou câmara de gás. Preferem a morte legalizada, aprovada pelos legisladores, preferem a sanção oficial para algo que já se faz artesanalmente, a pau e pedra, por esse Brasilzão afora. O filósofo popular Neném Prancha poderia dizer: “Pena de morte é um castigo tão sério que o carrasco deveria ser o Presidente da República”.
“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem todos se libertaram ainda.” A pena de morte, seja através dos linchamentos de rua ou das cadeiras elétricas do governo, é sempre a confissão de uma derrota, o reconhecimento de que somente um criminoso pode nos livrar de outro criminoso. Cada vez que um ser humano precisa matar alguém para puni-lo por matar alguém está demonstrando que a civilização ainda não começou.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
3970) Augusto de Campos (13.11.2015)
No último dia 9, em Brasília, o poeta Augusto de Campos foi o principal homenageado da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura, a pessoas e entidades que se destacaram nas artes e no ativismo cultural em nosso país. Algumas semanas, antes ele já havia recebido no Chile o Prêmio Pablo Neruda, que pela primeira vez foi concedido a um escritor brasileiro. A cerimônia no Palácio do Planalto teve também uma presença de destaque de dois discípulos de Augusto: Caetano Veloso, que ao longo da cerimônia cantou algumas canções (“Tropicália”, “Alegria Alegria”, “Um Índio”, “Língua”, "Elegia") e Arnaldo Antunes, também agraciado. O filho de Augusto, Cid Campos, também cantou algumas de suas parcerias com o pai.
A influência da poesia concreta (a poesia de Augusto e
Haroldo de Campo e de Décio Pignatari) na música popular brasileira tem sido
visível nesses artistas e em outros (Tom Zé, Walter Franco, José Miguel Wisnik,
etc.). O primeiro livro de Augusto de Campos que li foi Balanço da Bossa, o
qual me abriu os olhos para inúmeras questões relativas à composição popular,
ao poema, à letra de música e ao Tropicalismo, que veio recolocar muitas dessas
questões de uma maneira nova e que de início eu não fui capaz de compreender.
O trabalho de Augusto de Campos como tradutor de poesia é
exemplar, mesmo quando discordamos de escolhas específicas para este ou aquele
verso. Não somente os poemas em si, mas as discussões e teorizações que os
acompanham. Traduzir é tentar entender num raio de 360 graus algo que está
apontando numa direção só. Todo verso, por mais burilado que seja, é o colapsar
de dezenas de versões superpostas dele mesmo. Feliz do tradutor que percebe
essa nuvem de probabilidades verbais e encontra um equivalente em sua própria
língua.
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
3969) Para contar histórias (12.11.2015)
(ilustração: John Holcraft)
De vez em quando comento aqui os conselhos técnicos de escritores e roteiristas sobre a arte da narrativa. Não existem conselhos, regras ou preceitos universais. O que serve num caso não serve em outro. O que serve para literatura não serve para roteiro, e o que serve para teatro não serve para quadrinhos.
Se você quiser contar a mesma história em cada uma dessas linguagens vai ter que começar do zero em cada caso. Não importa se é a história do Dilúvio, a de Rumpeltiltskin, a da Guerra de Canudos ou a do macaco e o leão.
Emma Coats, roteirista da Pixar, tuíta de vez em quando pequenas pílulas de advertência técnica. Parecem coisas bobas ou óbvias, mas o escritor/roteirista principiante é mais consciente dos grandes problemas do que dos pequenos. É como um cara que vai fazer um rally pelo deserto, comprou GPS, traçou plano de navegação... e pode até desdenhar conselhos bobos como “leve um estepe” ou “encha o tanque”. Mas é na falha do óbvio que os grandes projetos desmoronam.
Diz Emma: “Simplifique. Mantenha o foco. Pule os desvios. Você vai pensar que está desperdiçando um material valioso mas isto o deixa livre.”
