terça-feira, 8 de novembro de 2011

2708) "O Palhaço" (8.11.2011)



O circo, que tem idade para ser avô do Brasil, é tratado no Brasil como se fosse filho dele, como se tivesse nascido entre nós com a finalidade de nos definir e nos explicar. Curiosamente não são muitos os filmes de circo entre nós. Meus preferidos são O Profeta da Fome de Maurice Capovilla e Bye Bye Brasil de Cacá Diegues. Este filme de estréia de Selton Mello como diretor é simpático e terno do começo ao fim, e se tem algum defeito é uma certa indecisão narrativa que o recheia de tempos mortos, de expectativas que não resultam em nada, de cenas que poderiam ser comprimidas em alguns segundos mas levam um minuto na tela. Pode ser proposital, para ficar em sintonia com a melancolia do protagonista, um palhaço jururu que não sorri com nada; mas o filme, que é cheio de cores, vivacidade, tipos caricaturais e situações risíveis, parece estar o tempo inteiro estancando e precisando ligar de novo a ignição.

Selton e Paulo José são pai e filho, dois palhaços num circo mambembe, mas o rapaz tem uma angústia meio existencialista com tudo que vê; sonha com algo que não sabe bem o que é (e personifica isto na imagem permanente de um ventilador, que pelo menos serve para alguma coisa). É um road-movie, como convém a um filme de circo, fazendo um corte pelo interior daquele Brasilzão remoto onde o circo parece ter nascido, onde tudo é igualmente mambembe e vive muito-bem-obrigado, onde as figuras excêntricas do elenco parecem se refletir nos excêntricos da platéia.

Selton é um dos melhores atores de sua geração; aqui ele se cerca de colegas poucos conhecidos e alguns veteranos em participações especiais (além de Paulo José, aparecem Moacyr Franco, Tonico Pereira e Jorge Loredo, o histórico “Zé Bonitinho”). O filme tem encanto visual e humor, e só deixa de tê-los quando perde o passo narrativo. É algo muito frequente nos filmes de estreantes cuidadosos. Eles se preocupam demais com cada plano; depois, quando os planos são enfileirados um atrás do outro, percebemos que cada qual está ótimo mas sua sucessão não é fluida, porque o “timing” de cada um puxa o ritmo do filme para uma cadência diferente. Não é algo que se possa corrigir na montagem porque não dá mais para mexer nos tempos do diálogo e da ação.

Não importa; é um dos bons filmes brasileiros recentes, cheio de detalhes e de sacadas inteligentes, e mostrando uma compreensão e uma identificação instintivas com o espírito circense. Um espírito que toca de perto e fascina os atores, muito mais que diretores, roteiristas ou fotógrafos. Deve ser porque cada ator de teatro e de cinema tem algo de mágico, de domador de feras, de equilibrista e de palhaço.

domingo, 6 de novembro de 2011

2707) O ponto e o asterisco (6.11.2011)



Sugiro ao leitor que espere anoitecer (caso esteja lendo isto durante o dia) e saia ao ar livre. Se for uma noite limpa e sem nuvens, verá o céu estrelado. Este céu que há milhares de anos serve de inspiração aos artistas e de desafio aos cientistas... aquela lenga-lenga toda. Todos nós já vimos e admiramos um céu estrelado. Todos sabemos que quando estamos admirando as estrelas com uma moça bonita do lado, basta uma conversa bem encaixada para que as coisas se encaminhem a nosso favor. As estrelas são mágicas.

O que pergunto ao leitor é o seguinte: quando você vê uma estrela, que formato tem ela? Um ponto ou um asterisco? Lembre que a imagem tradicional da estrela, rabiscada a lápis ou gravada num monumento da antiguidade, é de uma espécie de asterisco, algo assim: “*”, uma porção de raios divergentes que se espalham em todas as direções a partir do centro. É assim que as estrelas vêm sendo reproduzidas graficamente desde que o mundo é mundo. Dessa imagem inicial surgiu a estrela do xerife, a estrela de cinco pontas (ou pentaclo) dos magos, a estrela de Davi (de seis pontas), etc.

