segunda-feira, 24 de maio de 2010

2066) “A Máquina do Tempo” (22.10.2009)



Revi no DVD esta adaptação dirigida por George Pal em 1960 para o romance clássico de H. G. Wells, em que um inventor, o fim do século 19, constrói uma máquina que o conduz ao ano 802.701. Vi este filme aos dez anos e é ainda hoje um dos que me produziram uma impressão mais forte. Quase meio século depois, algumas imagens estavam perfeitamente nítidas na minha memória, e neste intervalo creio só tê-lo revisto uma vez, na “Sessão da Tarde” da TV.

A longa sequência inicial do filme tem uma ambientação “steampunk”, na Londres vitoriana, reproduzida com fidelidade cinematográfica. Ou seja: o filme é fiel aos filmes anteriores, e é irrelevante se a Londres real era daquele jeito ou não. George Pal fez uma quantidade razoável de filme de FC sem genialidade mas cheio de pequenos toques brilhantes, principalmente quanto ao visual. Neste filme, a obra-prima é a máquina em si, uma espécie de trenó metálico em tamanho grande, com um painel de controle, um assento, e – este é um toque do filme, ausente no livro de Wells – um enorme disco rotatório por trás do assento, disco que se põe em movimento quando a máquina é acionada. O design da máquina é de William Ferrari, que voltou a trabalhar com o diretor em Atlântida, o Continente Perdido (1961), e também foi diretor de arte em episódios da série Twilight Zone (1959-1963).

A sequência da primeira viagem pelo Tempo, com câmara acelerada, flores desabrochando a olhos vistos, o sol percorrendo o céu a toda velocidade, é uma das melhores coisas do filme. Pal e seu roteirista David Duncan fazem o Viajante no Tempo fazer duas paradas intermediárias (que não constam do livro de H. G. Wells), uma em 1917 e outra em 1940, ambas durante as guerras mundiais, e mais uma terceira em 1966, quando está em curso uma outra guerra, desta vez com armas atômicas. É uma alteração no enredo que de certa forma o reforça, pois Wells foi um crítico feroz da guerra.

O filme cai um pouco quando o Viajante no Tempo chega ao futuro, porque a situação proposta por Wells sofre uma diluição braba. A humanidade está dividida entre os Elois, que são lourinhos, ingênuos, e vivem como hippies inofensivos, tomando banho de rio e comendo frutas; e os Morlocks, criaturas monstruosas, que vivem no subterrânea cuidando das máquinas. Os Morlocks do filme têm uma aparência grotesca e não parecem muito as criaturas albinas, fotófobas mas inteligentes do livro de Wells. E toda a especulação sociológica de Wells se dilui. Também está ausente do filme a ida final do Viajante para o futuro remoto, daqui a milhões de anos, quando o sol está a ponto de se apagar.

A não ser isto, o traçado geral do filme segue de perto a obra original. A primeira metade é melhor do que a segunda. É um filme de FC dos anos 1960 que merece ser visto e revisto, pelo charme com que reconstitui uma obra clássica numa recriação visual que em muitos momentos se equipara ao livro.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

2065) A máquina de costura e o guarda-chuva (21.10.2009)




(Salvador Dali, "Sewing Machine with Umbrella")

É uma das imagens mais famosas associadas à arte surrealista. Procurando explicar os processos pelos quais o Inconsciente se manifesta na criação artística, André Breton costumava citar esta frase de Lautréamont em seus famosos Cantos de Maldoror (1869), no Canto Sexto, capítulo I:

“Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”. 

O comentário habitual sobre este famoso trecho é que nele três objetos totalmente não-relacionados entre si aparecem formando uma cena meio absurda, meio paradoxal. E o conceito de beleza perseguido pelos surrealistas envolvia frequentemente o estranho (“uncanny”), o bizarro, o inesperado.

Já na época foi sugerida uma interpretação freudiana para essa frase. Os surrealistas endeusavam Freud, embora o doutor se escandalizasse um pouco com esses seus admiradores e procurasse dissociar seu nome do deles, sempre que possível.

