quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

2787) Traduções de Poe (8.2.2012)



Quando organizei minha antologia de 2010, Contos Obscuros de Edgar Allan Poe, minha idéia era publicar em português alguns contos que, apesar de muito bons, eram menos conhecidos do que outros. No prefácio, indiquei quais eram os contos que me pareciam os mais traduzidos no Brasil, e que, dada a proposta da antologia, seriam os primeiros a ficar de fora. Já me perguntaram “em que dados eu baseei minha pesquisa”. Em nenhum. Eu olho o índice de toda coletânea de Poe que encontro, vejo quais os contos incluídos, e guardo vagamente na memória. Não anoto, não faço tabulação quantitativa. Ou seja, não é uma pesquisa científica.

Quem fez essa pesquisa científica (se não totalmente, pelo menos mais do que a minha) foi a tradutora Denise Bottmann, cujo blog sobre Poe (eapoebrasil.blogspot.com) infelizmente só vim a conhecer depois do livro lançado. Pior para mim, melhor para o leitor, que tem nesse blog informações mais confiáveis do que as minhas – e mais aguerridas, porque a dona do blog desce com-água-e-lenha em cima de traduções falsificadas, plágios, edições espúrias e o escambau.

Minha lista dos contos mais traduzidos foi (por ordem cronológica): “Ligéia” (1838), “William Wilson” (1839), “A Queda da Casa de Usher” (1839), “Os Assassinatos da Rua Morgue” (1841), “A Máscara da Morte Rubra” (1842), “O Poço e o Pêndulo” (1842), “O Retrato Oval” (1842), “O Escaravelho de Ouro” (1843), “O Coração Revelador” (1843), “O Gato Preto” (1843), “A Carta Roubada” (1844), “O Barril de Amontillado” (1846).

A lista de Denise Bottmann, por ordem do maior número de traduções: 1) “O Gato Preto, com 34 traduções; 2) “A Carta Roubada”, com 32; 3) “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com 29; 4) O Escaravelho de Ouro”, com 24; 5) “O Poço e o Pêndulo”, com 21; 6) “O Barril de Amontillado” e “O Coração Revelador”, com 19; 7) “A Máscara da Morte Rubra”, com 18; 8) “Berenice”, “A Queda da casa de Usher” e “O Retrato Oval”, com 15; 9) “O Demònio da Perversidade” e “William Wilson”, com 13; 10) “Hop Frog”, “O Homem da Multidão”, “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa” e “O Mistério de Marie Rogêt”, com 12 traduções cada.

São 17 contos, que incluem quase todos os que avaliei no golpe de vista, e alguns que me surpreenderam. Eu jamais imaginaria que contos como “Hop Frog” ou “Manuscrito encontrado num garrafa” fossem tão traduzidos. Este último, aliás, é o único dos meus “contos obscuros” que aparece na lista dos “mais traduzidos” de Denise Bottmann. E me surpreende que um conto como “Ligéia” não esteja entre os mais traduzidos. Sua tradução mais recente é minha (2011), na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Ímã Editorial, Rio).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

2786) O arquivo do DB (7.2.2012)



O fechamento do “Diário da Borborema” (onde tive meu primeiro emprego, de 1965 a 1967) e de “O Norte”, já era temido por algumas pessoas. O DB estava cumprindo uma trajetória semelhante à de outros jornais que acabaram: perdendo assinantes e anunciantes, diminuindo de tamanho, perdendo importância... Enfim, não adianta agora lamentar um processo que durou anos. Há duas questões, pós-fechamento, que são essenciais. A primeira é o que vai acontecer com os colegas que trabalhavam nos jornais – se vão ter seus direitos trabalhistas respeitados e atendidos. Espero (claro) que sim. A outra é o que vai ser feito do patrimônio imaterial do jornal.

