sábado, 31 de dezembro de 2011
2753) Criação aleatória (30.12.2011)
Na revista Edge (http://bit.ly/vmEGf8), o biólogo Mark Pagel estuda o modo como o pensamento criativo se dissemina no interior das sociedades, e o compara com a evolução biológica.
Esta se dá através de pequenas mutações aleatórias em nossos genes, ao serem passados dos pais para os filhos. Muitas vezes não dão certo, mas às vezes dão, e “uma das coisas mais notáveis da natureza é que a seleção natural, atuando sobre essa variação genética gerada sem controle, é capaz de achar a melhor solução entre muitas, e sucessivamente incorporar essas soluções umas às outras. E, através desse processo extraordinariamente simples e não controlado por ninguém, criar coisas de complexidade inimaginável”.
Pagel compara isto ao que ele chama de “aprendizado social” (“social learning”), o processo através do qual as novas idéias são avaliadas pelo grupo, umas são descartadas, outras aceitas:
“Qualquer processo evolutivo dessa natureza precisa ter tanto um mecanismo de escolha, uma seleção natural, quanto o que podemos chamar de mecanismo generativo, um mecanismo capaz de criar variedade”.
Muitíssimas vezes o que o pensamento criador faz durante mais tempo é andar às cegas, tatear, dar saltos no escuro, escolher um caminho em vez de outro, sem saber exatamente por que este e não aquele. Tentar combinações ao acaso, produzir reviravoltas sem razão aparente, inserir elementos que não sabe exatamente o que são... tudo isto faz parte da atividade criadora na arte, na ciência, na literatura, etc.
Cria-se (mecanismo generativo) sem muita preocupação com a lógica ou o planejamento; e depois passa-se um pente fino no que foi criado (mecanismo de escolha).
Pagel enfatiza a importância do fator randômico, ou aleatório, em “qualquer processo evolutivo que consiste na exploração de um espaço desconhecido, tal como se dá com os genes, ou com os neurônios explorando o espaço desconhecido em nosso cérebro e tentando criar conexões, ou com as nossas mentes tentando produzir idéias novas e explorando o espaço de alternativas que nos conduz para o que chamamos de criatividade”.
Meu conselho aos jovens artistas: produzam intuitivamente, levados pelo instinto, sem planejar. O planejamento nos traz de volta à repetição. Quando pensamos racionalmente, em geral, estamos repetindo modos de pensar que aprendemos, que já são consagrados, coletivos.
A criação (artística, científica, etc.) precisa lidar com hipóteses absurdas, argumentos sem provas, descobertas inexplicáveis, elementos aparentemente sem sentido. Somente depois devemos ligar o “mecanismo de escolha” para achar o equilíbrio entre o aprendido e o recém-descoberto.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
2752) “Fogo Pálido” (29.12.2011)
É um dos livros mais surpreendentes de Vladimir Nabokov, este especialista em surpresas. E serve como ótima ilustração para a minha teoria sobre a formação dos gêneros literários, ou seja, que eles se estruturam a partir de um texto básico, o qual passa a ser imitado, gerando um número tão grande de variantes que esse conjunto de textos acaba constituindo uma literatura à parte. O exemplo clássico é “Os assassinatos da Rua Morgue” de Edgar Allan Poe (1841), que serviu de modelo para toda a literatura de mistério detetivesco.
Fogo Pálido consta de um longo poema em quatro cantos e as notas explicativas que o acompanham. Acontece que Nabokov atribui o poema a um sujeito imaginário, e as notas a outro. O autor do poema é Shade, um poeta recém falecido; e seu explicador é um tal de Charles Kinbote, que aos poucos vai se revelando ao leitor como um doido de jogar pedra. Seus comentários contam de modo distorcido a vida de Shade, a dele próprio, e mais uma enormidade de coisas que, a rigor, nada têm a ver com o poema que ele alega estar explicando.
