sábado, 7 de abril de 2012

2838) Habilidades obsoletas (7.4.2012)

Este saite, Obsoleteskills.com (http://obsoleteskills.com/skills/skills), é uma simples lista de habilidades que desapareceram ou estão em vias de desaparecer do nosso mundo, em geral por causa da substituição de uma tecnologia por outra mais nova. 

A lista é longa e heterogênea, e mistura desde alguns herméticos segredos de processamento de dados ou de programação de computadores, envolvendo sistemas ou linguagens que não se usam mais, até bobagens cotidianas. Mas são muito úteis, por exemplo, para quem quer escrever um conto ou romance ambientado 10 ou 20 anos atrás. 

Tendemos a esquecer (ou no caso dos mais jovens, a não saber) como se faziam tais e tais coisas naquele tempo. Um leitor ou crítico mais perspicaz pode captar num segundo esses anacronismos ou erros de continuidade, cada vez mais numerosos num mundo que muda depressa. 

Cada item tem uma ficha onde se registram os seguintes aspectos: Área (ciência, arte, moda, etc.); Época em que se tornou obsoleto; Tornado obsoleto por (a tecnologia que o suplantou); Conhecimentos requeridos; Em que situações era útil; e em seguida comentários. 

Algumas habilidades estão mesmo em desuso, e sugiro ver os itens “Mumificação”, “Caçar um Mamute Peludo”, “Pintar paredes de caverna”, etc. Mas outros fizeram parte da minha vida: “Hifenizar palavras e justificar a margem direita ao datilografar”, “Preencher cartões no arquivo de uma biblioteca”, “Encher uma caneta no tinteiro”, “Ajustar o horizontal e o vertical de um aparelho de TV”, “Rebobinar o filme ao devolvê-lo na locadora”, “Datilografar ponto de exclamação” (digitava-se um apóstrofo, dava-se o retrocesso, e digitava-se um ponto embaixo dele), “Usar uma esferográfica para rodar fita cassete frouxa antes de pôr pra tocar”... 

Aos poucos estamos entrando num mundo em que não se usa mais “Amolar navalhas”. Somente os filmes mudos nos lembram que um dia foi preciso saber “Dar partida no carro com uma manivela”. Creio que muitos marinheiros ainda sabem “Usar um sextante”, mas fora da Marinha ninguém sabe nem o que é isso. 

O mais interessante é o fato de que, se estamos ficando burros por um lado (desaprendendo coisas) estamos ficando inteligentes (e aprendendo) pelo outro. O ser humano é adaptável. Eu já traduzi dezenas de laudas por dia usando um computador em que para escrever “í” tinha que apertar “Ctrl + 131”, e as outras vogais acentuadas eram Ctrl+197, Ctrl+135... Eu fazia isso com uma velocidade que espantava as pessoas, e agora nem lembro mais como era. 

O ser humano é plástico, flexível, maleável, adaptativo. Daqui a 20 anos estaremos dominando habilidades que não somos sequer capazes de imaginar.



sexta-feira, 6 de abril de 2012

2837) Por que Deus (6,4,2012)



(Zeus e Tétis no Monte Olimpo, por Ingres, 1811)

“Os pobres precisam de Deus” (disse-me Zezim Lourenço, dono de uma birosca na favela do Gaiamum), “porque ser pobre é viver em carne viva e com nervo exposto. Deus é um lubrificante espiritual para reduzir as esfoladuras do Ser. Precisamos de Deus como da aspirina, da vaselina, do tylenol. Num mundo onde ninguém nos responde, nada melhor que alguém de quem não esperamos respostas, apenas um ocasional milagre. Mais que isto: num mundo manipulado por potestades invisíveis que do dia para a noite fazem desabar catástrofes inesperadas sobre nossas cabeças, nada melhor do que crer numa criatura benigna capaz do mesmo, mas ao nosso favor. Deus é o raio que a harmonia do Universo fará cair do céu na cabeça do mau vizinho”.

