sábado, 26 de julho de 2014

3561) Achei dentro dum livro (26.7.2014)



Quando estou folheando os livros das minhas estantes encontro de tudo um pouco. 

Como tenho o costume de fazer anotações, uso muitas vezes como marcador de página uma pequena ficha pautada, onde vou anotando detalhes ou os números de páginas onde há algo interessante, quando é um livro que por um motivo ou outro não quero rabiscar. (Quando é um livro comum, anoto tudo na última página em branco.)  

Mas me acontece muito encontrar fotos, tickets de avião (nos livros que leio durante o voo), bilhetes, contas, canhotos de ingressos de cinema ou de shows, cartões postais, o escambau. 

O websaite Abebooks publicou um levantamento feito com livreiros de livros usados do mundo inteiro, onde eles relatam o que acham nos acervos que vêm parar nas suas mãos. (Aqui: http://tinyurl.com/5q2qlk)

Há a história de uma mulher que comprou um livro antigo num bazar, no Novo México, e encontrou dentro 40 notas de mil dólares. Essas notas, de uma série impressa pela última vez em 1934, valem mais até do que seu valor nominal.  

Outro item valioso foi achado por um livreiro da Califórnia: um cartão de Natal com uma assinatura ilegível, que ele levou anos para identificar como sendo de L. Frank Baum, o autor de O Mágico de Oz. O cartão foi vendido depois num leilão por 2.500 dólares. 

Alguns livreiros são mais honestos do que o normal. Uma livreira de Idaho achou cem dólares num livro e os devolveu à pessoa que deixara o livro em consignação. (Tenho certeza de que muitos leitores dirão: “Ah, não tinha que devolver! Se o dono do livro não viu o dinheiro, azar o dele!”)

Esses livreiros já acharam dentro de livros antigos uma receita médica datada de 1785, uma carta manuscrita por C. S. Lewis (o autor de Narnia), o texto integral de uma conferência astronômica proferida por alguém em 1895. 

Há também registro de pequenos objetos encontrados entre as páginas, desde um dente de criança até um anel de ouro com um pequeno diamante ou uma tesoura ou uma camisinha não usada ou uma mecha de cabelo ou um biscoito de chocolate ou uma fatia de bacon. 

Um livreiro de Michigan achou num livro sobre futebol um cupom de poupança no valor de 500 dólares, e ao contactar a família descobriu que o cupom estava perdido há onze anos, e eles tinham revirado a casa inteira à sua procura. O achado acabou custeando a entrada de uma das filhas, agora adulta, na universidade.

Um livro qualquer acaba se tornando às vezes um bolso de ocasião, um pequeno cofre, uma cápsula do tempo onde a gente se depara com o estranho, o bizarro, o inesperado. Alguém poderia organizar uma antologia de contos com esse tema. Dou esta idéia de graça.








sexta-feira, 25 de julho de 2014

3560) A volta de Sherlock (25.7.2014)



Foram os fãs de Sherlock Holmes que criaram a “fanfic”, a ficção escrita por fãs utilizando os personagens e o universo que admiram. Depois da morte de Conan Doyle em 1930, seus leitores, insatisfeitos com a impossibilidade de novas adições ao Cânone (o conjunto de 4 romances e 56 contos escritos por Doyle sobre o detetive) começaram a inventar e publicar histórias por conta própria. Hoje, a biblioteca sherlockiana encheria uma livraria de boas dimensões.

Uma novidade recente é o bom romance The House of Silk (2011); no Brasil “A Casa da Seda”, pela editora Zahar, 2012, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges.  Anthony Horowitz, um conhecido autor de romances juvenis da Inglaterra, emula com habilidade e sem exagero o estilo de Doyle, e seu livro é bastante fiel ao ambiente, à época e aos personagens. O especialista Leslie Klinger apontou inúmeros erros de detalhe, mas nenhum livro é escrito para satisfazer totalmente os especialistas; o próprio Klinger deu ao romance uma nota B+ e o considerou “perfeitamente satisfatório”.

