quarta-feira, 3 de agosto de 2011

2625) Fantasia Compensatória (3.8.2011)


Walter Mitty é um piloto de caça na II Guerra Mundial, envolvido numa tremenda batalha contra os caças japoneses em disputa de uma ilha no Pacífico, fazendo manobras arriscadíssimas para evitar as baterias antiaéreas do inimigo, metralhando os aviões nipônicos que passam à sua frente. 

De súbito, a voz da esposa soa no banco ao lado: 

– Walter, você está dirigindo de uma maneira muito imprudente! Quase bateu naquele ônibus!

– Desculpe, querida, – balbucia ele, e reduz a velocidade do fusquinha. 

O conto clássico de James Thurber, “The Secret Life of Walter Mitty” (1939) descreve um personagem tímido, desajeitado, casado com uma mulher truculenta e ranzinza. Walter vive uma série de fantasias com os olhos abertos, sempre imaginando que é um herói de guerra, um valentão, um cirurgião com nervos de aço, etc. 

Aliás, o diálogo acima foi inventado por mim, não sei se tem na história original. Não importa. Mitty tornou-se um tipo universal. Woody Allen que o diga. A atividade mental de Mitty vive num “loop” constante do que eu chamo de fantasia compensatória, aquele devaneio (geralmente inocente e inofensivo) que todos nós praticamos. Muitas fantasias têm caráter erótico: estou numa festa, vejo uma garota, levo para a varanda, ficamos por ali, pegamos o carro, vamos para a casa dela... E tudo acontece exatamente como gostaríamos que acontecesse, o que faz da Fantasia Compensatória um sub-ramo da literatura utópica. 

Ou então estou jogando pelo Treze, decisão da Copa do Brasil no Maracanã, zero a zero com o Fluminense, já nos acréscimos a bola é alçada na área, aplico uma bicicleta sensacional e entro para a História. Ou então... 

Não, é desnecessário prolongar a lista. A Fantasia Compensatória mobiliza nossa libido, nossa imaginação, nossa capacidade fabulatória. Alimenta-se de um desejo emocional profundo cuja fome pode ser enganada momentaneamente com o biscoito-de-polvilho da fantasia. 

Diz-se que a gente fica doido quando não distingue mais entre a fantasia e a realidade. Ou, como dizia Philip K. Dick (notório fantasiador) a realidade é aquela parte que quando você deixa de acreditar nela ela não desaparece. 

Isto conduz à interessante questão: no filme Uma Mente Brilhante, o personagem de John Nash (Russell Crowe) descobre que é esquizofrênico e que alguns amigos seus são imaginários. Ele agora sabe disso; os amigos continuam aparecendo, insistindo, e ele dizendo “vão embora, vocês não existem!”. 

Uma das fantasias de Nash é que foi contratado pelo Serviço Secreto dos EUA para decifrar mensagens secretas publicadas em código através de notícias de jornal, algo que só pode ser decifrado através de cálculos logarítmicos complicadíssimos. Nash foi um Walter Mitty mórbido, tentando compensar sua timidez e desajustamento com uma fantasia de espionagem, e ela cresceu a tal ponto que até o fim da vida ele só conseguiu livrar-se dela parcialmente.




terça-feira, 2 de agosto de 2011

2624) O monstro da letra (2.8.2011)



É um gracejo recorrente no meio dos compositores. Quando a gente ouve o CD novo de alguém e alguma das faixas tem uma letra muito ruim, muito idiota ou muito incompreensível, a gente balança a cabeça com ar magnânimo e diz: “Essa aí ele não terminou, gravou com o monstro”. O que é o monstro? O monstro são aquelas palavras tatibitates ou sílabas sem sentido que a gente costuma cantarolar enquanto está compondo a música, geralmente ao violão ou ao piano. A gente vai tocando as notas no instrumento e fazendo uma emissão vocal qualquer, para ir estabelecendo as notas da melodia. Como a canção ainda não tem letra (supondo-se que ela começou a ser criada nesse instante, e não sobre uma letra pré-existente), é preciso balbuciar uma letra qualquer, mesmo sem sentido. Um tralalá, um tchubi-dubi-dubi, um laraiê-laraiê, um can-ganscans-gansculans, um tan-tarin-tantan... Uma percussão fonética. Pra que? Pra demarcar com certa nitidez inicial como vão ficar as notas (e consequentemente as sílabas da letra) em cada trecho da melodia.