O patrimônio material, claro, são os móveis, equipamentos, instalações, máquinas, etc. O patrimônio imaterial do jornal, no entanto, é a história que ele construiu através de 54 anos. Fala-se que a direção dos Diários Associados teria anunciado a transferência, para Brasília, da coleção encadernada do jornal; e que iria incinerar um arquivo com milhares de fotografias. Acho isso tão absurdo que não acredito, mas, por via das dúvidas, há um movimento para que este material, ao invés de ser levado embora (ou destruído), fique em Campina Grande. Os estudantes, professores, historiadores, pesquisadores, sociólogos e jornalistas do futuro veriam nisto um gesto à altura de Assis Chateaubriand.

Os Diários Associados devem isto à cidade e à comunidade que durante mais de meio século lhes forneceu mão de obra, profissionais qualificados, e um mercado que proporcionou à empresa lucros que vão muito além da simples venda em bancas. Campina lhes forneceu a razão de ser de uma empresa jornalística, que é acoplar-se a uma cidade, viver sua vida, sentir o seu pulso, dar voz às suas idéias e suas vontades. Cidade e empresa são parceiros na produção de um jornal. Sem o jornal, a cidade não teria um espelho onde perceber seus problemas e focalizar suas energias. Sem a cidade, o jornal sairia em branco.

Parcerias assim acabam às vezes de forma melancólica, como parece ser o caso. Mas os 54 anos de notícias, de debates ideológicos e culturais, de documentação histórica, pertencem hoje muito mais à cidade do que à empresa, que já extraiu dessa fonte todos os lucros que pôde e agora, minguando os lucros, decide fechar a fonte. Os arquivos do “DB” pertencem à cidade porque há na cidade quem valorize mais o “Diário da Borborema” do que a própria empresa que o criou e agora o desfez. A atitude mais ética, mais sensata e (a longo prazo) mais compensadora para a empresa seria a de deixar à cidade o que pertence a ela: sua própria História.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

2785) Os mandamentos de Henry Miller (5.2.2012)


(Henry Miller) 

Poucos indivíduos terão sido tão mentalmente saudáveis quanto Henry Miller. Dos livros dele, com sua mistura de boemia, sexo, crítica social e disponibilidade para curtir a vida, emana a alegria de viver, presente inclusive nos capítulos em que ele descreve a pindaíba financeira em que viveu, ou suas brigas conjugais, ou sua guerra sem fim contra o “pesadelo com ar condicionado”, a vida classe-média nos EUA, a cultura do enlatado e do artificial. 

J. G. Ballard escreveu que ele foi “o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual das classes trabalhadoras”. 

Talvez a nenhum de nós ocorresse considerar Miller um escritor proletário, por ele não ser de esquerda. Mas sua ética e sua literatura são a do norte-americano trabalhador, pragmático, sem nonsense, que aprecia os prazeres físicos da vida mas tem leitura e educação suficiente para ver transcendência nas pequenas coisas. 

Ballard o chamou de “Proust das classes trabalhadoras”, aludindo ao seu memorialismo compulsivo. Miller foi talvez o primeiro escritor, lido entre os 20 e os 30 anos, que me fez perceber o ato da escrita como um ato que envolve a totalidade da pessoa, do momento, da vida, de tudo que o cara experimentou, tudo que sabe e não sabe, tudo que teme e deseja, convergindo para aquele instante mágico (este instante mágico, exatamente agora) em que ele dedilha num teclado. 

Descobri lendo Miller que escrever não era apenas contar uma história legal ou produzir uma frase bem feita. Escrever era algo tão físico-mental e tão atávico quanto fazer sexo. 

Miller preparou nos anos 1930, quando escrevia “Trópico de Câncer”, uma lista de onze mandamentos do escritor. 

 “1) Trabalhe numa coisa de cada vez, até terminar. 

2) Não comece nenhum livro novo, e pare de juntar material para Primavera Negra [o outro livro que ele escrevia na época]. 

3) Não fique nervoso. Escreva com calma, alegremente, incansavelmente, com o que tiver à mão.  

4) Escreva de acordo com o que programou, e não de acordo com seu estado de espírito. Pare na hora marcada. 

5) Mesmo quando você não consegue criar, pode escrever. 