Holmes e Watson estão em Baker Street e a chegada de um cliente os envolve em dois mistérios que parecem correr lado a lado, e que o autor faz convergir de maneira surpreendente e plausível, no final. O livro tem as habituais “set-pieces” sherlockianas, como o truque de adivinhar o que Watson está pensando, os disfarces irreconhecíveis, a fuga mirabolante, os comentários aparentemente “non sequitur” feitos por Holmes como se desse pistas enigmáticas sobre suas deduções.

Não gosto muito das paródias que ridicularizam os personagens de Doyle, embora algumas sejam divertidas, como as de Maurice Leblanc, Robert L. Fish e até do nosso cartunista Carlos Estêvão. O grande desafio da fanfic sherlockiana, o que pode elevá-la de fanfic a literatura profissional, é saber captar a época, a dinâmica da dupla de personagens, os esquemas de dedução, as eventuais explosões de ação física e de violência. O mistério sherlockiano é um sub-gênero nobre do romance policial. Parece simples, porque “tudo já está pronto”, mas por isso mesmo exige uma criatividade e originalidade extra do autor. Horowitz se sai bem.  A aventura que concebeu tem um lado cruel e repulsivo que não está presente no Cânone, mas é a cara da época vitoriana. São os “outros vitorianos” estudados por Steven Marcus em The Other Victorians: a Study of Sexuality and Pornography in Mid-Nineteenth-Century England (1966), um submundo criminoso habitado por nobres, fidalgos, pares do Reino e outros adversários poderosos e maquiavélicos, quase capazes de derrotar Sherlock Holmes num combate sem trégua e sem mercê.  Eu disse: quase.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

3559) Smartfone (24.7.2014)




Será que a grafia “smartfone”, que já vejo sendo usada por aí, vai substituir “smartphone”, o termo original em inglês?  A tendência natural da nossa língua, ao assimilar palavras estrangeiras, é escrever da maneira que se pronuncia: futebol, gol, chofer, etc.  Uma partícula escrita com intenção de pronúncia inglesa atrapalha o usuário, está pedindo para ser mudada. Temos aí um ponto de inflexão, algo que está assumindo uma forma que, por algum motivo, tende a não se fixar, a ser substituída por alguma outra. Aquilo que o I-Ching chama de linhas instáveis ou mutantes, pequenos detalhes que estão a ponto de se transformar noutra coisa.

Daí que eu prefira escrever “websaite” e não “website”, e já expliquei esta opção num artigo recente (http://tinyurl.com/nh6nno8). Me parece que trocar um “ph” por um “f” é muito mais simples, uma transição quase imperceptível, ajudada aliás pela nossa reação subliminar de considerar as coisas escritas com “ph” como antiquadas.  Imagino quanto tempo levará para a língua brasileira a eliminar esse “ph” de “photoshop” e adotar de vez a grafia “fotoshop” (na qual “s” seria mantido para evitar a confusão com “chope”, a bebida.).

É bom lembrar que as letras K, W e Y foram (ao que me consta) recuperadas para nossa língua por uma dessas reformas ortográficas recentes. Não creio que a partícula “web”, por exemplo, venha a ser substituída por “ueb” ou “uébi”, como querem alguns usuários. Creio que o “w” em casos assim tende a se fixar. Por outro lado, as grafias que induzem a pronúncias erradas deveriam ser substituídas, daí que eu prefira escrever draive, pendraive, saite, etc.  (Mas nem sempre cola – os implacáveis revisores restituem a forma anterior com fervor inquisitorial.)

E o que fazer com “iPhone”?  Esse “i” minúsculo que se pronuncia “ái” é uma marca visualmente muito característica; na verdade considero esta uma palavra composta mas sem hífen, a junção sendo assinalada pela manutenção da inicial maiúscula no segundo termo. Pode ser que um dia digamos (com coerência acústica) “aifone”, ou, por escrito, “aiFone”, mas duvido. Esse “ai”, que soa como uma queixa ou lamento (ao invés de induzir o individualista “Eu” do termo em inglês), não vai pegar facilmente em português.

