domingo, 30 de janeiro de 2011
2467) A pornografia e a Internet (30.1.2011)
Segundo um artigo de Cezary Jan Strusiewicz no saite Cracked.com (http://bit.ly/f1kbvp) a indústria pornográfica é um ótimo ambiente para testar novas tecnologias e novas formas de comercialização. A razão para isto é que o consumidor da Pornografia não é muito exigente em perfeição técnica, em conteúdo artístico, etc. Desde que o material (livro, filme, fotos, etc.) contenha o que ele está querendo ver, de forma reconhecível, vai haver sempre quem o adquira.
Diz Strusiewicz:
“Durante o tempo das vacas magras na Internet, os saites pornô eram os únicos que cobravam por acesso online. A Pornografia na Web criou e aperfeiçoou os sistemas de acesso ao conteúdo através de assinaturas pagas, de verificação online de cartões de crédito e sistemas de cobrança via Web. Hoje, tudo isto é usado regularmente por multinacionais como Amazon, E-Bay e iTunes. E porque o sexo mais procurado é o sexo em movimento, os consumidores logo exigiram acesso a algo mais que fotos. Assim a Pornografia foi um dos primeiros e raros ramos de negócios a oferecer vídeos em “streaming” (o que você vê na tela mas não pode baixar), ajudando a popularizar esta prática, e até mesmo alavancando o desenvolvimento da tecnologia de Flash”.
Strusiewicz acha também que a Pornografia (que é amoral, não-ideológica, e tem um espírito meramente comercial e pragmático) pode ajudar a “limpar” a Internet, porque ela, também, é vítima de vários tipos de pirataria online e desenvolve seus mecanismos de defesa; a indústria do “X-Rated” é hoje um dos principais pesquisadores de software anti-pirataria.
Por que motivo a Pornografia está sempre à frente no que diz respeito à vanguarda hi-tech? Diz Strusiewicz:
“Assim como uma garota reprimida que vai morar num campus universitário, a indústria pornô está não só disposta, mas sequiosa, por novas experiências. A maioria das empresas convencionais tem uma estratégia financeira planejada cuidadosamente para a próxima década. Elas não podem se dar o luxo de se desviar desse plano, e fica-lhes difícil fazer experiências e testar novas posições no mercado. O Pornô adora novas experiências e novas posições! Muitos executivos do mundo Pornô são jovens, ansiosos para experimentar maneiras diferentes de atingir os consumidores”.
Já se fala em pornografia 3-D e em aplicativos pornô em video-streaming pro sujeito assistir no iPad (anunciados no mesmo dia em que a Apple lançou o iPad). Há investimentos em pesquisas sobre Inteligência Artificial sendo financiados pela indústria pornográfica, segundo Ilan Bunimowitz, executivo do Private Media Group.
Ela ajuda a criar novos mercados com a intenção de ocupá-los antes dos concorrentes, o que sempre acontece porque os concorrentes precisam convencer seus acionistas e obter os alvarás ou coisa parecida nos corredores do Governo. A economia informal não precisa disso. Quando a Lei vai pros cajus, os fora-da-lei já estão vindo das castanhas.
sábado, 29 de janeiro de 2011
2466) A banda de um homem só (29.1.2011)
Já devo ter falado aqui sobre o saite UbuWeb, que se auto-denomina, com bom humor, “o YouTube da vanguarda”. É exatamente isto: um enorme arquivo de sons e imagens, mas ao invés de cenas do BBB-11 e de clips de Cláudia Leitte o saite oferece entrevistas com William Burroughs, documentários sobre Picasso e Man Ray, curtas underground dos anos 1950.
Ou, no presente caso, o documentário The One Man Band, sobre os projetos inacabados de Orson Welles.
As últimas décadas na vida de Welles foram um triste anticlímax para o sujeito que dirigiu Cidadão Kane, várias vezes eleito como o maior filme da história do cinema. Depois de brigar com Hollywood, Welles se refugiou na Europa (com a qual, vamos e venhamos, tem muito mais a ver), onde realizou alguns filmes magníficos, mas ao mesmo tempo teve uma sucessão de naufrágios em projetos que poderiam ter resultado (quem pode afirmar que não?) em obras tão notáveis quanto O Processo ou Falstaff.
