segunda-feira, 6 de julho de 2015

3859) Lewis Carroll (7.7.2015)





Foi em julho de 1862 o passeio a barco que o reverendo Dodgson, identidade civil de Lewis Carroll, fez com duas garotas de quem era amigo. Durante o passeio, contou a elas a primeira versão das aventuras de “Alice no País das Maravilhas”. Esse livro e sua sequência “Alice Através do Espelho” formam um díptico que não tinha muita semelhança com o que se publicava em seu país naquele tempo. As disciplinas intelectuais e as fixações pessoais de Carroll eram heterogêneas o bastante para garantir que nem todo mundo iria entender tudo, mas todo mundo iria gostar demais de um aspecto do livro.



Carroll deve ter escrito suas obras pensando tanto nas crianças ledoras e entusiasmadas quanto nos colegas lógicos e matemáticos, todo o pessoal que gosta dessas disciplinas, principalmente a geometria e o estudo do espaço e das dimensões. Quem gosta desse aspecto do “Alice” pode gostar da FC de Rudy Rucker e das gravuras de M. C. Escher. Todos os que gostam de labirintos tendo por base a geometria em sucessivos espaços dimensionais – desde o ponto, a linha, o plano, a distorção temporal e da quinta dimensão em diante. Sendo escritor de FC, “o seu é o limite”.



Ele misturava personagens e situações que não pareciam pertencer ao mesmo universo: animais falantes, cartas de baralho, monstros míticos, cavaleiro medieval, xadrez, realidade flexível... E algumas imagens que mesmo talvez inspiradas em algo anterior passaram a ser indissoluvelmente dele: o homem-ovo Humpty Dumpty sentado no muro (celebrado por John Lennon), os dois gêmeos Tweedledum e Tweedledee (celebrados por Bob Dylan), o sorriso do Gato de Cheshire (celebrado por Gal Costa). E talvez tenha ajudado Monteiro Lobato a misturar Tom Mix com mitologia grega, o Gato Félix com o Saci.



Seu texto tem uma certa imprevisibilidade lógica, algo que ele talvez tivesse em pessoa. Aquele indivíduo educado, contido, que gosta de falar e daí a pouco está pensando em voz alta, fazendo raciocínios ou suposições que deixam os interlocutores mais perdidos do que cego em tiroteio. Uma espécie de professor amalucado, mas basicamente inofensivo e simpático. As coisas que ele anotava em seus diários, “hoje inventei isso, hoje desenvolvi a idéia tal”, são surpreendentes. Vivia num mundo mental só dele, era meio esquisitão mas ao mesmo tempo todos o respeitavam.


Era ranzinza, voluntarioso, brigava com o editor, com o ilustrador, com o livreiro, porque queria que tudo fosse do jeito exato que tinha imaginado: o papel, a diagramação, o desenho, o lugar do desenho... O terror dos chefes de gráfica. Era doido? Não sei. Talvez seja a nós que falte um talento, e não a ele um parafuso.


sábado, 4 de julho de 2015

3858) A canção do suicídio (5.7.2015)



Conta-se que a cidade de Budapeste sofreu uma epidemia de suicídios nas décadas após a I Guerra Mundial.  Assim como a praga de ratos que assaltou o vilarejo alemão de Hamelin, que só se salvou com a intervenção de um misterioso flautista, houve, digamos, uma praga de pensamentos sombrios que se infiltrou em Budapeste por todas as fendas, deixando as pessoas abatidas, taciturnas, depressivas.

A devastação da guerra teve seu papel, mas enquanto outras cidades húngaras logo trataram de se reconstruir e retomar suas vidas, Budapeste mergulhou cada vez mais numa “bad trip” negativista. E os suicídios proliferavam. Havia barcos de patrulha permanentemente de vigia na proximidade das pontes, para resgatar as pessoas que se jogavam nas águas do Danubio.

