domingo, 6 de novembro de 2011
2704) O 1º. Poema escrito (3.11.2011)
Qual terá sido o primeiro poema a ser composto por escrito?
É um problema interessante. Talvez não da história da literatura, porque provavelmente era algum poema bem ruinzinho pelos critérios estéticos do século 21. Mas é uma questão interessante (e, certamente, insolúvel) da história do pensamento humano.
Pensem bem. Antes da invenção da escrita, as culturas se comunicavam unicamente em voz alta, e todas as informações eram guardadas na memória coletiva.
A quantidade de informação e a complexidade das coisas a serem decoradas (hinos religiosos, a história dos reis e dos grandes feitos, as transações comerciais, as leis, as relações civis, as lendas e mitos, etc.) fez as cabeças mais inteligentes se dedicarem à invenção de um sistema de sinais que preservasse as palavras faladas através de marcas numa superfície.
Durante os séculos seguintes (digamos que a escrita começou na antiga Suméria, 4 mil anos antes de Cristo) toda a memória oral começou a ser transcrita para os papiros, tabletes de argila, etc.
Novos textos continuaram a ser inventados, no processo tradicional: os poetas ou contadores de histórias imaginavam o que queriam dizer, e diante de outras pessoas recitavam ou narravam aquilo em voz alta.
Todo poema era composto de sons; toda história só existia em forma de palavras ditas em voz alta. E depois alguém os transcrevia em sinais escritos. O escrito surgiu como uma forma de preservar e disseminar o falado.
Mas houve um dia em que um poeta pegou uma tábua de argila limpa, virgem, empunhou sua coleção de estiletes de pontas cuneiformes, sentou-se à sombra de uma árvore e começou a pensar (digamos) em um novo hino em homenagem à deusa Ishtar.
As palavras foram surgindo em sua mente, algo como “Oh, grande deusa, tu que em forma de lua te ergues brilhando sobre as águas do Eufrates...”
Algo assim. A questão é que ele estava sozinho, não havia nenhum dos seus colegas ou discípulos para quem ele pudesse dizer aquelas palavras e avaliar a reação. Mas ele achou que aquele começo não estava nada mau! E calado, sem nem sequer murmurar os versos, ele pegou os estiletes e começou a gravar, em sinaizinhos: “Oh, grande deusa...”
Parece uma besteira, né? Mas foi um instante crucial na história do mundo, tanto quanto a banheira de Arquimedes ou a maçã de Newton. Foi a primeira vez em que a palavra poética pensada tornou-se palavra poética escrita, sem passar pela palavra falada.
Abriu-se uma portinholazinha minúscula, mas por ela passaram, milênios depois, desde os caligramas de Apolinnaire até os poemas concretos dos irmãos Campos, desde Cummings até o Poema Processo.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
2703) A brabeza sertaneja (2.11.2011)

Li essa história há muitos anos, na extinta revista Tempo Brasileiro, e gostaria de descobrir o título e o autor. São dois irmãos sertanejos que brigam por algum motivo e ficam intrigados pro resto da vida. Envelhecem, moram perto um do outro, mas não se falam, sequer se olham. Um deles se mete numa complicação grossa e vem um grupo de jagunços (ou de soldados) para matá-lo. Quando começa o tiroteio, o irmão vê aquilo de longe, pega as armas, corre para a casa do outro. Durante horas trocam tiros, lado a lado, jogam munição um pro outro, salvam-se mutuamente mais de uma vez, e por fim matam alguns dos inimigos e afugentam os outros. Quando tudo sossega, o irmão que tinha vindo ajudar o outro recolhe sua arma e volta para casa, e o conto termina dizendo: “E nunca mais se falaram”.