O documentário (ver aqui: http://www.ubu.com/film/welles_oneman.html) acompanha alguns desses naufrágios, e foi co-dirigido por Oja Kodar, a longilínea e misteriosa companheira de Welles no final da vida, aquela mesma que aparece com destaque em F for Fake (“Verdades e mentiras de Orson Welles”), seu último grande filme.
Ela abre a casa onde viveram, e mostra, além de um quarto atulhado de latas de filme 35mm, os “cases” que Welles levava em suas viagens. Para onde fosse, ele levava consigo uma moviola portátil para editar filme 16mm, câmara, etc. Financiava seus projetos pessoais cobrando cachês extorsivos para trabalhar de ator em qualquer filme vagabundo. Pagavam-lhe, porque seu nome no cartaz abria muitas portas. Com o dinheiro, e com a amizade de incontáveis atores e técnicos, ele ia filmando e montando devagarinho os quebra-cabeças que resultavam em filme como Macbeth ou Otelo.
Entre os projetos inacabados está The Other Side of the Wind, que tinha como atores John Huston e Peter Bogdanovich, além de Oja Kodar (que aparece numa impressionante cena de sexo com um rapaz, na boléia de uma camionete, numa estrada, à noite, enquanto o motorista ao lado dirige como se nada estivesse acontecendo).
Outro projeto foi The Deep, uma história de suspense e violência filmada em alto-mar, que se inviabilizou após a morte do ator Laurence Harvey.
The Dreamers foi uma tentativa de adaptar um conto de Isak Dinesen (Karen Blixen), a escritora dinamarquesa que Welles admirava muito.
Além desses, o documentário mostra pequenos esquetes cômicos. Welles como um desconcertado cliente de dois alfaiates ingleses metidos a engraçadinhos; Welles de jornalista entrevistando Welles de nobre britânico falido; Welles como banda-de-um-homem-só tocando na rua e sendo assistido por ele mesmo em diferentes trajes (inclusive de mulher). É um material inédito e fascinante, do tipo que a UbuWeb, o YouTube da vanguarda, tem aos milhares.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
2465) Drummond: "Poema que Aconteceu" (28.1.2011)
(M. C. Escher, "Mãos")
Alguém devia editar uma antologia de Carlos Drummond sob o título de Poemas de Aceitação, e essa recolha nos revelaria um lado importante e profundo do poeta.
Alguém devia editar uma antologia de Carlos Drummond sob o título de Poemas de Aceitação, e essa recolha nos revelaria um lado importante e profundo do poeta.
Drummond tem um estoicismo que pende mais para o zen do que para o masoquista, e não envolve uma resignação passiva da realidade, mas um gesto filosoficamente assertivo, conquistador, de aceitar a realidade dominando-a, subjugando-a através de um abracadabra filosófico que se exprime em palavras poéticas.
Temos a sensação de que se alguém despejasse sobre Drummond todos os blocos da Pirâmide do Egito ele seria capaz de (se lhe dessem alguns minutos) descobrir uma fórmula verbal de aceitar sua enxurrada e manter-se intacto na base do entulho.
A aceitação tem sete faces, como tudo que CDA compôs, porque um poema não é uma bula de remédio, fórmula exata e definitiva do produto que acompanha. Um poema é o registro sismográfico das inquietações intelectuais e emocionais de um sujeito, e sua tentativa de dar um nó de tinta em volta de cada problema.
Um problema sério do jornalismo cultural de hoje em dia (não me atrevo a chamar isso de “crítica literária”) é uma profunda incompreensão do que é a criação literária. Há sujeitos capazes de, num perfeito jargão acadêmico, criticarem um autor por “contraditório” simplesmente porque dois poemas dele, num mesmo livro, exprimem idéias opostas.
Quem chega à poesia pelas fórmulas didáticas, e não pelos poemas, nunca vai saber o que é poesia. (E me refiro aos poemas no cru, sem anestesia, sem assinatura, sem comentário, sem preparação, o poema caído de uma fenda no céu no colo do leitor).