Para mim isto sempre pareceu natural, porque até os dezenove anos eu olhava para o céu noturno e o via coberto de asteriscos faiscantes. O problema é que quando comecei a usar óculos essa imagem mudou. As estrelas viraram prosaicos pontinhos, de uma nitidez perturbadora, e sem um raio sequer! Vistas com as lentes que corrigiam minha miopia, ficaram mais nítidas, mas graficamente mais pobres. (De vez em quando, quando o céu está bonito, tiro os óculos para ficar míope de novo e curtir melhor aquela beleza).

Duas teorias. Primeira: os antigos eram míopes, e viam as estrelas não em forma de pontos, mas de asteriscos, e as reproduziam assim nas cavernas, nos monumentos, nas “estelas” de pedra esculpida. Uma boa questão oftalmológica: como eram as condições de visão dos homens da antiguidade? Segunda teoria: mesmo quando eles enxergavam as estrelas como pontinhos nítidos, porque tinham visão normal, aceitavam e reproduziam o formato de asterisco proposto pelos míopes. Por que? Porque a imagem do asterisco é graficamente mais rica (tem mais informação visual) do que a imagem de um ponto. Se você desenha um asterisco numa folha de papel e pergunta o que é, muita gente vai dizer que é uma estrela. Se desenha um ponto, poucas pessoas dirão o mesmo. Embora seja uma imagem mais fiel ao modo como um olho normal vê uma estrela, o ponto é uma imagem mais vaga, mais parecida com qualquer coisa, menos específica. Os míopes, somente os míopes, veem a estrela artística; os outros veem a estrela científica e nada mais.

2706) Trabalhar de graça (5.11.2011)




(FunkyPix2)

Existe em alguns artistas um pudor de cobrar pelo próprio trabalho. De certa forma eles se acham privilegiados por serem convidados a fazer algo que lhes dá prazer. Cobrar por aquilo é introduzir no processo um elemento de comércio, frieza, cálculo. Como se alguém dissesse: “Teu prazer é insuficiente, é sem substância, talvez seja falso. Precisas lastreá-lo com dinheiro para que ele não se desmanche no ar”. Ele se julga pago pela mera alegria de ser lido, de ser escutado, de produzir no rosto alheio aquela expressão de deslumbramento e respeito.

Há quem se envergonhe de cobrar porque o “trabalho” em questão não é trabalho nenhum, esforço nenhum. No seu modo de ver as coisas, o pagamento de um trabalho não é a aquisição do produto final, é um ressarcimento pelo esforço e pelo sofrimento de quem produz. E ele se acha “um aproveitador” se tiver de cobrar para tocar mais uma vez as músicas que já tocou milhares de vezes, ou colocar por escrito idéias que de certo modo já estão prontas e arrumadas em sua mente. Não há esforço algum envolvido, nada que justifique uma remuneração por um “trabalho”.

Outros não cobram por uma questão de altivez aristocrática. Até acham que mereceriam receber; até precisam da grana. Mas cobrar os empobrece aos seus próprios olhos: “Sou alguém que precisa de dinheiro”. Trabalhar de graça, por outro lado, os transforma em generosos doadores de si mesmos, em alguém que tem tanto que não se furta a distribuir. São como aquelas tribos que, não satisfeitas de oferecerem banquetes, sentem-na na obrigação de destruir comida, para provarem que não são uns mortos-de-fome.

Há os que não cobram por mera desinformação. Cresceram num meio onde a idéia do trabalho artístico gratuito foi vigorosamente implantada. A arte é sagrada, é pura, não se suja com dinheiro. Viraram artistas por uma vocação sincera, mas sempre à sombra de outra ocupação. Quando ouvem alguém dizer que cobra para dar uma palestra, ficam constrangidos e sem parâmetros. É como o sujeito estar azarando uma garota numa festa e ela dizer: “Quer ir pra cama comigo? É tanto.”