6) Cimentar um pouco por dia, ao invés de adicionar fertilizantes. 

7) Seja um ser humano: encontre as pessoas, saia de casa, beba se estiver a fim. 

8) Não seja um burro de carga. Só escreva com prazer. 

9) Descarte o programa quando lhe convier, mas volte a ele no dia seguinte. Concentre. Focalize. Corte. 

10) Esqueça os livros que gostaria de escrever, e pense somente no que está escrevendo. 

11) Escreva sempre, antes de tudo. Pintura, música, amigos, cinema, tudo isto vem depois”.









sábado, 4 de fevereiro de 2012

2784) É de graça? (4.2.2012)




("Zero Cruzeiro", de Cildo Meireles, 1977)

Como meus leitores devem saber, eu tenho um blog, o Mundo Fantasmo, onde republico estes artigos. Cada vez que posto um artigo no blog, eu escolho uma imagem para servir de ilustração. Pego na Internet (ou escaneio dos meus livros e revistas) uma foto, uma pintura, um desenho, uma cena de filme, um cartum... 

Ponho lá no blog, e, quando tenho a informação (nem sempre a gente tem) ponho o autor do desenho, e, quando encontro, um link para o trabalho dele. Porque se o leitor ficar interessado no que viu, deixa pra lá meu artigo, clica no link e vai ver mais desenhos do cara. Que, assim, conquista por meu intermédio mais um admirador.

Eu deveria pagar-lhe por isso? Acho que não. Até hoje ninguém me cobrou, nem pediu que eu retirasse a pintura ou a foto. Se pedir, eu tiro. Se cobrar, não pago, por mais que admire o cara. 

Não pago porque não sou rico e não ganho nada com o blog, é uma atividade “divulgatória”, para que as pessoas leiam meus textos com mais comodidade. Eu espero que o sujeito concorde em expor seu desenho de graça porque eu próprio estou expondo meus textos de graça. Aquilo está ali não por comércio, mas pelo interesse de dar um breve prazer intelectual e estético ao leitor.

E acontece o mesmo comigo, porque já perdi a conta dos blogs, páginas, portais, revistas online e coisas parecidas que reproduzem meus artigos. De vez em quando me chega um pedido: “Queremos republicar o artigo tal, gostamos muito”. Peço que indiquem a data (dado importante), e deem o devido crédito ao blog Mundo Fantasmo (onde vieram a conhecer os meus textos) e ao Jornal da Paraíba, que me paga para escrevê-los, e sem o qual nada disso aconteceria. 

Os artigos são republicados aí, Brasil afora, e o sismógrafo da economia não acusa o pouso de uma borboleta.

O princípio básico da cessão de textos ou obras em geral deveria ser: “Se a utilização é gratuita, cedo de graça. Se alguém vai ganhar algum dinheiro com ela, quero ganhar minha parte”. 

Eu, como criador de produtos culturais, quero da Lei ter o direito de decidir o quê que eu cedo de graça e o quê que eu cobro. 

Quero da Lei o direito de proibir o uso de um artigo meu, um poema, uma música minha, se eu achar que essa utilização não me interessa. 

Quero da Lei ter o direito de dizer: “Cobro tanto”, desde que não prejudique a terceiros. 

Não quero ser obrigado a ceder algo de graça, quando não me interessa. Nem ser obrigado a cobrar de alguém que não tem como me pagar – artistas empresariados muitas vezes querem ceder algo e seus empresários os impedem, às vezes o pedido nem chega ao artista. 

É essa impossibilidade de dar a palavra final que devemos combater.






sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

2783) Nara Leão (3.2.2012)




Neste mês de janeiro completaram-se 70 anos do nascimento de Nara Leão, e, como sempre acontece com quem morre jovem, ficamos tentados a imaginar como seria ela com essa idade. O rosto, o cabelo, a voz, o repertório...

O sorriso talvez continuasse igual. Aquele sorriso tímido que ela mostrava, meio encabulada, desviando o olhar para pensar melhor; mas deixava o sorriso segurando o interlocutor até que o olhar viesse de volta.