Isto revela um pouco da ética dos sertanejos brabos. Claro que o conto contém muitas coisas mais, mas o recado mais óbvio é de que a lealdade sertaneja se amplia em círculos concêntricos. Vi uma vez, acho que na Guerra Irã-Iraque, um beduíno tentando explicar a um jornalista brasileiro o complicado sistema de lealdades e inimizades tribais do Oriente: “Eu brigo com meu irmão. Mas eu e meu irmão nos juntamos, se for preciso brigar com nosso primo. E eu, meu irmão e nosso primo nos juntamos, se for para brigar com alguém da tribo vizinha. E nós três e a tribo vizinha nos juntamos para brigar contra um estrangeiro. E assim por diante”.
A ética dos brabos é um capítulo interessante na Ética geral, porque um brabo é por definição um sujeito que não tem medo de nada, não recua diante de nada, não se deixa domesticar. Vale a pena investigar qual é o princípio ético capaz de manobrar e direcionar um cara assim, o princípio capaz de fazê-lo optar por A ou B, de fazê-lo dizer: “Não, não, isto eu não posso, isto eu não devo”. O personagem do conto (de quem será esse conto?) detestava o irmão, mas não podia ficar de braços cruzados vendo o irmão enfrentar sozinho um bando de estranhos. A lealdade do sangue falava mais alto que a rixa pessoal.
Uma outra interpretação pode dizer que o sujeito brabo é um sujeito que gosta de missões impossíveis. Ele não foi ajudar o outro por ser seu irmão, e sim porque o viu em desvantagem numérica. Teria ido ajudar do mesmo jeito o bodegueiro da esquina. O brabo gosta de ver brabeza, gosta de ver heroísmo, gente que enfrenta forças maiores sem se amedrontar. Existe nele algo de quixotesco, algo que lhe diz que só vale a pena entrar numa briga se for em desvantagem, porque em briga equilibrada ou em briga com vantagem qualquer almofadinha se mete, não precisa ser brabo para isso.
terça-feira, 1 de novembro de 2011
2702) Marte vs Maranhão (1.11.2011)

(ilustração de Henrique Alvim Corrêa para A Guerra dos Mundos)
A famosa transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos, feita por Orson Welles em 1938, contou a história em forma de noticiário jornalístico e todo mundo pensou que o país estava sendo invadido por marcianos. É uma das pegadinhas mais famosas da história. Mas não foi a única vez em que isto aconteceu. Em 1949, o golpe foi repetido num país latino-americano. Em seu livro The Panic Broadcast, Howard Koch (roteirista do programa original) diz que foi no Peru; mas encontrei relatos de que foi no Equador (http://glo.bo/sxFivs). Traduziram e transmitiram o noticiário marciano, mas desta vez a população não gostou: quebrou e incendiou a rádio local, e tudo acabou com seis mortos. Mas não é este o nosso tema para agora.
A mesma transmissão foi encenada no Brasil, no Maranhão, em 1971, no aniversário da Rádio Difusora local (vejam a matéria aqui: http://glo.bo/rVo0fy). Toda a história está contada no livro Outubro de 71 – memórias fantásticas da guerra dos mundos, de Francisco Gonçalves da Conceição, professor que coordenou o trabalho de uma turma de graduação em Jornalismo e Relações Públicas. O responsável pelos efeitos sonoros do programa, Manoel José Pereira dos Santos, “Pereirinha”, hoje com 61 anos, diz: “Não tínhamos o que fazer, era uma brincadeira. Mas não sabíamos o alcance e o poder do veículo que tínhamos nas mãos”. A população, pra variar, acreditou que os marcianos estavam invadindo o Maranhão, e procedeu de acordo.
Tudo isto aconteceu em plena ditadura, e ninguém foi preso! A notícia diz que os radialistas foram obrigados a entregar uma gravação em fita do programa à Polícia Federal, e deram um jeito de enxertar nela avisos de que o programa era uma obra de ficção, avisos que não foram feitos na transmissão ao vivo. (Vejam aqui parte da gravação: http://bit.ly/vPLdeA).
Orson Welles, em seu programa, trouxe para os EUA a ação do romance de H. G. Wells, que se passa na Inglaterra. O roteirista Sérgio Brito, hoje com 72 anos, diz que também adaptou a história para o Maranhão. Referiu-se inclusive ao pouso de um “estranho objeto” no Campo de Perizes, que é a única saída terrestre da ilha de São Luís, e explica: “Eu tinha medo de uma fuga em massa acontecer, então coloquei uma nave espacial ali”.