Alguns não cobram por esperteza e tática de sobrevivência, porque dando-se de graça tornam-se credores, e já sabem exatamente como cobrarão a contrapartida num momento futuro. Seu comércio não é o do dinheiro, é o da cortesia, mas é de uma contabilidade implacável. Uma dívida não saldada fará o devedor desprevenido pagar em dobro o que não imaginava estar devendo. Generosidade e gratidão são transformadas nas regras de um câmbio que lida com sentimentos em vez de cifras, mas cuja execução contábil é igualmente precisa e sem perdão.





2705) Os três Cristos (4.11.2011)



Segundo um artigo de Jenny Diski (http://bit.ly/qmGqcA), uma experiência psicológica muito interessante foi a que o Dr. Milton Rokeach realizou em 1959 com três pacientes psicóticos do Ypsilanti State Hospital (EUA). O tema da pesquisa eram os sistemas de crenças das pessoas: “como as pessoas desenvolvem e mantêm (ou modificam) suas crenças de acordo com suas necessidades e com as exigências do mundo social em que vivem”.

Rokeach afirma que existem versões conflitantes sobre o mundo e que as pessoas recorrem a algum tipo de autoridade (religiosa, científica, política, etc.) para se posicionar. Uma das crenças básicas do ser humano é a própria identidade (eu sou eu); e essa identidade é única e personalizada (eu não posso ser você; você não pode ser eu). Ele fez uma experiência em sua própria casa, trocando os nomes de suas duas filhas pequenas; no começo era uma brincadeira, mas quando ele continuou insistindo, com ar sério, as duas foram ficando nervosas e começaram a chorar.

Rokeach reuniu três internos do hospital que afirmavam ser Jesus Cristo. A experiência resultou no livro Os Três Cristos de Ypsilanti (1964). Eles eram Clyde (70 anos), Joseph (58) e Leon (40). Os dois primeiros estavam internados há décadas, o outro há cinco anos. O médico pôs os três para conviverem juntos e executarem juntos pequenas tarefas, sob vigilância constante. (Diz Jenny Diski que era algo parecido ao “Big Brother”, com a diferença de que no BB a alucinação das pessoas é de que são famosas ou interessantes.)

Os três “Cristos” desenvolveram uma convivência social em que cada um mantinha sua posição mas procurava não antagonizar os outros dois. Leon dizia: “Eu sei quem eu sou”, e Joseph respondia: “Eu não quero tirar isto de você. Pode ficar. Eu não o quero”. Joseph explicava ao médico que os outros dois eram doidos, já que estavam todos num hospital psiquiátrico. Clyde assumia um tom imperial, e era de opinião que os outros dois eram seres inferiores, e além do mais estavam mortos. Dizia ao médico: “Eu sou ele. Está vendo? Entenda, agora!”. E Leon afirmou a certa altura: “Vocês estão usando um paciente contra o outro, tentando fazer lavagem cerebral e também manipular a situação através de vudu eletrônico”.

Me veio a idéia de pegar três indivíduos sadios, que não se conhecessem entre si: um cristão, um judeu e um muçulmano. E repetir a experiência, perguntando-lhes: “Qual de vocês acredita no verdadeiro Deus?”. Teríamos então dois conjuntos de crenças conflitantes. E talvez descobríssemos semelhanças inesperadas entre eles, porque estariam fazendo afirmações igualmente impossíveis de provar.

2704) O 1º. Poema escrito (3.11.2011)




Qual terá sido o primeiro poema a ser composto por escrito? 

É um problema interessante. Talvez não da história da literatura, porque provavelmente era algum poema bem ruinzinho pelos critérios estéticos do século 21. Mas é uma questão interessante (e, certamente, insolúvel) da história do pensamento humano. 

Pensem bem. Antes da invenção da escrita, as culturas se comunicavam unicamente em voz alta, e todas as informações eram guardadas na memória coletiva. 

