quinta-feira, 10 de maio de 2012

2866) Uma história sem palavras (10.5.2012)



(xilo: Lynd Ward, Prelude to a Million Years)

Uma rua deserta, à noite, com casas altas e estreitas, latas de lixo amontoadas à entrada dos becos.  Círculos de luz formados pela iluminação dos postes.  No meio da rua, um homem de chapéu e sobretudo, com as mãos enfiadas nos bolsos, olha para o andar superior de uma das casas.  Na janela, o vidro está rachado, e uma linha ziguezagueante corre em diagonal sobre ele; por trás vê-se o rosto de uma mulher que olha para rua a meia distância, evitando ser percebida.  Ponto de vista da mulher através do vidro: a linha em ziguezague corta obliquamente o corpo do homem.  Um trovão ressoa; vê-se um raio ziguezagueando no espaço.  O homem caído, as roupas fumegantes.  A mulher abrindo a janela, o rosto contraído de susto e terror.

O rosto da mulher numa porta entreaberta num corredor, uma faixa de luz que se projeta para fora, iluminando uma escada que desce.  A mulher ajoelhada junto ao corpo do homem caído na rua.  Ela mexe no bolso interno do paletó dele, tira dali um retângulo de papel com bordas serrilhadas: é uma foto, da qual só vemos o verso.  Com a foto na mão ela fica de pé, olha em volta.  Portas e janelas se abrem, atraídas pelo barulho.  A mulher corre.  Dois fachos paralelos de luz surgem na esquina.  Um carro negro para, junto do corpo caído do homem.  A mulher, sem poder voltar para a porta de onde saiu, esconde-se no recesso de um portal.  Descem os vultos de três homens, e arrastam o corpo caído para dentro do carro, que parte em disparada.  Na rua vazia, a mulher aproxima-se do local onde o homem havia caído. Ajoelha-se, de cabeça baixa, ainda segurando a foto.

Dia claro, rua cheia de gente. Os carros se desviam da mulher ajoelhada. Pessoas olham sem muita curiosidade e seguem. Ela continua ajoelhada.  Todos a evitam meio que sem percebê-la, como se ela fosse uma rocha colocada no meio da rua. Os anos passam. Seu rosto fica cheia de rugas, os cabelos embranquecem. Uma vista mais ampla da rua, onde agora passam carros de modelos mais modernos, e os transeuntes usam roupas modernas.  A mulher continua ali.

Uma guerra devasta a cidade. Explosões, massacres, invasão de tropas, e tudo passa em torno da mulher sem tocá-la. A cidade fica deserta, em ruínas, os prédios desmoronam. O mato toma conta de tudo, mas se mantém à distância da mulher.  Nuvens pesadas se acumulam no céu. Desaba a tempestade. Um raio cai, ziguezagueando; e se imobiliza no céu. A mulher ergue a cabeça para fitar o relâmpago “congelado” no espaço; abaixa os olhos para a foto que ainda mantinha na mão.  Sorri... e se esvai como se fosse feita de fumaça. A foto cai ao chão. Nela, vê-se o mesmo ziguezague do relâmpago.

2865) Dicas de James Thurber (9.5.2012)




Escritor adora ler decálogos de estilo, manuais de redação criativa, etc.  Talvez isso se deva ao fato de que inexiste qualquer teoria oficial sobre o ensino da literatura.  O que há são cem milhões de teorias sugeridas por cem milhões de teóricos, e somente uma pequena parte deles são escritores de fato.  

Daí que os decálogos sugeridos por escritores tenham pelo menos a virtude parcial de estarem aparentemente explicando como foi que o autor Fulano chegou ao sucesso que todos conhecemos.  

Um decálogo de George Orwell parece mais substancial do que um decálogo sugerido por um Zezim das Couves qualquer, porque pelo menos pode-se inferir que foi a prática daquelas regras que conduziu Orwell a tornar-se o escritor que foi.