“A classe média precisa de Deus” (disse-me Léa Rubião, dona de uma confecção de roupa infantil na Praça da Redentora), “por necessitar de força de arranque, de empuxo, de impulso de ascendência vertical rumo às coberturas do planeta. A classe média é a única que conta apenas consigo e depende apenas de si. Precisa de uma rede protetora por baixo dos trapézios econômicos entre os quais se joga; de um advogado que justifique seus ocasionais maus passos; de um treinador que a incentive aos berros rumo a marcas cada vez maiores; de um padrinho todo-poderoso que lhe sussurre ao ouvido: Vá, minha filha, enriqueça e deixe as teorias comigo”.

“Os ricos precisam de Deus” (disse-me Zse Zse Montanardi, viúva do ministro Junqueira), “para dar uma textura inconsútil às suas experiências sensoriais. Precisa de um diapasão cósmico harmonizando seus sonhos e seus prazeres, precisa de um Abstrato com inicial maiúscula. Não o vemos com pasmo e reverência, mas com paternalismo, e um confortável aconchego. O mundo material é nosso, e quem nos impede de com um estalo de dedos criar um mundo espiritual que também o seja? Ting-ling-ling! Tocamos uma campainha cósmica e Deus apareceu. Deus é um mordomo a quem delegamos o que não nos interessa”.

“Os intelectuais precisam de Deus” (disse-me Julio Weissenberg, entre baforadas de cachimbo, no recolhimento de sua biblioteca no condomínio Alephville) “porque precisam de desafios à sua altura. Que desafio maior do que provar o improvável, racionalizar o absurdo, dar nó em pingo dágua, algemar a cobra, extrair a raiz de menos um? Para o intelectual Deus é a soma entre a pedra filosofal, a quadratura do círculo, o moto perpétuo e a teoria do campo unificado. O simples fato de Deus não existir demonstrou a necessidade de inventá-lo para preencher sua própria ausência. Porque não seria justo passarmos milênios acumulando tanta pólvora e não termos um fogo capaz de consumi-la”.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

2836) Intuição (5.4.2012)




(Brian Eno)

A intuição é um recado instantâneo do inconsciente para o consciente, dizendo: “Esqueça como estava fazendo, faça assim”. 

Descrever o processo desta maneira mostra as terríveis limitações da nossa linguagem. A primeira delas, e uma das mais graves, é tratar dois conjuntos de processos como se fossem pessoas: o Sr. Inconsciente Ferreira da Silva é um senhor idoso, de óculos, cara de intelectual, enquanto que o Sr. Consciente Araújo dos Santos é um rapaz de 30 anos, ansioso, magro, jeito de workaholic. Quanto o mais jovem está estressado demais, o mais velho vem em seu socorro... Não, não é bem assim que as coisas acontecem.

Talvez cada um deles se assemelhe não a uma pessoa, mas a um escritório cheio de gente atarefada, trabalhando em grupos de dez pessoas, que se desmancham e se reagrupam em blocos de cinco ou de vinte, os quais logo se desfazem e voltam a se organizar em outras formações, tudo isto visto através daquelas câmaras aceleradas que reproduzem em alguns segundos algo que levou horas para acontecer. 

Talvez seja assim a mente humana. E de repente no andar térreo, o que recebe as visitas (o Consciente) chega correndo, esbaforido, um sujeito do sótão ou do porão (o Inconsciente), com um recado urgente: “É para cortar a comparação com pessoas e usar escritórios!”. Alguém do escritório do térreo pode até perguntar: “Como assim, escritórios?! Por que?”. Mas o mensageiro também não sabe; fica sendo escritórios mesmo, e acabou-se.

O compositor e produtor musical Brian Eno afirmou (http://bit.ly/wo8kaR) que a intuição e a lógica não são necessariamente conflitantes. A intuição é uma avaliação de nossas experiências passadas e de outras referências, mas feita de modo tão rápido que não percebemos, porque o foco de nossa atenção está voltado para outro ponto qualquer. De repente, o resultado surge pronto. 

O que ocorre (agora sou eu que estou falando) é que muitas vezes a lógica está tocando a campainha há duas horas, sem que ninguém atenda, e a intuição cochicha: “Empurra a porta pra ver se não está aberta”. Às vezes está; às vezes não. Nossa mente é como um rio largo que vai fluindo numa única direção quando o terreno é desimpedido, mas quando encontra um terreno montanhoso ele se subdivide em vários braços, cada um procurando caminho por uma trajetória diferente.