A quantidade de informação e a complexidade das coisas a serem decoradas (hinos religiosos, a história dos reis e dos grandes feitos, as transações comerciais, as leis, as relações civis, as lendas e mitos, etc.) fez as cabeças mais inteligentes se dedicarem à invenção de um sistema de sinais que preservasse as palavras faladas através de marcas numa superfície.

Durante os séculos seguintes (digamos que a escrita começou na antiga Suméria, 4 mil anos antes de Cristo) toda a memória oral começou a ser transcrita para os papiros, tabletes de argila, etc. 

Novos textos continuaram a ser inventados, no processo tradicional: os poetas ou contadores de histórias imaginavam o que queriam dizer, e diante de outras pessoas recitavam ou narravam aquilo em voz alta. 

Todo poema era composto de sons; toda história só existia em forma de palavras ditas em voz alta. E depois alguém os transcrevia em sinais escritos. O escrito surgiu como uma forma de preservar e disseminar o falado.

Mas houve um dia em que um poeta pegou uma tábua de argila limpa, virgem, empunhou sua coleção de estiletes de pontas cuneiformes, sentou-se à sombra de uma árvore e começou a pensar (digamos) em um novo hino em homenagem à deusa Ishtar. 

As palavras foram surgindo em sua mente, algo como “Oh, grande deusa, tu que em forma de lua te ergues brilhando sobre as águas do Eufrates...” 

Algo assim. A questão é que ele estava sozinho, não havia nenhum dos seus colegas ou discípulos para quem ele pudesse dizer aquelas palavras e avaliar a reação. Mas ele achou que aquele começo não estava nada mau! E calado, sem nem sequer murmurar os versos, ele pegou os estiletes e começou a gravar, em sinaizinhos: “Oh, grande deusa...”

Parece uma besteira, né? Mas foi um instante crucial na história do mundo, tanto quanto a banheira de Arquimedes ou a maçã de Newton. Foi a primeira vez em que a palavra poética pensada tornou-se palavra poética escrita, sem passar pela palavra falada. 

Abriu-se uma portinholazinha minúscula, mas por ela passaram, milênios depois, desde os caligramas de Apolinnaire até os poemas concretos dos irmãos Campos, desde Cummings até o Poema Processo.






quarta-feira, 2 de novembro de 2011

2703) A brabeza sertaneja (2.11.2011)



Li essa história há muitos anos, na extinta revista Tempo Brasileiro, e gostaria de descobrir o título e o autor. São dois irmãos sertanejos que brigam por algum motivo e ficam intrigados pro resto da vida. Envelhecem, moram perto um do outro, mas não se falam, sequer se olham. Um deles se mete numa complicação grossa e vem um grupo de jagunços (ou de soldados) para matá-lo. Quando começa o tiroteio, o irmão vê aquilo de longe, pega as armas, corre para a casa do outro. Durante horas trocam tiros, lado a lado, jogam munição um pro outro, salvam-se mutuamente mais de uma vez, e por fim matam alguns dos inimigos e afugentam os outros. Quando tudo sossega, o irmão que tinha vindo ajudar o outro recolhe sua arma e volta para casa, e o conto termina dizendo: “E nunca mais se falaram”.

Isto revela um pouco da ética dos sertanejos brabos. Claro que o conto contém muitas coisas mais, mas o recado mais óbvio é de que a lealdade sertaneja se amplia em círculos concêntricos. Vi uma vez, acho que na Guerra Irã-Iraque, um beduíno tentando explicar a um jornalista brasileiro o complicado sistema de lealdades e inimizades tribais do Oriente: “Eu brigo com meu irmão. Mas eu e meu irmão nos juntamos, se for preciso brigar com nosso primo. E eu, meu irmão e nosso primo nos juntamos, se for para brigar com alguém da tribo vizinha. E nós três e a tribo vizinha nos juntamos para brigar contra um estrangeiro. E assim por diante”.