James Thurber, o contista e humorista norte-americano, autor de “A vida múltipla de Walter Mitty”, tem um pequeno conjunto de regras; algumas delas se referem a questões específicas da língua inglesa, mas as demais têm um piso mínimo de bom senso típico do modo norte-americano de pensar.  Diz ele: 

“O leitor deve ser capaz de descobrir sobre o quê é a história de um romance, e alguma pista dessa idéia geral deve aparecer nas primeiras 500 palavras”. 

Toda leitura de um texto literário começa, idealmente, “no escuro”, sem que saibamos ao quê ele se refere.  Na prática não é assim, porque aí estão as resenhas, as orelhas, os textos de contracapa; mas o próprio texto literário precisa conter todas as informações necessárias à sua decifração. Quem precisa dar essas pistas é o autor.

Mas há um conselho de Thurber que acho curioso, porque não concordo. Diz ele: 

“Tenho um enfado especial para com pessoas que escrevem frases de abertura sem ter nada em mente, e depois tentam criar uma história em torno delas. Essas frases, geralmente fáceis de localizar, são do tipo: ‘Mrs. Ponsonby nunca tinha antes colocado um cachorro dentro do forno”, ou então “Mrs. Dillingworth falou: -- Eu tenho uma árvore que dá vinhos, gostaria de vê-la?”, ou então: “Jackson decidiu, de repente, sem nenhuma razão especial, comprar um triciclo para sua esposa”. 

Eu diria que situações assim são um excelente estímulo para a imaginação; funcionam como um mote que o próprio autor se fornece (com uma imagem surpreendente, uma situação fora do comum) e vê-se obrigado a glosar da melhor maneira possível.  Resta aguardar o resultado.  

Nenhum método, por si, garante que resultará em uma boa obra literária.  Literatura não é resultado do método, mas da aplicação do método ao tumulto mental de cada pessoa em cada momento específico, o que é impossível de controlar. Quanto procuramos os métodos, é porque queremos apenas equilibrar o tumulto.







terça-feira, 8 de maio de 2012

2864) "Diário de uma Camareira" (8.5.2012)




Journal d’une femme de chambre (1964), que por motivos variados só vim assistir agora, é um dos filmes mais bem comportados de Luís Buñuel, no sentido da narrativa, das imagens, das ações.  Um dos seus filmes menos surrealistas.  Isto não significa que não seja um bom filme, nem que destoe do conjunto, mas é como se o diretor tivesse querido mostrar aos críticos que, se quisesse, poderia ser um diretor de perfil “mainstream” como talvez Jean Renoir (que dirigiu também uma adaptação deste romance de Octave Mirbeau). “Se quisesse”: mas Buñuel não quer, e logo depois deste filme tentaria dirigir o frustrado Simão do Deserto, este, sim, um delírio surrealista autêntico, que por problemas de produção não pôde ser concluído conforme a idéia inicial e acabou se reduzindo a um média metragem. Em seguida, ele faria A Bela da Tarde, uma das suas mais bem sucedidas experiências de mesclar o romance-folhetim sentimental com as viagens mentais do surrealismo.

Como disse David Thomson, Buñuel é um diretor idealmente formatado para o cinema popular, pela importância que este atribui aos sonhos, às questões de identidade e às manifestações da fantasia.  Indo na contramão da maioria dos críticos que acusam Buñuel de incompreensível e antiburguês, ele afirma: “Os manifestos surrealistas não poderiam ter encontrado uma arena melhor do que o cinema comercial.  O estilista Buñuel nunca esquece que ali estamos nós, sentados na escuridão, presos às imagens luminosas”. A superfície exterior do melodrama, os conflitos emocionais, a empatia imediata provocada pelos seus conflitos cotidianos e facilmente inteligíveis – tudo isso pode funcionar como uma isca, arrastando o espectador para dentro de uma situação dramática cuja fundação ele entende por completo, e, a partir daí, alvejá-lo com a desconcertante artilharia de imagens surrealistas, apanhando-o desprevenido.  Foi justamente isto que Buñuel fez em A Bela da Tarde (1967), Tristana (1970) e Este obscuro objeto de desejo (1977),