Em Alguma Poesia, cujos 80 anos foram comemorados ano passado, surge o singelo “Poema que Aconteceu”, uma dessas pequenas epifanias não-poéticas, não-conceituais, não-estéticas que os poetas tantas vezes procuram. Escrever algo que representa a vida, mas a vida sem enfeites, a vida sem beleza ou drama, a vida sem profundas palavras ou nobres conceitos, a vida que lateja nos animais e nas plantas. “Life, and life only” como disse Bob Dylan. Uma tentativa de auto-despojamento que Alberto “Fernando Pessoa” Caeiro conseguiu por outros meios e caminhos.
Nenhum desejo neste domingonenhum problema nesta vidao mundo parou de repenteos homens ficaram caladosdomingo sem fim nem começo.
Não é apenas a letargia dos nossos domingos urbanos e modernos; é a polaróide de um instante sem desejos, sem problemas, sem movimento, sem palavras, sem espaço nem tempo. A vida em Modo Sleep, a vida latente mas com o intelecto desligado. O corpo apenas, vivendo um segundo de cada vez. E ele conclui:
A mão que escreve este poemanão sabe que está escrevendomas é possível que se soubessenem ligasse.
A mão sem Eu, a mão sem mente, a mão mediúnica, a mão-desenhando-a-mão de M. C. Escher, a mão que produz a poesia sem que o dono precise pensar. (Claro que, como Escher, Drummond sabe que está sugerindo algo impossível).
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
2464) A pornografia e o progresso (27.1.2011)
A economia informal (aquela que se dá do lado de fora das leis e da fiscalização do Poder Público) é uma grandiosa cordilheira de montanhas, cada uma delas parecendo mais alta do que as outras, dependendo do ponto de vista.
O Tráfico de Drogas, por exemplo, tem crescido exponencialmente nas últimas décadas.
A Pirataria Digital evolui com tal rapidez que se fosse mesmo uma montanha e tentássemos fotografá-la a foto provavelmente sairia borrada, porque ela cresce a olhos vistos.
A Pornografia provavelmente é a mais antiga das três, mas nem por isso perdeu impulso. Pelo contrário; no saite Cracked.com (http://bit.ly/f1kbvp) surge um argumentativo texto de Cezary Jan Strusiewicz sob o título: “Cinco aspectos em que a pornografia criou o mundo moderno”.
O primeiro, segundo ele, são as tecnologias de vídeo doméstico, que começam com o VHS. Strusiewicz observa que a idéia de podermos gravar e ver nossos próprios vídeos quando quiséssemos era praticamente inexistente antes do VHS. Diz ele: “Até o final da década de 1970, filmes de sacanagem correspondiam a metade de todas as vendas de fitas de vídeo nos EUA. Na Grã-Bretanha e na Alemanha esse número chegava a 80%."
A razão disto é que, antes do VHS, a única maneira de ver filmes de sexo era comprar ingresso num cinema pornô, que não é, convenhamos, um lugar onde todo mundo se sente à vontade.
Segundo: a pornografia tornou possível a existência de sua câmara digital. Um dos grandes incentivos para a popularização deste formato foi quando as pessoas perceberam que, pela primeira vez, as fotos que elas tirassem na intimidade dos seus lares não teriam que ser reveladas num laboratório de uma loja, cujos funcionários, é claro, iriam copiar para si próprios as fotos mais picantes do casal.
O artigo reproduz comerciais de revista, na época, em que essa associação entre foto digital e privacidade erótica é claramente sugerida. O VHS e a foto digital se conjugaram para permitir que qualquer pessoa gravasse e exibisse imagens por conta própria, na hora que quisesse, sem que elas tivessem que passar pela mão de ninguém.
Terceiro: Gutenberg inventou a imprensa; a pornografia a alavancou. Strusiewicz dá um pulo para séculos atrás e mostra algo parecido ocorrendo no começo da imprensa. Diz ele:
“Gutenberg e sua Bíblia deram o pontapé inicial, mas durante séculos um dos autores mais lidos na Europa foi Pietro Aretino, hoje considerado um dos pais da literatura erótica, com seu livro de 1524 I Modi (As Maneiras), com gravuras de Giulio Romano”.
Uma espécie de Kama Sutra italiano enumerando posições e técnicas. Ainda hoje, os Sonetos Luxuriosos de Aretino são traduzidos e lidos no Brasil.