Profetizo que a próxima encenação dessa história se dará através do esforço conjunto de alguns espertinhos que, via Twitter e Facebook, enviarão ao longo de algumas horas testemunhos, “fotos” e depoimentos que se confirmarão uns aos outros e, pela multiplicidade de fontes, darão a mesma impressão de realidade que o noticiário radiofônico produzia nas pessoas de anos atrás. Querem apostar?...
domingo, 30 de outubro de 2011
2701) Correr com os touros (30.10.2011)

Já vi na mão de muita gente um livro chamado Mulheres que correm com os lobos, que ao que parece é um clássico entre as feministas, “um livro libertário, libertador”, dizem elas. Esse título sempre me lembrou aquele filme de Neil Jordan, A Companhia dos Lobos, em que uma mocinha, na noite de núpcias numa cabana da floresta, vê seu noivo se transformar num lobisomem horroroso. Por que motivo, matutava eu, uma mulher iria querer correr com os lobos? Perguntei a uma amiga minha, que é meio xamã (não sei o feminino de xamã, vá desse jeito mesmo) e ela explicou: “A sociedade industrial, patriarcal e judaico-cristã reprimiu a animalidade feminina. A fisicalidade da mulher ou foi reprimida pelo puritanismo como fonte de todos os males, ou foi industrializada, para consumo compulsório dos machos com poder aquisitivo”. “Beleza”, respondi, “mas onde entram os lobos?”. Ela prosseguiu: “Os lobos são o símbolo da animalidade não reprimida, em estado selvagem, o Id freudiano traduzido em carne, músculos, sangue. A mulher que consegue correr com os lobos e sobreviver está libertada”.
Não tive escolha senão concordar, porque de fato as mulheres são muito reprimidas, basta ver os milhares de vezes que puxam a saia para baixo, ao sentar e ao levantar (quando de fato bastar-lhes-ia sair de casa com uma saia bem longa). Mas a tragédia das mulheres é isso. Metade dos homens as obrigam a mostrar, e metade as obrigam a esconder. E tome puxar a minissaia pra baixo.
Este arrazoado todo é para dizer: Se é assim, então por que motivo as mulheres mangam tanto daqueles caras (dos quais eu mango também, sedentário que sou) que correm atrás dos touros em Pamplona? Sai todo ano no Jornal Hoje: abrem as porteiras e os touros saem desabalados pelas ruas da cidade, enquanto centenas de otários se jogam na frente deles, agitando panos e levando chifradas que os arremessam a seis metros de altura, como espantalhos desengonçados. Num mundo onde as mulheres são tão reprimidas que querem correr com os lobos, os homens também precisam correr lado a lado com um minotauro qualquer, sentir a adrenalina do perigo e o bafo fétido da Besta, praticar uma façanha insensata que os mande de volta para casa trêmulos de terror e de triunfo, dispostos a enfrentar mais um ano de pasta dental, café da manhã, terno, metrô e escritório.
Ou talvez a hiperconsciência subliminar que nos faz antever o futuro nos esteja dizendo: “Acostumem-se a correr ao lado das feras, porque dentro de meio século serão elas que mandarão nessas cidades, será com elas que homens e mulheres terão que negociar sua sobrevivência”. Quem viver, correrá.
sábado, 29 de outubro de 2011
2700) Spoilers (29.10.2011)
O verbo inglês “to spoil” significa, entre outras coisas, “estragar um prazer”. Um spoiler é qualquer coisa – geralmente uma informação – que estraga a surpresa de um filme, um livro, etc. Os mais antigos hão de se lembrar duma antiga charge de Péricles em que O Amigo da Onça sai do cinema e passa ao longo da fila de espectadores que se preparam para entrar na próxima sessão, dizendo em voz alta: “O assassino é o pai da moça... O assassino é o pai da moça...”.