Alguns deram como causa dessa onda de desespero uma canção muito popular na época, “Szomorú Vasárnap” (“Domingo Soturno”), composta por Reszô Seress e lançada em 1933. (Aqui, uma versão, com legendas em português: http://tinyurl.com/ndqn8kd). A canção ficou ainda mais popular quando em 1941 Billie Holliday a gravou em inglês, mesmo mudando a letra para um final otimista. (Aqui: http://tinyurl.com/pthrac6). É uma canção gótica, sombria, vazia de fé na vida e na humanidade. Chegou a ser banida por algumas rádios. O compositor e sua namorada também se suicidaram.

Outra versão diz que os suicídios não foram tantos e foram mera coincidência; a canção teria apenas se valido deles para lançar uma campanha de marketing. Em todo caso, surgiu uma reação quando foi criado, meio por brincadeira, o “Clube do Sorriso”, para trazer a alegria de volta à cidade. (A matéria original, com fotos, está aqui: http://tinyurl.com/ky8jqpn). Havia cursos de “como sorrir”, estudos sobre o sorriso da Mona Lisa ou de Roosevelt ou de Clark Gable, e as pessoas começaram a fabricar e distribuir máscaras artesanais com uma boca sorrindo para ser colocada por cima da boca verdadeira.

Histórias assim, contadas quase cem anos depois, sofrem simplificações violentas. O argumento dessa historieta se torna totalmente kafkeano, pois há o espírito de um Kafka pairando em cada um desses países da Europa Oriental. A literatura pode ganhar com essa mistura de morbidez sombria, humor sarcástico, atitudes coletivas bizarras. Existe algo de cartum ou desenho animado nesses rostos portando sorriso desenhados a lápis de cor; existe algo de literatura oral medieval nessa lenda de pessoas se jogando ao rio por causa de uma canção. São as raízes profundas de narrativas que falam a todos, instantaneamente compreendidas por todos, sem necessidade de explicações ou teorias.


sexta-feira, 3 de julho de 2015

3857) As formas do conto (4.7.2015)



(ilustração: José Paulo, 1990)


Muitas tentativas de definir o gênero “conto” partem de um pressuposto errado, o de que o conto tem uma única forma, uma natureza que pode ser resumida numa única fórmula. Mas o conto não tem um desenho formal obrigatório como têm certas formas fixas da poesia, tipo o soneto. Qualquer poema de 14 linhas divididas em dois grupos de quatro e dois grupos de três, com o mesmo número de sílabas em cada linha, pode ser chamado de soneto ( de modelo italiano, no caso), independente do idioma, do assunto, da cadência rítmica, etc. 

O conto, no entanto, não tem essa nitidez de design. É uma nuvem indistinta de possibilidades. E cada um joga em cima dele a definição que lhe convém.

Uma história curta. Uma história curta, com começo, meio e fim. Uma narrativa curta de ficção (=inventada, que não aconteceu). O relato curto de um fato real ou fictício. Tudo isto são definições possíveis, úteis, mas que não esgotam o assunto. 

Um gênero literário admite uma fórmula mas não se resume a ela: o gênero é a possibilidade de tensionar essa fórmula através da pressão de uma personalidade única, a do autor. Todo autor reinventa em parte o gênero que explora. Se não, os gêneros nunca mudariam. As obras 100% formulaicas podem até ter uma breve aceitação, mas desaparecem. Falta-lhes o elemento do “novo”, e até o mais indolente, o mais embrutecido leitor acaba sentindo essa falta.

Com dificuldade para produzir uma definição estrutural para o conto (além da tríade começo-meio-fim) muita gente adota o comodismo de defini-lo pela extensão: o conto seria como um romance (não é), só que curto. Todo texto curto seria conto, e isso aparece com mais nitidez  nesses concursos de microcontos (de dez palavras, 100 caracteres, duas frases, seja qual for o critério), onde qualquer texto que satisfaça o critério numérico é classificado, porque “basta ser curto para ser conto”. Não é bem assim.

Microcontos de FC em 6 palavras? 

Bruce Sterling: “Era algo muito dispendioso, permanecer humano”. Para mim, não é um conto, é uma reflexão. 

Rocke S. O’Bannon: “Está atrás de você! Corra, senão---” Sugere mais um conto: há uma situação dramática clara, embora clichê. 

Howard Waldrop: “Choveu, choveu, choveu, e jamais parou”. Também cria uma situação dramática. 