Neste filme, a presença da criada Céléstine (Jeanne Moreau) num solar interiorano, no meio de uma família consistentemente repulsiva, desencadeia uma série de pequenas crises, inclusive o assassinato de uma garota.  As manobras de Céléstine para descobrir e punir o criminoso se misturam às suas manobras de ascensão social; seria um filme típico de diretores franceses da época, como René Clair ou o próprio Renoir.  Os pequenos detalhes buñuelescos (fetichismo, etc.) não destoam de um filme uniformemente bom, correto e competente, mas um equivalente aos filmes menores que ele fazia no México quinze anos antes.

domingo, 6 de maio de 2012

2863) Games de arte (6.5.2012)



(Thief: Deadly Shadows)

Existem videogames de arte?  À primeira vista isto parece tão absurdo quanto imaginar um serial-killer do Bem.  (E no entanto a TV a cabo acaba de produzir justamente isto, com a série “Dexter”).  A discussão desse tema cai sempre em dois mal-entendidos básicos. O primeiro é confundir o jogo como forma de expressão (sua maneira de empregar os recursos audio-visuais) com as imagens que ele mostra (muita gente acha que para ser um game tem que obrigatoriamente ter monstros, dragões, matanças, etc.).  Essas pessoas geralmente não gostam das imagens que são mostradas ou das histórias que são contadas através daquela técnica, e com isso descreem da possibilidade dessa técnica mostrar outras imagens ou contar outras histórias.

Outro mal-entendido é quando certas pessoas dizem que os games nunca produziram uma obra comparável aos grandes filmes. (Cem por cento dos que dizem isto já viram milhares de filmes e nunca jogaram um game.) É o velho discurso de “se é bom é arte, se é ruim é apenas um game”.  Parece na época do “Sgt. Pepper”, quando os críticos dos Beatles diziam: “O rock não presta.  Se eu estou gostando do que estou ouvindo, então isto não é rock, é música”.  No caso dos games e da arte, a questão não tem a ver com qualidade. Qualquer pessoa define qualidade assim: “Qualidade é o que eu gosto”.

Quando a discussão entra num destes dois atoleiros, nunca mais avança. Uma maneira de avançá-la (levantada recentemente por Roger Ebert, o crítico de cinema) é considerar que na experiência da arte o público encontra a visão de um artista cristalizada num objeto (livro, peça, música, balé, pintura, filme) onde ele interfere apenas com sua própria interpretação, mas não é co-criador. Pode haver um milhão de leituras da “Divina Comédia”, mas o texto é um só.  Já um game é um conjunto de instruções para que o espectador/jogador tome iniciativas, obedeça ou desobedeça instruções, e crie sua própria aventura. Dois jogadores nunca jogam o mesmo jogo; o mesmo jogador nunca experimenta duas vezes o mesmo jogo, por mais vezes que o jogue. Um videogame é o rio de Heráclito, onde cada um só se banha uma vez.

Ou seja, a Arte requer uma Obra sólida, imutável sujeita a mil leituras, mas um Jogo é uma Obra em potencial, não concluída, que nunca será a mesma para quaisquer duas pessoas. Esta é a discussão mais importante sobre a diferença entre Arte e Game.  É uma discussão estrutural, que compara a essência de cada um dos dois e avalia se é possível aplicar a um os juízos de avaliação que são aplicados ao outro.  Inventamos uma nova maneira de contar histórias e não temos ainda os conceitos adequados para teorizar a seu respeito.

sábado, 5 de maio de 2012

2862) Democracia aleatória (5.4.2012)



Todo mundo fala mal dos políticos, e esquece que afinal eles estão ali como meros prepostos de alguém – das pessoas que votaram neles.  Um voto é uma procuração que a gente passa em termos mais ou menos assim: “Já que estou muito ocupado trabalhando e cuidando da minha família, e consequentemente não posso cuidar do Brasil, designo o candidato Fulano de Tal para cuidar do país em meu nome, e me responsabilizo por tudo que ele fizer”.  Claro que os eleitores não veem as coisas nesses termos, mas o fato é que funciona assim.  Daí que muita gente se desilude com o nível dos prepostos que estamos colocando nos Executivos e nos Legislativos. (A gente vota pro Judiciário? Eu mesmo nunca votei.)  E recomeça a lenga-lenga de sempre, uns querendo a volta da monarquia, outros querendo dar uma chance à anarquia e outros dizendo: “O que está faltando no Brasil é um homem de verdade que moralize esse cabaré!”. Ou seja, um caudilho que prenda e arrebente. (Ironicamente, os primeiros a serem presos e arrebentados são os que ajudaram o caudilho a chegar lá, como foi o caso dos camaradas de Stálin.)

