terça-feira, 9 de novembro de 2010

2396) O racismo e Monteiro Lobato (9.11.2010)



Comentei aqui nesta coluna a recente polêmica envolvendo o livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Leitores se queixaram do modo desrespeitoso como a personagem negra, Tia Nastácia, é tratada em certos momentos. Quem leu Lobato sabe que a toda hora a boneca Emília chama a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo de “negra beiçuda”, “negra burra”, etc. É a única que a trata assim: a avó Dona Benta, os netos Pedrinho e Narizinho, todos tratam Tia Nastácia de modo mais respeitoso. Em todo caso, é compreensível que o MEC decida “exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura.”

Pipocaram comentários na Internet dizendo que o livro tinha sido censurado e proibido pelo Governo. Não foi o caso. (Quem quiser mais detalhes pode consultar este blog, que transcreve longos textos do parecer do MEC: http://tinyurl.com/3a3gg9c). Mas esse episódio mostra um grave problema existencial de entidades como o Governo, a Igreja, a Academia, as Escolas, etc. São entidades abstratas organizadas em função de um tipo ideal de comportamento.

Um escritor pode ter personagens racistas, machistas, drogados, criminosos, porque um escritor trabalha com o mundo real e não tem remédio senão descrevê-lo como ele é. As escolas e os governos, contudo, trabalham há séculos com um conceito de mundo real que na verdade é um mundo ideal, o “mundo como deveria ser”, o mundo que tentamos ensinar aos nossos filhos, cheio de valores éticos, regras de comportamento, etc. e tal. São entidades normativas, que pregam uma maneira de ser. A arte (ou pelo menos a maior parte dela) é contraditória, não prega maneira de ser; alardeia suas próprias dúvidas, tentações, descreve o ser humano com todos os seus defeitos.

Nos EUA, todo mês aparece uma biblioteca pública tirando de catálogo os livros de Harry Potter porque a família de uma criança, evangélica, denuncia que a biblioteca está pregando o culto à feitiçaria. E quando algum funcionário tenta conciliar, eles perguntam: “Vocês estão com quem – com Jesus Cristo, ou com Satã?”. Agora imagine se um leitor assim encontrasse na biblioteca livros de Henry Miller, Nelson Rodrigues, Chuck Palahniuk ou Dalton Trevisan!

Voltando a Lobato: seus livros podem trazer para uma criança uma tal quantidade e variedade de coisas positivas que nada perderão com um prefácio ou posfácio que coloque seus momentos racistas num contexto. Inclusive para mostrar que até mesmo pessoas progressistas, como ele foi em vários sentidos, também podem ser preconceituosas. Como diria o Conselheiro Acácio, “ninguém está isento de seus próprios defeitos”. Admiramos tanto os escritores que criamos para eles uma imagem meio “chapa branca”, de um Fulano sem defeitos. É bom poder enxergar a pessoa por trás dos livros.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

2395) O Táxi de Caronte (7.11.2010)




Chegada a hora, peguei o elevador, desci, dei boa-noite ao porteiro que cochilava. O enorme carro negro estava em frente ao prédio, com o pisca-alerta ligado. As únicas pessoas visíveis eram uns meninos sem-teto enrodilhados sob a marquise da farmácia. 

Caronte desceu, entreguei-lhe a valise. Os quiosques da praia estavam fechados e silenciosos. Se não fosse pelo marulho distante dir-se-ia que o próprio mar estava imóvel; mas soprava uma brisa vigorosa, que arrastava um copo de plástico pelo asfalto, com um ruído seco, fragmentado. 

Caronte bateu com força a tampa da mala. Abri a porta traseira, acomodei-me, e partimos. “Onde quer passar primeiro?”, perguntou. 

Eu não tinha pensado ainda, mas de improviso falei que queria ver a fazenda onde passei a infância. 