Emma Coats, roteirista da Pixar, tuíta de vez em quando pequenas pílulas de advertência técnica. Parecem coisas bobas ou óbvias, mas o escritor/roteirista principiante é mais consciente dos grandes problemas do que dos pequenos. É como um cara que vai fazer um rally pelo deserto, comprou GPS, traçou plano de navegação... e pode até desdenhar conselhos bobos como “leve um estepe” ou “encha o tanque”. Mas é na falha do óbvio que os grandes projetos desmoronam.
Diz Emma: “Simplifique. Mantenha o foco. Pule os desvios. Você vai pensar que está desperdiçando um material valioso mas isto o deixa livre.”
Anos atrás eu estava escrevendo algo, estava ansioso para mostrar o que ia acontecer quando o personagem chegasse a um Castelo, mas o diabo do personagem não chegava de jeito nenhum. Cada noite que eu sentava para escrever ele parava pra dar de beber ao cavalo, pra pedir informações aos camponeses na beira da estrada, para dormir, para comer... Era como um desses videogames onde não existe teleporte e você tem que percorrer fisicamente todas as distâncias. Foi com um grito de libertação que um dia perdi a paciência e escrevi: “E assim foi o trajeto de Fulano até o dia em que, numa curva do caminho, viu o Castelo à sua frente.”
Fiquei com um pouco de remorso por não fazer o relatório do que aconteceu a ele em todos os minutos da viagem, mas a verdade é que nada daquilo tinha interesse para a minha história. Bastaram alguns parágrafos, dando uma idéia do ambiente, da cavalgada, e pulei logo para o Castelo. Não precisava daquelas dez laudas que escrevi e depois tive que jogar no lixo.
Literatura tem algumas frases mágicas. Uma delas é “Vários dias depois...” Você não precisa contar ao leitor o que aconteceu nesses vários dias, a menos que tenha acontecido algo relevante para a história. Se não for o caso, pule direto para o próximo fato importante. O leitor não vai notar, e se for um leitor experiente vai até agradecer.
Literatura tem algumas frases mágicas. Uma delas é “Vários dias depois...” Você não precisa contar ao leitor o que aconteceu nesses vários dias, a menos que tenha acontecido algo relevante para a história. Se não for o caso, pule direto para o próximo fato importante. O leitor não vai notar, e se for um leitor experiente vai até agradecer.
Eu resumiria o conselho de Emma Coats na fórmula: “Escreva somente o que for necessário para a história que você está contando.”
terça-feira, 10 de novembro de 2015
3968) O renascer da barbárie (11.11.2015)
“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”
A cena é de High Rise (1975), o romance em
que J. G. Ballard descreve um condomínio de
luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de
funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionais
liberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em
selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão
à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em
depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.
O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca
aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade.
Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem
moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma
uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a
fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se
comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da
Noite.
Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel
neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O
Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas,
investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de
Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de
batalha.
3967) Arrastão em Alphaville (10.11.2015)
Este ano marca o 40º. aniversário de lançamento de High
Rise (1975), um dos romances mais perturbadores do inglês J. G. Ballard. O que
não é pouco, visto se tratar do autor de livros como Crash (filmado por David
Cronenberg, com James Spader). Ballard é um crítico cruel da sociedade
tecnoburocrática, que ele vê como uma violentação constante da natureza humana. Os impulsos animais são cobertos com uma capa
de civilização consumista, escrava da mecanização, embrutecida mental e
emocionalmente através da publicidade, da política, dos códigos de conduta.
High Rise descreve três meses na existência de um enorme
condomínio residencial para profissionais de alto nível, na periferia de
Londres. Nesse prédio de 40 andares, com 20 poços de elevador, encontram-se
todas as instalações indispensáveis à vida civilizada moderna: escolas
infantis, bancos, supermercados, piscinas, salões de beleza, quadras de
esporte, salões de festa. E aos poucos se forma entre os dois mil moradores uma
pirâmide social com os mais ricos nos andares superiores (e elevadores
exclusivos) e os mais pobres nos de baixo. Tensões sociais começam a brotar, ao
mesmo tempo em que a manutenção falha e os conflitos tornam-se brigas
declaradas.