Muita gente, ao fazer isso, usa palavras colhidas ao acaso. (Que magnífico tratado freudiano será escrito um dia, quando um pesquisador sério fizer um balanço destes exemplos e explicar tintim por tintim que nenhum deles tinha nada de aleatório!). Quando Paul McCartney compôs “Yesterday”, estas três sílabas ficaram meses ocupadas pela prosaica expressão “scrambled eggs”, “ovos mexidos”. Quando George Harrison compôs “Something”, o segundo verso (“attracts me like no other lover”) foi o último a ser escrito, porque o compositor apegou-se ao verso memorizador inicial, que era “attracts me like a cauliflower”, “me atrai como uma couve-flor”). John Lennon, sempre um pitbull de sinceridade, dizia que no começo dos Beatles eles não ligavam a mínima para as letras, o que visavam era criar uma sonoridade, um ritmo, uma levada. A letra era qualquer coisa: quero pegar na sua mão, ela te ama, e eu a amo, não pode me comprar amor...

É isso que a gente chama “o monstro”: uma letrazinha idiota que serve apenas para guardar o lugar para a letra definitiva que (vida havendo e saúde não faltando) será escrita um dia. Como sabemos o que é a indústria e quem são os artistas, acontece que muita letra fica no monstro. Eu te amo, sem você não sei viver, só penso em você, vamos dançar, vamos rebolar, eu e você, isso é o amor...

Eu uso monstros a torto e a direito. Me lembro que quando eu e mestre Fuba começamos a compor uma música cujo verso final dizia: “Gira cascaviou”. O que é isso? Não é nada, é o monstro da letra. Podia ter ficado assim, e tudo bem, seria uma brincadeira a mais . Mas alguma teimosia nos empurrava, como se dissesse, “não, ainda não está bom, isso é muito besta, deve ter alguma coisa melhor para dizer aí”. Levou quase um ano, mas apareceu. Virou “A Volta dos Trovões”, gravada por Elba Ramalho. Todo monstro pode ser derrotado.

domingo, 31 de julho de 2011

2623) Dicionário Aldebarã (31.7.2011)



A civilização humanóide de Aldebarã-5 possui uma complexa civilização muito influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza de seu planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Espyrygh”: a sensação repentina que experimentamos quando abrimos uma porta num corredor, ou na casa de alguém, e constatamos que era a porta errada.

“Sassdikl”: pequenas caixas metálicas colocadas nas esquinas, nas quais os transeuntes depositam esmolas e os mendigos retiram a quantia que estão necessitando no momento.

“Chiskortin”: conspiração ou golpe vigarista em que duas pessoas fingem não se conhecer para criar uma situação em que possam abusar da credulidade de uma terceira.

“Lumbanq”: pequeno roedor silvestre que os aldebarãs alimentam com ervas variadas e amarram a uma árvore, cujo tronco ele esculpe com os dentes, em arabescos muito apreciados pelo mercado de artesanato local.

“Endobs”: verrugas de pele que costumam inchar e ficar doloridas quando um aldebarã se aproxima de um local onde pode correr risco de sofrer um acidente grave.

“Nulti-nulti”: jogo em que cada participante põe numa lata um número qualquer de pedrinhas e tira outro número, e no final ganha quem adivinhar quantas pedrinhas restaram.

“Nhiabra”: espécie de talher que consiste em duas colheres justapostas, com o qual se aperta a comida, transformando-a num pequeno bolo compacto e misturado.