Eileen Gunn: “Computador, trouxemos baterias de reserva? Computador?...” Mais uma vez, há uma situação dramática, mas isto se parece mais com um cartum do que com um conto; é um flash de um instante, cabendo ao leitor deduzir o que veio antes e o que virá depois. 

Quando criamos uma fórmula restritiva, quantitativa, o autor é obrigado a produzir uma pepita de ouro do tamanho encomendado.






quinta-feira, 2 de julho de 2015

3856) Títulos de filmes (3.7.2015)



Anos atrás li uma matéria de jornal sobre as distribuidoras de filmes no Brasil. Um dos assuntos conversados era a atribuição de títulos. Um funcionário dizia que eles mantinham no escritório um caderno de títulos, que eram atribuídos meio aleatoriamente sempre que surgiam filmes difíceis de traduzir.  Os títulos tinham que ter a ver com o tema do filme, e deviam ser chamativos, no estilo de Trama diabólica, Pacto de sangue, Almas em leilão, Entre dois amores, À beira do abismo, Desejo mortal, Rastros de ódio...

Quando um filme se intitula Once upon a time in the West não custa muito traduzi-lo para Era uma vez no Oeste. Mas quando um filme tem o título de Giant, talvez “Gigante” passe uma idéia errada. O que faz a distribuidora? Tira de sua cartola mágica um dos melhores títulos de todos os tempos, Assim caminha a humanidade. O Sunset Boulevard de Billy Wilder poderia ter virado “Avenida Crepúsculo”, mas resultou no ótimo Crepúsculo dos Deuses.

Nem sempre essas descobertas são consequências da pobreza do original. Um filme chamado Love is a many splendored thing bem poderia ser batizado aqui como “O amor é uma coisa muito esplendorosa”, mas não acho isto melhor do que Suplício de uma saudade, que bateu e ficou. É açucarado, mas está no clima do filme, o que não acontece com o Depois daquele beijo que apuseram a Blow Up.

Quando o original tem um título marcante, melhor mantê-lo e colocar um enfeite lusófono, como temos em Outland, Comando Titânio, Minority Report: a nova lei, Videodrome, a síndrome do vídeo. Só não se deve é pegar pesado como ocorreu com Darling, a que amou demais (Schlesinger), Persona: quando duas mulheres pecam (Bergman) ou Mouchette, a virgem possuída (Bresson).

O bom e velho Expedito, distribuidor de filmes na Paraíba, era senhor-do-baraço-e-do-cutelo no circuito interiorano. Tinha o direito conquistado de cortar cenas, mudar títulos, o escambau. Contou pra gente uma vez como resolveu o problema gerado por Édipo Rei de Pasolini. “Isso é lá título!”, reclamou. E cortou o nó górdio de maneira exemplar: Édipo, o Homem Que Matou o Rei. E dizia: “É mentira minha? Assista o filme!”.

Tiro meu chapéu para quem transformou America, America de Elia Kazan em Terra do sonho distante; Bonnie and Clyde de Arthur Penn em Uma rajada de balas; The man from Laramie de Anthony Mann em Um certo capitão Lockhart, Pierrot Le Fou de Godard em O demônio das onze horas; The big country de William Wyler em Da terra nascem os homens; Deus e o diabo na terra do sol de Glauber Rocha em Le dieu noir et le diable blond.







quarta-feira, 1 de julho de 2015

3855) Aprender a ler (2.7.2015)



Quando li o Tarzan de Edgar Rice Burroughs (na antiga tradução, acho que de Monteiro Lobato, da Coleção Terramarear) um dos episódios que mais me marcaram foi aquele em que Tarzan, já rapazinho e criado pelos macacos, encontra na floresta uma cabana abandonada. 

Ele não sabe que era a cabana onde seus pais tinham vivido; fica fascinado pelos livros, que são descritos com o “olho bruto” de quem vê algo sem compreender para que serve. Os livros têm figuras, e embaixo das figuras o rapaz-macaco vê umas formiguinhas enfileiradas, assim: “m-e-n-i-n-o”. E com isso ele vai relacionando as formiguinhas com as figuras, e aprende sozinho a ler. 