A lógica sugere que “wi-fi” seja um dia trocado por “uai-fai”, mas não sei se teremos essa ousadia coletiva. “Uai”, que sugere interjeição mineira, corre o risco de introduzir um ruído, desviar a atenção do leitor e fazê-lo ter uma primeira interpretação errada da palavra. Como o “w” está se reincorporando ao alfabeto, o termo poderia virar “wai-fai”. Isso cola? Que o tempo o diga.


quarta-feira, 23 de julho de 2014

3558) Escrever por dinheiro (23.7.2014)



O escritor Neil Gaiman conta que no início de sua carreira, ainda pouco conhecido, recebeu um telefonema de uma editora propondo-lhe trabalho. Queriam saber se ele estava disposto a escrever um livro sobre um artista de rock, uma espécie de biografia. Ele se entusiasmou com a idéia e começou de cara a propor temas: Velvet Underground, David Bowie, Elvis Costello... A editora o interrompeu e disse: “Calma, não é você quem escolhe. Me diga: você quer escrever um livro sobre Barry Manilow, sobre o Def Leppard ou sobre o Duran Duran?”.  Gaiman acabou topando escrever sobre o Duran Duran, que era uma banda relativamente nova, porque, diz ele, “para escrever sobre Barry Manilow eu teria que escutar pelo menos uns 40 discos de Barry Manilow”.  O livro foi escrito, e é Duran Duran: The First Four Years of the Fabulous Five (1984).

Escritores principiantes têm às vezes uma idéia meio maniqueísta sobre os conceitos de trabalho artístico e trabalho comercial. O trabalho artístico seria aquele que “vem de dentro”, como se costuma dizer. Uma idéia que o artista tem por uma mera idiossincrasia pessoal, uma inspiração, um impulso, uma veneta soberana do seu Ego.  E o trabalho comercial seria aquele que ele faz por dinheiro, pressionado por pessoas de moral escusa que percebem o momento financeiramente fragilizado que ele vive; um trabalho que não se distingue da prostituição, da venda de favores sexuais para pagar o aluguel, o condomínio e o seguro do carro.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra, pessoal. O que a vida real nos propõe são situações próximas do episódio relatado por Gaiman. Na minha experiência, recebo o tempo todo propostas como aquela. Nem somos totalmente livres para escolher, pois se trata se um projeto alheio para o qual estamos sendo convidados, nem somos obrigados a aceitar tudo – há sempre uma margem de múltipla escolha onde podemos escolher o que mais nos agrada, ou o que menos compromete a nossa reputação. E, no caso do artista freelancer, existe a possibilidade de dizer: “Ih, rapaz, não achei muito interessante. Chama outra pessoa, mas na próxima vez me fala de novo, pode ser que role.”

O escritor profissional não vive apenas de ter idéias geniais na calada da noite, vive do telefone que toca às três da tarde convidando-o para fazer algo em que ele nunca tinha pensado. O profissionalismo começa no momento de aceitar ou não, de ter a coragem de recusar quando o trabalho não convém, e a disposição para fazer o melhor possível depois que aceita. Até mesmo as garotas do “trottoir” têm a chance de escolher se querem entrar no carro daquele cara, ou se acham que é uma roubada.


terça-feira, 22 de julho de 2014

3557) Jogador que se joga (22.7.2014)



(Robben, o bailarino)

O jogador brasileiro confirmou e carimbou, nesta Copa, a sua fama de “flopper”, de jogador que se joga ao chão sem ter sofrido falta, fingindo ter sido atingido, para induzir o juiz à marcação de um pênalte.  Entre nós, na nossa cultura da malandragem, isto é visto como esperteza, como inteligência. Quem age assim tenta fazer de otário o jogador do outro time (que poderia ter feito a falta, optou por não fazê-la, e foi punido por isso) e o juiz (que acreditou na mentira).  

Essa malandragem de “cavar pênalte” é da mesma categoria do sujeito que paga o restaurante com cheque sem fundo, do sujeito que falta ao trabalho porque tomou uma carraspana e pede atestado médico a um doutor amigo, do sujeito que combina com alguém para que roube seu carro, embolsa o seguro e ainda vende o carro por baixo do pano. É disso que muitos brasileiros se orgulham.