Alguém sugeriu que o guarda-chuva simbolizava o homem, a máquina de costura simbolizava a mulher, e a mesa de dissecação seria uma cama. A imagem inteira corresponderia ao ato sexual.

Em seu artigo “Inspiration to Order”, Max Ernst (para mim o maior artista plástico do Surrealismo) afirma que essa frase exprime uma mecânica básica do pensamento surrealista, o mecanismo da Colagem, que consiste na “exploração do encontro fortuito, num plano não-adequado, de duas realidades mutuamente afastadas”.

Os surrealistas recorrem com frequência a objetos comuns, de significado ou função imediatamente reconhecíveis, objetos “absolutos” – para poderem dinamitar esse absoluto projetando o objeto num contexto que não o comporta.

Quanto mais banal, sólido e reconhecível o objeto, maior o choque de desenraizamento produzido quando o vemos recortado de seu contexto original e colado num contexto com o qual ele entra em choque. Não um choque proposital, simbólico, com intenção de contraste – mas o choque do aleatório, do fortuito, do que não parece ter intenção de mostrar ou dizer rigorosamente nada.

É o mesmo processo que desencadeia algumas famosas frases surrealistas, como “a ostra do Senegal comerá o pão tricolor”.

Ou certos quadros de Magritte como o que mostra, num quarto de dormir banal, a presença de objetos enormemente desproporcionais (pente, pincel de barba, cálices, etc.).

Ou, em O Cão Andaluz de Luís Buñuel, o indivíduo dentro do quarto arrastando, amarrados a cordas, duas cabaças, dois seminaristas, e um piano de cauda em cima do qual há um burro morto.

Nenhum desses objetos é fantástico em si: fantástica é a sua presença conjunta num mesmo espaço figurativo.

A Colagem, que Max Ernst vê como o procedimento surrealista por excelência, é uma quebra da sintaxe normal das coisas, a ausência de uma mediação que “explique” o modo como se relacionam. Imagens que produzem um curto-circuito no cérebro, forçado a reconhecer diante de si a justaposição de realidades incompatíveis.





2064) Vivemos na Matrix (20.10.2009)



Desde que a humanidade existe que há pessoas tomadas pela sensação de que alguém criou nosso mundo, controla nossas vidas e determina o que vai nos acontecer. Vendo a complexidade do universo, a presença constante do Acaso, e a ocorrência de fenômenos quase impossíveis de acreditar, o homem pré-histórico olhou desconfiado para as estrelas e pensou: “Tem alguém lá em cima roteirizando esse troço.” Deu a isto o nome de religião, e passou a atribuir a esse Alguém tudo que via à sua volta, desde a germinação das sementes até os raios e trovões e os eclipses solares. A crítica mais básica que se pode fazer à crença em Deus é a de ser, sem dúvida nenhuma, a mais cômoda das explicações para tudo. “Deus quis”, e estamos conversados.

Como os cientistas não gostam de se dar por conversados mediante uma simples frase, ainda mais sem corroboração empírica, chegamos ao século 21 com uma quantidade espantosa de conhecimentos sobre o mundo da matéria, e com uma vacuidade igualmente espantosa sobre o mundo do espírito. Li uma vez uma discussão entre um cientista e um pastor em que o cientista pedia ao outro que lhe provasse cientificamente a existência de Deus; o pastor pediu de volta que o outro lhe provasse teologicamente a existência do átomo. As duas exigências são levemente descabidas, porque tanto a Ciência quanto a Teologia são edifícios conceituais erguidos para provar coisas totalmente distintas. Provar cientificamente a existência de Deus é um pouco como provar matematicamente o valor literário do “Dom Quixote”.