Fantasioso? Sem dúvida, mas é dramaturgicamente impecável, e é a única cena do livro que eu lembro inteiramente até hoje.  (No original, aliás, é até mais plausível: ele se acostuma a ver as três formiguinhas b-o-y embaixo de toda imagem de um menino.)

Dias atrás fiz uma palestra para uma turma de estudantes de leitura numa escola particular em São Paulo. São pessoas na faixa dos 30-40 anos que não tiveram carreira escolar normal e que agora, depois de adultos, estão praticando a leitura, inclusive leitura em voz alta. Meus cordéis publicados pela “34” (Artur e Isadora, O Flautista Misterioso) estão sendo estudados por eles, daí o convite para que eu fosse trocar idéias.

Contei a eles o caso do cordelista João Martins de Athayde. O pai queria que o menino o ajudasse na roça, e proibiu que ele estudasse. O garoto era teimoso, e aprendeu a ler por conta própria. Pegava pedaços de jornal que tinham ficado presos nas touceiras do mato, e perguntava às pessoas: que letra é essa, etc. Depois, conseguiu uma carta do ABC e andava com ela escondida no chapéu, estudando-a escondido, sempre que tinha tempo, fazendo perguntas a um e a outro. Assim se alfabetizou.

Há muitos casos de cordelistas analfabetos que compunham seus folhetos inteiramente de memória e depois ditavam as sextilhas a um filho que sabia ler e escrever. E o mais bonito é que a alfabetização do filho era custeada com a venda dos folhetos do pai analfabeto.  

E há o caso famoso de outro poeta popular, não me ocorre agora qual deles, que estava dando uma entrevista a um jornalista do Sudeste, que a certa altura lhe perguntou: “Seu Fulano, o senhor estudou?”. E ele respondeu, com modesto orgulho: “Não estudei, mas hoje sou estudado.”

Há numerosos tipos de meritocracia, mas ainda estou para ver um exemplo de alguém que tenha dependido exclusivamente de si próprio para vencer na vida. Da minha parte, gosto de lembrar essas histórias dos cordelistas humildes todas as vezes que recebo um cachê para falar numa Feira do Livro.





3854) A Oferenda (1.7.2015)



“Desde o cair da noite a cidade está cheia de expedições punitivas com homens empunhando barras de ferro, tochas, facões, lanternas e megafones. Incêndios crepitam nos sobrados dos recém-aprisionados. Os grupos gritam palavras de ordem, gritam os slogans que há meses lemos nos panfletos caídos na sarjeta ou distribuídos nos vagões de trem. Os perseguidos são poucos, mas são conhecidos, e em cada bairro as milícias armadas partem direto para o endereço de cada um, como que obedecendo a um planejamento urdido há meses no silêncio das conspirações.

“Caminho pela rua a passos apressados, porque é assim que todos estão andando, e não quero chamar a atenção. Não reconheço a rua onde ando; o que vim fazer aqui? Visto roupas que não são minhas. Não sei por que estou disfarçado. Sinto-me zonzo, desorientado, não sei ao certo para onde devo ir, sei apenas que preciso andar depressa. O alarido aumentou, e em cada rua que percorro são mais numerosas as poças de sangue, os corpos frouxos que pendem amarrados aos postes ou aos parachoques dos carros. Apresso o passo, vou me esquivando dos grupos com quem cruzo, os jovens ferozes de peito inflado, os cidadãos de olhos baixos, tensos, as mulheres dando-se os braços, apressando-se em passinhos miúdos rumo a algum refúgio possível.

“Disfarçado, irreconhecível, vejo surgir à frente um portão, que se abre, a mão de um menino me puxa para dentro de um pomar com árvores copadas, onde um cachorro fareja meus pés e se afasta. O garoto me conduz por entre os troncos, até um pátio coberto por um telheiro baixo. Homens de chapelão e de fuzil a tiracolo me apressam. Outro portão ao fundo. Trancas de ferro são afastadas; empurram-me com gentileza. Outro cão, maior, se aproxima e esfrega o focinho na minha mão estendida, parece me reconhecer. O portão se fecha e sigo sozinho por um corredor abobadado e úmido, desço degraus de pedra, vejo ao longe uma grade de ferro.