“Irnizz”: sentimento muito presente em membros de uma mesma família, que sabem não ter nenhum motivo concreto para não aguentar a presença constante dos parentes, mas não aguentam mesmo assim.

“Lobiond”: lençóis de cama recobertos por uma fina camada de âmbar, que produzem leves choques de eletricidade estática, muito apreciados pelos aldebarãs.

“Malôzis”: um tipo de pregação moral-religiosa dos sacerdotes aldebarãs que só se encerra quando todos os membros presentes da congregação mergulham em sono profundo, o que é considerado um contato com o Criador.

“Estlands”: pessoas que se conhecem apenas de vista e se cumprimentam, mas nada sabem sobre a outra e durante a vida inteira fazem conjeturas baseadas na mudança de roupas, de aparência, de atitudes, etc.

“Ostengy”: nome genérico para o hábito aldebarã de determinar de forma rígida e obrigatória o cardápio de alimentação das pessoas de acordo com sua faixa etária, punindo severamente os transgressores.

“Sflars”: conjunto de máscaras cerimoniais superpostas que o casal de noivos coloca na véspera do casamento e vai retirando sucessivamente ao longo da cerimônia, da festa e da noite de núpcias.

“Ollionys”: pequenos brinquedos que os fabricantes colocam dentro dos sabonetes para que as crianças os encontrem ao tomar banho.

“Gertiklans”: a irritação irracional que sentimos quando uma máquina não obedece nossos comandos.

sábado, 30 de julho de 2011

2622) “Meia Noite em Paris” (30.7.2011)



Woody Allen, um adúltero notório, acaba de trair sua esposa Nova York com a sedutora Paris, dando-lhe em seu belo filme Meia Noite em Paris um tratamento visual que lembra, a cada instante, uma tela de Van Gogh, ou de Utrillo, ou de Renoir. Ninguém ama tanto Paris quanto os norte-americanos, com a intensidade do amor que brota entre temperamentos conflitantes. Gil Pender é mais um da série de alter-egos que Allen (hoje com 75 anos) vem desenvolvendo desde que admitiu estar velho demais para fazer protagonistas engraçados e românticos. Acho que ele escolhe o ator (Kenneth Branagh, John Cusack, Josh Brolin, etc.; agora, é Owen Wilson) e o instrui para imitar meticulosamente os trejeitos, maneirismos e modo de falar de “Woody Allen”, aquele ator-personagem de quarenta anos atrás. Muitas vezes funciona.

Eu poderia tentar provar que Woody Allen se inspirou no brasileiro Malba Tahan para conceber esta história, em que um escritor norte-americano visita Paris e dá um jeito de voltar aos anos 1920 para conviver, durante a madrugada, com escritores e artistas daquele período. Em Sob o Olhar de Deus, de Tahan, o protagonista Célio Musafir tem um sonho em que visita o Paraíso, que, ao invés da infinita biblioteca postulada por Jorge Luís Borges, é uma espécie de clube, onde Musafir fica circulando, tomando uns drinques (não lembro bem o quê, mas como se trata do Paraíso deve ser refresco de groselha) e conversando com Charles Dickens, Mark Twain, Voltaire, Oscar Wilde e outros. Bobagem minha defender essa tese; qual o artista ou escritor que não já sonhou que se encontrava com seus ídolos e estes o tratavam de igual para igual? É divertido ver Gertrude Stein usando o termo “ficção científica” ou Man Ray ouvindo com atenção a descrição de Gil sobre o que lhe aconteceu e dizendo: “Ah, sim, você saiu de um universo e entrou em outro. E daí? Normalíssimo”.