A Ciência nos ensinou milhões de coisas sobre a matéria, mas não conseguiu provar a hipótese Deus... nem também desprová-la. Não existe nenhuma prova cientificamente insofismável de que Deus não existe. No máximo existe uma “imensa improbabilidade”, mas não é científico considerar isto como uma prova negativa cabal. É neste cenário que retorna, nos mais materialistas dos pensadores, a sensação bigbrotheriana de que “estamos sendo controlados e observados por alguém”. O excêntrico Charles Fort (“O Livro dos Danados”) afirmou certa vez: “We are property”, somos cria de alguém, somos gado, somos uma espécie animal

A versão mais consistente e atual dessa paranóia é: “Somos o video-game de alguém”. Confesso de público que essa idéia me persegue há quase trinta anos, sem outra evidência para apoiá-la além da leitura de duas dúzias de romances de FC onde se diz a mesma coisa. É o que a esta altura podemos chamar “A Síndrome Matrix”, não porque os filmes dos irmãos Warchovsky seja o non-plus-ultra dessa discussão, mas porque o seu impacto popular o transformou num ponto de referência. Para abrir uma discussão a esse respeito, basta postular: “Vivemos na Matrix”, e todo mundo que viu o filme saberá do que se trata. Somos personagens deles, e Eles nos acompanham fascinados, porque não sabem o que pensamos, podem apenas (como um usuário de um game) ouvir o que dizemos e acompanhar nossas ações.

2063) Palavreado neo-veríssimo (18.10.2009)




O sol se punha por trás da cremalheira, refletindo-se nas águas do Anaconda, quando um grupo de cavalcantis extenuados rodeou a lacuna e rumou para o pontilhão artesiano do castelo de Rochamadura. Quando o salvaguarda os avistou, gritou: “Evoé! Detende-vos e identificai-vos, ó vivandeiros!” O barômetro que ia à frente retirou o mambrino que lhe cobria o frontispício e respondeu: “Pedimos licença para adentrar este platinado, e oferecer ao vosso gardenal meus votos de responsa e de comiseração!”. Foi erguida a calandra, e logo os transitórios adentraram um amplo ergástulo ao ar livre, sendo recebidos pelo turbomestre, que lhes ofereceu repouso e uma refeição cabal.

Findo o entrepasto, os comensais continuaram à mesa do setentrião, mordiscando suculentas pândegas por entre taças de francastel. Ao lado, um grupo de jugulares fazia acrofobias com bolas coloridas, e uma artemísia loura entoava uma canção dolosa ao som do monocórdio. Um ancião heráldico bateu no chão com seu vernáculo, pedindo silêncio, e iniciou um antigo circunlóquio, que remontava às tradições estivais.

“Conta-se”, disse ele, “que, quando este cenotáfio pertencia ao Vice-Duque de Equitânea, moravam numa caverna a boreste três escaramuças. A primeira chamava-se Laudêmia e fabricava peças de peculato para vender nas feiras livres de Lordisburgo. A outra, Cantalupe, sofria de estalagmite aguda e mal podia se mover, mas era capaz de ler o futuro das colheitas na borra do chá de rododendro. A mais moça, Lascívia, costumava sair da caverna e só voltar três opúsculos depois, sem que ninguém soubesse o que andara fazendo.”

Nesse instante, o ilustre Nerovíngio, carbúnculo honorário daquele cordovão, e já um tanto ambidestro devido às copiosas manoplas de úvula que bebera, exclamou: “Pela sacripanta do meu escrínio! Como tendes coragem, ó bufarinheiro, de revelar aos nossos ilustres protonotários os hábitos pouco salubres das nossas trebizondas?! O que ficarão eles pensando dos arcabouços morais da nobre casa de Ventoinha?!” Um silêncio avuncular alastrou-se pelo ambiente, prorrompido apenas quando o Duque soltou uma sonora gargantilha, dizendo: “Falaste bem, ó Nerovíngio! O que nossos argumensais irão pensar de nós é coisa de pouca mônada, mas nestes hectares sabe-se há muito tempo que a bela Lascívia costuma frequentar o teu vergalhão!”

