quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
2782) Mudando de gênero (2.2.2012)
A cultura do remanejamento, da intervenção e da releitura tem produzido algumas obras memoráveis, como aquelas misturas entre os romances de Jane Austen e as histórias de zumbis. Não é tão novo assim, e mesmo aqui no Brasil lembro a recente intervenção feita por Glauco Mattoso no clássico A Pata da Gazela de José de Alencar, que o iconoclasta-mor da Paulicéia transformou em A Planta da Donzela, alternando os trechos alencarianos com eruditas digressões sobre a adoração sexual dos pés (podolatria?). É a mesma cultura do “mash-up” (que poderíamos traduzir livremente como “mexa”). Seu produto mais simbólico é a obra do DJ Danger Mouse, que misturou as músicas do White Album (1968) dos Beatles e as do Black Album (2003) de Jay-Z, produzindo o seu Gray Album (2004).
Agora, a escritora Kate Harrad lançou através de seu blog Fausterella uma experiência (ver: http://loveandzombies.co.uk/genderswitching/) que consiste em pegar um texto clássico e inverter o sexo dos personagens, tornando homem quem era mulher e vice-versa. Ela exibe exemplos retirados de Jane Austen, de G. K. Chesterton (com uma detetive chamada Sister Brown, ao invés do clássico Padre Brown) e principalmente das aventuras detetivescas de duas grandes amigas, Shirley Holmes e Jane Watson. Destas últimas, Kate fornece textos completos (em inglês, claro) dos contos “Um escândalo na Boêmia” e “O homem do lábio torcido”.
Kate comenta que mantém o texto original, salvo no que se refere ao sexo dos personagens. Fica engraçado ler os longos diálogos entre Miss Holmes e Mrs. Watson (pois Jane tem marido), as duas discutindo as mesmas questões dedutivas a que nos acostumamos, mas que agora adquirem um viés completamente inesperado quando imaginamos o apartamento de Baker Street e duas damas vitorianas conversando sobre crimes enquanto fumam cachimbo e tocam violino.
Kate Harrad fornece um link para o saite “regender.com” (http://regender.com/index.html), que se oferece para mudar o tratamento masculino ou feminino de qualquer página da web fornecida. O saite propõe estas questões: Como seria o mundo se os sexos trocassem de posição? Como seria ele, se o inglês tivesse pronomes que não indicassem o gênero? Como seria ele se a língua o inglesa identificasse raças tal como identifica os sexos? Para oficinas e grupos literários isto pode ser um exercício para avaliar plausibilidade, habilidade técnica, preconceitos inconscientes e embutidos, adequação do diálogo ao personagem, além de muitos recursos dramatúrgicos que imaginamos serem universais mas que estão condicionados à visão que temos do que é ser homem ou ser mulher.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
2781) Um bom game (1.2.2012)
(Fallout)
Um bom game do futuro será um que consiga usar os recursos específicos do game para fazer o que o romance literário fez no século 19 e o filme fez no século 20, ou seja, ser o modo preferencial de contação de histórias e de descobrimento do ser humano e do mundo.
A palavra escrita já foi acusada de ser abstrata demais para poder contar coisas divertidas; a imagem, de ser demasiado concreta para poder dizer coisas importantes.
As duas limitações foram pulverizadas. Agora, o que se coloca para os próximos tempos é a confluência de pelo menos três rios.
O primeiro é a tecnocultura vídeo-eletrônico-digital, com todas as revoluções que trouxe ao mundo nos últimos trinta anos. Uma tecnologia que permite algo que a Literatura a o Cinema jamais conseguiram proporcionar: a interatividade, a capacidade do ouvinte da história de interferir na história que está sendo contada (ainda que interfira dentro de limitações talvez inevitáveis), o do-it-yourself. A tecnologia sempre será a avalista da interatividade.
O segundo rio é o do próprio cinema, com toda a parafernália visual de 120 anos de narrativas visuais, sintaxe de câmara, de luz, de tudo. Os games do futuro serão eternamente devedores do cinema, a menos que a certa altura comecem a migrar dessa influência realista do cinema para a influência dos quadrinhos, com animação de desenho livre substituindo realismo fotográfico.