Nara foi essa fórmula terrível que a imprensa criou, “porta-voz de uma geração”. As pessoas assim chamadas geralmente se sentem desconfortáveis com um título tão pomposo, porque na verdade não estão preocupadas em falar por geração nenhuma. Falam por si, por um grupo de amigos, por algumas outras pessoas que acham importantes.

Sabem que nenhuma geração é homogênea ou unânime, até porque uma coisa que os “porta-vozes de geração” têm em comum é serem ferozmente combatidos e incompreendidos, também, por gente de sua idade.

O saite criado em sua homenagem (www.naraleao.com.br) traz um material variado, com links para todos os seus discos. Não dá para baixar as músicas, mas dá para escutá-las em “streaming” enquanto o saite fica aberto na tela. E aqui estou eu passeando pelos anos em que Nara era aquela musa carioca, inatingível – e ao mesmo tempo tão próxima.

Se os anos 1960 tiveram uma única coisa boa talvez tenha sido a redenção das mulheres não-deusas, não-pinups, não-gostosonas. Meninas miúdas, de cabelinho chanel, dentes um pouco salientes, vestindo blusas de gola rolê (que a gente chamava “gola olímpica”), começando a ousar minissaias ou calças Lee. Meninas sem nada de Ursula Andress ou Rachel Welch, mas meninas reais, que tocavam violão e tomavam refrigerante, cantavam canções em que apareciam os assuntos das primeiras páginas dos jornais...

Eram as meninas da nouvelle vague (Chantal Goya, Anna Karina), as meninas do “free cinema” inglês (Rita Tushingham, Julie Christie), as meninas da Bossa Nova. Nenhuma era uma vamp, nenhuma era símbolo sexual; por isso mesmo, aos nossos olhos adolescentes elas não tinham relação com nossas tórridas fantasias. Pertenciam à nossa vida, eram reais e possíveis, e eram um ensinamento.

Pois é... Não falei da Nara que cantava os barracos, as favelas, os camponeses, as donas de casa, os capoeiristas. Que passou pela Bossa Nova, pela MPB rural-esquerdista, pelo tropicalismo, recantou a Jovem Guarda e os “standards” norte-americanos (está tudo lá para se ouvir, faixa por faixa). E um dia parou de cantar, saiu de cena sem chamar a atenção e deixou o sorriso tímido tomando conta da gente, com uma quase promessa de que ela voltaria logo.






quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

2782) Mudando de gênero (2.2.2012)





A cultura do remanejamento, da intervenção e da releitura tem produzido algumas obras memoráveis, como aquelas misturas entre os romances de Jane Austen e as histórias de zumbis. Não é tão novo assim, e mesmo aqui no Brasil lembro a recente intervenção feita por Glauco Mattoso no clássico A Pata da Gazela de José de Alencar, que o iconoclasta-mor da Paulicéia transformou em A Planta da Donzela, alternando os trechos alencarianos com eruditas digressões sobre a adoração sexual dos pés (podolatria?). É a mesma cultura do “mash-up” (que poderíamos traduzir livremente como “mexa”). Seu produto mais simbólico é a obra do DJ Danger Mouse, que misturou as músicas do White Album (1968) dos Beatles e as do Black Album (2003) de Jay-Z, produzindo o seu Gray Album (2004).

Agora, a escritora Kate Harrad lançou através de seu blog Fausterella uma experiência (ver: http://loveandzombies.co.uk/genderswitching/) que consiste em pegar um texto clássico e inverter o sexo dos personagens, tornando homem quem era mulher e vice-versa. Ela exibe exemplos retirados de Jane Austen, de G. K. Chesterton (com uma detetive chamada Sister Brown, ao invés do clássico Padre Brown) e principalmente das aventuras detetivescas de duas grandes amigas, Shirley Holmes e Jane Watson. Destas últimas, Kate fornece textos completos (em inglês, claro) dos contos “Um escândalo na Boêmia” e “O homem do lábio torcido”.