O carro avançou ao longo da praia. Em questão de segundos o céu clareou, azulou, e um sol atenuado mas veraz iluminou a campina, a caatinga no lugar do oceano, o casarão de cumeeira baixa. Circulamos em torno dele. Era um meio-de-tarde, e lá estavam todos, nos seus afazeres de sempre. Abaixei o vidro, escutei-lhes a voz e o cheiro do curral me envolveu. Nenhum deles viu o carro, com exceção do menino branco e pensativo, cujos olhos se ergueram do livro, e cruzaram com os meus. 

Seguimos, e pedi para rever um carnaval. A trilha poeirenta da caatinga começou a elevar-se, o carro passou primeira, os pneus deslizaram nas pedras do calçamento, os casarões do Pelourinho começaram a passar de ambos os lados, e já era noite novamente. 

Cruzamos ladeiras estreitas, atravessamos o alarido de um bloco sem tocar em ninguém; avistei a calçada na esquina da praça, o casal abraçado. Curiosamente, não lhe dei muita atenção; foi a música (que eu não ouvia desde então) que me produziu o efeito esperado. Achei melhor afastar-me dali, e pedi Londres. 

Cruzamos a ponte, percorremos o Tâmisa, diminuímos o ritmo em Baker Street, depois em Abbey Road. Perdemo-nos no labirinto até chegar ao pub. Pelo vidro pude ver a turma de jovens cabeludos; bebiam erguendo os canecos. Não se ouvia nenhum som, mas pelo movimento dos corpos, pelo erguer dos braços, lembrei a canção que cantáramos a plenos pulmões, pela eternidade e mais um dia. 

A escala seguinte foi Marrocos, novamente naquela tarde poeirenta, de sol escaldante, em que dois hóspedes da pousada se compadeceram de mim e me levaram para um hospital próximo, desidratado pela disenteria, quase em estado de choque. 

Parei diante do prédio de tijolos, enfeitado de azulejos, por entre o tráfego de camelos e bicicletas. A certa altura vi sair dali, fatigado mas impassível, o médico de longos bigodes tristes que me deu alta sorrindo, num francês claudicante: “Vous ne mourirais jamais non plus, monsieur!...” Voltamos. 

Desci diante do prédio, onde o copo de plástico ainda quicava no asfalto, levado pela brisa. Apertei a mão de Caronte. “É uma longa viagem”, disse ele, “mas estamos perto”.


(Este conto foi republicado na coletânea Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio, Casa da Palavra, 2013)




sábado, 6 de novembro de 2010

2394) “Waking Life” (6.11.2010)



Este filme de Richard Linklater, de 2001, passou meio despercebido nos cinemas, mas vem adquirindo um perfil “cult” de lá para cá. Caso o leitor não esteja ligando o nome à imagem, trata-se daquele desenho animado que mostra o tempo todo pessoas envolvidas em discussões filosóficas sobre a existência, o ser, o nada, os sonhos e a consciência humana. Vários amigos meus o acham chatíssimo. Eu não acho. Já tinha visto várias partes dele na TV a cabo, e esta semana vi-o inteiro por duas vezes. Cada vez gosto mais. Por que? Bem, em primeiro lugar porque uma parte considerável da minha vida foi e é dedicada a pensar e discutir a respeito da existência, do ser, do nada, etc. e tal. Não o faço por intelectualismo ou esnobismo, faço porque me parecem questões mais interessantes do que saber se vai chover amanhã ou quem vai ganhar o Oscar.