O terceiro rio é a literatura, porque é nela que vamos encontrar a espinha dorsal de tudo, a viga mestra de tudo, que é a Narrativa. A Narrativa está presente, por certo, nos filmes, nos quadrinhos, no teatro, e por aí vai, mas quem ajudou a Narrativa a nascer, a existir, foi, antes das outras, uma forma de expressão baseada na palavra, na literatura oral. A história contada em volta da fogueira, ou numa viagem tediosa, ou numa cerimônia, ou numa festa...
A Narrativa começou com a palavra falada, certamente muito contaminada pela poesia, pela dança, pela desenvoltura física ao narrar. Muitos anos depois inventaram a escrita. Os primeiros escribas passaram séculos tentando produzir frases que exprimissem não apenas as palavras pronunciadas pelo contador-de-histórias, mas que produzissem, com outros meios puramente verbais, o grau de participação, empatia, intimidade instantânea com o que está sendo narrado.
O game do futuro terá a riqueza do romance histórico, as intrincadas peripécias dos romances-folhetim, os mergulhos introspectivos do cinema de arte, a imageria vívida da pulp fiction.
Tudo isto em um jogo multiplayer, multi-universo, multi-estilístico, usando desde o desenho animado ao filmezinho de celular, desde abstração com massinha até hiperrealismo em nanquim.
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
2780) Traduzir o sertão (31.1.2012)

(Guimarães Rosa, por Baptistão)
A estética literária de Guimarães Rosa é baseada no desprezo à primeira idéia (à maneira mais simples e imediata de dizer algo) e à procura de uma maneira inesperada, mais rica, mais inquietante. Numa entrevista a Gunther Lorenz (1965), ele afirmou: “Como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”.
Ao que se diz, as melhores traduções de Rosa são as de Curt Meyer-Clason para o alemão e as de Edoardo Bizarri para o italiano. Agora, uma nova versão alemã do Grande Sertão está sendo feita por Berthold Zilly, que já traduziu obras de Raduan Nassar, Euclides da Cunha, Machado de Assis, etc. (ver entrevista a José Geraldo Couto: http://bit.ly/xgKl1S). Zilly mostra, num exemplo, as questões interligadas de ser fiel ao conteúdo e à forma do original:
“Por exemplo, os contrastes entre, por um lado, os períodos longuíssimos, repletos de orações subordinadas e apostos, e por outro os períodos compostos por uma única palavra. Logo na primeira página do livro, há a frase isolada: ‘Mataram’. Referia-se ao bezerro disforme que podia ser o demônio e que os cabras da fazenda de Riobaldo mataram. Meyer-Clason verte esse lacônico ‘mataram’ por ‘Sie habens auf der Stelle totgeschlagen’ (literalmente: ‘Eles o mataram a pancadas imediatamente’). O laconismo extremo do original é impossível de se reconfigurar em alemão, pois precisamos de um sujeito para um verbo, precisamos de um objeto no caso de um verbo transitivo, e além disso, no pretérito perfeito, em geral precisamos de um verbo auxiliar. Mas em vez de limitar o número de palavras, Meyer-Clason acrescenta desnecessariamente um advérbio (auf der Stelle, imediatamente). Além disso, há o problema semântico: indica-se, diferentemente do original, a maneira de matar o bezerro, e ainda por cima de modo equivocado, pois os cabras provavelmente mataram o animal a tiros. Provavelmente vou traduzi-la como ‘Habens getötet’; se a gente traduzisse isso, palavra por palavra, seria mais ou menos ‘Têm-no matado’, Esse tipo de equívoco é frequente na tradução de Meyer-Clason, que é muito boa em outros aspectos. Penso que é natural que a tradução de uma obra desse quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador. Agora tenho que ir além.”