A tese de Strusiewicz é que sempre há compradores para a obra erótico-pornográfica, independentemente de seu acabamento técnico ou valor artístico. Isto faz desta indústria um excelente campo de testes para novas tecnologias e para novos experimentos de transações comerciais.
Continua aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/01/2467-pornografia-e-internet-3012011.html
O primeiro, segundo ele, são as tecnologias de vídeo doméstico, que começam com o VHS. Strusiewicz observa que a idéia de podermos gravar e ver nossos próprios vídeos quando quiséssemos era praticamente inexistente antes do VHS. Diz ele: “Até o final da década de 1970, filmes de sacanagem correspondiam a metade de todas as vendas de fitas de vídeo nos EUA. Na Grã-Bretanha e na Alemanha esse número chegava a 80%."
A razão disto é que, antes do VHS, a única maneira de ver filmes de sexo era comprar ingresso num cinema pornô, que não é, convenhamos, um lugar onde todo mundo se sente à vontade.
Segundo: a pornografia tornou possível a existência de sua câmara digital. Um dos grandes incentivos para a popularização deste formato foi quando as pessoas perceberam que, pela primeira vez, as fotos que elas tirassem na intimidade dos seus lares não teriam que ser reveladas num laboratório de uma loja, cujos funcionários, é claro, iriam copiar para si próprios as fotos mais picantes do casal.
O artigo reproduz comerciais de revista, na época, em que essa associação entre foto digital e privacidade erótica é claramente sugerida. O VHS e a foto digital se conjugaram para permitir que qualquer pessoa gravasse e exibisse imagens por conta própria, na hora que quisesse, sem que elas tivessem que passar pela mão de ninguém.
Terceiro: Gutenberg inventou a imprensa; a pornografia a alavancou. Strusiewicz dá um pulo para séculos atrás e mostra algo parecido ocorrendo no começo da imprensa. Diz ele:
“Gutenberg e sua Bíblia deram o pontapé inicial, mas durante séculos um dos autores mais lidos na Europa foi Pietro Aretino, hoje considerado um dos pais da literatura erótica, com seu livro de 1524 I Modi (As Maneiras), com gravuras de Giulio Romano”.
Uma espécie de Kama Sutra italiano enumerando posições e técnicas. Ainda hoje, os Sonetos Luxuriosos de Aretino são traduzidos e lidos no Brasil.
A tese de Strusiewicz é que sempre há compradores para a obra erótico-pornográfica, independentemente de seu acabamento técnico ou valor artístico. Isto faz desta indústria um excelente campo de testes para novas tecnologias e para novos experimentos de transações comerciais.
Continua aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/01/2467-pornografia-e-internet-3012011.html
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
2463) Um conto em Power Point (26.1.2011)

Novas tecnologias criam novas maneiras de manipular textos. Com sorte, podem produzir também novas dinâmicas internas: o modo de organizar as palavras; o modo de destacá-las; o modo de conduzir o olhar do leitor e o fluxo de leitura; o modo de alternar cenas; o modo de encadeá-las produzindo a impressão de continuidade ou sequência. Tudo isto faz parte da arte da narrativa, e o surgimento de novos suportes para a palavra escrita pode nos ajudar a contar histórias de uma maneira que não poderia ser contada num texto apresentado de modo convencional, como este aqui.
A escritora Jenifer Egan produziu um conto narrado em forma de apresentação de Power Point, este popularíssimo recurso que possibilita a conferencistas projetarem os parágrafos de sua conferência numa tela, em grandes letras coloridas, e lerem o texto em voz alta para uma plateia que lê ao mesmo tempo, movendo os lábios. Paulo Freire não teria concebido uma maneira melhor de alfabetizar professores e doutores!
O conto de Egan se intitula “Great Rock and Roll Pauses” e utiliza o sistema de “slides” sucessivos do Power Point, telas que se sucedem, cada uma com certa quantidade de texto organizada em torno de formas geométricas, induzindo diferentes fluxos de leitura. O conto foi incluído em seu livro A Visit from the Goon Squad (Knopf, 2010), e pode ser visto em sua forma original (quadros coloridos, sucessivos), aqui:
http://www.slideshare.net/JenniferEgan/rockandroll97-2004cppt.