Diz Eno: 

“A intuição não é uma voz quase mística que vem de fora e fala através de nós, mas uma espécie de processamento rápido e imperfeito de nossas experiências prévias. Esse instrumento produz às vezes resultados impressionantes a grande velocidade, mas é bom lembrar que de vez em quando pode estar totalmente equivocado”.





quarta-feira, 4 de abril de 2012

2835) Dicionário Aldebarã IV (4.4.2012)




O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Otumburã”: estilo de música folclórica em que letra e música são improvisadas livremente, desde que repitam trechos melódicos tradicionais, à guisa de refrão. “Ammau”: teclado que projeta e mistura luzes coloridas em formas abstratas, arte muito apreciada pelos aldebarãs, principalmente nas noites nubladas. “Umblô”: festa popular em que cada pessoa da aldeia se veste e se caracteriza como outra, e cada participante fica tentando adivinhar quem é o homenageado de cada um. “Liargen”: o hábito de, ao ir embora, deixarmos pequenos presentes escondidos na casa onde fomos recebidos como hóspedes.

“Mung”: pequena bolsa ou saquinho de pano onde os aldebarãs guardam as sementes das frutas que comem, para semeá-las depois em qualquer terreno. “Nuspemp”: quadro-mural existente nos quartos de hotel, onde os aldebarãs deixam fotos, frases, comentários para serem vistos (e levados embora) pelo próximo hóspede daquele quarto. “Zuim-zum”: sistema de pequenas portinholas nas paredes e no teto que, ao serem abertas ou fechadas em múltiplas combinações, mantêm ventilação permanente nas casas dos aldebarãs. “Stinchars”: edifícios horizontais que se acomodam às ondulações do terreno, de modo que nas partes onde o terreno se eleva o prédio tem apenas um andar, e nos vales chega a ter seis ou sete.

“Varkonks”: pequenos batráquios onívoros que durante as refeições são colocados em baixo e em volta da mesa, mantendo o chão escrupulosamente limpo. “Farginny”: arte vegetal com múltiplos enxertos superpostos num mesmo tronco produzindo efeitos cromáticos, aromáticos, etc. “Ollikonks”: bebida gasosa dos trópicos, que a cada gole dá a sensação de beatitude absoluta durante meio minuto, mas o efeito se dissipa e produz amnésia, e a pessoa bebe mais. “Amahliam”: a sensação que temos ao colocar na boca um copo ou xícara e constatar que a bebida está na exata temperatura ideal. “Kerfash”: echarpes finíssimas que as mulheres aldebarãs usam, com cores indicando o seu estado de espírito (levam várias na bolsa para trocar durante o dia). “Rundelph”: os cinco dias mensais de trabalho voluntário não remunerado que todo aldebarã pratica nas comunidades pobres. “Lumielm”: ceias periódicas de confraternização entre amigos em que, no final, cada um se ergue e explica aos demais o que está comemorando.

terça-feira, 3 de abril de 2012

2834) Chico Anysio (3.4.2012)



O humor popular brasileiro tem camadas que foram se superpondo ao longo dos anos, cada uma delas alimentando-se das mais antigas. Primeiro veio o circo (vou logo avisando que esta cronologia é totalmente arbitrária e sem comprovação empírica). Depois veio o teatro, que se tornou uma espécie de circo oficializado (me refiro ao teatro de comédia, ao teatro de revista, ao teatro de humor musical, etc.). Depois veio o rádio, que arrebanhou seus redatores e atores do meio teatral e circense, onde estavam as pessoas que sabiam dizer coisas engraçadas e fazer vozes engraçadas. Depois veio o cinema, com as chanchadas cariocas e as comédias matutas paulistas, tipo Mazzaropi. E por fim veio a TV, que começou como uma espécie de rádio filmado, teatralizou-se à medida que pôde investir no visual, botou o cinema no bolso e acabou atingindo a maioridade como linguagem. Chico Anysio fez parte dessa maioridade, expandindo sua dramaturgia de esquetes e de tipos populares à medida que a TV incorporava novos recursos e novas linguagens.