Num mundo ideal, não haveria duas versões idênticas, em nenhuma língua, para qualquer frase do Grande Sertão. Cada tradutor teria que inventar uma expressão nunca dita antes, uma expressão que correspondesse à força-de-novidade da frase em português.
domingo, 29 de janeiro de 2012
2779) A prova do real (29.1.2012)
(Bertrand Russell)
Distinguir entre o que é e o que não é real é, para os filósofos, um problema insolúvel e um passatempo inesgotável.
É também um dos motivos que levam o cidadão comum, que lê jornal e anda de ônibus, a torcer o nariz para a atividade filosófica, que ele considera uma mistura de enxugar gelo e chover no molhado. O cidadão acha que não há motivo para ficar discutindo se o mundo existe, uma vez que se o mundo não existisse os próprios discutidores do assunto não estariam ali para discuti-lo.
No passado, o Bispo Berkeley foi um dos grandes defensores do idealismo, da teoria de que o mundo existe apenas como uma idéia, uma espécie de alucinação consensual, dentro de nossas cabeças. Tudo é ilusão, dizia Berkeley. Seus detratores replicavam: “E no entanto o Bispo tem o saudável costume de entrar em sua residência pela porta, e não através da parede”.
Martin Gardner relata um debate divertido entre os filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap, na Universidade de Chicago, sobre o “phaneron”, o mundo das percepções e dos fenômenos.
O “phaneron” é tudo que vemos, tocamos, e sentimos; um conjunto de percepções. Nunca conseguiremos provar (ou desmentir) de maneira irrefutável se o que julgamos perceber existe de fato. Só sabemos do universo o que nossos sentidos nos revelam, mas eles podem estar enganados. (Só sabemos disso quando somos vítimas de uma alucinação, um delírio, etc.; desse dia em diante aprendemos a desconfiar do que vemos.)
No meio do debate, Bertrand Russell fez a Carnap a pergunta:
-- Nossas esposas estão presentes aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós dois, seus maridos?
Comentando essa pergunta depois com Gardner, Carnap queixou-se:
-- Mas não é disso que se trata.
De fato, os filósofos não afirmam que o mundo não existe. Eles acreditam na existência do mundo, de suas esposas (!) e tudo o mais. Eles apenas gostariam de ter uma prova filosófica, ou seja, uma prova argumental, de que isto em que acreditam é uma verdade; e tal prova não existe.
Essa questão, antiga como o mundo, é talvez a questão mais importante do mundo. (Talvez não seja apenas a mais urgente – aí estão as guerras, as desigualdades sociais, etc., com muito mais urgência.)
É a mais importante por ser a questão mais total, mais abrangente: ou tudo existe, ou tudo é ilusão. Todos nós já tivemos sonhos intensamente vívidos, que nos deram, enquanto duravam, uma intensa impressão de realidade. Como qualquer um de nós pode ter certeza de que não está sonhando, no momento em que escreve (ou que lê) estas linhas?
sábado, 28 de janeiro de 2012
2778) O segredo de Descartes (28.1.2012)
Existem livros de mistério que não são ficção, não empregam detetives e não investigam um assassinato. São aquelas investigações históricas, arqueológicas, etc., em que o autor começa expondo uma situação misteriosa qualquer, que de fato ocorreu, e aos poucos vai deslindando a trama de lacunas e de pistas falsas, dando explicações, checando hipóteses, até nos dar a solução final.
Gosto ainda mais desses livros quando se trata de pesquisas sobre história da arte ou da ciência. É o caso de O Caderno Secreto de Descartes (Ed. Zahar, 2007) de Amir D. Aczel. Li-o durante os mesmos dias em que assisti o Descartes de Roberto Rossellini, um filme para TV contando a vida do filósofo francês.
O livro de Aczel conta a vida de Descartes mas não tem a intenção de ser uma biografia exaustiva (existem várias, que ele cita sempre que necessário). Seu interesse maior é rastrear a história de um caderninho que era mantido pelo filósofo, com parte das anotações em código, e que por um triz não se perdeu, depois de mofar durante séculos nos porões de casas e castelos e de sobreviver a um naufrágio.