O conto, aliás,tem como tema um garoto autista (irmão da narradora) cujo hobby é colecionar e analisar o que em música de chama de “pausas Clearmountain” – aquelas pausas bruscas no meio de uma canção, para logo em seguida a música voltar com força total. (Têm este nome por terem sido usadas e abusadas pelo produtor musical Bob Clearmountain). Talvez o estilo Power Point ajude a reproduzir a mentalidade precisa, ordenada e meio mecânica de um autista.
Não se trata, como tanta gente repete, passivamente, de “destruir as formas arcaicas e superadas de literatura”. Nenhuma forma é tão arcaica e superada que não possa ser usada de maneira eficiente ou original. Trata-se de experimentar formas novas, não para “renovar a literatura”, coisa que nenhum escritor pode fazer sozinho, mas pelo espírito lúdico de se divertir com uma maneira diferente de contar. Se isto vai ser assimilado pelo chamado “corpus” literário, não depende de nenhum autor individual. É um processo coletivo e randômico. Melhor ir se preocupar com outra coisa.
Alguém um belo dia teve a ideia de usar tipos de letras diferentes (que hoje chamamos de itálico e negrito) para destacar partes diferentes do texto – mudar de interlocutor, distinguir entre frases pensadas e frases ditas em voz alta, sugerir a presença de uma consciência externa à cena e que a contempla, etc. No começo isto pode ter parecido mero exibicionismo ou excentricidade; mas hoje é um recurso usado em qualquer best-seller.
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
2462) “A Rede Social” (25.1.2011)

O filme de David Fincher sobre a invenção do Facebook parece plausível (não li o livro original nem sei os detalhes da história). Ele deixa claro o lado meio aleatório da coisa: o sucesso involuntário, o processo que foge ao controle de seus criadores. O Facebook deixou de ser um passatempo para tirar nerds da obscuridade social em que viviam e se transformou numa fortuna de bilhões de dólares. O livro em que o filme se baseia chama Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin de Bilionários por Acidente. Longe de ser um hino à iniciativa individual ou à genialidade, este episódio é um hino ao Acaso. Centenas de redes sociais de diferentes tipos são criadas por mês no mundo. Umas dão certo, outras não. Sabemos por quê deram ou não deram, mas só o sabemos retrospectivamente. Impossível prever. Saverin (no filme) desembolsa 19 mil dólares para fazer o Facebook decolar. Tem gente por aí que já desembolsou milhões, e a idéia deles não decolou ainda.
O Zuckerberg do filme é um nerd radical, inteligentíssimo mas inábil no trato com seres humanos, o que fica bem claro no modo agressivo com que ele trata uma namorada na sequência inicial do filme, metralhando-a com questionamentos e sarcasmos até que ela o manda pro inferno e cai fora. Vê-se que ele é muito mais aparelhado para disputas judiciais, porque durante as sessões em que é acusado de roubar as idéias alheias ele usa essas mesmas armas de maneira exemplar, demolindo os opositores. A mesma nerdice e agressividade de Bill Gates e tantos outros.
Roger Ebert, comentando o filme, observa que existem tradicionalmente três atividades que produzem gênios infantis: matemática, música e xadrez. E sugere que a programação de computadores pode ser uma quarta área. Por que não? Esses geniozinhos têm cérebros capazes de façanhas espantosas mas tendem a ser tímidos, rudes, introvertidos, antissociais. Fala-se a propósito deles na Síndrome de Asperger, que é uma condição próxima do autismo. Zuckerberg, segundo os depoimentos, seria assim; Ebert o compara com Bobby Fischer, o neurótico campeão de xadrez.