Ballard obtém o efeito do fantástico através da escalada
gradual do absurdo no comportamento desses executivos, astros de TV,
psicanalistas, publicitários, arquitetos, etc. Eles entram espontaneamente em
conflito quando elevadores, lixeiras e outras instalações começam a falhar. Das
discussões com insultos verbais passam às agressões físicas, aos espancamentos,
aos crimes. Eletricidade e abastecimento
de água entram em colapso, e o prédio se transforma numa imensa lixeira onde
clãs de profissionais liberais, empunhando facas e bastões, invadem os
apartamentos dos andares rivais, estuprando suas mulheres e saqueando suas
despensas.
De dia, os moradores vestem suas roupas elegantes, ligam
seus carros de luxo e vão à cidade trabalhar. À noite voltam para o prédio e se
dedicam a embriagar-se em orgias ruidosas.
Praticam arrastões ao longo dos corredores, uns subindo rumo ao topo
como uma forma de conquista de um poder simbólico, outros descendo aos andares
de baixo para dar uma lição aos inferiores.
sábado, 7 de novembro de 2015
3966) Nove bilhetes (8.11.2015)
“Mamãe. Tou indo morar com Dilermando. Ele é honesto e trabalhador, sim, pouco me importa se é feio. Falei falei ninguém quis me ouvir. Papai parece uma parede e você só faz reclamar. Apois reclame agora. Sua ex-filha, Cilene.”
“Dr. Barros: Neste envelope o sr. vai encontrar prints de
postagens recentes de sua lavra, numa rede social. Acreditei porque vi. Convoquei
o Conselho para uma reunião extraordinária hoje às 14 horas e sua presença é
exigida. A rescisão do seu contrato lhe será entregue à saída da reunião, se
não tiver uma boa explicação para isto. Duvido que tenha. Arnaldo Penske.”
“Fala Betão. Tudo em cima meu irmãozinho. Três coisa.
Primeiro o conserto do carro, tu vai ter que rachar comigo, blz? O véio virou
fera. Bora agilizar. Segundo a festa das meninas do salão de manicure vai ser
na quinta em vez da sexta, no Bar do Macuco mesmo. Terceiro: tu é muito feio,
cara, tu só tem nariz e queixo kkkkkk. Teu bróder Peninha.”
“Carminha, mulher, tu visse o que a infitete da Zezé tá
falando de tu no feice? Eu fosse tu chamava João pegava o carro e ia lá na
budega dela e bachava o cacete. Prela aprender. Sua amiga fiel, Dora.”
“Prof. Nivaldo: Registro aqui meu agradecimento pelos seus
gentis comentários ao capítulo da tese. Cabe-me esclarecer que a escassez de
referências bibliográficas é provisória e deve-se ao acúmulo de afazeres, tanto
de ordem acadêmica quanto pessoal, que tem caracterizado minha vida nos meses
mais recentes. Muito grata, sua (esperançosa) orientanda, Rosimeire.”
“Sr. Campista: Esta é a quarta vez que venho aqui, toco e
ninguém atende. Minhas mensagens e telefonemas o senhor não responde. Lamento
mas começo a ver nesta atitude um indício de má vontade, quando não de má fé.
Tomarei as providências legais cabíveis. Ariosvaldo.”
“Caro Heitor: Obrigado pelo envio dos três volumes de sua
trilogia ‘A Lenda do Unicórnio – Um Épico Céltico-Bretão’. Infelizmente a obra
não se enquadra em nossa linha editorial, pois a Conteúdo é especializada em ciências
jurídicas e sociais. Desejamos boa sorte nas próximas tentativas!
Atenciosamente, Magali Seixas, Coordenadora Editorial.”
“Márcia: Esqueça
aquilo de ontem. Foi bobagem minha. Bebida faz dessas coisas. Você e Camilo são
meus maiores amigos. Vamos dar uma risada e esquecer tudo. Atenda o telefone,
por favor. Não vou te encher o saco. Meus sentimentos são problema meu. Vamos,
atenda. Paulo.”