Descartes tinha motivos para usar escrita em código. Por ser um soldado errante, de família nobre, que se alistava em exércitos por espírito de aventura e gostava de viver viajando, era sempre visto com estranheza e desconfiança onde chegava. Numa época de paixões políticas incendiárias vale sempre o ditado de “quem não é nosso, é deles”. Como Descartes não se aliava ostensivamente a nenhum grupo, todos desconfiavam dele.
Foi suspeito de pertencer ao movimento Rosacruz, foi tido como espião, foi perseguido no meio acadêmico por cristãos radicais que se horrorizavam com seu interesse pela ciência prática.
O livro de Aczel retrata todas essas polêmicas, estuda os famosos “três sonhos” que inspiraram ao filósofo suas grandes descobertas, documenta a morte do filósofo na corte de Cristina da Suécia (ele deve ter morrido de pneumonia, mas há sempre uma suspeita de assassinato político no ar), e por fim a descoberta e a decifração do seu caderno secreto, graças à cópia manuscrita que Leibnitz fez quando teve acesso a ele.
Não é nenhum “segredo de Fátima”; basta dizer que Descartes intuiu, antes de todo mundo, o moderno campo matemático da Topologia, e a prova disto está no caderninho.
Aczel lembra, no início do livro, que as coordenadas cartesianas abriram caminho para os localizadores GPS, para o mapeamento dos pixels numa tela de computador, para a engenharia, a astronomia, e onde quer que seja necessário transformar dados aritméticos em geométricos, ou vice-versa. Poucos homens mudaram tanto o mundo.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
2777) O cheiro da grana (27.1.2012)
(cena de "O cheiro do ralo")
A cada ano fica mais intensa a discussão sobre direitos autorais, pirataria, propriedade intelectual. É uma discussão em cima de coisas que parecem inquestionáveis, coisas como o “meu”, o “seu”, a propriedade, a disputa pela posse das coisas, o valor de troca de cada coisa, o valor do trabalho.
Mas suponhamos que apareça uma certa categoria de músicos que diga: “Minha música está aí para ser ouvida, para despertar a curiosidade das pessoas, botar as pessoas pra pensar”, ou então: “Minha música está aqui para dar alegria às pessoas e deixar o corpo delas feliz. A música é um trabalho de permanente reeducação física, é ritual de aproximação social, o escambau. Minha música serve para isto, e se me pagarem o básico da vida, não quero riqueza. Entrego o resto de graça”.
A irritação de muita gente contra quem pensa o tempo inteiro em termos de “produto comercial” se justifica em casos agudos, quase terminais, como o do personagem de Selton Mello em O Cheiro do Ralo, um cara que faz do dinheiro sua linguagem, seu código Morse, sua única troca de sinais com o mundo.
Ou o judeu traumatizado de O Homem do Prego de Sidney Lumet, que usa uma loja de penhores para vingar-se do que lhe fez a vida, sobre os capitalisticamente prejudicados de Manhattan.
Dinheiro é a mais viciante das drogas, e nenhum de nós pode passar muito tempo sem fazer uma visitinha a ele. Temos sorte de que seja uma droga leve e cotidiana, como o café, mas o seu apelo não falha em quase ninguém.
Melhor do que fugir dele é usá-lo, esvaziando-o de muita importância. Existem pessoas que têm como plano de vida aumentar seus rendimentos em 100% todo ano. (Claro que não é possível, mas elas não sabem, e tomam remédio pra poder conviver com essa desilusão.) O problema dos delírios quantitativos é que, na vida real, somar dois bilhões mais dois bilhões não é o mesmo que somar 2+2.
Deve-se exigir o máximo de profissionalismo nas relações de trabalho baseadas no dinheiro, mas não se pode defender que esse seja o único tipo de relação do trabalho artístico.
A música tem muito a ver com a reunião das pessoas, o encontro, o lazer coletivo, o diálogo dos talentos. Seja num ambiente de alegre bagunça e canções em voz alta, seja num momento mais contido, em que as canções e os instrumentos falam por si.
Os melhores shows musicais que já aconteceram no Brasil não se deram num palco, mas meio por acaso, num espaço de lazer informal. Fazem parte da vida, não da atividade profissional (por mais bem paga que seja).