Se o livro de Nabokov tivesse sido um sucesso de vendas como foram O Nome da Rosa de Umberto Eco ou o Memorial do Convento de José Saramago (duas outras obras literariamente ambiciosas e admiráveis, que geraram inúmeros imitadores) poderia ter criado um novo gênero, a análise fictícia de textos imaginários. Dezenas e dezenas de romances onde o autor imaginaria tanto a obra quanto a crítica. Um poema alquímico renascentista explicado por um psicanalista freudiano. Um poema recém-descoberto de Castro Alves explicado por um crítico baiano tropicalista. Um poema beatnik de autor desconhecido explicado por uma professora republicana de Boston. Um poema de um simbolista cearense explicado por um brazilianista argentino. Uma coletânea de haikais japoneses explicada por um estruturalista mexicano. E por aí vai. Um gênero inteiro, um enorme nicho de mercado destinado a satisfazer a curiosidade de leitores que gostassem da fórmula e fossem capazes de consumir variações dela até o fim dos tempos, como o fazem com o conto policial de Poe.
Li num artigo sobre Fogo Pálido (http://tinyurl.com/cxhpj7x) que o livro tem seguidores, sim. Arthur Philips escreveu um romance, The Tragedy of Arthur, que tem a forma de introdução a uma peça inédita de Shakespeare, e inclui o texto completo da peça. Este hipotético gênero nabokoviano deve estar se gerando nos desvãos da crítica e do mercado. Dada a mentalidade “mash up” de hoje, adoradora de simulacros e de ficções fictícias, quem duvida que será o gênero da moda daqui a algumas décadas?
2751) O gênio não-original (28.12.2011)

Kenneth Goldsmith, um questionador das práticas literárias, é fundador do saite UbuWeb (www.ubuweb.com), conhecido como “o YouTube da vanguarda”. Eu não diria que é um grande escritor, e é bastante possível que, ganhando de presente um livro dele, nunca o lesse. A maldição da vanguarda é que geralmente seus postulados teóricos são fascinantes e arrojados, mas suas produções artísticas nos deixam entediados ou perplexos. Num artigo recente (http://bit.ly/npT8zj), Goldsmith argumenta que na época da cultura digital o conceito de originalidade artística está sendo substituído pelo de “reorientação” (“repurposing”) das idéias e dos textos. Mais do que produzir páginas originais, cabe ao escritor de hoje administrar um excesso de textos já existente, organizá-lo, distribuí-lo. Diz Goldsmith:
“Nos últimos cinco anos, vimos alguém copiar On the Road de Jack Kerouac por inteiro, uma página por dia, num blog; a apropriação do texto de uma edição do New York Times, publicada sob a forma de um livro de 900 páginas; uma reorganização da lista de lojas num shopping, diagramada em forma de poema; um escritor empobrecido que pegou todos os seus extratos de cartão de crédito e os encadernou num volume impresso por demanda, com 800 páginas, tão caro que ele próprio não conseguiu comprá-lo; um poeta que reorganizou o texto de uma gramática do séc. 19, inclusive o índice, de acordo com seus próprios métodos; um advogado que apresenta como poemas os memorandos do seu trabalho, nem mudar uma palavra sequer; outra escritora que passa os dias na Biblioteca Britânica copiando o primeiro verso do ‘Inferno’ de Dante, em todas as traduções ali existentes, um depois do outro, até esgotar o acervo da biblioteca; outra equipe de escritores que se apropria de posts e status de redes sociais e os atribui a escritores falecidos (“Jonathan Swift conseguiu entradas para o jogo dos Wranglers hoje à noite”), criando uma obra poética épica, interminável, que se reescreve cada vez que alguém atualiza seu Facebook; e um movimento literário chamado Flarf que consiste em recolher os piores resultados de busca do Google, quanto mais ridículos e ofensivos melhor”.