A ética dos brabos é um capítulo interessante na Ética geral, porque um brabo é por definição um sujeito que não tem medo de nada, não recua diante de nada, não se deixa domesticar. Vale a pena investigar qual é o princípio ético capaz de manobrar e direcionar um cara assim, o princípio capaz de fazê-lo optar por A ou B, de fazê-lo dizer: “Não, não, isto eu não posso, isto eu não devo”. O personagem do conto (de quem será esse conto?) detestava o irmão, mas não podia ficar de braços cruzados vendo o irmão enfrentar sozinho um bando de estranhos. A lealdade do sangue falava mais alto que a rixa pessoal.

Uma outra interpretação pode dizer que o sujeito brabo é um sujeito que gosta de missões impossíveis. Ele não foi ajudar o outro por ser seu irmão, e sim porque o viu em desvantagem numérica. Teria ido ajudar do mesmo jeito o bodegueiro da esquina. O brabo gosta de ver brabeza, gosta de ver heroísmo, gente que enfrenta forças maiores sem se amedrontar. Existe nele algo de quixotesco, algo que lhe diz que só vale a pena entrar numa briga se for em desvantagem, porque em briga equilibrada ou em briga com vantagem qualquer almofadinha se mete, não precisa ser brabo para isso.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

2702) Marte vs Maranhão (1.11.2011)



(ilustração de Henrique Alvim Corrêa para A Guerra dos Mundos)

A famosa transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos, feita por Orson Welles em 1938, contou a história em forma de noticiário jornalístico e todo mundo pensou que o país estava sendo invadido por marcianos. É uma das pegadinhas mais famosas da história. Mas não foi a única vez em que isto aconteceu. Em 1949, o golpe foi repetido num país latino-americano. Em seu livro The Panic Broadcast, Howard Koch (roteirista do programa original) diz que foi no Peru; mas encontrei relatos de que foi no Equador (http://glo.bo/sxFivs). Traduziram e transmitiram o noticiário marciano, mas desta vez a população não gostou: quebrou e incendiou a rádio local, e tudo acabou com seis mortos. Mas não é este o nosso tema para agora.

A mesma transmissão foi encenada no Brasil, no Maranhão, em 1971, no aniversário da Rádio Difusora local (vejam a matéria aqui: http://glo.bo/rVo0fy). Toda a história está contada no livro Outubro de 71 – memórias fantásticas da guerra dos mundos, de Francisco Gonçalves da Conceição, professor que coordenou o trabalho de uma turma de graduação em Jornalismo e Relações Públicas. O responsável pelos efeitos sonoros do programa, Manoel José Pereira dos Santos, “Pereirinha”, hoje com 61 anos, diz: “Não tínhamos o que fazer, era uma brincadeira. Mas não sabíamos o alcance e o poder do veículo que tínhamos nas mãos”. A população, pra variar, acreditou que os marcianos estavam invadindo o Maranhão, e procedeu de acordo.

Tudo isto aconteceu em plena ditadura, e ninguém foi preso! A notícia diz que os radialistas foram obrigados a entregar uma gravação em fita do programa à Polícia Federal, e deram um jeito de enxertar nela avisos de que o programa era uma obra de ficção, avisos que não foram feitos na transmissão ao vivo. (Vejam aqui parte da gravação: http://bit.ly/vPLdeA).

Orson Welles, em seu programa, trouxe para os EUA a ação do romance de H. G. Wells, que se passa na Inglaterra. O roteirista Sérgio Brito, hoje com 72 anos, diz que também adaptou a história para o Maranhão. Referiu-se inclusive ao pouso de um “estranho objeto” no Campo de Perizes, que é a única saída terrestre da ilha de São Luís, e explica: “Eu tinha medo de uma fuga em massa acontecer, então coloquei uma nave espacial ali”.