Chico sempre se cercou de bons redatores (tiremos o chapéu ao finado Arnaud Rodrigues!). Até Lula Queiroga já escreveu para ele. Muita gente do público pensa que um humorista inventa todas as piadas que diz, o que é o mesmo que pensar que todo cantor compõe tudo que canta. Redator de humor é uma profissão ainda mais invisível do que compositor de música popular. Do famoso Bob Hope conta-se que estava na sala de redação quando um dos escritores levantou-se e foi saindo. Hope perguntou onde ele ia, o cara respondeu que ia no banheiro. E ele: “Pode ir, mas continue pensando”. Inventar piadas é um ofício torturante. A piada pode ter um milhão de qualidades: ser original; ser bem escrita; tocar em assuntos importantes; surgir no momento oportuno; etc. Mas se lhe faltar essa única qualidadezinha (ser engraçada), babau tia Chica.

O talento maior de Chico Anysio era a criação de personagens, onde ele elevou ao quadrado uma característica do humor popular, que é lidar com pessoas que se definem por uma característica central e imutável. Fulano é impaciente; Sicrano é maria-vai-com-as-outras; Beltrano dá trambique em mulher boba... Chico era um ótimo imitador de vozes (nem todo ator-humorista tem esse talento) e superpôs essa qualidade ao cacoete do personagem; em cima disso, colocou visual, figurino, etc. incomuns. Num estalo de dedos, havia um transe mediúnico em que ele “recebia” o personagem inteiro, mal lhe vestia a indumentária. O tipo, o texto, a voz, a roupa: com esse quarteto de elementos ele criou 200 personagens e teria criado 2.000 se não fosse para tão longo humor tão curta a vida.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

2833) A voz da mãe (1.4.2012)



Uma mãe está aprontando o seu bebê de alguns meses para ir a um passeio. “Ih-ih...”, diz ela. “Joãozinho vai ficar tão lindo, tão fofo com essa roupinha nova... ‘- Vou, mamãe, vou ficar a coisa mais linda que mamãe já viu...’ Bora, deixe de ser teimoso, bote o bracinho aqui nessa manga... Eita, que é teimoso igual ao pai! Isso!... Assim!... Tá vendo como fica mimoso? Coisinha fofa de mamãe?... Ah, minha Nossa Senhora, eu tou atrasada de novo! ‘- É mamãe, a senhora não tem jeito mesmo, fica dizendo que a culpa é minha, que eu dou trabalho... Trabalho nada, essa minha mãe é que deixa pra fazer tudo em cima da hora! E depois diz que a culpa é da minha coisinha fofa. Vamos, bote o pezinho. João, fica parado por favor! Ai meu Deus que coisa linda, eu preciso tirar outra foto.”

Esse monólogo interminável das mães (babás, avós, etc., alguns pais inclusive) com as crianças que não falam é um bom exemplo de linguagem literária. Não pelo lado da elaboração técnica, mas no que a linguagem literária (ou pelo menos uma extensa faixa das linguagens literárias) tem de afetivo, de imediato. Uma expressão instintiva, com elaboração super-rápida, do que o “enunciador” está pensando e sentindo.

No exemplo acima, Joãozinho aparece como terceira pessoa descrito por alguém que o observa de fora, e logo em seguida como primeira pessoa, um “Eu” suposto pelo enunciador do discurso, a mãe, falando em nome dele, mas claramente dizendo em nome dele algo que quem pensa é ela própria. Em seguida, instruções impositivas, imperativas (“bote o bracinho”). Para o garoto podem funcionar apenas pelo tom de voz (crianças entendem tons de voz muito antes de entenderem palavras), mas ao pé da letra servem apenas para a própria mãe reafirmar em voz alta a própria intenção. O “é teimoso igual ao pai” é um comentário dela para si mesma, ficticiamente endereçado ao filho. Segue-se um enunciado dela para si mesma (“estou atrasada de novo”), com o filho ausente como interlocutor; depois o garoto volta como 1a. pessoa fictícia, dirigindo-se a ela (“a sra. não tem jeito mesmo...”). E a frase seguinte tem uma torção, começa sendo enunciada pelo bebê (“essa minha mãe...”) e no trecho final volta a ser em nome dela (“...minha coisinha fofa”). Tudo no espaço de poucas linhas. Fazemos isto o tempo todo na vida diária, porque as rápidas variações emocionais (carinho, impaciência, distanciamento, etc.) nos fazem trocar instantaneamente de registro verbal, num discurso ziguezagueante mas sempre sob controle. Quando encontramos algo assim na literatura não percebemos o quanto aquela “prosa complicada” reproduz mecanismos que nós mesmos dominamos.