O elemento fantástico do filme vem direto da série Além da Imaginação, onde a todo instante havia um trem, um automóvel, um elevador ou uma esquina conduzindo os personagens para um universo paralelo que os deslumbrava e lhes fornecia ensinamentos sobre o sentido da vida. Em outro seriado como Ilha da Fantasia, havia episódios em que surgiram personagens da história e da literatura para contracenar com os visitantes da ilha. Neste filme, Allen começa com uma premissa saudosista e nostálgica (“o passado era melhor”) e no final dá-lhe uma engenhosa dobradura crítica, voltando-a contra si mesma, com delicadeza e carinho. O filme é uma guinada imprevista na filmografia de Allen, que nos últimos filmes parecia acomodado a ser um reiterativo cronista conjugal. Midnight in Paris traz de volta uma mistura de lirismo e fantástico que ele explorou poucas vezes, mas sempre bem. O caráter cotidiano e reconhecível dos seus personagens ressalta melhor de encontro a um pano-de-fundo fantástico, como um pedaço de fotografia numa colagem de Braque.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

2621) Santos 4x5 Flamengo (29.7.2011)



Um jogo para ficar na História, e uma vitória espetacular do time por que a gente torce. Essas duas felicidades do futebol nem sempre coincidem; quando isso acontece, é coisa pra gente acender uma vela para cada Deus do Panteão romano. Aconteceu 4ª.feira passada. Santos e Flamengo fizeram na Vila Belmiro um jogo épico, com reviravoltas sensacionais, raros lances de violência, gols extraordinários e dezenas de jogadas brilhantes. Escrevo uma hora após o jogo, com a TV desligada e a cidade agora silenciosa. Por ironia do destino, não estou no Rio de Janeiro. Mas senti o chão tremer.

Em jogo de muitos gols e de muitas viradas, costumo fazer um esquema mental da ordem em que os gols foram marcados, e que contam a história do jogo. Santos, Santos, Santos, Flamengo, Flamengo, Flamengo, Santos, Flamengo, Flamengo. O Santos teve um começo arrasador com três gols que pareciam ter definido o resultado; o Flamengo sabe suprir a ausência de atacantes (Deivid é um caso patológico de incompatibilidade com a bola) com um meio de campo bem treinado na arte de costurar a bola e entrar na área. Fez três gols e se beneficiou da ousadia fora-de-hora de Elano que quis bater um pênalti com cavadinha; foi após a defesa de Felipe que o Fla empatou o jogo. (Uma bela cabeçada de Deivid, para ser justo; mas não é impossível que ele estivesse tentando fazer outra coisa). No 2º. tempo o Santos fez mais um e parecia que tudo ia recomeçar, mas Ronaldinho Gaúcho repetiu uma cobrança rasteira de falta que o vi fazer pelo Barcelona, e depois sacramentou a virada num contra-ataque mortal.

Note-se que ainda houve o pênalti perdido, e pelo menos um pênalti não marcado e um gol erradamente anulado para cada time. Não era uma pelada no Aterro, era um jogo de dois times de ponta, um recente campeão brasileiro e o atual campeão das Américas, e poderia perfeitamente ter terminado com um placar de 7x7 ou de 8x6 para qualquer um dos dois. O terceiro gol do Santos, de Neymar, foi uma gostosura de ver e rever. E vamos aplaudir os zagueiros, que tentaram o que foi possível, na bola, e não apelaram.

Jogos assim nos dão gás para continuar acreditando no futebol durante pelo menos mais um ano, assistindo peladas insuportáveis, pancadarias vergonhosas, partidas que são um verdadeiro concerto de trapalhadas de comédia pastelão. Deixamos de trabalhar, de namorar, de dar atenção à família ou aos amigos, de ler um bom livro, e nos plantamos feito idiotas na frente da TV na quarta-feira à noite ou no domingo de tarde. Por que? Porque vimos um jogo que redefiniu nossos parâmetros, e sabemos que tudo que acontece pode acontecer de novo. Isto não é uma verdade científica, mas é uma regrazinha que se repetiu tantas vezes em nossa vida que não custa nada levá-la a sério mais uma vez. Nada nos reconcilia tanto com o futebol quanto um jogo para ficar na História, um jogo que mesmo que a gente perdesse ficaria grato por ter vivido.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