Pois olhe, se eu fosse jogador de futebol e entrasse na área com a bola dominada eu faria como faz Lionel Messi – alguém só me derrubaria com um tiro de espingarda 12. Quem parte pra fazer o gol quer fazer o gol, mas esses atacantes de hoje quando sentem o bafo do zagueiro desabam como florzinhas no vendaval. Nesta Copa do Mundo, o ridículo pênalti marcado a favor do Brasil no jogo de estréia contra a Croácia (pênalti salvador, aliás), numa encenação patética de Fred, acabou sendo prejudicial a longo prazo. Pênaltis verdadeiros a nosso favor acabaram não sendo marcados, porque nosso time perdeu a pouca credibilidade que já tinha. É um tanto humilhante sair navegando pelos websaites de futebol mundo afora e perceber que nós, os ex-reis do futebol, somos hoje objeto de zombaria do mundo inteiro (antes mesmo dos 7x1), como covardes e desonestos, que têm medo de tentar o gol.

São só os brasileiros? É somente Neymar que é “cai-cai”?  Claro que não.  Esta Copa nos trouxe de volta o holandês Robben, um notório cavador de pênaltis graças a suas quedas acrobáticas (ganhou um de graça contra o México). Mas esse traço indica um indivíduo (ou todo um grupo social) que tem medo de ousar e prefere transferir a responsabilidade para alguém. O jogador-que-se-joga poderia tentar o gol, mas tem medo de perder e ser cobrado; acha melhor fingir que sofreu um pênalte e jogar a responsabilidade nas costas de um colega. É curioso que, apesar da aparente facilidade do pênalte, inúmeros atacantes desfrutam de uma chance muitíssimo melhor do que a cobrança de um penal, mas a covardia os inibe de tentar. Pode ser um sintoma daqueles povos que acham que o Governo é quem tem de resolver todos os problemas, e ele, cidadão, não tem dever algum, tem só direitos.


domingo, 20 de julho de 2014

3556) Questões de tradução (20.7.2014)



Por que traduzir um livro já traduzido? Os leigos se dividem. Uns dizem que é porque a primeira edição tinha erros, e que a segunda deverá ser igual à primeira, menos esses erros. Outros, que a tradução existente é muito antiga e é preciso trazer aquela obra para “a linguagem moderna de hoje”.  

Tudo isso é possível, mas do ponto de vista meramente literário uma obra qualquer propõe um jogo recriativo com diferentes graus de dificuldade para cada idioma e cada tradutor. Como ficaria “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa em russo, ou Exercícios de estilo de Queneau em mandarim?

Vou citar um exemplo simples, que um amigo me propôs recentemente. “I was devastated with the news of my grandmother’s death”Um tradutor pode dizer: “Eu fiquei devastado com a notícia da morte da minha avó.”  Outro diria: “Eu fiquei arrasado com a notícia da morte de minha avó.”  

Qual dos dois está mais certo?  Em termos literais, ambos estão igualmente certos, têm sentido equivalente, mas o verbo “arrasar” e o adjetivo “arrasado” se tornaram muito mais frequentes na nossa linguagem coloquial. “Fiquei arrasado”, portanto.

O verbo devastar não aparece muito em nossa linguagem afetiva, sobre assuntos pessoais. É quase um verbo técnico: “Um tornado devastou na tarde de ontem uma região de Illinois...”  Em português de agora, “fiquei devastado” tem intenção metafórica bem clara, mas não corresponde a um modo de falar familiar e espontâneo. Se a intenção do autor é dizer uma frase que não chame a atenção, melhor dizer “arrasado”. Nada impede que quarenta anos atrás devastar e arrasar fossem igualmente comuns, ou que voltem a sê-lo daqui a mais quarenta.

O tom das palavras muda, o seu peso, a dramaticidade da idéia que se quer passar. E os inventores de expressões (tanto na literatura quanto na fala das ruas) vão procurando formas mais inesperadas, mas plausíveis, de dizer a mesma coisa. 