sábado, 31 de março de 2012

2832) Proibido dinossauro (31.3.2012)




Como se sabe, hoje existe uma batalha cerrada sobre a criação do mundo e da humanidade. 

De um lado, estão os Evolucionistas, os que, com Darwin e a ciência, acham que o Homem é uma espécie animal como as outras, que evoluiu através de milhões de anos. (A fórmula popular “o homem veio do macaco” é uma simplificação inexata e grosseira do que Darwin afirmou.) 

Do outro lado, estão os Criacionistas, para os quais Deus criou o mundo e a humanidade já prontos, há poucos milhares de anos. Para estes, as provas geológicas, astronômicas e físicas de que a Terra é muito mais antiga são falsificações ou equívocos.

Acontece que nos EUA, que já foi o país da liberdade de expressão, está cada vez mais difícil ir de encontro aos Criacionistas. A CBS de Nova York informou (http://cbsloc.al/GTdyzT) que nas provas do Departamento de Educação da cidade estão sendo proibidas palavras que possam incomodar a sensibilidade de estudantes de determinadas crenças. 

“Halloween” não pode ser mencionado porque sugere paganismo; “dinossauro” também está proibido porque lembra a Teoria da Evolução, e os partidários do Criacionismo podem se sentir ofendidos; “aniversário” (“birthday”) também está proibido, porque as Testemunhas de Jeová não comemoram aniversários e também poderiam se sentir desconfortáveis vendo essa palavra escrita numa prova.

Tem mais. Outras palavras cujo banimento nos exames públicos está sendo estudado: álcool, armas nucleares, câncer, desemprego, divórcio, parapsicologia, pobreza, pornografia, religião, sexo, terrorismo... 

A lei não escrita que rege essas proibições é: coisas desagradáveis não devem ser ditas em voz alta, e principalmente não devem ser lembradas num exame público. Os argumentos contra essas palavras são cheios de atitudes defensivas, “não-me-toques”. Elas podem desagradar os estudantes, fazer com que se sintam incomodados, desconfortáveis, ofendidos. Parece haver da parte dessas autoridades um medo de ofender pessoas que são muito delicadas, têm sentimentos muito frágeis, precisam ser protegidas...

Quer saber de uma coisa? Não é bem assim não. 

O que as autoridades não querem é pisar no rabo do leão, catucar a onça com vara curta. Sabem que a cada ano avoluma-se uma Presença Ameaçadora no país, uma vasta comunidade de criaturas sorridentes e implacáveis capazes de destruir quem quer que seja em nome de fazer-lhes o Bem. 

Destruirão opiniões, pontos de vista, idéias; destruirão tudo que não reze pelos seus mandamentos. Os norte-americanos laicos vivem numa casa tomada. Convém pisar de leve, falar sussurrando, omitir as palavras tabus que fazem a Naja erguer a cabeça e abrir os olhos.





sexta-feira, 30 de março de 2012

2831) Hedy Lamarr (30.3.2012)




Me lembro do nome dessa atriz austríaca porque era uma das preferidas de minha mãe. Ouvi-a muitas vezes falar em “édi-lamár” antes mesmo de ver esse nome escrito. 

O filme que a levou para Hollywood foi Êxtase (1933), um filme tcheco em que aparecia nua e simulava um orgasmo. Nos EUA, por pouco não estrelou Casablanca. Seu grande sucesso foi Sansão e Dalila (1949), ao lado de Victor Mature. Largou o cinema cedo, porque não suportava Hollywood; era uma “atriz difícil”. Morreu em 2000, aos 86 anos. 