2620) “The Incomplete Manifesto” (28.7.2011)





Bruce Mau é um designer que em 1998 produziu um manifesto estético conhecido como An Incomplete Manifesto for Growth (Um Manifesto Incompleto pelo Crescimento) ou simplesmente The Incomplete Manifesto. De certa forma seu manifesto se assemelha ao baralho de Estratégias Oblíquas do músico Brian Eno. O que são? De certo modo, um conjunto de pequenas instruções para ajudar um artista criador a sair de situações em que a criatividade emperra, ou a cabeça dá um branco, ou a gente se vê aprisionado num jeito-de-fazer-as-coisas que já deu o que tinha que dar. Enfim, o manifesto de Bruce Mau (está completo aqui: http://tinyurl.com/yamtgvd) tem 43 itens, coisa demais para comentar aqui, mas escolherei alguns que a meu ver merecem glosa.

“9) Comece em qualquer parte. John Cage disse que não saber por onde começar é uma forma muito comum de paralisia. Seu conselho: comece em qualquer parte”. Isto é um excelente conselho para quem escreve. Muitas vezes queremos começar já arrasando, com uma frase sensacional. É melhor começar dizendo qualquer coisa, e quando a frase sensacional aparecer, dê um jeito de mudar o começo para ali. Se não aparecer frase sensacional é porque você não é bom nisso, mude de abordagem.

“15) Faça perguntas estúpidas. O crescimento é alimentado pelo desejo e pela inocência. Avalie as respostas, não as perguntas. Imagine-se aprendendo durante a vida inteira à velocidade com que as crianças aprendem.” Algumas das perguntas bobas mais úteis que já fiz na vida, em variadas circunstâncias, foram: “Para que serve isto aqui?”, “Por que temos de fazer sempre desse jeito?”, “Quem é Fulano de Tal?”. Perguntar é menos estúpido do que continuar sem saber.

“27) Leia somente as páginas do lado esquerdo. Marshall McLuhan fazia isto. Diminuindo a quantidade de informação, deixamos espaço para o que ele chamava ‘nossa cuca’.” Esse é o tipo do conselho que eu não sigo mas deveria. Por que? Porque assimilar informações de modo fragmentado força nossa mente a completar os sentidos faltantes, a imaginar, a experimentar combinações. Não se deve fazer isso ao estudar para um mestrado, mas ler uma revista do Cebolinha dessa forma é muito estimulante.

“29) Pense com sua mente. Esqueça a tecnologia. A criatividade não depende de instrumentos”. Se seu filho pequeno está levando uma série de tombos enquanto aprende a andar de bicicleta, não dê a ele uma bicicleta melhor. Deixe ele levar os tombos.

“42) Lembre. O crescimento só é possível como produto de uma história. Sem memória, a inovação é uma mera novidade. A história dá ao crescimento uma direção. Mas a memória nunca é perfeita. Toda memória é uma imagem deteriorada ou uma colagem de momentos ou eventos passados. É o que nos faz percebê-las como algo do passado e não do presente. Isto quer dizer que toda memória é nova, uma construção parcial diferente da sua fonte, e, assim, um potencial de crescimento”.





quarta-feira, 27 de julho de 2011

2619) O absoluto literário (27.1.2011)



(ilustração: Wolstenholme)

Isaac Newton acreditava que o Tempo era um valor absoluto. Aliás, não só ele – ele e o resto da humanidade, que entendia do assunto menos do que ele. Einstein provou que o Tempo era relativo a cada observador – ou seja, se dois caras fazem trajetos diferentes pelo espaço, para um passam-se cinco anos, para outro passam-se 50. Isso desorientou os cientistas, porque não havia mais uma régua inalterável para medir as coisas.