Esses escritores são as formigas-operárias da literatura, cujo trabalho consiste em cortar folha e trazer folha, para produzir a pasta fermentada que alimenta o formigueiro. Não creio, como Goldsmith, que o gênio original deixou de existir, mas acredito que em torno do Escritor tradicional surgem reescritores, descritores, transcritores, meta-escritores... A Literatura está se movendo, e nós, suas pulgas, nos movemos com ela, crentes que ela obedece às nossas vontades.
2750) O leitor fã (27.12.2011)

O fã é um produto típico de certa cultura de massas do nosso tempo, que requer não apenas o envolvimento afetivo com as obras de arte, mas uma dedicação emotiva em tempo integral. O fã é alguém cuja vida tem como centro seu ídolo, que pode ser um jogador de futebol, uma atriz de cinema, uma banda de rock, uma modelo. O leitor fã é o que transfere esse fanatismo (fã vem de “fanático”) para a literatura. O sujeito pode ser fã de um autor (os fãs de Stephen King), de um gênero (policial, ficção científica, etc.), de um personagem (Sherlock Holmes), de uma série de obras de autores variados (“Perry Rhodan”, etc.).
O que caracteriza o leitor fã é que ele se comporta diante do objeto de seu fanatismo como os fãs de Marilyn Monroe ou de Carlos Gardel se comportam diante dos seus ídolos. Qualquer farrapo de informação é importante, qualquer foto saída na imprensa merece ser recortada e pregada no álbum. O leitor fã faz listas de livros que precisa ler, listas de livros já lidos, listas de livros que precisa comprar, listas de livros que precisa perguntar aos amigos se vale a pena comprar. Costuma juntar-se a outros em clubes, onde a única conversa é sobre aqueles livros, e onde os membros debatem livros, comentam livros, trocam livros, compram livros usados uns aos outros.
Essa atividade frenética acaba atraindo o leitor, de forma quase imperceptível, para uma zona fronteiriça e nebulosa que, quando começa a se clarear de novo, revela ao incauto que ele cruzou um limite. Deixou de ser leitor e agora é somente fã. Um leitor é alguém que lê, que decifra palavras, que toma decisões interpretativas sobre cada frase, cada parágrafo, cada bloco de texto. O leitor recria em sua mente o mundo criado pelo livro e é forçado a tomar juízos de valor. O leitor fã, muitas vezes, torna-se fã para evitar essas tomadas de posição. Ele não quer ser inquietado por informações novas, desconcertantes, que ponham em xeque seus instrumentos de interpretação. Ele não quer novas experiências literárias. Quer o aconchego do eterno “um pouco mais daquilo mesmo”. O leitor fã abre mão do esforço de pensar, e lê apenas para lembrar, para refestelar-se no que já conhece.
Por isto o mercado cultua os fãs e alimenta sua obsessão de comprar todas as edições de um livro, todos os livros-de-fofocas sobre um autor, todos os livros de listas de um gênero. É o consumidor ideal, porque não compra mais com a intenção de ler. Quando o leitor fã abre os olhos, vê que não passa de um colecionador de livros que não lerá. Já não se distingue do cara que compra as meias de nylon de Evita Perón ou um travesseiro usado por John Lennon.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
2749) Natal 2011 (25.12.2011)

("The Neverending Search", de David Ho)
...e a roda do Zodíaco e seu zoo,
como um filme de doze fotogramas,
sobre esta Terra projetou seus dramas
que nos dão a ilusão chamada vida.
Tridimensional e colorida,
sensorial, corpórea, carne-e-osso...
De onde virá, então, a voz que ouço
sussurrando que tudo é a Matrix?
Compartilho com os nerds e com os geeks
a noção de que o mundo é Simulacro;
uma área que une o micro e o macro
nesta hipernovela em que caminho
de mãos nos bolsos, tranquilão, sozinho,
pelos jardins da General Glicério
fotografando a face do mistério
de existirem jardins, papelarias,
escolas, locadoras, padarias,
este café que acolhe os literatos,
grama verde, remédio contra ratos...