Isaac Asimov satirizou a democracia do voto no conto “Democracia Eletrônica” (http://bit.ly/Jy3tiJ), onde um computador seleciona um eleitor completamente mediano que deverá escolher sozinho entre os candidatos à Presidência da República, pois a opinião dele representa a maioria do eleitorado. Philip K. Dick, em Loteria Solar ( http://bit.ly/IjkEPz) imagina um futuro onde o Chefe de Estado é escolhido por sorteio, e pegado de surpresa por essa escolha.  Agora, um artigo publicado na revista Physica A (http://on.io9.com/IccCvR) por professores da Universidade de Catania, na Sicília, sugere que a democracia sairia ganhando se as atuais legislaturas bipartidárias tivesse uma parte dos seus membros escolhidos por sorteio, e não pelo voto. Entre as razões para isto está o fato de que candidatos eleitos por um partido tendem a pensar mais nos interesses imediatos do partido do que no interesse coletivo a longo prazo.

Talvez valesse a pena pensar em um sistema onde a seleção fosse rigorosa, os benefícios dos cargos severamente restritos (pra não atrair os abutres de sempre), metade da Câmara e do Senado seriam eleitos pelo povo e metade seria sorteada entre os não-eleitos. Isto talvez desse melhores chances àqueles candidatos sérios e honestos, mas sem carisma pessoal para adular o eleitorado.  Como se sabe, no sistema atual não se elegem os melhores administradores nem os melhores legisladores, mas os atores que conseguem produzir a fantasia mais convincente aos olhos ingênuos e interesseiros do eleitorado.  



sexta-feira, 4 de maio de 2012

2861) Um título muito melhor (4.5.2012)


Quando eu tinha vinte e poucos anos e era (ou pensava que era) crítico de cinema, pensava de vez em quando que algumas das melhores críticas de filmes que eu já tinha lido eram as sátiras da revista Mad, aquelas arrasadoras matérias de abertura da revista onde, em seis ou oito páginas, eram expostas à luz do sol as incoerências, os clichês, as imitações, as limitações e as banalidades do roteiro, do elenco e da direção.  Claro que uma sátira da Mad não podia atingir a profundidade e a amplitude de uma crítica propriamente dita.  Mas em matéria de ir com o dedo à ferida e de mostrar a nudez do rei, não tinha similar.

O saite Better Book Titles (http://betterbooktitles.com/) faz algo parecido, só que numa cápsula minimalista.  Ele propõe um título diferente (e devastador) para um livro conhecido, muitas vezes denunciando de cara o principal defeito do livro, o clichê que lhe deu origem.  Ou (no caso de grandes livros, não merecedores disso) pelo menos uma alfinetada bem dada, que em nada compromete o livro mas lhe dá um novo ângulo; ou um comentário que faz rir quem conhece a história.

É interessante ver O Colecionador, o grande romance de estréia de John Fowles, ser rebatizado como Se Você Ama Alguém, Sequestre-a e Deixe-a Morrer de Pneumonia.  Ou ver o grande Onde os Fracos Não Têm Vez de Cormac MacCarthy ser chamado de O Dinheiro Arrasa com Tudo à Minha Volta.  O clássico Arco-Íris da Gravidade de Thomas Pynchon passa a ser chamado, apropriadamente, Foguetes Me Dão Tesão. O maciço e violento 2666 de Roberto Bolaño mantém o nome, mas ganha um subtítulo explicativo: Contagem dos Cadáveres Menos a Contagem das Páginas.