Linklater também não pode ser rotulado como o típico intelectual chato. Ele dirigiu o divertido Escola de Rock com Jack Black e o romântico Antes do Amanhecer com Ethan Hawke e Julie Delpy. Sua filmografia é variada e interessante, e Waking Life tem uma porção de sacadas que deram certo, fazendo dele um filme que merece atenção. A primeira sacada foi transformá-lo num filme de animação. Se ele tivesse a mesmíssima história que tem, com as mesmas cenas e os mesmos diálogos, mas fosse um filme comum, encenado com atores, aí sim, talvez virasse um filme chato. O realismo fotográfico de atores e ambientes daria uma certa aridez às discussões, que ficariam parecidas demais com papos-de-mesa-de-bar. Linklater filmou tudo com atores. Depois do material editado, contratou equipes de animadores e entregou a cada uma delas uma sequência do filme, para que eles cobrissem as imagens com desenhos. Isso deu ao filme uma aura onírica, adequada ao enredo (um rapaz perdido num sonho, do qual desperta no interior de outro sonho, e assim sucessivamente). A colagem de estilos e de traços, além de evitar a monotonia, nos dá exatamente a sensação de estar saltando de um sonho para dentro de outro.

Linklater é um fã de Philip K. Dick (depois ele viria a utilizar esta mesma técnica de animação superposta para filmar O Homem Duplo, de Dick), e é ele próprio quem aparece numa das últimas sequências, jogando pinball e contando um episódio (real) da vida do escritor. A dificuldade em distinguir entre a realidade e o sonho é um tema constante na obra de Dick. O diretor o transforma num tema entre outros, já que as discussões são bem variadas. Há também umas sequências musicais bem interessantes. Não sei por que, tenho uma sensação inexplicavelmente onírica quando chego sozinho num lugar e vejo pessoas desconhecidas dançando, sem que ninguém perceba minha presença, e sem que eu saiba o que estou fazendo ali. Nessas horas, penso que estou sonhando, e mais, penso que estou retornando a um sonho conhecido, que eu já havia sonhado muitos anos atrás. Por que? Não sei. Por isso vejo esses filmes.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

2393) Monteiro Lobato e a negra velha (5.11.2010)



O livro de Monteiro Lobato Caçadas de Pedrinho está tendo sua utilização nas escolas questionada, sob acusação de racismo. (Não, não foi proibido: o Conselho Nacional de Educação apenas recomendou que as edições do livro tragam uma ressalva explicando o contexto cultural em que o livro surgiu.) A personagem de Tia Nastácia, a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo, é frequentemente xingada pela boneca Emília de “negra burra, negra beiçuda” e outras coisas nesse tom. O próprio narrador onisciente do livro, volta e meia, diverte-se ridicularizando esta ou aquela ação da negra, como quando diz que ao ver uma onça ela subiu pelo mastro da bandeira feito “uma macaca de carvão”. Bastou isso para que um leitor indignado protestasse, dando início à polêmica pública.

Existe um livro tristemente famoso que se intitula, se bem me lembro, Comunismo para Crianças, cujo autor defende a tese de que a obra infantil de Lobato fazia parte de uma campanha para disseminar o Comunismo dentro da nossa juventude. Espero que não apareça um dia “Racismo para Crianças” dizendo que ele é um perseguidor da raça negra. Lobato tratava os negros de acordo com o diapasão de sua época, assim como Mark Twain, cujo Huckleberry Finn sofre esse mesmo tipo de acusação. Daí a achar que esses livros são ativamente racistas é uma coisa completamente diferente.

Tia Nastácia, aliás, é descrita na maior parte do tempo como uma personagem cheia de aspectos positivos. É carinhosa, dedicada às crianças, e amada por elas. No Picapau Amarelo ela é raptada pelo Minotauro e levada para o labirinto de Creta; em O Minotauro Dona Benta e seus netos vão à Grécia para salvá-la, e ali descobrem que ela amansou o “monstro de guampas” dando-lhe bolinhos para comer. Em A Reforma da Natureza, após o fim da II Guerra Mundial os líderes e reis da Europa querem reconstruir o mundo de acordo com bases civilizadas e humanistas. Quem é que eles chamam para dar-lhes conselhos? Dona Benta e Tia Nastácia, que fazem as malas e rumam para o Velho Continente para ensinar à Europa a arte de bem viver.