A julgar pelas fotos da época, era linda. Tinha um rosto que era uma mistura de Vivien Leigh e Ava Gardner. (Que coisa injusta, e inútil, é comparar os rostos de mulheres bonitas.)

Ela aparece hoje nesta coluna por outros motivos. Ainda na Áustria, nos anos 1930, foi casada com um poderoso industrial simpatizante do nazismo, em cuja mansão costumavam se reunir altos oficiais militares, discutindo tecnologia e armamentos. Falavam livremente na frente dela, que aos seus olhos era apenas uma esposinha atriz, do tipo bonita e burra. Não era. Era inteligente e tinha uma cabeça engenheira. 

Quando largou o marido e foi para Hollywood, ficou amiga do compositor e roteirista George Antheil, que morou em Paris e era amigo de Man Ray, Stravinsky e Ezra Pound. 

Em 1940 os dois começaram a conversar sobre a guerra de submarinos que afundava os navios aliados, e começaram a trabalhar juntos num projeto de controle de torpedos pelo rádio. Hedy procurava criar um comando de rádio que mudasse de frequências, e Antheil sugeriu usar uma fita perfurada com as das pianolas mecânicas. 

Nesta página (http://bit.ly/sotDzn), vê-se uma cópia da patente requerida pelos dois, com data de 1942. (Um sistema semelhante é usado hoje nos celulares, para evitar interferência.)



Em 1997, a Electronic Frontier Foundation concedeu-lhe (e, postumamente, a Antheil) um prêmio pelo desenvolvimento pioneiro dessa tecnologia, chamada de Salto de Frequência ou FHSS (Frequency Hopping Spread Spectrum).

Antheil escreveu sobre ela: “Hedy é uma ótima garota, mas meio maluca, que além de ser muito bonita passa a maior parte do tempo livre inventando coisas. Ela acabou de inventar um novo tipo de ‘soda pop’, que está patenteando, imagine só”. 

O engenheiro Nino Amarena, que a entrevistou em 1997, disse: “Nunca achei que estava conversando com uma estrela de cinema, mas com uma inventora, uma colega. Quando duas mentes afins falam sobre tecnologia, desaparece a idade, o sexo, a experiência de cada um”. Todos dizem que a beleza de Hedy foi uma espécie de maldição que a jogou num ambiente que ela detestava, o “star system” dos estúdios de cinema.






quinta-feira, 29 de março de 2012

2830) “Fellini: The Game” (29.3.2012)



Você acorda num quarto de hotel, veste o terno que tira do armário. Ao se olhar no espelho, vê Marcello Mastroianni. 

A porta se abre. Você começa a ser assediado por produtores cobrando prazos, assistentes de direção em busca de tarefas, atores e atrizes à espera da hora do teste, jornalistas fazendo perguntas equivocadas, e todos insistindo que devem começar a rodar o filme o mais depressa possível, mas que ainda não têm o roteiro. 

Suas tentativas de fazer um filme serão, daí em diante, “O Jogo”. Você tem vários roteiros prontos para filmar: conquistas românticas e duelos de espadas em Casanova, prodígios, combates e superpoderes em Satyricon, nostalgia provinciana em Os Boas Vidas, delírios do cotidiano em Julieta dos Espíritos... 

Fellini: The Game foi ironizado por parte da crítica, ao ser lançado em 2025, como um “Windows Movie Maker para velhinhos”. Errado. Cada título da obra inteira de Fellini está aqui em estado potencial, esperando para ser refeito à maneira do jogador, e sabendo que ninguém conseguirá, mesmo que tente, refilmar o que Fellini filmou. (Assim como o Pierre Menard, de Jorge Luís Borges, dificilmente conseguiria reescrever o Dom Quixote, como pretendia.) 

Tomando como ponto de partida a indecisão criativa do diretor Guido em Oito e Meio, o jogo se transforma na possibilidade de montar 17 quebra-cabeças diferentes, 17 filmes que, de acordo com a inclinação do jogador podem ser minuciosamente reconstituídos ou completamente alterados do começo ao fim. 