"Eu virei um hindemburg quando minha avó morreu." 

"A quebra da minha firma ano passado foi um naufrágio titânico." 

"Rapaz, o resultado do jogo de ontem me obliterou." 

Expressões assim chamam a atenção na primeira vez que são usadas; com o tempo podem se tornar tão neutras quanto “fiquei arrasado”.

É possível que algum tradutor use devastado por outras razões.  A história pode estar se passando em 1920.  Talvez em inglês o sentido da palavra tenha se mantido mais ou menos uniforme; mas como “arrasado” ganhou hoje uma roupa de coloquialidade, se o romance se passa muito tempo atrás, dizer “fiquei devastado” pode ficar um pouco “de época”, evocar indiretamente uma maneira mais floreada de falar, ao invés de um coloquialismo datado de hoje.







sábado, 19 de julho de 2014

3555) João Ubaldo (19.7.2014)



O falecimento de João Ubaldo Ribeiro entristeceu todo mundo que gosta de literatura, inclusive eu, que conheço tão pouco sua obra. Nunca li Viva o Povo Brasileiro, por exemplo, que dizem ser o seu “grande livro”, o que não duvido, pelos longos trechos que cheguei a conhecer aqui e ali. Li o Sargento Getúlio nos anos 1970 e achei extraordinário. Li uma porção de contos, e depois me habituei a ler suas crônicas na imprensa. Li em parte seu romance de ficção científica, O Sorriso do Lagarto, de que não gostei muito, mas merece ser reavaliado.  Mas não posso dizer que conhecia bem a obra dele. Conhecia o estilo, que era exuberante, aos borbotões, baianamente derramado, cheio de malícia, de irreverências divertidas, de uma ironia com os poderosos bem próxima à de Jorge Amado. Como este, ao que parece, tinha o hábito de citar pessoas reais nos seus romances, recurso que (já me disseram) é receita infalível de sucesso, pois cada cidadão citado torna-se um entusiasta divulgador do livro.

Ubaldo traduziu, ele próprio, seu romance principal para o inglês, com o título An Invincible Memory – uma façanha espantosa. Vi-o dizer, numa entrevista, que foi uma doidice e que jamais faria aquilo de novo. Talvez tenha preferido isto por não saber se um tradutor estrangeiro seria capaz de encontrar equivalentes à altura para seu vastíssimo vocabulário de termos, entonações, sintaxes e prosódias populares.  Ele misturava esse português inculto e plebeu ao português castiço.  Gente da geração dele (e da minha) assimilou os clássicos lusitanos no colégio, viu depois que não tinha nada a ver com a língua falada na rua pelo povo de verdade, mas resolveu manter como uma língua paralela. No Brasil a gente tem a liberdade de usar “xibiu” e “circunlóquio” na mesma frase! Uma espécie de miscigenação linguística, um contubérnio adúltero entre a retórica do invasor e o fraseado do invadido.

Ubaldo era um sujeito sem papas na língua (acho que ouvindo esta expressão ele daria uma risada grossa e faria uma piada eclesiástica qualquer). Queixou-se uma vez de que entregou à editora o primeiro rascunho de um livro, pra dar uma idéia do que seria, viajou para descansar, com idéia de fazer revisão do texto na volta, e ao chegar encontrou o livro nas livrarias, com o texto-bravio “ipsis litteris”. Brigou? Não, deu uma gargalhada e ficou mangando.

Minha última leitura dele foi A Casa dos Budas Ditosos, um livro-de-safadeza bom danado, muito correspondente às fotos do autor que na manhã de hoje brotam por toda a imprensa eletrônica, uma cara sorridente, maliciosa, regozijada, com um riso quente e uma voz de quem já foi e já voltou.


sexta-feira, 18 de julho de 2014

3554) Contracapa de tablet (18.7.2014)