Tia Nastácia e Dona Benta exprimem o lado popular e o lado erudito de uma mentalidade matriarcal, compassiva, humanista, que Monteiro Lobato via como alternativa para um mundo de líderes belicosos e cheios de ambição. O sucesso do “Picapau Amarelo” deve muito a ambas. Um livro como Caçadas de Pedrinho inclui uma dúzia de epítetos zombeteiros contra os negros, mas se fosse proibido isso privaria todos os leitores – inclusive os leitores negros – de conhecer uma bela personagem negra de nossa literatura. Eu li esse livro com 8 anos e nunca achei Tia Nastácia uma personagem inferior ou ridícula. Talvez seja porque cresci numa casa onde havia negras velhas ajudando a cuidar de mim, e aprendi desde cedo a considerá-las gente, apenas gente, iguais a qualquer outra pessoa.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

2392) In the Land of the Dreams (4.11.2010)



(foto: Timm Suess)

Na estação do metrô, vou andando pelo corredor, seguindo o fluxo da multidão apressada, Numa parede estão encostados três homens idênticos, com óculos escuros idênticos, segurando a coleira de três cachorros idênticos. Um deles fuma um cigarro, o outro fala ao celular, o outro acena para alguém. Paro na frente deste último, que agora está segurando um jornal aberto; mas ele não olha para o jornal, e sim para o teto. Fico com medo de olhar o teto e me apresso a sair do metrô. Lá fora não vejo estação nenhuma. A escada me faz emergir num terreno baldio, e as pessoas que estavam saindo do metrô desapareceram. O terreno tem ruínas de muros, barris, tonéis enferrujados. De um lado e do outro, velhos conjuntos habitacionais de paredes manchadas pela chuva. Flores com meio metro de diâmetro, redondas, amarelas, cujas hastes brotam direto do chão.

Caminho pelo terreno, olhando em volta. A uns cem metros de distância ergue-se uma torre, tipo torre de observação, feita de tijolos quadrados. O sol é muito quente, não há uma só pessoa à vista, mas ouço ao longe ruído de trânsito, barulho de pássaros. Vou andando por entre as flores e vejo uma corda saindo de um buraco estreito no chão. Sinto uma vontade de puxá-la para fora. Pego-a com firmeza e começo a puxar; a princípio ela sai com facilidade, mas depois começo a encontrar resistência, como se ela estivesse presa a algo lá no fundo. Puxo com mais força e sinto que aquilo vai cedendo aos pouco, embora o esforço seja cada vez maior. Já puxei para fora uns dois ou três metros de corda, o suor escorre pelo meu rosto. Vou vencendo aquela resistência e de súbito ergo os olhos e vejo a tal torre, à distância, e percebo que ela está se encarquilhando, se amassando como se fosse de papel, encolhendo; e cada puxão que eu dou na corda a faz amassar-se ainda mais, e percebo que a outra ponta da corda está de alguma maneira presa à torre, e sou eu que a estou amassando e puxando para baixo. Nesse instante eu solto a corda, e a torre volta rapidamente a se endireitar, os metros de corda que puxei somem de novo no interior do buraco, e a torre está novamente intacta, e parecendo feita de tijolo.

Logo estou num lugar diferente, uma loja de animais empalhados que, não obstante, se mexem. Estou tentando comprar um pássaro preto que parece um falcão, mas esqueci ou perdi minha carteira. O dono diz que não me vende mais nada fiado, chega, já basta. Saio chateado. Entro no café da esquina. Os vizinhos de sempre, bebericando um capuccino, escrevendo concentradamente em seus laptops, conversando em voz baixa. Sento na única mesa vazia, peço um suco de laranja. Na mesa ao lado uma moça alta, jeito de modelo, cabelos sedosos e cor de mel. Olhos bem azuis, vestido decotado. Tem um livro na mão. Olho: é uma edição antiga de Heidegger, com a foto dele na capa. A moça percebe meu olhar, sorri para mim. Não tem um só dente na boca.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

2391) Verso livre obrigatório (3.11.2010)




(Glauco Mattoso)

O poeta Glauco Mattoso publicou há pouco na revista eletrônica Cronópios (http://tinyurl.com/27ll855) um artigo cujo mero título já sugere volumes de texto: “Verso livre obrigatório versus forma fixa voluntária”.