O saite não se limita a sugerir novo título. Num trabalho gráfico bem criativo, produz uma nova capa para o livro, muitas vezes incluindo-o em coleções famosas, numa releitura que chega às vezes a dar a impressão de um livro que existe mesmo.  Como na edição da Modern Classic para Eu Odeio Ratos Mais do que Amo Minha Namorada de George Orwell, ou a edição Penguin Classics do conhecido romance de Edmond Rostand Sabe o que Dizem Sobre Caras com Narizes Grandes: Eles Estão Apaixonados em Segredo pela Mulher que Você Ama

Não dá pra não achar graça em Virgem aos 107 Anos de Stephanie Meyer, ou na autobiografia de Keith Richards sendo reintitulada Guia de Sobrevivência para Zumbis. Ou num livro qualquer de Danielle Steel, com seu indefectível design de letras prateadas em relevo e o título Só Leio Livros Parecidos Com Este.  É a arte da crítica literária, não através da análise, mas do epigrama ferino e da alusão venenosa, enriquecidos pela criatividade gráfica.


quinta-feira, 3 de maio de 2012

2860) O Duque de Nevroskni (3.5.2012)





(foto: Yves Lecoq)

“Eu, Padre Martinovic, nos derradeiros instantes de minha vida terrena, rumo ao castigo eterno que espera minha alma, redijo estas linhas para que se faça luz e verdade sobre os acontecimentos que infelicitaram o ducado de Nevroskni, em cuja paróquia preguei por 43 anos. Sabe-se que o Duque era um homem severo e recluso, e que suas propriedades tinham se reduzido a algumas léguas de terra e um pequeno castelo. No outono de 1645, o Cavaleiro de Peshkar, enviado do Rei Marvinius IV, apresentou-se ao Burgomestre. Segundo ele, a corte fervilhava de suspeitas de que o Duque, cuja propensão às ciências ocultas era notória, teria sido infectado com a praga do vampirismo. O Burgomestre convocou às pressas o Conselho dos Anciãos, e todos ponderaram que nos últimos anos numerosos aldeões tinham desaparecido sem explicação, e que alguns corpos tinham sido encontrados com as marcas vampíricas na garganta, levando as autoridades a performar o ritual cabível e sepultá-los em tumbas protegidas. Diante da gravidade das acusações, o Burgomestre designou dois cidadãos locais, o ferreiro Olink e o mercador Ambudrys, homens expeditos e corajosos, para acompanharem o Cavaleiro de Peshkar ao castelo. Ao retornar da incursão, os três trouxeram notícias terríveis. Entrando no castelo às escondidas, haviam encontrado no porão um cenário nefando de objetos sacrílegos, e num ataúde cheio de terra o Duque, adormecido, com a boca manchada de sangue. Uma expedição punitiva foi montada às pressas, incluindo o Burgomestre, alguns membros do Conselho, os três emissários autores da descoberta, e eu próprio, como representante da Igreja. Persigno-me novamente ao repetir que tudo foi encontrado conforme o relato dos três investigadores, e que o horror que sentíamos não nos impediu de cumprir nosso dever cristão de dar a pacificação final àquela alma mediante a estaca, a decapitação, o fogo e a aspersão de água benta sobre as cinzas. A paz voltou a reinar no Ducado. O Rei outorgou ao Cavaleiro de Peshkar o castelo e os domínios do anticristo extinto; o ferreiro Olink e o mercador Ambudrys receberam títulos nobiliárquicos. E no inverno de 1645, coube-me ministrar a unção final a este último, que me confessou terem eles, mancomunados com o Cavaleiro, subjugado e narcotizado o Duque e preparado o cenário demoníaco do porão, inclusive o sangue na boca da vítima, para justificar sua execução sumária. Isto me foi dito em segredo de confissão, mas é um segredo pesado demais para que eu o leve comigo para o lugar que me espera por trair os sacramentos de Deus e revelar aos homens essa verdade, antes de pôr um merecido fim aos meus dias”.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

2859) “Xingu” (2.5.2012)