Tudo tão verossímil. Tão real.
Tudo é vento e é fogo, mel e sal,
pedra de gelo e brasa sobre a pele;
tudo que nos atrai e nos repele,
o corpo vivo e seus magnetismos.
Por baixo deste chão, quantos abismos?
Mas eu caminho, e piso sem receio,
e num piscar constato que passeio
em Manaíra, e compro tapioca,
e o pão daqui, igual ao carioca,
sugere a hipótese de um mundo só.
Passa um carro-de-mão com seu forró
estrondando milhões de decibéis;
fico marcando o ritmo com os pés
enquanto espero meu sinal abrir.
Os carros passam sem me pressentir,
sem saber que vivi por mais um ano;
bem ou mal, eis-me aqui, sem nenhum dano
a não ser os de ordem financeira...
Abriu! E eu atravesso na carreira
como o último Beatle de Abbey Road.
Chego à vitrine, apalpo o cartão Gold,
que já está da finura de uma seda...
Natal, poeta, é uma cana azeda
que a gente chupa e louva-lhe a doçura.
Melhor presentear literatura,
dar poemas aos membros da família!
Sai mais barato que trocar mobília,
renovar guarda-roupa e tudo o mais...
Distribuir sextilhas ou hai-kais
e dar o caso como resolvido.
Sigo, a tirar velhas canções do olvido,
afinal é Natal, “bimbalham sinos”,
exumam-se os enfeites naftalinos,
e volta a ressoar pela cidade
Luís Bordón, “A harpa e a cristandade”,
o mesmo que tocava no Alto Branco...
Tanto tempo passou? Pois serei franco,
dentro aqui tudo aquilo ainda existe;
não me venham dizer, de dedo em riste,
que o meu passado se apagou em mim.
E ao futuro, também, só digo Sim;
talvez um simulacro, mas sincero.
E este presente do futuro eu quero:
os olhos calmos de um bebê mutante
que parecem dizer: não chore, cante
(e que me dizem mais quando adormeço);
e assim me redescubro e reconheço
ao zerar cada ano, cada “game”.
Sobrevivi, ou seja, recriei-me,
sempre o mesmo, e mudando em pleno voo...
sábado, 24 de dezembro de 2011
2748) A religião Jedi (24.12.2011)

A cada ano que passa, cada vez mais gente, no mundo inteiro, afirma pertencer à religião dos Cavaleiros Jedi. Para quem não está ligando o nome à pessoa, os Cavaleiros Jedi são os personagens da série Star Wars de George Lucas: os mais famosos são Obi Wan Kenobi (interpretado por Alec Guiness) e o cavaleiro renegado e luciferiano Annakin Skywalker, que trai a confraria e se torna o nefasto Darth Vader.
Os Cavaleiros Jedi não têm uma crença sistematizada, com textos, mandamentos, sei lá que mais. Existe uma espécie de código geral de conduta meio Taoísta; mas sendo o mundo o que é e estando como está, não é impossível que já exista uma “Bíblia Jedi” por aí afora. A Wikipedia registra a existência de uma crença espontânea e difusa, mas nada que se assemelhe, pelo menos, às religiões evangélicas que proliferam aqui no Brasil. (Em breve teremos uma religião por habitante.)
Que me conste, ninguém ainda embolsou um tostão graças à religião Jedi, que surgiu como uma piada nos países de língua inglesa, com a mesma intenção satírica com que milhões de brasileiros votavam em “Raul Seixas” no tempo em que nos pediam para escrever na cédula o nome do candidato a presidente. Alguns britânicos o faziam por discordar da inclusão do quesito “religião” num censo. Vai daí que no censo de 2001 (ver http://bit.ly/1aDh9D) na Inglaterra e País de Gales a religião Jedi apareceu com 390.127 crentes, superando crenças como o Judaísmo e o Budismo. A questão tem sido discutida a sério no Parlamento britânico, onde se discutem penalidades contra o ódio religioso, etc., e em certos momentos é preciso definir oficialmente o que é uma religião.