O risco de estragar a surpresa alheia sempre existiu, mas só com a Internet (acho) surgiu o hábito de anunciar a presença dessas revelações. Quando a gente vê num resumo ou numa discussão de uma história alguma advertência (“Warning: Spoilers!”, “Spoilers ahead!”, etc.), já sabe que se ler o trecho seguinte vai ficar sabendo algo que preferiria não saber. Ainda não temos um termo em português que substitua este, uma palavra curta e precisa que diga o que é sem maiores explicações.
Pois muito bem. Uma pesquisa (http://bit.ly/tTOfkw) feita na Universidade da California em San Diego deu a três grupos de estudantes histórias de autores como Tchecov, Raymond Carver, Roald Dahl, etc. Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação. A hipótese dos pesquisadores é de que um “spoiler” pode fornecer um esquema de organização para as informações da história que se segue, levando a uma compreensão mais fácil e a uma fruição maior. Os spoilers também podem aumentar a expectativa por eventos futuros, aumentando assim o prazer da leitura.
Isto toca de perto uma questão importante da narrativa: a diferença entre Surpresa e Suspense. Surpresa é quando o personagem cai na calçada e depois da queda vemos que pisou numa casca de banana. Suspense é quando mostramos a casca de banana e o personagem, distraído, aproximando-se dela. Muitas histórias policiais, por exemplo, revelam já na metade (ou mesmo no começo do livro) quem é o criminoso, mas conduzem a narrativa de tal modo que o fato de ter essa informação aumenta o prazer da leitura, ao invés de diminuí-lo. Como? Ah, amigos, é uma simples questão de engenho e arte.
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
2699) Drummond: “Fuga” (28.10.2011)

(Drummond, na época do lançamento de Alguma Poesia)
Um tema recorrente na obra de Drummond em sua primeira fase (a partir de Alguma Poesia, de 1930) é o da inadequação entre o poeta e o Brasil, a inadequação entre as expectativas imaginárias do poeta e a realidade que o Brasil tinha a oferecer. O livro é claramente a profissão de fé de um convertido, de alguém que provavelmente em certo momento (na adolescência, talvez) viu a si mesmo como um ser ungido pelas Musas, doido pra reproduzir aqui o toma-lá-dá-cá da vida cultural greco-romana (ou parisiense e lisboeta, para ser mais contemporâneo), e percebeu que era na verdade um exilado de nascença num país bárbaro, tropical, de gente que não sabe ler e muito menos apreciar um soneto de boa qualidade. O poeta pode ter sido assim; mas logo foi arrebatado pelo turbilhão modernista, e muitos textos de seu livro de estréia são a constatação meio nostálgica e quase toda irônica do quanto o Brasil é impermeável a essa poesia clássica que não o entende.
E vem o poema “Fuga”, onde o poeta de 28 anos diz: “"As atitudes inefáveis, / os inexprimíveis delíquios, / êxtases, espasmos, beatitudes / não são possíveis no Brasil. // O poeta vai enchendo a mala, / põe camisas, punhos, loções, / um exemplar da Imitação / e parte para outros rumos. // A vaia amarela dos papagaios / rompe o silêncio da despedida. / - Se eu tivesse cinco mil pernas / (diz ele) fugia com todas elas.” A “Imitação” a que se refere é certamente a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis, um livro religioso do século XV, muito influente para a geração de Drummond (entre os “meus” autores, Jorge Luís Borges e Malba Tahan o citam de vez em quando).
Esse poeta que Drummond fotografa batendo em retirada rumo à Europa é o poeta que ele próprio imaginou ser, e do qual agora permite-se mangar com a risada libertadora de quem sacudiu de si uma fantasia incômoda. Ele tem bom senso suficiente para ver-se ali. É sabido que Drummond admirava Anatole France, que não escapa de citação: “Povo feio, moreno, bruto, / não respeita meu fraque preto. / Na Europa reina a geometria / e todo mundo anda - como eu - de luto. // Estou de luto por Anatole / France, o de Thaïs, joia soberba. / Não há cocaína, não há morfina / igual a essa divina / papa-fina.”