Profetizo que a próxima encenação dessa história se dará através do esforço conjunto de alguns espertinhos que, via Twitter e Facebook, enviarão ao longo de algumas horas testemunhos, “fotos” e depoimentos que se confirmarão uns aos outros e, pela multiplicidade de fontes, darão a mesma impressão de realidade que o noticiário radiofônico produzia nas pessoas de anos atrás. Querem apostar?...

domingo, 30 de outubro de 2011

2701) Correr com os touros (30.10.2011)



Já vi na mão de muita gente um livro chamado Mulheres que correm com os lobos, que ao que parece é um clássico entre as feministas, “um livro libertário, libertador”, dizem elas. Esse título sempre me lembrou aquele filme de Neil Jordan, A Companhia dos Lobos, em que uma mocinha, na noite de núpcias numa cabana da floresta, vê seu noivo se transformar num lobisomem horroroso. Por que motivo, matutava eu, uma mulher iria querer correr com os lobos? Perguntei a uma amiga minha, que é meio xamã (não sei o feminino de xamã, vá desse jeito mesmo) e ela explicou: “A sociedade industrial, patriarcal e judaico-cristã reprimiu a animalidade feminina. A fisicalidade da mulher ou foi reprimida pelo puritanismo como fonte de todos os males, ou foi industrializada, para consumo compulsório dos machos com poder aquisitivo”. “Beleza”, respondi, “mas onde entram os lobos?”. Ela prosseguiu: “Os lobos são o símbolo da animalidade não reprimida, em estado selvagem, o Id freudiano traduzido em carne, músculos, sangue. A mulher que consegue correr com os lobos e sobreviver está libertada”.

Não tive escolha senão concordar, porque de fato as mulheres são muito reprimidas, basta ver os milhares de vezes que puxam a saia para baixo, ao sentar e ao levantar (quando de fato bastar-lhes-ia sair de casa com uma saia bem longa). Mas a tragédia das mulheres é isso. Metade dos homens as obrigam a mostrar, e metade as obrigam a esconder. E tome puxar a minissaia pra baixo.

Este arrazoado todo é para dizer: Se é assim, então por que motivo as mulheres mangam tanto daqueles caras (dos quais eu mango também, sedentário que sou) que correm atrás dos touros em Pamplona? Sai todo ano no Jornal Hoje: abrem as porteiras e os touros saem desabalados pelas ruas da cidade, enquanto centenas de otários se jogam na frente deles, agitando panos e levando chifradas que os arremessam a seis metros de altura, como espantalhos desengonçados. Num mundo onde as mulheres são tão reprimidas que querem correr com os lobos, os homens também precisam correr lado a lado com um minotauro qualquer, sentir a adrenalina do perigo e o bafo fétido da Besta, praticar uma façanha insensata que os mande de volta para casa trêmulos de terror e de triunfo, dispostos a enfrentar mais um ano de pasta dental, café da manhã, terno, metrô e escritório.

Ou talvez a hiperconsciência subliminar que nos faz antever o futuro nos esteja dizendo: “Acostumem-se a correr ao lado das feras, porque dentro de meio século serão elas que mandarão nessas cidades, será com elas que homens e mulheres terão que negociar sua sobrevivência”. Quem viver, correrá.

sábado, 29 de outubro de 2011

2700) Spoilers (29.10.2011)




O verbo inglês “to spoil” significa, entre outras coisas, “estragar um prazer”. Um spoiler é qualquer coisa – geralmente uma informação – que estraga a surpresa de um filme, um livro, etc. Os mais antigos hão de se lembrar duma antiga charge de Péricles em que O Amigo da Onça sai do cinema e passa ao longo da fila de espectadores que se preparam para entrar na próxima sessão, dizendo em voz alta: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...”.

O risco de estragar a surpresa alheia sempre existiu, mas só com a Internet (acho) surgiu o hábito de anunciar a presença dessas revelações. Quando a gente vê num resumo ou numa discussão de uma história alguma advertência (“Warning: Spoilers!”, “Spoilers ahead!”, etc.), já sabe que se ler o trecho seguinte vai ficar sabendo algo que preferiria não saber. Ainda não temos um termo em português que substitua este, uma palavra curta e precisa que diga o que é sem maiores explicações.