Em todo caso, esse número vem sendo acompanhado por outros, menores mas expressivos, em outros países. No censo de 2001 (prestes a ter seus números superados, portanto) a Escócia tinha 14 mil Cavaleiros Jedi. No mesmo ano o Canadá registrou 21 mil, a Austrália 70 mil. A Nova Zelândia apresentou 53 mil Jedi, o que faz dela o país com maior densidade populacional (1,5 %) dos seguidores da Força, se bem que outro censo, feito em 2006, fez este número cair para 20 mil (o que parece corresponder ao número dos verdadeiros crentes – os outros devem ter se afirmado Jedi só para fazer piada).
O censo da República Tcheca, feito agora em 2011, revelou mais de 15 mil pessoas pertencentes à religião Jedi. Lá, o censo não fornece alternativas para múltipla escolha, e nomear a religião é uma iniciativa do entrevistado. Será interessante acompanhar os resultados dos próximos censos nos países europeus e acompanhar a criação do Mundo Simulacro, formatado para imitar a ficção.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
2747) FC e antropofagia (23.12.2011)

(ilustração: Albert Nuetzell - Amazing Stories, setembro 1960)
Existe uma discussão permanente, nos círculos brasileiros de ficção científica, sobre a necessidade (ou a mera possibilidade) de um FC que funcione, entre nós, como o movimento modernista de 1922 funcionou em relação à poesia, a pintura, etc. A discussão vem sendo travada nestes termos pelo menos desde 1988, quando Ivan Carlos Regina publicou o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (veja o texto completo em: http://bit.ly/sosAWC). A esta altura, todo mundo entende qual era mais ou menos a proposta dos “antropófagos” de 1922, tal como a colocou Oswald de Andrade: devorar a cultura européia como os índios caetés devoraram o Bispo Sardinha. Usá-la não como modelo, mas como combustível, para pôr em movimento uma cultura repleta de elementos nossos.
O manifesto de ICR critica os autores brasileiros que preferem imitar o modelo norte-americano de FC, repetir os mesmos temas, os mesmos clichês, a mesma linguagem – porque, vamos e venhamos, é muito mais fácil fazer “fanfic” do que literatura. (A “fanfic”, a ficção produzida por fãs, é quando os leitores de Harry Potter, Star Trek, etc. escrevem suas próprias histórias utilizando esses personagens e contextos. Não tem propósito criativo estrutural; apenas o prazer de produzir variantes das obras originais.)
Diz o manifesto: “(...) Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. / A ficção científica brasileira não existe. / A cópia do modelo estrangeiro cria crianças de olhos arregalados, velhinhos tarados por livros, escritores sem leitores, homens neuróticos, literaturas escapistas, absurdos livros que se resumem a capas e pobreza mental, colônias intelectuais, que procuram, num grotesco imitar, recriar o modus vivendi dos países tecnologicamente desenvolvidos. / A ficção científica nacional não pode vir a reboque do resto do mundo. Ou atingimos sua qualidade ou desaparecemos. (...)”.
Este é o lado crítico do manifesto, e acho que permanece tão atual quanto em 1988. Deglutir, devorar, antropofagizar, implica sempre em destruir, “quebrar” aquele material em seus elementos constitutivos, usá-lo como eventual banco de dados para produzir uma literatura que não venha do impulso de imitar, mas de dizer verdades pessoais. Literatura é a verdade pessoal de cada um, e para essa verdade emergir precisa desligar esse piloto-automático que gera a fanfic e a imitação.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
2746) Evolução copiadora (22.12.2011)
Pagel faz um breve histórico da evolução da vida na Terra, lembrando que o planeta tem 4,5 bilhões de anos, as formas de vida primitivas surgiram há 3,8 bilhões, plantas e animais simples surgiram há 500 milhões, os seres humanos primitivos há cerca de 200 mil, e a História do Mundo que estudamos no colégio remonta a no máximo dez mil anos. (Eu acrescentaria, por minha conta, que os últimos 200 anos produziram um mundo novo, e que os últimos 50 viraram esse mundo novo pelo avesso.)