Nerovíngio voltou a sentar-se, cheio de contrafação, mas nesse momento escutou-se um bombardino ensurdecedor que fez tiritar todo o enviromento, num expletivo que reduziu a sextilhas os enormes alabastros que iluminavam o charlatório. E pela chanfradura fumegante que se abrira na parede surgiu uma verdadeira girândola de messalinas sacripantas, brunidas do salto alto ao baixo ventre! Eram as escaramuças diletantes, dispostas a penhoar seus usufrutos aos musculinos guerreiros, num velho rito sazonal daqueles hectares que, ao fim e ao cabo, era a razão da visita deles àquele burgo, de alabarda em riste.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, 2013)



quinta-feira, 20 de maio de 2010

2062) Dom Hélder e a FC (17.10.2009)




Na enquete L’Effet Science-Fiction, dos irmãos Igor e Grichka Bogdanoff ((Éditions Robert Laffont, Paris, 1979), cartas foram enviadas a pessoas famosas do mundo inteiro, inclusive chefes de Estado (reis, presidentes, príncipes, o Papa) com uma pergunta singela: “Qual é a sua opinião sobre a ficção científica?” 

O livro resultante é aquilo que um redator apressado sempre chama “um fascinante painel” de opiniões desencontradas, umas bem fundamentadas, com boa visão crítica e conhecimento de causa, e outras “que não pegam nem uma letra”. 

Ao folhear esse livro sempre me chamou a atenção o fato de que entre tantos literatos e gente importante apenas um brasileiro havia sido consultado a respeito da FC. Fico com vontade de abrir aqui nesta coluna um concurso, e oferecer meu exemplar do livro, autografado, a quem acertar quem foi. Mas ia dar muito trabalho, e prefiro ir direto ao ponto. 

O brasileiro procurado pelos autores foi Dom Hélder Câmara, nosso querido arcebispo de Olinda e Recife, que na época (meados dos anos 1970) estava muito em foco na imprensa francesa pela sua luta contra a ditadura militar e por ser um dos principais representantes da igreja progressista. 

Eis a resposta de Dom Hélder à pesquisa, numa carta datada de 20-10-1977 (estou traduzindo do texto em francês no livro): 

“A ficção científica tem por papel primordial fazer ver por antecipação o que será o amanhã. Naquela noite, inesquecível para mim, em que o homem caminhou na superfície da Lua, havia um menino ao meu lado. O que me chamou a atenção foi que o menino não estava surpreso. Para ele, o fato verdadeiro que se via lá no alto era idêntico ao que ele já lera em livros de ficção científica. A ficção científica é às vezes mais real que a própria realidade. Tenho certeza de que a viagem para as estrelas será possível, mais cedo ou mais tarde, e que esse momento deverá assinalar o segundo nascimento do Homem. O Homem por entre as estrelas é uma coisa que não escandaliza Deus”. 

Acho que de um bispo não se pode esperar juízo mais equilibrado ou mais simpático. Dom Hélder é perceptivo ao registrar sua opinião comparando duas gerações, a sua e a do menino. Ele era de uma época em que “A” era realidade e “B” era ficção; o garoto já vivia numa época em que as duas coisas se misturavam. 

Outro aspecto interessante é o recurso quase pavloviano a equacionar a FC e as viagens espaciais. A esmagadora maioria das pessoas resume a FC à viagem espacial. É um clichê quase obrigatório. Quantos leigos, indagados sobre a FC, dão exemplos relacionados à biologia, à sociologia ou à neurologia? Quase ninguém. Todos recorrem a imagens como planetas, espaçonaves, alienígenas, etc. 

Por fim, vale lembrar a FC inspirada por Teilhard de Chardin, desde Hyperion de Dan Simmons até The Omega Point de George Zebrowski. Uma cosmologia cristã harmonizando a expansão da espécie humana e sua espiritualização mediante o contato com o Universo.