Nesta cadeia verbal encravam-se inúmeras polêmicas travadas entre os poetas contemporâneos nas últimas décadas.

Polêmicas desnecessárias, porque baseadas em equívocos, falácias, mal-entendidos; mas importantes, pois revelam a espantosa variedade de usos que a poesia tem para esses indivíduos.

Essa poesia aparentemente tão imprestável, chamada por Paulo Leminski, com ironia e carinho, de “inutensílio”.

Tudo começou quando o Parnasianismo era um governo comodamente refestelado nas poltronas do poder literário. Entre os parnasianos, vigorava a rima, a métrica, a estrofe regular, o poema como um conjunto de formas fixas que era preciso preencher com palavras, tendo cuidado para que não houvesse sequer uma sílaba tônica fora do lugar, sob pena de fazer desmoronar a estrutura inteira.

O Modernismo irrompeu janela adentro e jogou na lareira o regimento interno. Agora podia tudo. Verso sem rima, verso de qualquer tamanho, linguagem errada das ruas, regionalismos, barbarismos, poema de qualquer jeito, poema falando de qualquer coisa.

Isto acendeu uma luz de esperança nos olhos de inúmeros sujeitos doidos para ser poetas, mas sem muito traquejo para manejar as formas. Era um pouco como o que ocorreu depois no punk rock.

Os rapazes não conheciam as notas, nem as cordas, nem os acordes; mas morriam de vontade de subir no palco, dar aqueles pulos, aqueles gritos. A estética punk bradou: Pode tudo agora! E abriu-se uma cadabra que até hoje não voltou a se fechar.

Glauco Mattoso questiona o fato de muitos poetas de hoje rejeitarem as regras de versificação, e não apenas as rejeitarem para si próprios (um direito de qualquer um), mas afirmarem categoricamente que essas regras devem ser extintas e que não se aplicam mais à produção da poesia. Diz Glauco, em sua peculiar ortografia:

"As ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias ‘abolido’ as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação. Sempre admirei auctores iconoclastas que ousaram transgredir valores vigentes, como Mario e Oswald no modernismo ou Augusto e Haroldo no concretismo, para não fallar na constante inquietação creativa de Bandeira e Drummond. Mas, quando reaffirmo que lhes applaudo a coragem e a irreverencia, é justamente por saber a que poncto conhecem, elles todos, cada norma que se propuzeram a contestar. Quando quizeram, tanto Mario como Augusto compuzeram impeccaveis sonetos, e só não os fizeram em quantidade porque estavam interessados em outras alternativas estheticas.” 

Não se deve, diz ele, romper com a monotonia da regra para inaugurar a monotonia da quebra.








terça-feira, 2 de novembro de 2010

2390) O Ulisses argentino (2.11.2010)



Na sua enumeração dos equivalentes ao Ulisses de Joyce em diferentes países, Joshua Cohen elegeu como representante argentino Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948). Ao que eu saiba, este livro nunca foi traduzido no Brasil. 

Cohen justifica assim sua escolha: 

“O romance de Marechal, cujo título de grafia peculiar só pode ser mesmo traduzido como ‘Adão Buenosaires’, acompanha uma irmandade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre eles Jorge Luís Borges. Em sete seções, focalizadas sobre a formação estética de Adán, um pretendente a poeta, a homenagem cede lugar a uma reescritura de Dante, enquanto o espanhol falado na Argentina serve de brinquedo, é pervertido, é reinventado”. 

Ora, o meio literário argentino é tão cheio de fofocas e de intrigas quanto qualquer outro. No diário que manteve durante décadas de convivência com Borges, Adolfo Bioy Casares conta que ele e o autor do “Aleph” se referem de maneira depreciativa a Marechal, chamado por Bioy, citando uma expressão de Samuel Johnson, de “a barren rascal” (“um canalha estéril”). 