A crítica de Peter Travers na Rolling Stone comenta a imagem de Zuckerberg, milionário, sentado sozinho numa sala escura, “com o rosto iluminado pela luz azul do monitor, e fingindo que não está sozinho”. É uma maneira bitolada de ver as coisas. Muita gente pulando carnaval também finge que não está sozinha. Os nerds estão reinventando o mundo à sua imagem e semelhança. Dizer que um computador não faz companhia é tão injusto quanto dizer o mesmo de um livro ou de uma vitrola tocando Beethoven. O Facebook pode dar uma simples ilusão de sociabilidade, mas esta não é mais ilusória, para as pessoas “que não se encaixam”, do que a sociabilidade em carne-e-osso de uma festinha no campus, uma platéia de rock ou um churrasco na laje. O filme mostra que o mundo está cada vez mais formatado pelos nerds, após séculos de ditadura dos extrovertidos.
domingo, 23 de janeiro de 2011
2461) Vou mandar o clone (23.1.2011)

Por um lado meu problema é tempo. Me envolvo em atividades que se bifurcam em duas, que por sua vez se bifurcam em quatro, e como o tempo disponível não se bifurca da mesma forma, vejo-me saltando feito um louco daqui para ali, tentando comparecer a compromissos, perdendo um tempo irrecuperável em deslocamentos tartarugais pelo trânsito, dormindo às pressas, comendo mal, falando em dois celulares ao mesmo tempo, voltando para casa três vezes antes de chegar ao elevador porque me lembro que esqueci alguma coisa, faltando a encontros, confundindo terça-feira às cinco horas com quinta-feira às três... Não, não, impossível viver assim. Felizmente a engenética e a biotecnologia já me presentearam com uma solução rápida (mesmo que não muito barata).
Amanhã, churrasco na cobertura do industrial argentino que gostou do meu livro sobre Jorge Luís Borges e se comprometeu a financiar sozinho a edição do meu DVD ao vivo. Gente fina, o Lorenzo; culto, bom papo, amante da boa comida e das bebidas geladas. Problema são os amigos dele, igualmente ricos mas que nunca ouviram falar no Aleph, não sabem quem é Funes nem onde fica Tlon. Vão me encher de perguntas bobas sobre minha vida, vão ficar querendo comparar Dilma e a Sra. Kirchner, comparar Messi e Ronaldinho Gaúcho... Ora, que se danem. Vou mandar o clone.
Depois de amanhã vai ser pior. Tenho uma reunião numa produtora que vai avaliar meu projeto de documentário sobre coco de embolada e hip-hop. “Avaliar” não é bem o termo porque o projeto já foi aprovado e essa reunião é meramente pró-forma, já sei que eles vão fazer o possível para inflar a parte de hip-hop e minguar a parte do coco. Acham que coco é coisa de gente descalça, e que o hip-hop, por ser conhecido no mundo inteiro, tem mais resposta de público e mais chances de passar nas TVs a cabo do Azerbaijão e da Nigéria. Não sabem de nada. Não tenho paciência para ficar argumentando: vai ser como eu disse, e já passei para meu representante ordens tão inflexíveis quanto as Leis da Robótica de Asimov. Isso mesmo – não vou lá, vou mandar o clone.
Bendita solução, que me custou os olhos da cara, mas me permite pôr os pés somente onde me interessa e onde estou me divertindo ou aprendendo algo útil. Ninguém vai mais malbaratar meu tempo, espremer em gotas de suor inútil os minutos de ouro dos meus últimos anos de vida. Não fico mais em fila de banco (ele mesmo renegocia o empréstimo com o gerente) ou em sala de espera de médico (perto da minha vez de ser atendido ele me avisa pelo celular e eu chego num instante). Quando for apenas para estar presente, apertando mãos, ouvindo e respondendo bobagens anódinas, fingindo que estou me divertindo; quando fôr para aguentar com estoicismo o embate inútil das ondas da aporrinhação alheia; quando fôr para esperar sentado que a aranha do tempo termine de tecer seu relógio com a hora marcada, já sei o que vou fazer.