3965) Notas sobre videogames (7.11.2015)
Uma grande parte do público, quando ouve falar em videogame, pensa que existem apenas games de guerra, ação, aventura, violência. Games de explosões, massacres, tiroteios, bombardeios, serial killers, zumbis, etc. São numerosos, sim. Tantos quanto os filmes análogos no cinema. Mas, tal como no cinema, existem games de todo tipo. Games de mistério, games de gerenciamento (administrar uma cidade, um império, etc.), games de enigmas e quebra-cabeças. Achar que todo videogame é de violência é uma visão tão limitada quanto achar que toda a MPB consiste em samba.
Os games resgatam uma forma perdida de experiência
dramática, uma espécie de inocência onde se entra num mundo sem saber nada
dele, e é preciso aprender como funciona, é preciso assimilar tudo na base da
tentativa-e-erro. E é o jogador (ao contrário do espectador de cinema) quem
toma todas as decisões.
A maioria dos games se alterna entre trechos expositivos,
os “filminhos” onde fragmentos da história são contadas, sem interferência do
jogador, e os trechos interativos, os trechos de jogo propriamente dito. Mais
ou menos como um teatro onde cenas decoradas e reproduzidas viessem
intercaladas com cenas de improviso envolvendo a platéia.
O desenvolvimento dos jogos foi maciçamente realizado por
engenheiros que criavam a mecânica (reprodução e movimento das imagens) mas não
tinham nenhuma formação dramatúrgica. Não estavam preocupados com a arte
narrativa, ou com a psicologia dos personagens, ou originalidade nos enredos.
Seu objetivo era reproduzir movimentos plausíveis, melhorar as texturas de pele
ou de roupa, as trajetórias dos objetos, etc.
Para Tom Bissell (“Extra Lives”) os games começaram como
um desafio para engenheiros, viraram um negócio milionário ao se tornarem capazes
de produzir aventuras interativas, e somente depois passaram a ter ambições
mais “artísticas”.
O game, mais do que qualquer forma de arte narrativa,
promove um conflito entre a autonomia do autor e a autonomia do jogador. A
tensão entre uma obra fechada, onde tudo está previsto de antemão, e uma obra
aberta, onde a cada vez que o game é jogado pode ocorrer algo inteiramente
novo.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
3964) Caminhos do cinema (6.11.2015)
Muitos anos atrás, Michelangelo Antonioni observava que cinema e televisão estavam ficando cada vez mais parecidos. As salas e telas de cinema ficavam cada vez menores, e as telas da TV (e os correspondentes aparatos sonoros) cada vez maiores.
Note-se que ele disse isso em 1985, muito
antes das nossas TVs digitais de não-sei-quantas polegadas, dos nossos
poderosos “home-theatres”, das nossas salinhas especiais para 60 espectadores.
Isso era num tempo em que um cinema mediano tinha mil lugares.
A cultura do
“mash-up”, da reedição e remontagem de material alheio pré-existente, vai se
difundir cada vez mais. O uso de webcam e de transmissões ao vivo tipo “Mídia
Ninja” vai fornecer um gigantesco copião em crescimento constante e acelerado;
por trás dos que filmam virão os que editam, e esse gigantesco acervo de
material produzirá filmes coletivos de todo tipo, desde cinema-verdade até
colagem-dadaísta.
A essência do cinema (seja lá o que isto for) muda a cada ano,
a cada década. A experiência cinematográfica da minha adolescência não tem nada
a ver com a da adolescência dos meus filhos.
Lumière disse que o cinema era uma
invenção sem futuro; Thomas Edison achou que o disco fonográfico iria servir
para o estudo de idiomas. Inventores, em geral, estão examinando sua invenção
quase tocando-a com a ponta do nariz, e não fazem a menor idéia das
consequências que aquilo pode ter.