“Quem são essas pessoas? Onde estou? Do que estou fugindo? A grade desliza rangendo para o lado, o impulso irresistível da fuga me obriga a cruzar o umbral, sinto a grade deslizar de volta. Um cheiro de urina velha e de carne em decomposição. Um porão vasto, ao fundo do qual ergue-se uma criatura quadrúpede e mais alta do que eu, de pelo negro e olhos brilhantes, farejando-me. Caio de joelhos na palha úmida, porque sei por fim que minha caminhada terminou. A cidade será pacificada, enterrará os seus mortos ao nascer do sol, seguirá seu caminho graças a mim. Quando ele se aproxima e arreganha os dentes de um palmo de comprimento, eu fecho os olhos e aceito meu destino. Eu sou a Oferenda.


segunda-feira, 29 de junho de 2015

3853) O Futebusiness (30.6.2015)



A Seleção Brasileira ganhou dez amistosos seguidos mas bastou soltarem-lhe em cima duas ou três seleções sulamericanas e caímos todos na realidade. Uma coisa é ganhar de seleções européias que estão cumprindo um contrato Fifa “entre bocejos e pés de chinelos” e tirando fotos com os fãs. Outra coisa é entrar em campo para enfrentar colombianos e paraguaios com sangue no olho e cem anos de piadinhas verde-amarelas nos ouvidos.

O futebusiness internacional não deseja nem recomenda a decadência das grandes seleções. Tudo que ele quer é subir o sarrafo financeiro a ser saltado por todos: clubes, televisões, patrocinadores, seguradoras, confederações. Todo mundo está gastando mais com o futebol. O esporte corporativo gentrifica a pelada de rua e a transforma num complexo de gastos que vão do hotdog ao direito de imagem, da cadeira numerada à percentagem nos contratos. Ninguém quer diminuir com isso a qualidade do jogo, pelo contrário. Mas é como chamar um jogador e dizer: “Olha, você ganha 100 mil por ano, agora vai ganhar 25 milhões, e precisa corresponder à altura.” O jogador não sabe como multiplicar sua qualidade técnica nessa proporção; acaba multiplicando a marra, o nervosismo, o discurso pretensioso de vendedor-do-ano ou de escolhido-por-Deus.

Nosso sofrimento na Copa América foi uma mera continuidade do sofrimento numa Copa do Mundo em que nosso time não jogou uma boa partida sequer. Ganhou aos tropeções de times mal ranqueados, ganhou dando pancada (o time que fez mais faltas na Copa de 2014), ganhou cavando pênaltis ridículos. Na Copa América, esse tecido de incompetência continuou a ponto de não se enxergar a costura. De Felipão a Dunga a única mudança notável foi a entrada de mais uma leva de nulidades como Roberto Firmino, Douglas Costa, Filipe Luís... Se eu vir algum desses cidadãos jogar futebol no futuro, retirarei alegremente o que digo.

Jogadores medíocres escalados para se valorizarem no mercado, e o técnico deve dizer: “Olha, tou te dando uma chance única, vê se aproveita.” Até os que são bons jogadores sofrem uma pressão que os deixa mentalmente descompensados, como Thiago Silva, praticante de alguns dos gestos mais absurdos dos últimos anos; e Neymar, craque e prima-dona. Reitero o que disse: as megacorporações não querem enfraquecer o futebol brasileiro, não querem que o Brasil perca. Nossas vergonhas são mero efeito colateral. O que está acontecendo no mercado do futebol (e espero que o escândalo Fifa possa significar o começo do fim) é como durante uma partida arrancar o Maracanã do lugar onde está e depositá-lo em outro. Impossível não ter efeito na bola. A bola pune.





sábado, 27 de junho de 2015

3852) Não poetize o poema (28.6.2015)



Numa entrevista concedida em 1994 a José Geraldo Couto, João Cabral de Melo Neto assim falou a respeito da noção de poesia:

Naquele poema ‘Alguns Toureiros’ eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como se você planta uma rosa e depois acha que a rosa não está cheirando o suficiente e aí põe, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais (risos). Eles perfumam o poema. Existem toureiros que fazem isso também, floreiam demais o jogo.”