2061) O Desígnio Inteligente (16.10.2009)



(Robert J. Sawyer)

Um dos debates científico-filosóficos mais acesos de hoje em dia é do “Intelligent Design” e que pode, não sem alguma fricção, ser traduzido por “Desígnio Inteligente”. (“Desígnio”, neste caso, assimila significados presentes na palavra vizinha “desenho”, algo esquematizado, criação de “B” à imagem de “A”; e de “desígnio” sugerindo plano, intenção, propósito.) A discussão sobre o Desígnio Inteligente coloca Ciência e Religião em campos opostos. De um lado, os que dizem que o Universo foi criado por uma Divindade. Do outro, os que vêem na sua criação o resultado do entrechoque de forças materiais, das quais surgiram galáxias, estrelas, planetas, a Terra, a vida, os animais, o Homem, a cultura, a própria idéia de Deus, da Ciência e do Desígnio Inteligente.

Entrevistado pelo escritor brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro, no saite Intempol (http://tinyurl.com/ygd5enx)o norte-americano Robert J. Sawyer recoloca a questão do Desígnio Inteligente de uma forma que é familiar aos leitores de FC, e que estabelece uma divertida terra-de-ninguém entre o Criacionismo religioso e ao Materialismo científico.

Sawyer se pergunta, com razoável bom-senso: “Acredito que um dia seremos capazes de simular a realidade com tal exatidão que não saberemos a diferença entre a simulação e o original? Sim: não há motivo para que não possamos fazer isso, cientificamente. Acredito que um dia poderemos criar micro-universos num laboratório? Sim, igualmente: acredito no poder da ciência. Dadas estas duas premissas, posso afirmar categoricamente que não vivemos numa simulação criada por seres mais avançados do que nós? Posso afirmar categoricamente que não vivemos num micro-universo criado por algum cientista num universo mais amplo? Não, não posso negar nenhuma dessas possibilidades. Poderemos um dia encontrar provas de que isso acontece? Sim, creio que tais provas podem ser descobertas, usando os instrumentos da ciência. (...) Talvez estejamos vivendo num universo criado por alguém; há alguns indícios científicos de que isto pode ser verdade, e vale a pena investigar esta hipótese”.

Sawyer foi acusado de “criacionista”, “místico”, mas para mim sua argumentação está firmemente baseada na ciência, e nada tem de religiosa. O que distingue a hipótese do Criacionismo religioso é a postulação de uma entidade espiritual, não-material, que criou o universo da matéria onde vivemos. Para a religião, existem seres que não são feitos de matéria, que não estão sujeitos às leis da Física e da Química. Já a ciência é capaz de aceitar até a possibilidade de sermos um video-game ou uma experiência de laboratório de outras criaturas, desde que essas criaturas estejam, tal como acontece conosco, num universo que obedeça às leis da matéria; que não seja um universo “espiritual”, sobrenatural. Um universo cujas leis materiais talvez transcendam as nossas, mas sem negá-las, assim como a Física de Einstein transcende, sem negar, a de Newton.

2060) Rio 2016 (15.10.2009)



Torci para que os Jogos Olímpicos viessem para o Rio. Torci porque queria ver a cidade comemorando alguma coisa. Nada é tão bom quanto o Rio comemorando. Alguns dos grandes momentos de euforia coletiva que já presenciei foram vividos nesta cidade, desde vitória na Copa do Mundo até comício das Diretas-Já, desde reveion em Copacabana até aquele famoso título carioca do Botafogo (o do gol de Maurício). Ao mesmo tempo, torci contra. Em parte por medo de uma desorganização catastrófica que tirasse de Atlanta o ouro de Jogos mais bagunçados das últimas décadas. E em parte porque, gato escaldado, sei que os Jogos Olímpicos servirão para fazer algumas centenas de novos milionários, e fim de papo.