Meio século atrás, nos EUA, filmes estreavam em circuitos
secundários, periféricos, e os produtores iam avaliando a reação do público e
direcionando aquele título rumo aos mercadores mais promissores. Hoje, vigora a
cultura do “first week-end”: toda uma verba gigantesca, e a logística
correspondente, se volta para o fim-de-semana em que o filme será exibido simultaneamente
em 3 mil ou 4 mil salas, no país inteiro.
É um super investimento de risco. Um
filme que não vai bem nesses três dias de lançamento raramente se recupera. É
tudo ou nada. Em breve inventarão “cinemas sensíveis”, capazes de aferir a
resposta emocional do público ao longo da sessão e editar o filme (suprimindo
ou acrescentando cenas específicas) durante a própria projeção.
Nos subúrbios do império, a coisa é diferente. Em breve teremos
em nossos smartphones não apenas os aplicativos de câmera mas também os de ilha
de edição. Será possível filmar e editar o filme no celular, e depois distribuí-lo
via WhatsApp, email, inbox do Facebook, o escambau. Curta-metragens serão
distribuídos quase como spam, para milhares de telefones ao mesmo tempo.
"Se for algo já presente na cultura, for tecnicamente possível
e não for economicamente inviável, provavelmente irá acontecer."
3963) As mulheres na FC (5.11.2015)
("James Tiptree, Jr.")
Em suas entrevistas, Ursula K. Le Guin diz
envergonhar-se de um momento no início da carreira quando, para publicar em
revistas de FC quase exclusivamente masculinas, usou o nome “U. K. LeGuin” para
que os leitores pensassem que ela era um homem, e lessem seus contos. A FC
norte-americana foi sempre um domínio de nerds anglo-saxões; eu mesmo me
surpreendo até hoje com o fato de alguém como Isaac Asimov ter feito sucesso
sem precisar de pseudônimo.
Ursula não foi a única, coitada, a usar
esse joão-sem-braço das iniciais para esconder seu gênero. Lembro de C. L.
Moore (1911-1987), autora das aventuras espaciais de Northwest Smith, entre as
quais o clássico “Shambleau” (1933). Esposa e parceira de Henry Kuttner, Catherine
L. Moore disfarçou sua identidade feminina através de várias colaborações com o
marido e pseudônimos como “Lawrence O’Donnell” e “Lewis Padgett”.
Algo parecido se deu com a carreira de
Leigh Brackett (1915-1978), a formidável roteirista de filmes como “Rio Bravo”
(1958), “The Long Goodbye” (1973) e “O Império Contra-Ataca” (1980). O prenome
unissex certamente a ajudou em sua carreira literária. Rola uma história de que
Howard Hawks leu um livro dela e mandou contratá-la para trabalhar no roteiro
de “The Big Sleep” (1946, adaptando Raymond Chandler), pensando que se tratava
de um homem.
O caso mais notório é o de Alice Sheldon
(1915-1987), que usou o pseudônimo de “James Tiptree Jr.” para entrar no
mercado de FC e conseguiu manter esse segredo durante dez anos. Durante esse
período alguns críticos notaram um certo viés feminino na ideologia de seus
contos, que produziram um tremendo impacto entre os leitores, sendo ainda hoje
um exemplo de tratamento diferenciado das questões de gênero na FC. Em 1977 Gardner Dozois publicou uma extensa
análise de sua obra, ainda acreditando tratar-se de um homem. Talvez o disfarce
tenha sido necessário à autora por questões pessoais: ela foi agente da CIA
entre 1952-1955, e depois teve uma carreira acadêmica (era doutora em
Psicologia Experimental) que preferia manter à parte de sua atividade literária.
Exemplos como estes (certamente há
outros) são uma ilustração a mais das dificuldades que uma mulher encontra ao
disputar vaga num mercado onde os homens predominam, não somente como leitores,
mas também como editores, ou seja, as pessoas que decidem o que vai ser
publicado. Hoje, mais de 40 anos depois, nomes disfarçados dessa forma são
desnecessários, mas as recentes polêmicas envolvendo o Prêmio Hugo (onde se
debateu ferozmente a legitimidade de uma FC escrita por “minorias”) mostra que a
briga continua.
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