Kate comenta que mantém o texto original, salvo no que se refere ao sexo dos personagens. Fica engraçado ler os longos diálogos entre Miss Holmes e Mrs. Watson (pois Jane tem marido), as duas discutindo as mesmas questões dedutivas a que nos acostumamos, mas que agora adquirem um viés completamente inesperado quando imaginamos o apartamento de Baker Street e duas damas vitorianas conversando sobre crimes enquanto fumam cachimbo e tocam violino.

Kate Harrad fornece um link para o saite “regender.com” (http://regender.com/index.html), que se oferece para mudar o tratamento masculino ou feminino de qualquer página da web fornecida. O saite propõe estas questões: Como seria o mundo se os sexos trocassem de posição? Como seria ele, se o inglês tivesse pronomes que não indicassem o gênero? Como seria ele se a língua o inglesa identificasse raças tal como identifica os sexos? Para oficinas e grupos literários isto pode ser um exercício para avaliar plausibilidade, habilidade técnica, preconceitos inconscientes e embutidos, adequação do diálogo ao personagem, além de muitos recursos dramatúrgicos que imaginamos serem universais mas que estão condicionados à visão que temos do que é ser homem ou ser mulher.




quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

2781) Um bom game (1.2.2012)




(Fallout)

Um bom game do futuro será um que consiga usar os recursos específicos do game para fazer o que o romance literário fez no século 19 e o filme fez no século 20, ou seja, ser o modo preferencial de contação de histórias e de descobrimento do ser humano e do mundo. 

A palavra escrita já foi acusada de ser abstrata demais para poder contar coisas divertidas; a imagem, de ser demasiado concreta para poder dizer coisas importantes. 

As duas limitações foram pulverizadas. Agora, o que se coloca para os próximos tempos é a confluência de pelo menos três rios.

O primeiro é a tecnocultura vídeo-eletrônico-digital, com todas as revoluções que trouxe ao mundo nos últimos trinta anos. Uma tecnologia que permite algo que a Literatura a o Cinema jamais conseguiram proporcionar: a interatividade, a capacidade do ouvinte da história de interferir na história que está sendo contada (ainda que interfira dentro de limitações talvez inevitáveis), o do-it-yourself. A tecnologia sempre será a avalista da interatividade.

O segundo rio é o do próprio cinema, com toda a parafernália visual de 120 anos de narrativas visuais, sintaxe de câmara, de luz, de tudo. Os games do futuro serão eternamente devedores do cinema, a menos que a certa altura comecem a migrar dessa influência realista do cinema para a influência dos quadrinhos, com animação de desenho livre substituindo realismo fotográfico.

O terceiro rio é a literatura, porque é nela que vamos encontrar a espinha dorsal de tudo, a viga mestra de tudo, que é a Narrativa. A Narrativa está presente, por certo, nos filmes, nos quadrinhos, no teatro, e por aí vai, mas quem ajudou a Narrativa a nascer, a existir, foi, antes das outras, uma forma de expressão baseada na palavra, na literatura oral. A história contada em volta da fogueira, ou numa viagem tediosa, ou numa cerimônia, ou numa festa...  
A Narrativa começou com a palavra falada, certamente muito contaminada pela poesia, pela dança, pela desenvoltura física ao narrar. Muitos anos depois inventaram a escrita. Os primeiros escribas passaram séculos tentando produzir frases que exprimissem não apenas as palavras pronunciadas pelo contador-de-histórias, mas que produzissem, com outros meios puramente verbais, o grau de participação, empatia, intimidade instantânea com o que está sendo narrado.

O game do futuro terá a riqueza do romance histórico, as intrincadas peripécias dos romances-folhetim, os mergulhos introspectivos do cinema de arte, a imageria vívida da pulp fiction. 

Tudo isto em um jogo multiplayer, multi-universo, multi-estilístico, usando desde o desenho animado ao filmezinho de celular, desde abstração com massinha até hiperrealismo em nanquim.





terça-feira, 31 de janeiro de 2012

2780) Traduzir o sertão (31.1.2012)




(Guimarães Rosa, por Baptistão)

A estética literária de Guimarães Rosa é baseada no desprezo à primeira idéia (à maneira mais simples e imediata de dizer algo) e à procura de uma maneira inesperada, mais rica, mais inquietante. Numa entrevista a Gunther Lorenz (1965), ele afirmou: “Como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”.