O Rio é uma cidade que só merece coisas boas, mas o diabo é que também merece o ruim que lhe cai na cabeça, pois em geral foi ele mesmo quem buscou. O Rio é como um adolescente brilhante, inteligente, esperto, cheio de energia e de alegria de viver. O problema é que é também um adolescente vaidoso, daqueles que conversam com os outros olhando-se no espelho; um adolescente mimado, que gosta das coisas fáceis. Foi o Rio quem inventou o conceito do “jeitinho brasileiro”, aquele joão-sem-braço ideal para driblar a rigidez da burocracia, a obtusidade da lei, a frieza dos contatos impessoais. O problema é que o jeitinho descamba facilmente para a contravenção, a corrupção, o desvio, o desfalque, a lei-de-Gérson, o um-sete-um. Onde traçar a linha que separa as duas coisas? Impossível, pois não há uma linha, o que há é um centro-de-gravidade puxando os fatos para o lado da mera descontração e informalidade, e outro puxando-as na direção do calote e do estelionato.

O Rio é uma cidade de vocação hedonista, de viver com intensidade o momento presente e deixar que o futuro cuide de si mesmo. Ao mesmo tempo, a cidade tem um lado combativo, dinâmico, fazedor-de-coisas, que não a permite refestelar-se no “dolce far niente” da mera curtição. O Rio é uma cidade que gosta de fazer as coisas acontecerem. E uma cidade dividida (como um adolescente) entre o impulso de fazer e o impulso de fruir, entre o prazer de criar e o prazer de meramente consumir.

É engraçado a gente se referir assim a uma cidade, comparando-a a uma pessoa como se ela fosse uma coisa única, e não (como de fato é) um aglomerado de milhões de pessoas e milhares de grupos puxando mil brasas para mil sardinhas. Esta, contudo, é uma simplificação necessária para se lidar com entidades complexas. Uma pessoa não é muito diferente de uma cidade, pois uma pessoa também é um aglomerado de forças contraditórias, impulsos em conflito, hesitações, venetas, mudanças de rumo, teorias e práticas que entram em colisão o tempo inteiro. E mesmo assim dizemos que Fulano é um sujeito ponderado, Beltrano é um interesseiro que só quer se dar bem e Sicrano é um bom administrador. O Rio é a soma total de suas contradições, mas existe algo nele que sempre nos permite esperar pelo melhor.

2059) A FC segundo os famosos (14.10.2009)




Um dos livros mais originais na biblioteca da ficção científica é L’Effet Science-Fiction, dos irmãos Igor e Grichka Bogdanoff, que são uma espécie de Gêmeos Geniais da FC francesa, onde atuam como produtores de TV.

Na introdução eles afirmam: “Tudo começou com uma idéia provavelmente idiota: perguntar a um papa, a um rei e a um presidente a opinião pessoal de cada um sobre a ficção científica”.

A idéia acabou produzindo uma enquete gigantesca, conduzida em meados dos anos 1970 e cujos resultados foram reunidos neste livro (Éditions Robert Laffont, Paris 1979) que reproduz longas respostas de escritores, críticos, intelectuais.

O melhor são as respostas pomposas e perplexas de quem não sabe do que diabo se trata.

O secretário do Príncipe Charles informa: “Sua Alteza Real lhes enviará sua opinião sobre a ficção científica tão cedo quanto possível”.

O secretário do Papa responde: “As questões formuladas necessitariam de longas considerações. Não é aconselhável, portanto, respondê-las por escrito. A Secretaria de Estado aconselha Vv.Sas. a consultar um especialista na sua vizinhança, ou a se dirigir, caso necessário, à autoridade eclesiástica local”.

Um drible dos mais diplomáticos é dado pelo secretário particular do Príncipe Rainier de Mônaco, que diz: “Para que me seja possível apresentar a Sua Alteza todos os elementos necessários, gostaria de receber cópia das respostas das demais personalidades mencionadas em sua carta: o Presidente da França, o Rei da Bélgica, o Príncipe Charles da Inglaterra, Monsieur André Malraux, etc.”.

Os famosos dão respostas curtas, e às vezes interessantes.

Charles Aznavour: “A ficção científica é um olho aberto sobre o futuro. E outro sobre o presente”. 