Pagel observa que o ser humano desenvolveu, através da memória e da linguagem, um “aprendizado social” mediante o qual as descobertas de um indivíduo são rapidamente assimiladas pelos demais, e passadas adiante no espaço e no tempo.
Isto fez, raciocina ele, com que inventar e copiar sejam funções essenciais para a sobrevivência da raça. Se a raça precisa de um novo instrumento ou uma nova técnica, não é preciso que todo mundo a invente. Basta que um invente, e os outros copiem. O que o grupo precisa é que a descoberta seja compartilhada.
Uma consequência disto é que num grupo de 50 pessoas, uma horda primitiva, basta que meia dúzia sejam criativos. Mas num grupo dez vezes maior, o número de pessoas criativas pode continuar sendo o mesmo, porque a memória e a linguagem se encarregarão do “aprendizado social”. Dessa forma, à medida que a população aumenta (e as comunicações se aperfeiçoam), o número de pessoas criativas diminui proporcionalmente, porque o aprendizado social se encarrega de disseminar suas invenções e descobertas.
Desde que haja uma pequena quantidade de inventores, de descobridores, de pessoas genuinamente criativas, a sociedade tem meios para distribuir os resultados dessa criatividade, para serem copiados pelos demais.
Por isso, talvez estejamos atingindo (depois da Internet) um ponto-sem-retorno que é consequência deste longo processo em que a necessidade de copiar foi muito mais estimulada do que a necessidade de criar.
Pagel ironiza inclusive as grandes corporações, que em tese seriam redutos de criatividade bem remunerada, dizendo que
“ao invés dessas corporações dedicarem seu tempo e sua energia na produção de novas idéias, elas querem apenas comprar outras empresas que possuem essas novas idéias. E isso nos mostra o quanto essas idéias são preciosas, e o esforço que as pessoas são capazes de fazer para adquiri-las”.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
2745) “Mais Que Humano” (21.12.2011)

Este romance de Theodore Sturgeon, de 1953, é um dos grandes romances de ficção científica de sua época, e aparece na maioria das listas dos melhores do gênero. Ser incluído nessas listas não é uma questão de qualidade literária, mas de presença histórica. Obras que compõem um cânone são as obras formadoras, aquelas que uma vez publicadas passam a servir de ponto de referência obrigatório. More than Human conta a história de um grupo de crianças e jovens de rua, marginais, desprezados pela família, com poderes paranormais que utilizam da modo aleatório, sem compreendê-los totalmente. Encontram-se pouco a pouco, meio por acaso, e acabam formando uma Gestalt, um grupo em que cada um deles desempenha um papel essencial. Uma pode mover objetos com a mente, outras podem se transferir instantaneamente de um lugar para outro, outro induz as pessoas a lhe obedecem, como num hipnotismo instantâneo, etc. Juntos, tornam-se uma criatura nova, o Homo Gestalt.
A história se conclui com o aparecimento de um derradeiro personagem, que, após ser perseguido pelo grupo, acaba sendo salvo por uma de suas integrantes e se junta a ele. Sua função é proporcionar ao grupo (que era isolacionista, egocêntrico, amoral) uma moralidade, um senso de finalidade, uma missão a cumprir junto à espécie humana. A infância sofrida e perseguida daquelas crianças produz, quando elas descobrem seus super-poderes, uma espécie de vingança cega contra a humanidade que os desprezou. (Os personagens mutantes da série de HQ “X-Men” herdaram algo dessa atitude.) Somente com a chegada de um personagem que exige deles uma atitude ética o Homo Gestalt passa a funcionar com sua plena capacidade.