O poeta se evade para a Europa, ou seja, para o passado: “Vou perder-me nas mil orgias / do pensamento greco-latino. / Museus! estátuas! catedrais! / O Brasil só tem canibais. // Dito isso fechou-se em copas. / Joga-lhe um mico uma banana, / por um tico não vai ao fundo. // Enquanto os bárbaros sem barbas / sob o Cruzeiro do Sul / se entregam perdidamente / sem anatólios nem capitólios / aos deboches americanos.”
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
2698) Bete Calamidade (27.10.2011)

Cap. 1 – De como Bete Calamidade entrou na Maternidade Santa Edvirges arrastando o cordão umbilical, para alvoroço das enfermeiras e incredulidade geral da população de Riachãozinho (PB).
Cap. 2 – De como, dada a grande cobertura da imprensa, cerca de dez mulheres apresentaram-se como mães arrependidas de terem abandonado a recém-nascida num monturo atrás da estação, mas um breve exame médico provou a falsidade ideológica de todas.
Cap. 3 – De como Bete Calamidade foi adotada pela família do Dr. Bianor Cavalcanti, que lhe deu o nome de Elizabeth em honra da Rainha da Inglaterra, e com a esperança de que isto motivasse a menina a, no mínimo, arranjar um casamento decente.
Cap. 4 – De como o apelido “Bete Calamidade” surgiu gradualmente, ao longo de sua adolescência, da mesma maneira cumulativa com que surgem os monturos.
Cap. 5 – De como Bete Calamidade teve que fugir de Riachãozinho após uma confusa madrugada etílica e um acidente envolvendo o carro do sobrinho de Dr. Bianor, a moto de Ronny Boy (filho de um rico proprietário rural da região), um caminhão-baú que nada tinha com a história e estava apenas cruzando o município, e um posto de gasolina que se postou imprudentemente na trajetória conjunta e desgovernada daqueles três veículos.
Cap. 6 – De como Bete reapareceu como por encanto em São Paulo, no bairro de Vila Madalena, torcendo o tornozelo numa calçada e esbravejando ali a madrugada inteira, o que a impediu de ser socorrida por quem quer que fosse.
Cap. 7 – De como Bete e o segurança de um “lounge” acertaram os ponteiros e viveram juntos por seis meses, num regime de tapas e beijos.
Cap. 8 – De como um incêndio no prédio e um rocambolesco resgate de helicóptero na cobertura reconduziram Bete Calamidade às manchetes, apenas 18 anos depois de nascida.
Cap. 9 – De como Bete entrou para um mosteiro zen chorando a morte do segurança (“pelo menos a cremação veio incluída”, suspirou ela) e convenceu o Dalai-Lama local a dar um golpe no caixa e fugir com ela para Trancoso.
Cap. 10 – De como um tsunami submergiu Trancoso assim que o casal chegou, e os dois se salvaram por causa das aulas de levitação que o monge há anos tentava ministrar via Lei Rouanet e ninguém aprovava por motivos óbvios.
Cap. 11 – De como Bete Calamidade e o monge fugiram a pé pela BR até que agentes da CIA, que vinham monitorando tudo (eles monitoram tudo) sequestraram Bete Calamidade, puseram-na numa cápsula da NASA semelhante à da cachorra Laika e a mandaram para o espaço, explicando à imprensa que era para o bem da humanidade, porque (comentaram, no equivalente em inglês) “eita mulezinha carregada da bobônica!”.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
2697) O leitor recalcitrante (26.10.2011)
Uma obra literária é um conjunto de imagens, idéias e emoções que brotam na mente de uma pessoa à medida que ela lê um texto.
Por comodidade, dizemos que a obra literária é o texto em si, mas cada pessoa extrai daquele texto uma experiência distinta, formatada pela sua personalidade, seu conhecimento literário, etc.
O texto é sempre o mesmo, mas sempre produz leituras (isto é, obras literárias) diferentes.