Paloma Picasso: “Se a ficção científica interessa às crianças é porque há nela algo de importante”. 

Cassius Clay (assim citado no livro, embora nessa época já se chamasse Muhammad Ali): “A ficção científica é um soco na realidade. É a realidade posta a nocaute”.

Bjorn Borg, o tenista: “A ficção científica me deixa frio porque ela pretende colocar o futuro em conserva dentro dos livros”.

O surrealista Louis Aragon: “É algo de que não se pode falar quando se está firme sobre os pés”.

O roqueiro David Bowie: “A ficção científica sou eu”.

Jean-Paul Sartre afirmou: “Nada tenho a comentar sobre a literatura de ficção científica, a não ser que ela é demasiado absurda para poder representar verdadeiramente o sentimento do absurdo”.

E vejam só a resposta da bela Isabelle Adjani: “Amo tudo que se refere à ficção científica. Como todos os que terão cerca de 40 anos no ano 2000, posso dizer que sinto pelo gênero uma espécie de fascinação, e que prefiro lê-lo a ler um romance clássico. Tenho tanto prazer em ler FC quanto em ler Barthes ou Lacan. Há modernidade nos dois casos e, paradoxalmente, em ambos existe também a ficção”. Uma resposta nada má, hein?







2058) Bolívia 2x1 Brasil (13.10.2009)



O Brasil perdeu para a pálida Bolívia, depois de derrotar adversários mais fortes nas Eliminatórias e noutras competições recentes. Nosso time ficou acuado durante os vinte primeiros minutos, sem dar um chute a gol sequer. A Bolívia mexia-se completamente à vontade, e a Seleção não conseguia trocar dois passes seguidos, nem sequer dominar a bola. Os dois gols bolivianos foram feitos com relativa facilidade, em jogadas de bola parada em que até mesmo Júlio César parecia desarvorado, sem saber para onde ir.

Claro que a culpa foi da altitude, porque são 3.600 metros e ninguém consegue jogar futebol num ar tão rarefeito. O engraçado é que quando o Brasil ganha em La Paz todo mundo diz que “a técnica prevaleceu sobre a altitude”. Quando perde, começa o chororô e as campanhas para que a Fifa proíba jogos no alto da cordilheira.

Eu sou contra. Acho que tem que jogar em La Paz, sim, e se as condições são difíceis, azar de quem vem de fora e não é acostumado. Fazer chororô nas derrotas é normal, todo time faz isso. É como perder na chuva e botar a culpa no campo pesado, como se o campo fosse pesado apenas para o time que perdeu. O futebol é um esporte sujeito a chuvas e trovoadas. É um esporte ao ar livre, em que a imprevisibilidade do tempo e de outras condições pode influir. Faz parte do jogo. O time que perde pode se queixar, claro, mas não faz sentido pedir que se proíbam jogos na altitude.

Já vi fotos de jogos no Maracanã com o placar eletrônico marcando 47 graus. Se uma seleção russa ou sueca vier jogar na Copa de 2014, pode pedir à Fifa que jogos no Rio sejam proibidos, só porque eles não são acostumados a jogar com tanto calor? Todos nós estamos carecas de ver partidas disputadas debaixo de chuva torrencial, como aconteceu com Argentina 2x1 Peru neste mesmo fim de semana, ou entre Internacional x Flamengo dias atrás. Vamos pedir o quê à Fifa? Que proíba jogos em cidades onde chove muito? Que obrigue os clubes a cobrir os estádios?

Cada um tem que se virar como pode, nas circunstâncias dadas. Um jogo mitológico da minha infância foi o amistoso entre o Treze e o Dínamo de Bucareste, primeira vinda de um time europeu à Paraíba, em 1961. O jogo terminou 1x1, e me lembro que o comentários da época era: “os gringos sofreram com o calor no primeiro tempo, mas quando o sol esfriou, foram eles que deram um calor no Treze”. Jogar no calor ou jogar num frio de menos 20 graus são circunstâncias do futebol. Pedir que o jogo seja mudado de local porque o time visitante não tem hábito de jogar naquele ambiente é absurdo. Pedir que uma cidade seja interditada para o futebol, também.