Ao que se diz, as melhores traduções de Rosa são as de Curt Meyer-Clason para o alemão e as de Edoardo Bizarri para o italiano. Agora, uma nova versão alemã do Grande Sertão está sendo feita por Berthold Zilly, que já traduziu obras de Raduan Nassar, Euclides da Cunha, Machado de Assis, etc. (ver entrevista a José Geraldo Couto: http://bit.ly/xgKl1S). Zilly mostra, num exemplo, as questões interligadas de ser fiel ao conteúdo e à forma do original:

“Por exemplo, os contrastes entre, por um lado, os períodos longuíssimos, repletos de orações subordinadas e apostos, e por outro os períodos compostos por uma única palavra. Logo na primeira página do livro, há a frase isolada: ‘Mataram’. Referia-se ao bezerro disforme que podia ser o demônio e que os cabras da fazenda de Riobaldo mataram. Meyer-Clason verte esse lacônico ‘mataram’ por ‘Sie habens auf der Stelle totgeschlagen’ (literalmente: ‘Eles o mataram a pancadas imediatamente’). O laconismo extremo do original é impossível de se reconfigurar em alemão, pois precisamos de um sujeito para um verbo, precisamos de um objeto no caso de um verbo transitivo, e além disso, no pretérito perfeito, em geral precisamos de um verbo auxiliar. Mas em vez de limitar o número de palavras, Meyer-Clason acrescenta desnecessariamente um advérbio (auf der Stelle, imediatamente). Além disso, há o problema semântico: indica-se, diferentemente do original, a maneira de matar o bezerro, e ainda por cima de modo equivocado, pois os cabras provavelmente mataram o animal a tiros. Provavelmente vou traduzi-la como ‘Habens getötet’; se a gente traduzisse isso, palavra por palavra, seria mais ou menos ‘Têm-no matado’, Esse tipo de equívoco é frequente na tradução de Meyer-Clason, que é muito boa em outros aspectos. Penso que é natural que a tradução de uma obra desse quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador. Agora tenho que ir além.”

Num mundo ideal, não haveria duas versões idênticas, em nenhuma língua, para qualquer frase do Grande Sertão. Cada tradutor teria que inventar uma expressão nunca dita antes, uma expressão que correspondesse à força-de-novidade da frase em português.

domingo, 29 de janeiro de 2012

2779) A prova do real (29.1.2012)




(Bertrand Russell)

Distinguir entre o que é e o que não é real é, para os filósofos, um problema insolúvel e um passatempo inesgotável. 

É também um dos motivos que levam o cidadão comum, que lê jornal e anda de ônibus, a torcer o nariz para a atividade filosófica, que ele considera uma mistura de enxugar gelo e chover no molhado. O cidadão acha que não há motivo para ficar discutindo se o mundo existe, uma vez que se o mundo não existisse os próprios discutidores do assunto não estariam ali para discuti-lo. 

No passado, o Bispo Berkeley foi um dos grandes defensores do idealismo, da teoria de que o mundo existe apenas como uma idéia, uma espécie de alucinação consensual, dentro de nossas cabeças. Tudo é ilusão, dizia Berkeley. Seus detratores replicavam: “E no entanto o Bispo tem o saudável costume de entrar em sua residência pela porta, e não através da parede”.

Martin Gardner relata um debate divertido entre os filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap, na Universidade de Chicago, sobre o “phaneron”, o mundo das percepções e dos fenômenos. 

O “phaneron” é tudo que vemos, tocamos, e sentimos; um conjunto de percepções. Nunca conseguiremos provar (ou desmentir) de maneira irrefutável se o que julgamos perceber existe de fato. Só sabemos do universo o que nossos sentidos nos revelam, mas eles podem estar enganados. (Só sabemos disso quando somos vítimas de uma alucinação, um delírio, etc.; desse dia em diante aprendemos a desconfiar do que vemos.)