é difícil manter a elegância e ao mesmo tempo evitar um naufrágio  &  precisamos de robôs capazes de fazer palavras cruzadas enquanto esperam nossas ordens  &  quando falta luz no prédio a gente regride 200 anos em cinco minutos  &  quando a gente, em vez de ficar esperando, vai fazer outra coisa, a água ferve muito mais depressa  &  um labirinto de corredores de caverna onde ecoa ainda a voz de um xamã morto há cem anos  &  sonhei que uma voz me sussurrava: “só conta pra velhice o tempo em que você não estiver pensando”  &  a Beleza é um disfarce sutil da Verdade  &  esse problema não é nada que um pedido de desculpas público, daqui a trinta anos, não possa amenizar  &  você começa bebendo porque não se sente bem; depois, bebe para se sentir bem; depois, pra não se sentir mal  &  um folhetim gótico intitulado “A Legenda do Monastério”  &  um filme onde a câmera evitasse os atores e mostrasse apenas as suas sombras  &  não basta o cara ter que ser um tamanduá, precisa também comer formiga todo dia  &  a política é um esporte em que um dos times joga todos os jogos em casa  &  tem gente que procura equilibrar a vida ingerindo quantidades cavalares de açúcar e de sal  &  ser escritor de FC lendo apenas FC é como um exército ir para a guerra levando o dobro da munição e nenhuma comida  &  malandra é a chuva, que cai mas não se quebra  &  às vezes é até bom um terremoto para zerar um impasse legislativo  &  o Brasil vai acabar com a senzala e não consegue se livrar da casa grande  &  um presidente está para o governo assim como o sinalizador de aeroporto está para os aviões  &  quem propôs o nome “ornitorrinco” estava apenas tentando reagir à altura do que via  &  eu queria um teclado que me permitisse escrever dormindo  &  acordo todos os dias ao som de clarins que não sei se são de guerra ou de café na mesa  &  certos livros de FC parecem um foguete interplanetário fazendo a circular do bairro  &  o clichê é tão necessário a alguns animais quanto a respiração  &  o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente, mas a definição de corrupção é relativa  &  nada mais parecido do que café frio e cerveja morna  &  sempre compareci aos meus desencontros comigo mesmo  &  pior do que o medo da tortura é o medo do ridículo, e pior do que a morte é a risada alheia  &  temos mais pena de um cão doente do que de um mendigo porque o mendigo disputa espaço conosco  &  eu só direi que o país vai mal quando os mortos forem deixados apodrecendo nas calçadas  &  depois de conversar com ela por meia hora percebi que o que eu estava fitando não eram os olhos, eram os seios mesmo  &


quinta-feira, 17 de julho de 2014

3553) A entropia do futebol (17.7.2014)



Há um livro, se não me engano de Neil Gaiman, em que o mundo está passando por um aumento da entropia.  Entropia é a medida da desorganização do Universo, em que há uma dissipação da energia e todas as coisas vão ficando mais caóticas e indiferenciadas. Quando a gente deixa uma xícara de café em cima da mesa, ela se degrada, esfria sozinha, perde energia. No mundo descrito por Gaiman, as fitas cassete com música gravada (clássica, popular, etc.) se guardadas por mais de duas semanas sem ninguém mexer nelas, se degradam – transformam-se todas em The Best of Queen.

O que me lembra um clássico da FC: Ubik de Philip K. Dick.  No universo em que vive o protagonista, acontece algo semelhante. O universo está involuindo, está sofrendo um aumento de entropia que faz as coisas se tornarem progressivamente mais antigas, mais atrasadas. A história se passa no futuro mas à medida que a entropia aumenta o personagem anda na rua e as pessoas começam a aparecer com roupas dos anos 1940, os carros viram carros daquela época, e assim por diante. Quando ele toma o remédio chamado “Ubik”, uma espécie de tônico miraculoso, aí tudo bem: carros, roupa, arquitetura, anúncios nas ruas, tudo volta a pertencer à época em que a história acontece.