Vejam conceitos como, p. ex., “qualidade literária”. Muita gente pensa que existe uma Qualidade absoluta, em algum ponto do Universo, servindo de parâmetro, e que livro bom é o que se aproxima daquilo. Quantas vezes já vi gente dizendo algo como: “Ora, mas se um livro é bom e a pessoa acha ele ruim, então a pessoa está errada”. Ou vice-versa.

Eu acho que Qualidade Literária se parece muito com Bolsa de Valores. As empresas cujas ações são negociadas na Bolsa têm algum valor intrínseco, sem dúvida. Não está errado imaginar que a Petrobrás ou a Vale do Rio Doce têm valor maior que o da editora de livros de poesia que funciona no fundo do quintal do meu vizinho. Mas basta haver, digamos, um boato, e as ações dessa empresas milionárias começam a despencar, sem que o seu valor material tenha decrescido um milímetro. Existe portanto um valor intrínseco (o que a companhia possui) e um valor atribuído: o conjunto das expectativas das pessoas sobre a empresa, que as faz correr atrás de suas ações e pagar qualquer preço por elas (quando acham que a empresa vai bem) ou então tentar livrar-se dessas ações o mais rápido possível e por qualquer preço (quando acham que vai mal).

A qualidade da obra de Proust ou de Coelho Neto depende muito disso. São autores que foram contemporâneos, que produziram obras extensas e complexas, e que foram considerados autores importantes quando vivos. Proust morreu em 1922; Coelho Neto em 1934. Desde então, as ações do primeiro se valorizaram sem parar, enquanto as do segundo caíram. Caíram a ponto de quem ler isto perguntar por que diabos eu estou comparando o genial Proust a esse cara de cujos cem livros ninguém ouviu falar.

Pois é. Os cem livros de Coelho Neto estão aí. Um deles, pelo menos (A Conquista, 1899), continuo achando magnífico. Outros são romances fantásticos dignos de leitura e merecedores de uma reedição (Esfinge, 1908; Imortalidade, 1926). Para o leitor de hoje, contudo, Coelho Neto está distante (e Proust está próximo) de um “absoluto literário” que ninguém consegue definir, a não ser usando tautologias (“é um grande escritor porque escreveu grandes livros”) ou o aval alheio (“a crítica inteira diz que ele é genial”). Qualidade deve ter pouco a ver com estilo ou enredos, e sim com um certo carisma verbal. Qualidade Literária é a medida da resposta provocada num público capaz de multiplicar e justificar essa resposta. Sem que isso aconteça, um livro é como uma vela apagada, um ventilador parado, uma ficha que não caiu.

terça-feira, 26 de julho de 2011

2618) A bola não quis entrar (26.7.2011)



Assisti somente o 2º. tempo da decisão da Copa América, quando o Uruguai derrotou o Paraguai por 3x0 e tornou-se merecidamente o campeão. Foi uma final disputada entre o time que tirou a Argentina e o time que tirou o Brasil, de modo que o resultado confirmou o momento difícil vivido pelas duas principais seleções do continente. O Uruguai, a terceira força, se impôs com um futebol competitivo, fechado, veloz no contra-ataque, jogado com a raça habitual e com a técnica que o futebol uruguaio tem, mas que às vezes é suplantada pela raça, a ponto de esta se transformar em truculência e botinada.

A raça, quando entregue a si própria, vira botinada; a técnica, quando entregue a si própria, vira salto alto. Foi este o caso da Seleção Brasileira, que oscilou entre a apatia autoconfiante (“O gol vai sair naturalmente”) e a perplexidade esbaforida (“Que saco, esses caras que não jogam nada não estão deixando a gente jogar!”). Já vimos esse filme, não é mesmo? A Seleção Brasileira só é ela mesma quando consegue, além de administrar os poderosos fatores extra-campo, encontrar dentro de campo esse equilíbrio ideal entre vontade e capacidade, entre a disposição de buscar o gol e a competência para fazê-lo. Não ouvi nesta Copa América a inevitável frase dos nossos atacantes, “a bola não quis entrar”, mas certamente ela foi pronunciada. Se o Brasil não tivesse trazido nenhuma outra contribuição ao futebol, bastaria essa frase, exemplo perfeito da fuga à responsabilidade, para inscrever nosso país (de uma maneira não muito recomendável, concordo) na história do esporte.