Poetizar o poema significa encher o poema de emoticons, de pequenas sinalizações indicando ao leitor a reação emocional que o poeta espera provocar. Sinalizações que revelam a insegurança do poeta com relação aos meios que emprega. 

Ele acha que o que escreveu não é suficiente, acha que o leitor não vai entender, e começa a reescrever aumentando, começa a encher o verso de pequenas redundâncias, como se cochichasse ao leitor, “olha só, isso aqui é triste”, “preste atenção, aqui é para você achar graça”, e assim por diante. Surgem redundâncias como “um sorriso alegre cheio de felicidade”.

Isso equivale, na prosa, àquele excesso de informações que o escritor, ansioso para descrever bem uma ação, começa a jogar no papel (e no olho do leitor). “Fulano entrou na sala esbaforido, enxugando o rosto, devido ao calor que fazia lá fora, pois era um dia de sol forte, uma vez que estavam em pleno verão e isso o fazia suar bastante”.  

Ou aqueles pequenos detalhes que todo escritor já cometeu uma vez ou outra: “Fulano ergueu as duas mãos no ar” (o que faz o leitor pensar: “e por que não as cinco mãos, ou as dezessete?”).

João Cabral via na arte dos grandes toureiros uma redução do jogo corporal ao mínimo essencial de movimentos, uma espécie de balé no limite entre a vida e a morte, uma economia de gestos onde um movimento a mais poderia desequilibrar o conjunto e fazer com que o toureiro fosse atingido. A mesma economia de traços de um desenho de Miró ou de Picasso (para ficar nos espanhóis).

Poetizar o poema é enchê-lo de adiposidades verbais, é achar que dois adjetivos invariavelmente se somam (quando na maioria dos casos cada um enfraquece o outro). 

Sem falar no uso do que ele chama de “elementos já convencionalmente poéticos”, ou seja, “rosa” é uma palavra considerada naturalmente poética, enquanto que “fósforo” ou “lagartixa” não o são. Uma noção que (para ficar nos nordestinos) Augusto dos Anjos já tinha bombardeado muito tempo antes.






sexta-feira, 26 de junho de 2015

3851) Um rádio ligado (27.6.2015)



Um rádio ligado pode fazer companhia a um ser humano que saiba mantê-lo à devida distância. Pense numa casa bem silenciosa. O sujeito entra, fecha a porta, acende a luz, abre a janela, tira a camisa...  Está sozinho. Vive só.  Barulho, somente o ronronar da geladeira, e o zum-zum do mundo lá fora.  O silêncio é opressivo e ele sente como se estivesse se deslocando no interior de um holograma cúbico.  Ele faz isso o dia inteiro, já sabe todo o passo-a-passo de viver naquela casa, mas mesmo assim reina naquele lugar uma espécie de asfixia.  Daí, ele liga o rádio. Aquele jato de som parece puncturar a realidade e criar uma realidade maior ainda.  Uma realidade 3D, ou em todo caso com um D a mais que a anterior.

A televisão cumpre essa função para muita gente; mas a televisão é possessiva, apropriativa, requer atenção total. TV é como aquelas mulheres bonitas que exigem que o sujeito não desvie o olhar um só instante. Já o rádio é mais livre. Parece mais um ambiente do que uma mensagem direcionada. Se a famosa Realidade Virtual se impuser, se daqui a pouco estivermos assistindo o telejornal na manga do blusão, aí sim, esse ambiente poderá ser tão magnânimo com nossa atenção quanto o rádio tradicional. 

Não falo do rádio que mais ouço, que são as jornadas futebolísticas.  É possível ficar trabalhando e ouvindo baixinho um jogo normal de meio de semana.  Na TV, seria preciso parar tudo. O rádio só exige isso se for jogo decisivo. Mas futebol é jornalismo, é só um segmentozinho. Rádio é ambiente porque som é 360 graus, é um círculo completo, enquanto nosso campo visual pega talvez metade disso. Rádio é esférico. Talvez ainda surja um rádio cuja trilha sonora reage à chegada de alguém e começa a tocar uma playlist específica para cada aposento que a pessoa percorre, como num conto de Ballard.