Posso estar sendo pessimista, mas acho que estamos passando por um período ubikiano no futebol.  Esta Copa mostrou grandes times campeões do mundo jogando um futebol muitíssimo abaixo do que praticavam pouco tempo atrás, inclusive o Brasil.  Há uma diferença ubikiana entre nossa Seleção da Copa das Confederações e a da Copa do Mundo. O que dizer da fortíssima Espanha, campeã mundial em 2010, que chegou no Brasil e virou saco de pancadas, como se fosse uma espécie de Íbis?  Os grandes craques como Cristiano Ronaldo, Messi, Iniesta, etc., todos estavam atuando na Copa como versões bizarras de si mesmos. E não me venham falar dos poucos times ou poucos craques que jogaram bem. São a exceção que confirma a regra. (Se eu fosse rico destinaria alguns milhões de dólares ao sujeito que inventou essa frase, um 171 filosófico que permite à gente afirmar qualquer coisa e escapar impune.)

Nosso futebol, em especial, está passando por uma degradação espontânea, uma entressafra sem fim, uma fase Ubik, e urge descobrir o tônico fantástico que nos trará de volta ao jogo bonito que poderíamos estar praticando em 2014. Esta regressão entrópica, da qual nem a Seleção Brasileira escapou, está fazendo com que mesmo algumas das melhores equipes do mundo pisem no gramado para praticar um futebol bumba-meu-boi digno dos melhores (piores) momentos de algumas peladas da Concacaf ou da Oceania.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

3552) O desejo e o objetivo (16.7.2014)



Uma das piores coisas que podem acontecer durante uma discussão sobre literatura e mercado editorial é alguém aludir a Stephen King, J. K. Rowling ou Paulo Coelho para dar exemplo seja lá do que for. Esse pessoal que vende milhões passa para o autor novato a idéia de que o objetivo dele deve ser, também, vender milhões de cópias, o que é um erro. Na pressa de atingir esse número irreal, ele vai se oferecer pra “transar com Deus e com o lobisomem”, como dizia o parceiro do autor de O Alquimista. Não vai conseguir, e talvez acabe entrando para o clube azedo e ressentido dos que dizem: “Pois é... um país que não lê... ah, se eu escrevesse em inglês...”

Vender dez milhões de exemplares não pode ser o objetivo de ninguém que publica um livro, ainda mais se for um livro de estréia. É um objetivo irreal, que chega à beira do absurdo, mas mesmo assim vejo muitos autores jovens e autoconfiantes dizerem: “Se a série Crepúsculo vendeu tanto assim, por que um livro meu não pode vender também?”.  Isso, minha gente, não é um objetivo, é um desejo.  Todo mundo é livre para desejar o que quiser, sonhar com o que bem entender.  Mas isso não pode ser confundido com um objetivo.  Objetivo é algo que está no horizonte do possível, algo que pode ser planejado e cumprido.

Quando Dan Brown ou Stephen King fazem a tiragem inicial de um livro novo com um milhão de exemplares, isso não é um desejo, é um objetivo.  Toda a história anterior da vendagem do autor o autoriza a imprimir um milhão de cópias de uma tacada só. Ele já sabe que é possível vendê-las. (Às vezes encalha; às vezes, dependendo da aceitação do livro, mesmo Brown ou Coelho levam anos para vender essa tiragem inicial. Mas o objetivo era fundamentado, sim.)

Meus livros têm em geral uma tiragem de 2 ou 3 mil exemplares, que é a tiragem padrão do mercado brasileiro.  Alguns já venderam 40 ou 50 mil, mas nem por isto eu coloco esse número como um objetivo. Se rolar, beleza.  Mas o bom senso aconselha, a mim e aos editores, ir de pouquinho, sentindo a resposta do público, e preparando tiragens maiores se a gente vir que a aceitação é boa.

Colocar Paulo Coelho e seus não-sei-quantos-milhões de livros vendidos na conversa é despertar um desejo confuso e infantil de sucesso instantâneo, sucesso com pouco esforço. Duvido que algum novo autor se dispusesse a fazer a peregrinação que Paulo Coelho fez, com o Diário de um Mago embaixo do braço, de livraria em livraria, de rádio em rádio, de jornal em jornal, de TV em TV, de amigo em amigo, vendendo caladinho seu peixe, pensando talvez que iria ser um sucesso com 20 mil livros vendidos.