O menosprezo de ambos por Marechal deve-se sem dúvida ao fato de este último ter sido peronista, algo que Borges não perdoava a ninguém. Sobre o livro, Borges lembra: 

“O nome de Adán Buenosayres, quando estava ainda no manuscrito, ou quem sabe quando era apenas o projeto de outro romance, era ‘Fulano (que tem o mesmo número de sílabas que Leopoldo) Varangot’. Ele o abandonou porque todos faziam gozação com ele chamando-o de Leopoldo Varangot”. 

Ninguém comenta os clássicos com mais inteligência do que Borges, mas seu julgamento dos contemporâneos é frequentemente desdenhoso, ranheta. 

Julio Cortázar foi um avaliador mais generoso do livro de Marechal, que comentou em 1949 num longo artigo em que lhe aponta qualidades e defeitos; ainda assim acabou sendo acusado de “aderir ao peronismo”. Assim ele descreve a obra de Marechal: 

“São sete livros, dos quais os cinco primeiros constituem o romance e os dois restantes amplificação, apêndice, notas e glossário. No prólogo se diz exatamente o contrário, ou seja, que os primeiros livros valem antes de tudo como introdução aos dois últimos, ‘O Caderno de Capa Azul’ e ‘Viagem à Obscura Cidade de Cacodelfia’. (...) Os livros VI e VII podem ser desprendidos de Adán Buenosayres com sensível benefício para a arquitetura da obra”. 

 Talvez se possa ver aí uma influência futura sobre O Jogo da Amarelinha, em que tais capítulos de comentários vêm apostos ao romance como “Capítulos Prescindíveis”. 

Cortázar elogia o uso de variadas vozes pelo autor e conclui: 

“Estamos criando um idioma, por mais que incomode aos necrófagos e aos professores normais de letras que creem em seus títulos. É um idioma turvo e quente, torpe e sutil, porém cada vez mais próprio à nossa necessidade de expressão.” 

Ignorado em sua época, o romance de Marechal parece emergir aos poucos, com o passar do tempo.






segunda-feira, 1 de novembro de 2010

2389) Um romance em um mês (1.11.2010)




(foto: Valeriana Solaris)

Nenhum povo aborda a criação literária de maneira mais pragmática do que os norte-americanos. Para horror de muitos artistas, vigora ali a idéia de que escrever um romance não é muito diferente de aparar a grama do jardim (uma atividade típica daquele país). 

Existe lá uma espécie de concurso ou desafio anual chamado National Novel-Writing Month. Todo mês de novembro, milhares de escritores aspirantes topam esse desafio: escrever ao longo dos 30 dias do mês um romance de 50 mil palavras. 

A revista “Wired” publicou um artigo dando algumas dicas interessantes (e que servem, misturadas a uma pitada de bom senso, para empreitadas literárias em geral). Afinal (diz o websaite NaNoWriMo - http://www.nanowrimo.org/) “o objetivo não é produzir um best-seller, nem grande literatura, é dar partida num projeto que por razões variadas você não conseguiu fazer decolar”.

Dica 1: 
Planeje, antes de começar. O desafio é escrever o livro em 30 dias, mas isto não o impede de tomar notas, fazer um resumo ou escaleta, organizar o enredo para saber para onde está indo. 

Organize seu mês de maneira a garantir um máximo de tempo livre. Você terá que produzir uma média de 1.700 palavras por dia. Em alguns dias não vai dar, mas quando as coisas estiverem indo bem você vai ver que pode duplicar ou triplicar esse número. 

Planeje a manhã seguinte, para não “dar um branco”. Anote as primeiras idéias para começar no outro dia já sabendo o que vai fazer. 

Planeje as coisas do seu jeito; não se preocupe em seguir conselhos ou modelos alheios. Cada pessoa é diferente.