É um jogo para quem sente prazer em dirigir uma equipe de cinema, e de fato é emocionante quando, depois de horas explicando tudo e ensaiando, o diretor consegue reconstituir na tela uma versão autêntica da cena do navio em Amarcord ou a melodia das taças de cristal em E la nave va, ou a festa de carnaval em Os Boas Vidas

E é ao mesmo tempo um jogo de personagens femininas de rara complexidade em busca do amor (Cabiria), da paz de espírito (Giulieta dos Espíritos), da sobrevivência num mundo bruto e mouco (Gelsomina de A Estrada) ou da dominação mundial pura e simples (Cidade das Mulheres). Poucos jogos atuais têm feito tanto sucesso no segmento de mulheres de 20 a 45 anos. 

Os videogames surgiram amparados no binômio ação-aventura, modelo que entrou em crise com o esvaziamento do militarismo. Nesta metade do século, a tendência à introspecção é irreversível. Os jogos estão se transformando cada vez mais em aventuras narrativas cujo inexorável realismo gráfico tem em contrapartida uma profundidade psicológica que o cinema do século 20 (hoje tão homenageado) pôde apenas aflorar. Cotação: 5 estrelas.







quarta-feira, 28 de março de 2012

2829) O neurônio numérico (28.3.2012)



Alguns saites consistem em intermináveis listas de coisas consideradas interessantes para algum tipo de platéia. Os assuntos variam, mas há um padrão sempre seguido nos títulos e na organização das matérias: “9 coisas que não se deve dizer a uma criança”; “10 truques fáceis para uma pele perfeita”; “12 atores de Hollywood que sofrem de acne”; “21 sinais de que você está numa relação emocionalmente abusiva”; “8 passos para escrever um romance”.

É o mesmo fenômeno que a gente observa na maioria das revistas que encontra nas bancas (principalmente, mas não com exclusividade, as revistas femininas): “140 modelos de blusas para este verão”; “99 truques de maquilagem”; “18 maneiras de prender seu namorado”; “85 tipos de sandália alta”; “253 arranjos de flores para sua sala”... E por aí vai.

Tenho uma teoria. Esses números não-redondos, aparentemente aleatórios, têm uma credibilidade (uma possibilidade de que sejam verdadeiros) maior do que se tudo se resumisse a uma série interminável de listas de dez ou de vinte. “Vinte modelos de toalhas de mesa” dá uma impressão mais vaga, menos específica, do que “Dezesseis modelos de toalhas de mesa”. O número quebrado parece verdadeiro, como se dissesse: “Olha, são só dezesseis mesmo, poderíamos ter inventado quatro só para fechar um número redondo, mas preferimos ser honestos e dizer somente o que é verdadeiro”.

Acho que temos um neurônio, ou uma família inteira deles, cuja função é registrar as referências numéricas. Ele nos ajuda a pensar, porque o número é um conceito claro, nítido. Dezesseis é diferente de quinze ou de dezessete. Ou é isto, ou é aquilo. O número nos dá segurança, certeza, a gente sente firmeza na informação, muito mais do que se lesse na capa de uma revista: “Vários arranjos para buquês de noivas. Numerosos conjuntos de mobília para a beira de sua piscina. Muitos truques de maquilagem para disfarçar olheiras. Uma porção de estampas bem coloridas para o verão que se aproxima”.

Algo na minha mente de redator considera essas frases chochas, vagas, imprecisas, e acha que não vão despertar confiança nas leitoras. Mas os neurônios numéricos dela darão logo um pulinho satisfeito quando lerem uma chamada tipo “31 receitas de doces sem açúcar” ou “14 filmes para assistir de mãos dadas”. O número é uma reiterada certeza neste mundo. Certos enunciados imprecisos, subjetivos, nos provocam insegurança, e por isto desconfiança. Ouvir falar em “muitos” ou “vários” é um pouco como olhar uma fotografia fora de foco. A isca do número passa uma idéia de informação concreta, de honestidade técnica, de segurança absoluta do que se está dizendo.