A verdade é que alguns times, mesmo que não saibam produzir pedaladas ou dancinhas comemorativas, sabem fazer com que a bola entre. O Uruguai meteu três gols no mesmo Paraguai que bloqueou o Brasil durante 120 minutos e quatro pênaltis. O terceiro gol, no último minuto, foi uma pintura, pelo contra-ataque, pelo lançamento, pelo passe de cabeça de Suárez que encontrou Furlán um segundo antes de estar impedido, e pela conclusão firme deste, colocando a bola rente à trave, e dando a impressão, até o último segundo, de que ela não entraria. Ela deu toda a pinta de que não queria entrar, mas ele soube fazer com que ela lhe obedecesse.

O Brasil está decadente e nossos jogadores são medíocres? Que nada, o time é razoável, o técnico tem princípios que merecem confiança. A questão é que neste Mercosul do futebol o Brasil só entra em campo com ares de prima-dona. Antes do jogo a imprensa já pergunta aos atacantes se haverá pedalada, se haverá dancinha, como vão comemorar os gols, e os jogadores respondem, dando o gol como coisa certa. Enquanto isso, os adversários treinam para fazer com que a bola brasileira não queira entrar, e não sei que conspiração malévola é essa que mesmo com quatro pênaltis a condenada da bola não entra!... Não sofremos mais do complexo de viralata de que falava Nelson Rodrigues; temos complexo, sim, de “poodle” de madame.

domingo, 24 de julho de 2011

2617) Passou do ponto (24.7.2011)



São essas coisas que acontecem na vida das pessoas, elas se veem de repente numa situação que é um paraíso imprevisto, um paraíso não-sonhado, que aparece não como a conquista (enfim!) de um objetivo, mas como algo que cai já pronto em nosso colo, objetivo e conquista embrulhados juntos no mesmo celofane. De repente estava tudo tão bom, o ônibus agradável, o ar condicionado funcionando, a poltrona confortabilíssima e reclinável em três ângulos, as janelas amplas e transparentes, a companhia esfuziante dos outros passageiros... Estar cruzando a cidade (babilônica e luminosa) naquele ônibus tornou-se de repente não um meio mas um fim em si, e era um tal clima de festa, uma tal variedade de companhias, de conversas, de risadas, de confidências, de conspirações benignas e de planos para o futuro que parecia não existir nada mais além daquele espaço fechado em movimento. A cidade (sensual e festiva) passava lá fora como um loop de imagens em computação gráfica, espaço bidimensional que, se a gente se contentasse em vê-lo passar, cumpria plenamente a função. A vida verdadeira era ali dentro, tudo acontecia naquele corredor largo entre as poltronas, onde era possível caminhar em filas de mão e contra-mão, e havia frigobar em esquema de boca-livre (ou quem sabe incluído na passagem), televisõezinhas ejetáveis no teto, canais de música com fones de ouvido e menu de trinta opções... O ônibus em que iam conhecer o mundo transformou-se no mundo, transformou-se no único lugar a que ele dava atenção, no único lugar que ele via e ouvia. E ele passou do ponto.