Dica 2: 
Mantenha-se motivado. Adie refeições ou lazer para depois de cumprir sua quota diária. 

Se tiver um blog, informe seus amigos sobre seus progressos. Ajuda externa ajuda a manter o entusiasmo. 

Se estiver realmente cansado, dê um tempo, pense noutra coisa, mas somente depois de cumprir sua quota diária. 

Se estiver bem, mantenha-se ligado no livro, tome notas, prepare-se para a próxima sessão de escrita.

Dica 3: 
Evite distrações. Esqueça a Internet, a não ser para o essencial. Mantenha a família à distância. Ignore Twitter, Facebook, tudo o mais. Concentre-se na escrita.

Dica 4: 
Não ligue para os erros. Muita coisa vai sair mal escrita. Não faz mal, continue. O importante é chegar ao fim, e, no fim, ter um livro pronto para ser revisado. Se você ficar burilando eternamente a mesma página, ela vai ficar perfeita, mas você não terá um livro. 

Se for o caso, mantenha um caderno de notas (ou abra um novo arquivo) para ir anotando os trechos que precisam ser retrabalhados, e como fazê-lo. Isso vai ser uma fase posterior do trabalho: o importante agora é chegar ao fim. 

Muitos escritores são capazes de produzir dezenas de páginas brilhantes, mas nunca chegam ao fim de um livro. Se você tiver em mãos um livro pronto mas cheio de erros, não é difícil transformá-lo num bom livro, com mais dois ou três meses de trabalho.





domingo, 31 de outubro de 2010

2388) A história de Sidney Rosenblum (31.10.2010)




Não conheci meu pai, que morreu quando eu tinha meses de nascido. Minha mãe vendeu a casa em Los Angeles e, como queria ficar perto de minha avó, se transferiu para Lansing, onde eu cresci, até me formar na Michigan State University. 

Quando casei, fui ensinar em Nova York, e foi ali que o advento da cultura digital trouxe meu pai de volta. 

Ele tinha sido ator de teatro na Califórnia, e trabalhara de forma intermitente no cinema. Minha mãe falava pouco sobre ele. Desde cedo entendi que guardara mágoa pelas suas bebedeiras, suas infidelidades, e queria esquecê-lo. Sempre me disse que ele trabalhava fazendo pequenas pontas, em cenas de multidão, e que sua carreira a sério tinha sido no teatro. 

O teatro é mais uma parte da vida do que da Arte, e, como a vida, nada deixa atrás de si. Algumas vezes lamentei que a arte de meu pai (“era um ator vigoroso, tinha presença”, concedia minha mãe) tivesse se perdido para sempre. Então surgiram na minha vida o DVD e o Internet Movie DataBase.

Dediquei-me a pesquisar fichas técnicas e a obter cópias dos filmes em que meu pai trabalhou. Foram dezenas. Foi no máximo um coadjuvante, mas em muitos filmes tinha uma ou outra cena forte, com boas falas. Um taxista, um porteiro conversador, uma testemunha num julgamento, um mafioso, um soldado na guerra... 

Vasculhei milhares de jornais da época; nunca um crítico citou o seu nome. Mas dediquei-me a colecionar tudo que ele tinha feito, e por fim tive a idéia de montar uma edição conjunta de todas as suas cenas, ajudado por meus alunos da universidade. 

Tenho agora em DVD uma colagem que cobre, até onde estou informado, tudo que as câmaras registraram de meu pai.

Hoje em dia, uso isto como um manual de meditação. Quando estou deprimido, vou direto para 02:35:10, a cena da tempestade em The Sea Wolves. A água banha o convés, o veleiro se agita, o timoneiro grita: “Vamos sobreviver a este inferno!”. Corta para um marujo barbudo (ele), que, agarrado ao mastro, grita de volta, por entre o fragor dos trovões: “Inferno? Nunca me diverti tanto!”. 