No meio do debate, Bertrand Russell fez a Carnap a pergunta: 

-- Nossas esposas estão presentes aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós dois, seus maridos?

Comentando essa pergunta depois com Gardner, Carnap queixou-se: 

-- Mas não é disso que se trata.  

De fato, os filósofos não afirmam que o mundo não existe. Eles acreditam na existência do mundo, de suas esposas (!) e tudo o mais. Eles apenas gostariam de ter uma prova filosófica, ou seja, uma prova argumental, de que isto em que acreditam é uma verdade; e tal prova não existe.

Essa questão, antiga como o mundo, é talvez a questão mais importante do mundo. (Talvez não seja apenas a mais urgente – aí estão as guerras, as desigualdades sociais, etc., com muito mais urgência.) 

É a mais importante por ser a questão mais total, mais abrangente: ou tudo existe, ou tudo é ilusão. Todos nós já tivemos sonhos intensamente vívidos, que nos deram, enquanto duravam, uma intensa impressão de realidade. Como qualquer um de nós pode ter certeza de que não está sonhando, no momento em que escreve (ou que lê) estas linhas?






sábado, 28 de janeiro de 2012

2778) O segredo de Descartes (28.1.2012)


Existem livros de mistério que não são ficção, não empregam detetives e não investigam um assassinato. São aquelas investigações históricas, arqueológicas, etc., em que o autor começa expondo uma situação misteriosa qualquer, que de fato ocorreu, e aos poucos vai deslindando a trama de lacunas e de pistas falsas, dando explicações, checando hipóteses, até nos dar a solução final. 

Gosto ainda mais desses livros quando se trata de pesquisas sobre história da arte ou da ciência. É o caso de O Caderno Secreto de Descartes (Ed. Zahar, 2007) de Amir D. Aczel. Li-o durante os mesmos dias em que assisti o Descartes de Roberto Rossellini, um filme para TV contando a vida do filósofo francês. 

O livro de Aczel conta a vida de Descartes mas não tem a intenção de ser uma biografia exaustiva (existem várias, que ele cita sempre que necessário). Seu interesse maior é rastrear a história de um caderninho que era mantido pelo filósofo, com parte das anotações em código, e que por um triz não se perdeu, depois de mofar durante séculos nos porões de casas e castelos e de sobreviver a um naufrágio. 

Descartes tinha motivos para usar escrita em código. Por ser um soldado errante, de família nobre, que se alistava em exércitos por espírito de aventura e gostava de viver viajando, era sempre visto com estranheza e desconfiança onde chegava. Numa época de paixões políticas incendiárias vale sempre o ditado de “quem não é nosso, é deles”. Como Descartes não se aliava ostensivamente a nenhum grupo, todos desconfiavam dele. 

Foi suspeito de pertencer ao movimento Rosacruz, foi tido como espião, foi perseguido no meio acadêmico por cristãos radicais que se horrorizavam com seu interesse pela ciência prática. 

O livro de Aczel retrata todas essas polêmicas, estuda os famosos “três sonhos” que inspiraram ao filósofo suas grandes descobertas, documenta a morte do filósofo na corte de Cristina da Suécia (ele deve ter morrido de pneumonia, mas há sempre uma suspeita de assassinato político no ar), e por fim a descoberta e a decifração do seu caderno secreto, graças à cópia manuscrita que Leibnitz fez quando teve acesso a ele. 

Não é nenhum “segredo de Fátima”; basta dizer que Descartes intuiu, antes de todo mundo, o moderno campo matemático da Topologia, e a prova disto está no caderninho. 

Aczel lembra, no início do livro, que as coordenadas cartesianas abriram caminho para os localizadores GPS, para o mapeamento dos pixels numa tela de computador, para a engenharia, a astronomia, e onde quer que seja necessário transformar dados aritméticos em geométricos, ou vice-versa. Poucos homens mudaram tanto o mundo.