É o palco que reflete a luz do rock feito na garagem, da cantoria num pé de parede ou do pagode no quintal, e não o contrário.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
2776) A Guerra de 12 (26.1.2012)

Houve várias “guerras de 12” referentes a 1912, e não duvido que 1812 tenha oferecido algumas guerras famosas também. A que conheço melhor é aquela que o advogado e fazendeiro Augusto Santa Cruz moveu, à frente de 200 jagunços, contra as autoridades de Alagoa do Monteiro, por duas vezes. Na primeira, em 1911, prendeu e desmoralizou todos, em praça pública, mas foi combatido, bateu em retirada e refugiou-se sob a proteção do Padre Cícero, enquanto os desafetos destruíam e incendiavam sua fazenda. Voltou em 12, reorganizou o bando, juntou-se a Franklin Dantas. Tornou a invadir Monteiro, e desta vez foi em frente, invadiu Taperoá, Patos, Santa Luzia do Sabugi, Soledade; foi derrotado apenas em São João do Cariri. A história dessa guerra está no brilhante livro Guerreiro Togado, de Pedro Nunes Filho.
Mas a Guerra de Doze a que me refiro é a que está em curso, a Guerra Digital entre as autoridades e empresas que pretendem interferir na troca livre de arquivos via Internet, e as empresas, grupos ou indivíduos que não admitem isso. Entre 19 e 20 de janeiro a polícia prendeu os responsáveis pelo portal Megaupload e tirou o saite do ar, e o coletivo Anonymous tirou do ar por algum tempo saites das autoridades, como o FBI, e de empresas. O que foi chamado nas redes sociais de Primeira Guerra Digital pode ter sido a primeira escaramuça de uma guerra maior. Até que ponto um lado tem poder policial e político para continuar fechando saites e aprovando leis de censura? Até que ponto o outro lado pode bloquear saites, e que outras formas de represália cibernética (ou não) ele pode utilizar?
Em 1992, Bruce Sterling lançou o livro The Hacker Crackdown, sobre a operação do Serviço Secreto norte-americano, que em 1990 invadiu a “Steven Jackson Games” e apreendeu material da empresa (em 1993 um tribunal considerou essa operação “executada sem cuidado, ilegal, e completamente injustificada”). O livro de Sterling mostra como a Internet recebeu o poderoso afluente das tecnologias telefônicas dos EUA para ser o que é. E foi também o primeiro livro (ou pelo menos o primeiro livro que já era sucesso de vendas) a ser oferecido gratuitamente para download. Neste momento, alguém envolvido nessas guerras deve estar juntando material para escrever um livro análogo. Ou o livro está sendo escrito ao mesmo tempo por pessoas que não se conhecem, em países diferentes, sem que elas mesmas tenham isto em mente; é um livro descentralizado, sem índice, sem ordem cronológica, um livro apenas páginas de texto que vão sendo digitadas no dia a dia por escritores tão anônimos que não sabem que são escritores.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
2775) A arte de rir (25.1.2012)
Um homem e uma mulher, que não se conhecem, viajam por acaso no mesmo vagão de trem noturno. À noite, cada um se deita no seu beliche e pega sua manta. No meio da noite, a mulher se levanta e vai até o beliche do homem: “Por favor, estou com muito frio... Você podia me emprestar sua manta?”. Ele diz: “Tenho uma idéia melhor. Poderíamos fingir que somos casados, só por esta noite!” Ela dá um sorriso malicioso e diz: “Claro... Por que não?” Ele responde: “Então larga minha manta, vai dormir, e não enche!”.
Toda piada se baseia na descrição de uma situação, numa inferência errônea que fazemos sem perceber, e na revelação brusca, na derradeira linha, do que estava de fato acontecendo.
No presente caso, a inferência errônea é a mesma que a mulher fez, ou seja, de que com esse papo de “fingir que eram casados” o homem estava propondo que fizessem sexo para se aquecer. Com a frase final dele, ficamos sabendo o que de fato ele estava pensando.