Quando estou muito autoconfiante, vou para 01:45:30, a cena em que Abraham Lincoln reúne seu conselho em Brothers in Arms. O presidente tem uma longa fala, cheia de alívio pela vitória na guerra, e vira-se, perguntando: “Concorda, senador Robinson?”. Meu pai, de pincenez, chinó e gravata de laço, diz: “As vitórias são como o vento, Sr. Presidente. Deixam uma sensação agradável quando passam por nós e vão embora”.

Outras vezes faço um acesso aleatório, deixo a escolha ao acaso. 

Como agora mesmo, quando apertei “Play” e o vi a cena da tumba do faraó em The Sands of Time. Um dos mercenários ergue um archote, iluminando uma cripta selada e pergunta: “E então, Buckley? Devemos abrir esta também?”. Mal vemos o seu rosto nas sombras, mas a voz inconfundível responde: “Não vai dar tempo. O que recolhemos já é riqueza bastante. Vamos embora”.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2013) 





sábado, 30 de outubro de 2010

2387) Os autistas voluntários (30.10.2010)



Greg Egan, um dos grandes escritores da FC de hoje, colocou um capítulo sobre o autismo em seu romance Distress (1995). O tema do livro é outro, e o autismo só aparece no capítulo 6, numa entrevista feita pelo protagonista, um jornalista investigativo. Ele dá voz a um personagem, James Rourke, pertencente a um grupo chamado Associação dos Autistas Voluntários (a história se passa em 2055). Nesse futuro hipotético, foi descoberta uma área do cérebro chamada “área de Lamont”, e se postula que o autismo resulta de uma lesão produzida nessa área por uma variedade de razões. O mais interessante do caso, no entanto, é a existência da própria associação. Descobertas as causas do autismo, esses autistas não querem ser curados. Preferem permanecer do jeito que são.

Diz James Rourke que a mente humana desenvolveu ao longo de milênios de evolução uma capacidade para compor modelos das outras mentes. Somos capazes de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Somos capazes de nos identificar com esses sentimentos, desenvolvendo um senso de intimidade, ou de empatia. A evolução foi fortalecida pelos laços monogâmicos que os homens criaram com suas companheiras. Intimidade, empatia e amor são três aspectos básicos do nosso quadro de valores emocionais.

O que ocorre quando um indivíduo – um autista – é incapaz de produzir esses modelos de outras mentes? Segundo o personagem, esse talento não passa, na verdade, de um talento para a auto-ilusão. As pessoas na verdade não sabem o que as outras pensam ou sentem: elas apenas imaginam saber. E como é necessário, por razões evolutivas, que sejamos capazes de manter essa ilusão, que “dá liga” a nossa vida em grupo, somos condicionados a achar que somos capazes de empatia e de compreensão, mesmo quando encontramos provas e mais provas de que isso não ocorre. Mas precisamos dessa ilusão para que a espécie continue evoluindo.

Os Autistas Voluntários do livro não querem alimentar essa ilusão. Eles consideram que não sabem e nunca saberão, intuitivamente, o que se passa nas mentes alheias, e que só podem se relacionar com outras pessoas através de processos mais formais e explícitos, como a linguagem verbal. Para eles, continuar autista é uma recusa a deixar-se enganar. E Rourke faz uma provocação final, ao comparar os Autistas Voluntários com os transexuais. Diz ele que nossa sociedade acha que é justo uma pessoa mudar de sexo para que seu corpo corresponda à sua imagem mental de si mesma. Por que então proibir que pessoas acostumadas a interagir sem emoções, sem empatia, sem intimidade com as outras, mantenham essa condição? Será que mudar de sexo é normal, mas não ter empatia é uma anomalia que precisa ser curada? Um autista pode viver sem abraços, sem olho-no-olho, sem demonstrações de afetividade e ainda assim ser querido e respeitado pelas outras pessoas, e sentir-se em paz consigo mesmo. Por que motivo a sociedade quer lhe negar este direito?