O filme Xingu de Cao Hamburger faz um resumo-do-resumo da carreira dos irmãos Villas Boas, compactando em uma hora e meia algumas décadas de atividade dos indigenistas que criaram o Parque Nacional do Xingu.  Não sei os detalhes nem conheço os episódios específicos da história dos Villas-Boas (muito bem interpretados por João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat), então não posso avaliar o quanto o filme é fiel à história em que se inspirou. O desafio de um filme assim é comprimir décadas inteiras de expansão fundiária, massacres, aculturações, políticas governamentais, etc. numa história que interesse e emocione o público. Os Villas-Boas têm a vantagem de serem três, o que gera uma dinâmica emocional interna. Seus entreveros pessoais e ideológicos são contrabalançados pela forte solidariedade entre irmãos que se gostam.

Noel Nutels (que aparece no filme, numa pequena ponta) ironizou certa escola de antropólogos chamando-os de “gigolôs dos índios”. São aqueles antropólogos que não se interessam pelos índios como pessoas, e sim como meros pretextos para uma tese de doutorado. Um objeto de estudo, distanciado, humanamente neutro. O oposto disso são os indigenistas como Rondon, Nutels e os Villas-Boas, que se envolviam com os índios (e as índias), criavam laços de amizade pessoal.  Relações assim são sempre sujeitas a distorções, mal entendidos, aproveitamentos recíprocos, e a todas as rusgas, rivalidades, pequenas traições e pequenas agressões que marcam a convivência profunda entre pessoas.  Os três irmãos, no filme, encarnam em diferentes momentos estágios diferentes desse grau de compromisso, que mistura erros e acertos.

Os Villas-Boas diziam: “Se a civilização vai fatalmente alcançar os índios, por mais longe que eles se escondam, é melhor que antes dela cheguem pessoas dispostas a minimizar essas perdas”.  A criação do Parque Nacional do Xingu em 1961 foi uma salvação provisória para algumas nações; outras reservas foram estabelecidas, mas mesmo estas continuam sob ameaça permanente.  Os índios brasileiros vivem uma situação de ficção científica, a de um povo  que de repente se vê invadido por uma raça alienígena, poderosa, implacável, que pensa somente em si e que está disposta, mediante “ardis e violência”, como dizia Darcy Ribeiro, a se apossar se suas almas mediante uma “catequese feroz”, dos seus corpos (como instrumento de trabalho) e de suas terras. Talvez o desastre seja inevitável, e o efeito positivo de ações como as dos Villas-Boas consiga atrasar o processo em meio século apenas. Não dá para saber ainda.  O filme de Cao Hamburger é um pequenino trecho de uma história maior que ainda não acabou.

terça-feira, 1 de maio de 2012

2858) "Marco do Mundo" (1-5-2012)






O novo livro-poema de W. J. Solha é o segundo de uma série que se iniciou com Trigal com Corvos comentado aqui: http://bit.ly/JuKe8C) e que deverá se concluir com Ecce Homo (em preparo). Um livro-poema ou poema-livro é um poema longo que pode ser publicado sozinho, porque sozinho já enche um volume. Poemas-livro clássicos na poesia brasileira são, por exemplo, Poema Sujo (1976) de Ferreira Gullar, Cobra Norato (1931) de Raul Bopp, Invenção de Orfeu (1952) de Jorge de Lima. Em seu poema de 90 páginas, Solha se inspirou nos famosos Marcos da literatura de cordel, aquelas fortalezas gigantescas e inexpugnáveis que os cantadores imaginam e descrevem com barroquismo de detalhes.  Entre os clássicos populares Solha cita na abertura do seu livro O Marco do Meio Mundo (1915) de João Martins de Athayde e Como derribei o Marco do Meio Mundo (1916) de Leandro Gomes de Barros.