Essa experiência só acontece se o leitor se entregar a ela. Entregar-se a ela não é perder o senso crítico, não é aceitar passivamente tudo que o autor diz, mas é ter boa vontade, querer participar de um jogo jogado meio-a-meio, cada um dando sua colaboração para que o romance possa acontecer. Se o cara não quer participar disso, pra que diabo abre um livro?
Coleridge dizia que a literatura fantástica só funciona se o leitor proceder a uma “voluntária suspensão da descrença”, ou seja, deixar de lado o seu ceticismo, a sua convicção sobre a inexistência de vampiros, extraterrestres, etc., e disser: “OK, faz de conta que isso existe; qual é a história que você vai me contar?”.
Eu diria que essa suspensão da descrença é igualmente necessária para a gente ler Gabriela, Cravo e Canela, ou até para assistir a novela das 8. Porque a gente sabe que tudo aquilo é invenção, é encenação, são atores pagos para recitar frases redigidas por terceiros.
Ora, existe na literatura um tipo de leitor que eu chamo o Leitor Recalcitrante, que é aquele que desde a primeira linha toma uma atitude hostil ou desconfiada. Fica perguntando mentalmente ao autor:
"Ah, é? Quem disse que é assim? Por que você está me dizendo isto? Por que esse detalhe não está bem explicado? Para que serve isso? Por que esse personagem se chama Fulano?”
E assim por diante. É um leitor cabreiro, sempre com o pé atrás, sempre pronto a descobrir um erro do autor ou a se queixar de que o autor não deixou claro um detalhe. Se o autor cita Fulano ou Sicrano, o leitor recalcitrante se encrespa:
“Ôi, e eu tenho obrigação de ter lido Fulano? Pra ler esse livro aqui preciso ter lido quantos, antes?”.
O Leitor Recalcitrante não é um leitor crítico, não é nem sequer um leitor hiper-crítico, porque mesmo estes são capazes de mergulhar num texto com prazer e abandono, depois que suas exigências iniciais são correspondidas. (Críticos literários muitas vezes são assim.)
O Recalcitrante se alterna em momentos de baixa estima (“Eu não consigo entender esse livro, está além da minha capacidade”) e de arrogância (“Não vou perder meu tempo, esse cara pode ser famoso mas não sabe escrever”). É um leitor que não sabe abrir a porta e sair pra brincar.
terça-feira, 25 de outubro de 2011
2696) Severino Marinho (25.10.2011)

(Marinho e D. Lurdinha)
Recebi a notícia do falecimento de Severino Marinho Leite, e me vejo mais uma vez, nas últimas semanas, diante dessa missão impossível: dizer o que uma pessoa representou em algum momento da nossa vida. Uma morte é um desses momentos que nos deixam sem saber o que dizer. Não porque não haja coisa alguma a ser dita, pelo contrário. De repente há uma vida inteira, milhões de coisas para serem ditas. Pode-se começar por qualquer ponto e prosseguir indefinidamente; esse excesso de caminhos acaba por nos condenar à imobilidade.
Marinho foi um dos grandes amigos do meu pai, e em muitos momentos foi uma espécie de anjo da guarda que orientava nossa família em situações difíceis. Uma vez, quando Seu Nilo estava meio enfarruscado com a vida, por causa de projetos que não andavam pra frente, alguém lhe perguntou se ele não tinha amigos, e ele disse: “Tenho, sim: Severinos Marinhos Leites”. Não o disse certamente para menosprezar os outros; mas sem dúvida porque naquele momento era Marinho o único capaz de ajeitar os óculos dourados de lentes verdes, passar a mão pelo cabelo e dizer: “Calma, Nilo, isso vai se arranjar, vamos analisar o problema”.