Um rádio ligado é uma pessoa falando, e geralmente uma pessoa jovial, autoritativa, compreensiva, emocionada, humorística, uma pessoa se oferecendo pra fazer muitas coisas por você, uma voz lhe oferecendo coisas, porque no rádio e na TV as coisas se sucedem tão rapidamente que tudo parece uma mera lista. O rádio parece a conversa descontraída entre dois amigos de infância dos quais um é mudo, e o outro, por solidariedade, sente-se com a missão de preencher sozinho todos os espaços de silêncio.

“Ele me faz companhia”, repetem as donas de casa há um século, enquanto arrumam a sala ou manipulam as panelas. O rádio tranquiliza, daí haver a obrigação tácita de que os locutores mantenham aquele tom jovial, despreocupado, persuasivo. O rádio é um fantasma sem corpo cuja função é evitar que o silêncio nos malassombre.


quinta-feira, 25 de junho de 2015

3850) 12 cantadas (26.6.2015)



Cláudio Sancarlos, economista, 49 anos, aproximando-se de uma comerciária que aguarda num ponto de ônibus, ao anoitecer, e explicando em voz baixa: “É xique-xique no pixoxó, e duas coroas-de-frade ao redor”.

Joseph Goldpepper, 61 anos, industrial, inglês, para Lin Tai Wang, 22 anos, coreana, no bar do hotel cinco estrelas onde ele está hospedado e ela atende às mesas: “Me dê uma noite sua, e quem sabe eu lhe darei os anos que me restam”.

Marcílio Rocha, 32 anos, para Lucileide Barros, 24 anos, de pé num ônibus apertado da linha 583, Cosme Velho – Leblon: “Posso ficar aqui perto de você? Gostei desse perfume.”

Casimiro Carneiro, 58 anos, português dono de bar, para a mulata que se encostou no balcão, pediu um Campari, bebeu e perguntou quanto devia: “Já pagou, antes mesmo de pedir.”

Walnério Santos Silva, 33 anos, violonista, integrante do Clube da Seresta do Grajaú, no intervalo após a canja do convidado especial: “A próxima música eu peço licença para dedicar a uma pessoa aqui presente, cujo nome não sei, mas essa pessoa sabe que é para ela, que tudo que vai ser dito aqui eu estou dizendo para ela.”

Ivo Cabeleira, 37 anos, campeão de snooker da associação atlética do bairro, mastigando um palito, na orelha-em-pé de uma balzaca gostosona que passava: “Só quero casa, comida, roupa lavada, e dinheiro pra cerveja.”

Domício Lemos Catunda, 48 anos, comerciante, para a senhorita que espera a mala ao seu lado, junto à esteira de bagagens de um aeroporto: “Podíamos rachar um táxi até a minha casa, o que acha?”

Dr. Balbino Araújo, 40 anos, advogado de uma fábrica de brinquedos, segurando um pequeno pacote com papel-de-embrulho denunciador de origem: “Quem não sabe dar não merece receber.”

Macedinho, 37 anos, filho de Oxóssi, capoeirista, fã de quadrinhos, frentista de profissão: “Madame, o que a senhora precisa é de um motorista de absoluta confiança, um homem que saiba apreciar e seguir instruções bem claras.”

François Mareillat, 40 anos, professor universitário em Montpellier: “Nunca ninguém me fez perguntas tão diretas, nunca ninguém me bouleversou dessa maneira, nunca ninguém inclinou a tal ponto o declive do meu devir.”

Carlitão das Nega, olindense, 29 anos, mestre-sala de escola local, camiseta jogada sobre o ombro, óculos escuros espelhados, para a dona do restaurante onde planeja descolar um prato: “Isso é Generina? Puxa vida! Tás batendo o maior bolão, visse? Conta esse segredo, criatura.”

Carlinhos Aguiar, 12 anos, para Vivi Pereira, 11 anos, na saída do colégio, depois de passar a manhã inteira tomando coragem: “Quer ir ver um filme comigo no domingo? Mas tu vai ter que pagar a tua.”