sábado, 22 de janeiro de 2011
2460) “Europa 51” (22.1.2011)

Este filme de Roberto Rossellini faz a ponte entre o neo-realismo italiano do pós-guerra e o cinema dos anos 1960, chamado de “realismo crítico” e que teve como grandes nomes Antonioni, Visconti, Pasolini, algumas obras de Fellini, etc. Europa 51 já se afasta do neo-realismo (uma escola de filmes feitos nas ruas, com personagens populares, atores não-profissionais, “modus operandi” de documentário) em ser parcialmente ambientado nos apartamentos da alta classe média. Irene (Ingrid Bergman) é a esposa norte-americana de um industrial e sofre uma crise ao perder o filho de doze anos. Influenciada por seu primo, um jornalista marxista, começa a frequentar favelas e a se comover com o destino dos pobres. Torna-se um desses personagens que, sem ideologia política ou fé religiosa, sentem a compulsão de fazer o bem e de ajudar pessoas que antes eram-lhe invisíveis. Irene é um desses personagens que tateiam o mundo em busca do caminho de uma possível santidade. Como o Nazarín e a Viridiana de Buñuel, como vários personagens de Pasolini, como o São Francisco cuja vida o próprio Rossellini filmara em 1950, como o Rocco de Visconti (cada um desses personagens com nuances bem diferenciadas), Irene tenta justapor a um mundo áspero e pragmático um ideal intuitivo, não-racionalizado, de bondade, caridade e fraternidade.
A beleza nórdica de Ingrid Bergman faz um contraste interessante com os rostos mais feios, porém imensamente mais vívidos e reais, dos pobres com quem ela contracena. Estrangeira no país, ela é mais estrangeira ainda naquele mundo de pessoas que convivem diariamente com a doença, a violência, a fome e a morte. Aos poucos ela abandona a família (como os personagens de Pasolini em Teorema) e acaba sendo internada numa clínica para doentes mentais, onde nem o psiquiatra nem o padre conseguem entender com clareza qual é o mal de que ela sofre. Sua santidade fora de lugar contrasta incrivelmente com a personagem Passerotto (Giulietta Massina), uma mãe solteira de seis filhos, incorrigível namoradeira, e que tira de letra todos os problemas do cotidiano. É para que Passerotto não perca um emprego que Irene a substitui em alguns dias de trabalho numa fábrica de papel, onde parece entender pela primeira vez o gigantismo das engrenagens que tornam possível o mundo de onde ela vem.
Outra sequência notável é quando Irene caminha pela clínica e encara as loucas, uma por uma, que olham para a câmara com diferentes graus de desequilíbrio e com expressões “uncanny” de total alienação, desenraizamento, perda de contato humano; ainda assim, Irene ajuda a salvar uma mulher que tenta se enforcar. Acalma-a com as mãos e o olhar, e lhe diz: “Você não está sozinha”, antes de deitar-se ao seu lado, como fizera com o filho, antes da morte dele. Na cena final, somente os pobres que ajudara parecem compreendê-la; ela não tem lugar no seu mundo pequeno-burguês, e caberá a Antonioni na década seguinte mostrar que mundo é esse.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
2459) Drummond: “Política” (21.1.2011)
Existem mil histórias de poetas que entram para a atividade político-partidária e se desiludem. O exemplo mais trágico é Paulo Martins (Jardel Filho) em Terra em Transe.
Um Dom Quixote se debatendo num mundo de Sanchos Panças. Um Jesus destrambelhado chutando-o-pau-da-barraca dos vendilhões do templo. Um idealista que foi naquela velha onda do “sonhar mais um sonho impossível...” e quando viu tinha cochilado ao volante e quem o acordou foi a colisão com o muro do Palácio do Governo.
Em seu livro Alguma Poesia, Drummond dedicou ao seu amigo Mário Casassanta (intelectual e educador, que veio a ser reitor da UFMG) o poema “Política” em que relata algumas melancolias desse personagem-tipo:
Vivia jogado em casa.
Os amigos o abandonaram
quando rompeu com o chefe político.
O jornal governista ridicularizava seus versos,
os versos que ele sabia bons.
Sentia-se diminuído na sua glória
enquanto crescia a dos rivais
que apoiavam a Câmara em exercício.
Vidinha antipoética, não é mesmo? Triste do poeta que para saber-se poeta depende dos elogios da imprensa ou dos amigos. Não que os dois não tenham importância, mas escrever poesia é uma façanha íntima que se esgota na página e na consciência do valor da página recém-escrita; o resto é política, é marketing, é comércio editorial.
E tem gente que para ser chamado de poeta é capaz de tudo, até de escrever poemas, mesmo não gostando de fazê-lo. Não buscam a poesia. Buscam o elogio do jornal governista (ou do oposicionista, o que dá no mesmo).
Entrou a tomar porres
violentos, diários.
E a desleixar os versos.
Se já não tinha discípulos.