O Brasil já ganhou inúmeras vezes em La Paz, com ou sem altitude. Pressões para tirar a cidade do mapa do futebol são compreensíveis, afinal cada um tem que procurar todos os meios legais de se impor aos adversários. Mas eu sou contra essas pressões. Se o Brasil é Brasil, tem que ir lá e jogar o jogo.

2057) Notas de um alquimista polonês (11.10.2009)





(ilustração: Página do Manuscrito Voynich)


SABER. 

Estudar os idiomas, os sistemas, as culturas, as tradições. 

Ser capaz de ler a linguagem das vestes, dos gestos, das mobílias. 

Perceber as idéias nas entrelinhas das palavras, as intenções inconscientes por trás das idéias, os fatos inacessíveis por trás das intenções. 

Olhar um rosto humano e deduzir em um segundo o ricochetear de experiências que desde o nascimento transformaram aquele indivíduo no que é; deduzir os entrechoques futuros a que ele se destina; perceber tudo isto no instante de apertar sua mão pela primeira vez. 

Assimilar todos esses processos aos processos íntimos da matéria em sua transmutação, cada elemento e cada substância evoluindo, cada qual no seu ritmo e ao seu modo, rumo à Substância Luminosa em que todos se sublimarão no final dos tempos.


PODER. 

Não o substantivo, mas o verbo. 

Destinar sua vida a “ser capaz de”. 

Ter ao seu alcance as rédeas do real. 

Estar no centro do entrecruzar das probabilidades e possibilidades. 

Procurar o ponto certo em que baste um mínimo esforço para fazer pender a balança para um lado ou para o outro. 

Tornar-se o Senhor da Natureza, para abrigá-la e proteger seu crescimento. 

Aproximar-se dos fatos no momento em que entram em torvelinho, e com um pequeno sopro empurrá-los na direção adequada. 

Ter a possibilidade de escolha entre ação e omissão, entre criar o fato ou apenas permitir que os fatos se criem a si próprios, rumo à Substância Luminosa em que todos se sublimarão no final dos tempos.


OUSAR. 

Ter a coragem de buscar o mais onde há pouco e de buscar o menos quando há muito. 

Harmonizar o coro dos descontentes. 

Cortar as amarras, queimar as pontes, largar o lastro, ir sem volta. 

Esperar durante décadas o impossível no próximo segundo. 

Ser capaz de pensar numa só coisa durante o tempo que for necessário. 

Não temer a vergonha moral, a dor física, o sofrimento afetivo, o paradoxo do intelecto, a degradação ou a destruição de si próprio ou de quem quer que seja, pois tudo isto se cancelará quando for alcançado o objetivo. 

Cortar da própria carne. 

Lançar o laço lá em cima e subir por ele, rumo à Substância Luminosa em que todos se sublimarão no final dos tempos.


CALAR. 

Manter a alma invisível. 

Conter-se e continuar repleto. 

Servir sem ser visto. 

Crescer para dentro, e passar cada vez mais despercebido lá fora. 

Não desferir a seta sem o chamado do alvo. 

O silêncio como única arma capaz de neutralizar os sábios, os poderosos, os ousados. 

A mudez como pressão sobre a impaciência alheia. 

É preciso ficar na sombra e abrir mão da própria luz por ser a única maneira de produzir um sol. 

Não ceder à vaidade de imaginar-se alguém, de supor que é possível ser alguém e ter uma Obra.  

Não ter rosto, não ter nome, não deixar lembrança nenhuma a não ser a Obra. 

Dissolver-se na paz do Nada para não diluir a Obra, e partir rumo à Substância Luminosa em que todos se sublimarão no final dos tempos.



(Este conto está incluído no livro A Nuvem de Hoje (Campina Grande, Editora da UEPB, Selo Latus, 2011)