Saber ele sabia, que aquele ônibus não fazia o trajeto circular dos ônibus urbanos, era um ônibus com rota em linha reta, que partira de um A e chegaria hipoteticamente a um Z, e que nesse percurso havia um local bem específico que ele escolheria para descer. Havia um local que ele reconheceria, por todas as pistas que lhe seriam fornecidas, principalmente pelos outros passageiros, cuja conversa, por mais variada e ininterrupta, circulava sempre em torno desse tema, dessa idéia fixa: do lugar onde cada um estava pensando em descer, e por que motivo ali e não em outro local, e de que maneira seriam capazes, cada um, de reconhecer o próprio local de descida, se presumirmos que todos estavam fazendo aquele trajeto pela primeira (e única) vez, e tudo que sabiam sobre o espaço a ser percorrido eram suas próprias expectativas e as expectativas, suposições, lendas e imaginações dos outros a bordo. Todos tinham sua teoria, suas anotações; ele também. E a discussão era tão animada, tão enriquecedora e divertida, tão objetivo-final-da-coisa-em-si, que, punge-me dizê-lo, quando ele olhou já era tarde, as casas iam rareando, a cidade (feérica e monumental) cedera lugar a uma periferia de matagais e ruínas, um deserto soturno de charnecas; e de gelada constatação. O ônibus seguiu. Seguiu sempre em frente. E ele não precisou mais descer, é claro. Ele passou do ponto.

sábado, 23 de julho de 2011

2616) Denis Dutton (23.7.2011)



Falecido no fim do ano passado, Denis Dutton é um cara sobre quem não sei muita coisa. Sei apenas que escreveu um livro intitulado The Art Instinct, e foi o criador de um dos meus websaites preferidos, Arts and Letters Daily, um apanhado diário de artigos interessantes surgidos na imprensa de língua inglesa. Uma página de visual agradável (pequenos parágrafos sintéticos, dando uma idéia do assunto de cada artigo, acompanhados de um link para a página respectiva), cujo leiaute, tipologia, vinhetas e outras coisas nos dão a impressão de estar consultando um jornal das antigas. Quem quiser conferir, vá em: http://www.aldaily.com/ .

Numa entrevista sobre a cultura do mundo digital, Dutton afirmou: “É um erro muito grave na indústria editorial, quando falamos sobre a Internet ou sobre publicações impressas, ficarmos nos dirigindo a um repertório limitado de gostos já estabelecidos pelos nossos leitores. Alguns anos atrás, Bill Gates estava se vangloriando de que em breve teremos sensores capazes de, no momento em que entrarmos numa sala, fazerem tocar uma música de nossa preferência ou projetar nas paredes as nossas pinturas prediletas. Que coisa maçante! Que se danem as coisas de que já gostamos, vamos expandir nossos horizontes intelectuais!”.

O mundo digital criou um Caos de bilhões de informações instantaneamente acessíveis e está tentando criar uma Ordem estabelecida pelo nosso perfil, nosso passado. A Web sabe do que gostamos. Quando recebo um email da Amazon Books, ela só me oferece livros que me dão água na boca, pelo simples fato de que são escolhidos por associação de idéias com o que comprei lá com maior freqüência. A Amazon, a Powell’s, a Abebooks, a Livraria Cultura, etc., sabem do que eu gosto, mas o critério eletrônico não é capaz de me revelar um tipo de romance ou de assunto que nunca comprei ali.

Já escrevi aqui sobre a cultura vitrola e a cultura rádio. Cultura Vitrola é aquela em que a gente só ouve a música que já possui, uma cultura fechada em si. Cultura Rádio é aquela em que o que ouvimos é aleatório, sujeito a influências e sujeito a acasos; uma cultura aberta. O interesse do Super-Capitalismo (http://tinyurl.com/5rqexhg) é reunir o maior número possível de informações sobre cada mercado, depois sobre todos os grupos que constituem cada mercado, e depois sobre cada indivíduo que constituem cada grupo, a fim de poder direcionar da melhor maneira possível suas futuras invasões virais de propaganda. A tal ponto que mal conseguiremos caminhar nas ruas sem sermos assaltados a toda hora por propostas irrecusáveis, propagandas de roupas, livros, CDs, delineadas exatamente de acordo com o nosso gosto. (Já vimos uma amostra disto em Minority Report, de Spielberg.) Abaixo isso! Queremos o acaso, queremos o caos, queremos ouvir falar do que não conhecemos para que venhamos a conhecer. O Super-Capitalismo é um lance de dados viciados que quer abolir o Acaso.