É possível que o livro tenha influenciado um conto de Robert Sheckley, “Specialist” (1953), onde aparece uma nave cuja tripulação é composta por criaturas extraterrestres interligadas através da função de cada um: o Olho, o Motor, as Paredes, o Pensador, a Fala... Eles chegam à terra em busca de um Propulsor, ou seja, um ser humano. Sem ele, são uma Gestalt organizada e infalível; mas para dar os saltos que fazem a nave viajar mais rápido do que a luz, precisam desta espécie, o Propulsor, que extrai energia de si mesmo: “Os Propulsores viviam há séculos por entre o medo e a dúvida. Guerreavam por causa do medo, matavam por causa da dúvida”. E é essa energia de que a Nave precisa para mover-se pelo Universo. Os textos de Sturgeon e Sheckley podem servir de metáforas da sociedade ou da mente humana, que por mais organizadas e eficientes que sejam precisam de um componente subjetivo essencial para poderem funcionar com seus plenos poderes.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
2744) A palavra pantim (20.12.2011)
Uma das palavras mais elusivas do nosso idioma nordestinense; serve para um número tão grande de situações que fica difícil atribuir-lhe um sentido principal. Se eu tivesse de escolher algum, escolheria: “fricote; manha; frescura; nhém-nhém-nhém”.
-- Vamos, rapaz! Começa logo esse show, e deixa de pantim!
Ou:
-- Deixe de pantim, eu estou só trocando o curativo.
É qualquer reação exagerada, artificial, “valorizando” demasiadamente uma situação que não tem muita gravidade. Como neste exemplo de Nei Leandro de Castro, em As pelejas de Ojuara:
Teve uma hora que Silva da Mata parou, deitado de costas, a língua para fora, os olhos revirados. Ficou desse jeito, totalmente imóvel, a respiração suspensa. Ojuara fez força para não rir daquele pantim, o mais demorado que ele já tinha visto na vida.
No folheto da 2ª Peleja de José Costa Leite com Maria Quixabeira, de José Costa Leite, vemos:
Você com esse pantimjá está me chateandoa mulher é quem não prestaa metade vive enganandomas já vi uma direitauma vez, eu não sei quando.
Na canção de Capiba “Quem vai pra farol é o bonde de Olinda”, de 1937, ele já diz:
Você sabe que eu seie todo mundo já falaporém você quer me ocultar;confesse logo e deixe de pantim para mimque você vive a me enganar.
Dicionários on-line por aí dão-lhe um significado que, sinceramente, nunca vi sendo utilizado: “boato, notícia assustadora, alarmante”. Vejo, por outro lado, a expressão “fazer um pantim” no sentido de “fazer uma encenação qualquer para pregar susto em alguém”: “Ele ficou escondido atrás da porta, com um lençol, quando os meninos entraram ele fêz um pantim, e os meninos saíram correndo”.
Outra acepção de “fazer pantim” é esboçar um gesto, deixando-o incompleto, ou apenas a título de ilustração: “Ele não puxou a faca não. Fez só o pantim, mas a gente se assustou e saiu correndo.” "Passa a carteira pra cá, ligeiro! Sem fazer pantim!"
Tenho imensa curiosidade em saber a origem desse termo, mas nunca me ocorreu uma hipótese que valesse a pena.
Existe uma leve possibilidade de que venha do francês pantin ("fantoche; pessoa ridícula"). O filme de Luís Buñuel Este Obscuro Objeto de Desejo baseia-se num romance de Pierre Louys intitulado La femme et le pantin (filmado também por Julien Duvivier, com Brigitte Bardot, e por Josef von Sternberg, com Marlene Dietrich).
Literalmente, seria "A Mulher e o Fantoche": a personagem é uma jovem bonita que passa o filme inteiro prometendo entregar-se a um homem idoso, e esquivando-se dele na hora H. Ou seja, em bom paraibanês: ela não dá nunca pra ele, faz somente o pantim.
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