Achamos graça porque é uma versão plausível dentro da nossa cultura, em que o casamento é muitas vezes abordado como uma fonte permanente de pequenas disputas, discussões, pequenos egoísmos, pequenas indelicadezas. As duas possibilidades são igualmente plausíveis (o homem quer sexo; o homem quer ser deixado em paz), e a habilidade da piada (e de quem vai recontá-la) é dar a entender uma coisa e surpreender com a outra.
Matthew Hurley, co-autor de Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind (MIT Press, 2011) afirma que nossa mente trabalha sem parar, fazendo hipóteses e presumindo coisas a respeito de tudo que nos cerca, tentando não ser apanhada de surpresa.
Acontece que um número enorme dessas hipóteses se revelam erradas e são descartadas, mas lidar com elas faz parte de nossa atividade mental. Será que esse motoqueiro vai mesmo cortar na frente do meu carro? Será que o guarda me viu passar o sinal vermelho? Será que aquele é Fulano no carro ao lado?
Muitas dessas possibilidades podem gerar situações tensas ou constrangedoras que nunca se verificam, mas nossa memória não as abandona totalmente. O humor serve muitas vezes como uma reconstrução dessas coisas que não aconteceram, muitas delas por serem absurdas ou altamente improváveis; e a descarga nervosa representada pelo riso é nossa reação diante de algo absurdo que ameaça acontecer e não acontece, ou então algo comum que acaba acontecendo de maneira absurda.
Diz Hurley (http://b.globe.com/sXfzh7): “O humor é agnóstico com respeito ao conteúdo, porque consiste apenas na descoberta de uma falsa suposição, e este processo não requer nenhum conteúdo em especial. (...) O que é universal no humor é o processo, não o conteúdo”.
Muitas dessas possibilidades podem gerar situações tensas ou constrangedoras que nunca se verificam, mas nossa memória não as abandona totalmente. O humor serve muitas vezes como uma reconstrução dessas coisas que não aconteceram, muitas delas por serem absurdas ou altamente improváveis; e a descarga nervosa representada pelo riso é nossa reação diante de algo absurdo que ameaça acontecer e não acontece, ou então algo comum que acaba acontecendo de maneira absurda.
Diz Hurley (http://b.globe.com/sXfzh7): “O humor é agnóstico com respeito ao conteúdo, porque consiste apenas na descoberta de uma falsa suposição, e este processo não requer nenhum conteúdo em especial. (...) O que é universal no humor é o processo, não o conteúdo”.
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
2774) A 1a. Guerra Digital (24.1.2012)

A Primeira Guerra Digital ocorreu entre quinta e sexta-feira passadas, quando o coletivo Anonymous, reunindo cerca de 5.600 computadores espalhados pelo mundo, tirou do ar os computadores do FBI, numa represália ao fechamento do Megaupload, saite de compartilhamento de arquivos, acusado de pirataria digital. É provável que não tenha sido a primeira (sempre haverá quem já viu outras); a única certeza é de que não será a última, e de que em breve será tão permanente e banal quanto as balas perdidas.
Não foi uma batalha bélica, não houve perda de vidas nem de patrimônio material. Uma dúzia de presos, parece. Não houve tiroteio; apenas ofensivas e contraofensivas virtuais por parte dos dois grupos. O grupo pró-SOPA (que defende a lei Stop Online Piracy Act), numa carga fulminante ladeira acima, invadiu e apossou-se do território Megaupload, de aliados do Anonymous. A invasão se deu em circunstâncias tais que dificilmente esse território será retomado. Já o Anonymous mostrou que não pode anexar território para si (provavelmente é disperso demais para isto), mas, em contrapartida, bombardeou uma dúzia de “pontes”, e engavetou o acesso a pontos cruciais do território inimigo: FBI, agências do governo, grandes corporações da música e do cinema.
O grupo da SOPA perdeu a chance de forçar uma discussão e votação imediata da lei, mas apossou-se de um ativo de grande porte, sem falar na vitória moral e no marketing. A guerrilha internética do Anonymous mostrou força, e usou inclusive, como veículo de ataque, computadores de usuários distraídos; convergiu sobre as redes dos adversários e as tirou do ar. 1x1.