Não vou insistir apenas na minha perda pessoal. Melhor dizer logo que a perda de Campina Grande foi muito maior do que a minha. Não apenas pelo cidadão, mas porque Marinho foi o torcedor-símbolo do Treze, o homem que manteve ao longo de seus mais de 80 anos de vida o registro permanente dos jogos do Galo (jogo, data, local, placar, autores dos gols, escalação do Treze). Quantos times brasileiros podem se gabar de um torcedor assim? Em 1975 quando fizemos, sob a orquestração de Hélio Soares e do presidente Zé Agra, a revista do cinquentenário do Galo, foi dos arquivos de Marinho que extraímos as estatísticas de todos os resultados do Galo naqueles cinquenta anos. O mesmo com Mário Vinícius ao compor seu livro monumental sobre a história do alvinegro.
Uma bela lembrança que guardo, do meu tempo de garoto, é de uma viagem noturna ao Recife, quando ele e meu pai me levaram de carro para ver um torneio na Ilha do Retiro, que teve na preliminar Náutico x Palmeiras (a única vez em que vi Djalma Santos jogar) e na principal Sport x Corinthians. Estudei no Alfredo Dantas com seus filhos Marcos e Fernando. Depois tornei-me amigo de sua filha Cida Lobo, que foi há pouco tempo sub-secretária de Cultura do Estado. Marinho era para mim uma figura paterna, um pai mais jovem e mais comedido, levemente brincalhão e sempre sereno. O Treze que ele tanto amou deu-lhe alegrias nos últimos tempos. A cidade que ele defendia cresceu tanto que hoje nem percebe o quanto sente sua falta.
domingo, 23 de outubro de 2011
2695) O pintor de portas (23.10.2011)
Surgiu em nossa cidade um pintor especializado em portas. Cobrava muito caro, mas mesmo assim os candidatos a cliente faziam fila. Deixavam no escritório do “marchand” um documento contendo descrição e foto dos membros da família, e um texto de vinte linhas dizendo por que motivo queriam o quadro. Quando o artista escolhia a família, ela tinha que hospedá-lo durante o tempo necessário para que ele se familiarizasse com a casa, escolhesse o aposento e a parede, e pintasse ali a porta.
Na casa do advogado Hrabel ele pintou no corredor uma porta feita de água verde do mar, um retângulo trêmulo e salgado onde se via às vezes passar como uma flecha um peixe arisco, ou flutuar uma água-viva.
Na casa da família Yssahid, pintou na sala de jantar uma porta de carvalho maciço, coberto de musgo, com uma pesada aldraba de metal; mas suspensa a um palmo acima do piso, e numa inclinação de 30 graus. Era possível cerrar os dedos em torno da aldraba.
No apartamento da viúva Tenmory, ele demorou quase dez dias para encontrar o lugar adequado, e foi preciso desmontar um armário para que naquela parede descolorida e arranhada ele produzisse uma porta esférica, que preenchia totalmente a abertura onde estava encaixada. Era possível usar as mãos para fazê-la girar, e cada movimento revelava formas e cores diferentes, distribuídas na superfície daquele globo de madeira; até mesmo palavras.
Seus sucessos se acumulavam. A porta vazia que pintou para a família Blinemuth; a porta narrativa que até hoje desconcerta os visitantes do mosteiro copta; as duas portas gêmeas e reversas no banheiro do usineiro Fargas. Para ter em casas essas obras merecedoras de contemplação e hipóteses valia a pena (segundo os clientes) suportar a presença do artista, cujas venetas pareciam mudar de acordo com a moradia onde se instalava. Soturno e arredio numa, impudente e ofensivo em outra; nesta, passava o dia deitado no tapete, bebendo vinho em silêncio e coçando os pés; naquela, devorava a biblioteca do dono, enquanto os pincéis e as tintas secavam, inúteis, sobre uma mesa de jantar de onde ninguém ousava aproximar-se. (Na minha casa, estranhamente, não demorou mais que meia hora, para executar às pressas uma porta no muro de pedra que dá para a rua, uma porta que só pode ser vista pelo lado de dentro.)
Partiu um dia, após embolsar seu último pagamento. Deixou atrás de si polêmicas, contradições acaloradas, residências a cuja entrada se formam, ainda hoje, filas de turistas empunhando guias explicativos e câmaras de filmar; e essa coleção de passagens que não levam a lugar nenhum.
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