Se só os outros poetas eram imitados.
Ter discípulos e imitadores é o horizontezinho de expectativa do nosso personagem; como não achar uma graça cruel nas desgraças que sofre? Mas para o cristão Drummond todo mundo é capaz de se auto-destruir por dentro, de renascer, de se auto-salvar:
Uma ocasião em que não tinha dinheiro
para tomar o seu conhaque
saiu à toa pelas ruas escuras.
Parou na ponte sobre o rio moroso, o rio que lá embaixo pouco se importava com ele
e no entanto o chamava
para misteriosos carnavais.
E teve vontade de se atirar
(só vontade).
Depois voltou pra casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa.
É o grito de ruptura do cara que percebe o grande engodo da política, onde “amizade” significa gratidão cega e lealdade não-crítica. O poeta dá um chute nos engodos e foge para um “rio” que lhe promete “misteriosos carnavais”.
Por outro lado, é o rompimento com a forma tradicional de poesia, parnasiana ou simbolista. Se Bilac quisesse falar sobre esse assunto aí escreveria um soneto, “A Desilusão de Péricles” ou coisa parecida. Drummond frita aquele conjunto de ilusões poético-alegórico-mitológicas no óleo fervente do coloquialismo, do jornalismo, do modernismo, da poesia livre que nem uma coisa.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
2458) “_Não contem com o fim do livro” (20.1.2011)

O primeiro livro interessante de 2011 está sendo esta coletânea de diálogos (Ed. Record, 2010) travados entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, com intermediação do escritor Jean-Philippe de Tonnac. Gosto de livros de diálogos assim, porque muitas vezes (como no presente caso) temos a sensação de estar na mesma sala, sem direito a voz, mas com direito a testemunhar a troca de idéias e de informações entre dois sujeitos que têm grande quantidade delas. Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa é mais conhecido do que Carrière, que os cinéfilos conhecem como roteirista de dezenas de bons filmes, entre os quais alguns dos melhores de Luís Buñuel. O tema das conversas é o Livro, na era das tecnologias eletrônicas, das novas formas de edição e comercialização; e este tema tem um interesse adicional porque os dois, além de escritores, são bibliófilos e colecionadores de obras raras, com grande conhecimento da literatura e do mercado editorial dos últimos séculos.
Eco e Carrière conversam como quem joga frescobol, procurando devolver a bola ao outro da melhor maneira possível para que este abra uma nova vereda no diálogo. Mesmo quando discordam, o fazem com leveza e bom-humor. O fato de um ser italiano e o outro francês os leva a fazer comparações constantes (sem ufanismo, sem bairrismo) entre as artes dos respectivos países. A certa altura, Eco se pergunta por que motivo não havia uma grande pintura inglesa no tempo de Shakespeare, enquanto que no tempo de Dante havia Giotto, e na época de Ariosto havia Rafael. É como se em dado momentos as energias criativas de um país inteiro convergissem para uma única forma de arte, enquanto que em outros, por motivos obscuros, elas florescessem simultaneamente em muitas direções. Carrière cita uma frase meio cruel de François Truffaut, que dizia: “Não existe cinema inglês, não existe teatro francês”.
Com relação ao desaparecimento do livro, os dois observam com razão que as tecnologias digitais ficam obsoletas muito mais rapidamente que o livro impresso. Carrière vai buscar em sua biblioteca um pequeno incunábulo em latim, impresso em Paris em 1498; com exceção de umas poucas palavras obscuras, é perfeitamente legível como linguagem e como tecnologia, cinco séculos depois. E ele cita o caso de um cineasta belga, seu amigo, que tem no porão de casa 18 computadores diferentes, para poder consultar trabalhos antigos, criados em programas de PC que não são mais usados hoje.
Os dois comentam que a possibilidade atual de armazenar quantidades imensas de dados não significa que tudo isto continuará armazenado (e acessível) indefinidamente, e observam que mesmo uma biblioteca gigantesca não passa de uma mera seleção, um filtro de escolha, de prioridades, aplicado a uma cultura. “O que devemos preservar?” – eis a questão, porque é impossível preservar tudo, tanto quanto é impossível consultar tudo quanto foi preservado (e que é necessariamente uma pequena parte desse todo).
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