Pois muito bem. Uma pesquisa (http://bit.ly/tTOfkw) feita na Universidade da California em San Diego deu a três grupos de estudantes histórias de autores como Tchecov, Raymond Carver, Roald Dahl, etc. Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação. A hipótese dos pesquisadores é de que um “spoiler” pode fornecer um esquema de organização para as informações da história que se segue, levando a uma compreensão mais fácil e a uma fruição maior. Os spoilers também podem aumentar a expectativa por eventos futuros, aumentando assim o prazer da leitura.

Isto toca de perto uma questão importante da narrativa: a diferença entre Surpresa e Suspense. Surpresa é quando o personagem cai na calçada e depois da queda vemos que pisou numa casca de banana. Suspense é quando mostramos a casca de banana e o personagem, distraído, aproximando-se dela. Muitas histórias policiais, por exemplo, revelam já na metade (ou mesmo no começo do livro) quem é o criminoso, mas conduzem a narrativa de tal modo que o fato de ter essa informação aumenta o prazer da leitura, ao invés de diminuí-lo. Como? Ah, amigos, é uma simples questão de engenho e arte.




sexta-feira, 28 de outubro de 2011

2699) Drummond: “Fuga” (28.10.2011)



(Drummond, na época do lançamento de Alguma Poesia)

Um tema recorrente na obra de Drummond em sua primeira fase (a partir de Alguma Poesia, de 1930) é o da inadequação entre o poeta e o Brasil, a inadequação entre as expectativas imaginárias do poeta e a realidade que o Brasil tinha a oferecer. O livro é claramente a profissão de fé de um convertido, de alguém que provavelmente em certo momento (na adolescência, talvez) viu a si mesmo como um ser ungido pelas Musas, doido pra reproduzir aqui o toma-lá-dá-cá da vida cultural greco-romana (ou parisiense e lisboeta, para ser mais contemporâneo), e percebeu que era na verdade um exilado de nascença num país bárbaro, tropical, de gente que não sabe ler e muito menos apreciar um soneto de boa qualidade. O poeta pode ter sido assim; mas logo foi arrebatado pelo turbilhão modernista, e muitos textos de seu livro de estréia são a constatação meio nostálgica e quase toda irônica do quanto o Brasil é impermeável a essa poesia clássica que não o entende.

E vem o poema “Fuga”, onde o poeta de 28 anos diz: “"As atitudes inefáveis, / os inexprimíveis delíquios, / êxtases, espasmos, beatitudes / não são possíveis no Brasil. // O poeta vai enchendo a mala, / põe camisas, punhos, loções, / um exemplar da Imitação / e parte para outros rumos. // A vaia amarela dos papagaios / rompe o silêncio da despedida. / - Se eu tivesse cinco mil pernas / (diz ele) fugia com todas elas.” A “Imitação” a que se refere é certamente a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis, um livro religioso do século XV, muito influente para a geração de Drummond (entre os “meus” autores, Jorge Luís Borges e Malba Tahan o citam de vez em quando).

Esse poeta que Drummond fotografa batendo em retirada rumo à Europa é o poeta que ele próprio imaginou ser, e do qual agora permite-se mangar com a risada libertadora de quem sacudiu de si uma fantasia incômoda. Ele tem bom senso suficiente para ver-se ali. É sabido que Drummond admirava Anatole France, que não escapa de citação: “Povo feio, moreno, bruto, / não respeita meu fraque preto. / Na Europa reina a geometria / e todo mundo anda - como eu - de luto. // Estou de luto por Anatole / France, o de Thaïs, joia soberba. / Não há cocaína, não há morfina / igual a essa divina / papa-fina.”

O poeta se evade para a Europa, ou seja, para o passado: “Vou perder-me nas mil orgias / do pensamento greco-latino. / Museus! estátuas! catedrais! / O Brasil só tem canibais. // Dito isso fechou-se em copas. / Joga-lhe um mico uma banana, / por um tico não vai ao fundo. // Enquanto os bárbaros sem barbas / sob o Cruzeiro do Sul / se entregam perdidamente / sem anatólios nem capitólios / aos deboches americanos.”