São agitações como as da Primavera Árabe, Ocupem Wall Street, etc. Ocorrem confrontos, mas para as multidões anônimas não interessa muito o combate físico, inclusive contra um adversário bem aparelhado. As baixas mais sérias serão um efeito colateral, um risco aceito. Elas procuram a ocupação de espaços, o corte do fluxo de informações do inimigo. Não é muito diferente de ocupar ruas, barricar passagens, impedir o tráfego, intimidar os comerciantes, fechar a rua na marra.
Grupos assim são multidão apenas no sentido de serem plural e sem rosto; mas sua movimentação é a de um grupo especial de guerrilha. O grupo deve misturar anciãos, adultos, jovens, pessoas muitíssimo bem treinadas, uma rapaziada nerd e desocupada, com disposição para um novo game. Muitos mergulharam nisso às cegas, uns por aventura, outros por missão, outros por mera alegria de viver, outros por indignação cívica, outros por fama e fortuna. Juntos, podem ir da terra ao céu num pulo, como podem voltar do céu à terra num baque.
domingo, 22 de janeiro de 2012
2773) Souvenirs (22.1.2012)
Trouxemos da Malásia um casco de tartaruga, laqueado num tom de verde-lodo que lhe confere um aspecto de contemporâneo da Atlântida, algo encontrado por acaso por um mergulhador milionário que testava seu novo aqualung com amigos, num fim de semana.
Da Califórnia trouxemos uma coleção de máscaras de borracha em forma de focinho de cão, de lobo, de leão, máscaras que parecem ajustar-se perfeitamente aos nossos rostos, e que ao serem tiradas deixam a sensação de quem de repente se vê privado de todos os seus dentes.
Da Capadócia trouxemos uma pedra-pomes do tamanho de um travesseiro, que reproduz em miniatura as cidades-galerias ocultas nas cavernas de calcáreo.
De Málaga trouxemos rosas vermelhas, cada uma mais vermelha do que as outras, como se estivessem disputando entre si não só a nossa atenção como também as chances de um contrato milionário para aparecerem diariamente na televisão das rosas.
De Benares trouxemos um elefante vivo, pouco maior que um cão.
De Addis-Abeba trouxemos um robô de madeira que bate num pequeno bombo e funciona com duas pilhas AA, do tipo comum, e com isto passa o dia inteiro batendo no bombo, abrindo e fechando a boca sem emitir sons.
De Berlim trouxemos uma bomba da II Guerra, ainda intacta e capaz de explodir; foi colocada na sala, onde as visitas podem tocá-la com curiosidade, e, quem sabe, um dia... (a angústia do perigo nos excita).
De Brunei trouxemos uma pequena peça de artesanato feita em papel de seda e fios de cobre muito finos; sua estrutura lembra as camadas sucessivas de uma cebola, sendo abertas por um corte longitudinal que se alarga puxando de dentro de si a camada seguinte e fechando-se do lado oposto, como um leque esférico, de tal modo que, quando se fecha a última camada, emerge de dentro dela a primeira de todas, e tudo recomeça em loop.
De Nairobi trouxemos uma serpente empalhada (ou embalsamada – não entendemos bem a diferença), cravejada ao longo do corpo com toda sorte de objetos pontiagudos: uma agulha hipodérmica, uma seringa contendo heroína malhada, uma varinha do jogo de pega-varetas, uma curiosa tesourinha-de-unhas com três lâminas, uma ponta de flecha neolítica, uma caneta tinteiro Mont Blanc, um parafuso de aço com rosca canhota; cada um corresponde a uma graça alcançada.
E de uma cidade serrana, no nordeste do Brasil, trouxemos uma pedrinha encontrada na calçada enquanto caminhávamos de volta para o hotel; um seixozinho que rolava à toa, que todos chutavam ou pisavam sem enxergar; não nos custou nada mas hoje não o trocaríamos por todo o resto de nossa coleção, guardada nos seis andares do nosso museu hexagonal de vidro fumê.
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