A diferença principal é que Solha, não sendo cordelista, não recorre à sextilha, mas ao verso livre, sem métrica fixa, embora crivado de rimas a intervalos irregulares; isto talvez dê ao poema a condição de ser o primeiro Marco modernista de nossa literatura. Além disso, se outras qualidades não tivesse, o poema tem o fato inédito de não ser uma fortaleza militar, mas artística. Os Marcos dos cantadores são castelos ciclópicos munidos de muralhas, arames farpados, cercas elétricas, cães ferozes, fossos cheios de crocodilos, e têm no seu interior tropas inesgotáveis munidas de canhões, metralhadoras, granadas.  O “Marco” de Solha, que ele vai construindo página por página, andar por andar, é uma espécie de Aleph para onde convergem edifícios, subterrâneos, lagos, cataratas. Ali começa a ser edificada uma Torre gigantesca, para cujos andares sucessivos são convocadas obras de toda a história da Arte: pinturas, poemas, esculturas, filmes, além de vultos históricos, episódios lendários.

A Torre assim construída reflete a voracidade com que o poeta busca assimilar e sintetizar toda a cultura universal, no esforço titânico de concentrar num só hiperponto toda a História do mundo: “Tudo é uma roda / grande / rolando na roda / pequena”. A catadupa estonteante de imagens, nomes, flashes, comparações, citações é despejada sobre o leitor à medida que a Torre se eleva como uma Babel-do-bem em que tudo se harmoniza e se encaixa, embora o faça dentro do princípio barroco de que “na arte / o todo é sempre menor / do que sua melhor parte”. Para quem curtiu o voo alto do Trigal com Corvos, o Marco do Mundo é um mergulho no hiperespaço, na dimensão em que todas as coisas e todas as idéias se fundem numa só partícula pulsante onde cabe o Universo.

domingo, 29 de abril de 2012

2857) Cut-up fase 2 (29.4.2012)



O cut-up (tradução possível: “corta-corta”) é convencional. Interferências para desorientar os literários, que foi popularizada por William, do que pensa. Glauber Rocha, em seus últimos (1959), “Nova Express” (1964) e outros, com U, escrevendo “Brazyl”, etc. Hoje em dia, papel cheio de texto e misturar esses pedaços. Manifestações pop usam números que soam iguais, maneira diferente umas às outras. Alguns (“you”) empregam letras maiúsculas no interior. Folha em quatro retângulos (como quatro cartas) obriga o leitor a diminuir o ritmo da leitura e formando um retângulo vertical, que são sensação de estranheza gerada por esse processo. Você, leitor, está lendo agora na página do desconfiança e o senso crítico do leitor. “Fantasmo” é um texto submetido a esse questionadora. Na maioria dos casos, um texto “Ora diabo, mas para que tanta complicação”, parece um quebra-cabeças mal montado, que foi escrito. Há muitas respostas para lamentar – a não ser que alguma ditadura. A esmagadora maioria dos textos publicados corta como modo preferencial de apresentação convencional, e me atrevo a dizer que espero que nunca aconteça, mesmo conhecendo aparecem 10 milhões de páginas comuns. Movimentos de vanguarda, que, se pudessem, experimentos, de vez em quando? William: somente do jeito que eles descobriram ou continuidade forçava os leitores a uma leitura inquisitiva, diferente da leitura meio sonâmbula (e re-orientar) o leitor são mais comuns um método de produção aleatória de textos anos, abusava de usar letras como K, Burroughs em livros como “Almoço Nu”, a cultura do hip-hop e outras consiste em cortar em pedaços uma folha de certas palavras (“How R U = how are”), fazendo com que as frases se encaixem de das palavras (“tHe sATellITe”), o que fazem um corte em cruz, dividindo e decodificando palavra por palavra. De baralho bem juntas, duas a duas, pode (segundo alguns) despertar a misturados. Este texto, por exemplo, que numa atitude menos passiva e mais da Paraíba, ou no meu blog “Mundo” feito em corta-corta, como este artigo. Um leitor mais impaciente irá dizer: incomodando o juízo. Mas não é o caso de o que custava mostrar o texto do jeito vanguardista invente de proclamar o corta, pergunta tão legítima.  Uma delas é que gráfica de todos os textos do país – o que no mundo aparece justamente da maneira muito bem o pendor ditatorial de muitos cada página de cut-up publicada no mundo obrigariam um país inteiro a escrever que, então, não dar uma chancezinha aos inventaram Burroughs afirmava que essa quebra de mais atenta, mais desperta, mais que praticamos diante de um texto.