sexta-feira, 23 de abril de 2010
1947) Uma lenda antiga (5.6.2009)
(ilustração de Alexeieff)
Dizem que havia um homem que buscava a Sabedoria Imortal, e para isto pôs-se a caminho pelas estradas do Oriente.
Tinha certeza de que em algum lugar do mundo haveria um conjunto de crenças e saberes capaz de responder a todas as perguntas passadas e futuras da humanidade.
Um dia chegou ao pé de uma montanha altíssima, tão alta que mal se avistava o seu pico, por entre as nuvens. Era uma montanha escarpada, áspera, íngreme, batida por vendavais. No sopé, uma estrada subia por entre as pedras, e, bloqueando a passagem, um portão de ferro cheio de grades e correntes. Ao lado do portão havia um guarda armado.
“O que há lá no alto, que foi necessário colocar este portão aqui?” perguntou o viajante.
“Não há nada”, retrucou o guarda.
“Claro que há alguma coisa”, insistiu ele, “senão, para que o portão? E para que tu mesmo, aqui, de sentinela?”
“Me pagam para isto, e tenho família para sustentar”, tornou o guarda, e prosseguiu. “É um trabalho sem sentido, como aliás qualquer outro. Mas lá em cima não há nada. Dizem, aliás, que uma vez, antes que eu viesse ocupar este posto, um homem aproveitou uma distração do guarda e, pegando um pedaço de pau, derrubou-o no chão, desacordado. Pulou sobre o portão e subiu a montanha. A subida foi muito mais trabalhosa do que ele tinha imaginado; foi vítima do ataque de aves de rapina, enfrentou vendavais e nevascas, quase morreu de fome, depois quase morreu de frio, depois quase morreu de cansaço. Um dia chegou ao alto da montanha. E não havia nada lá.
“Assim são todos os homens (continuou o guarda). São ávidos de segredos, de sabedoria transcendental. Ao se deparar com uma Sociedade Secreta, pressentem a possibilidade de que exista ali essa Sabedoria Oculta, mas ao mesmo tempo sabem que talvez tudo não passe de um engodo. A única maneira de saber é dedicar uma vida inteira a isso; mas ai, quando se está no fim da vida percebe-se que não havia segredo nenhum, e que mais valia ter dedicado a vida a outra coisa."
O viajante ficou pensativo durante alguns minutos, sentou-se sobre uma pedra, descansou. A certa altura, aproveitou uma distração do guarda e, pegando um pedaço de pau, derrubou-o no chão, desacordado. Pulou sobre o portão e subiu a montanha.
A subida foi muito mais trabalhosa do que ele tinha imaginado; foi vítima do ataque de aves de rapina, enfrentou vendavais e nevascas, quase morreu de fome, depois quase morreu de frio, depois quase morreu de cansaço.
Um dia chegou ao alto da montanha. E não havia nada lá.
Assim são todos os homens. São ávidos de segredos, de sabedoria transcendental. Ao se deparar com uma Sociedade Secreta, pressentem a possibilidade de que exista ali essa Sabedoria Oculta, mas ao mesmo tempo sabem que talvez tudo não passe de um engodo. A única maneira de saber é dedicar uma vida inteira a isso; mas ai, quando se está no fim da vida percebe-se que não havia segredo nenhum, e que mais valia ter dedicado a vida a outra coisa.
1946) O livro de Obama (4.6.2009)

Li com atenção e proveito o livro de Barack Obama Dreams from my Father, já traduzido aqui como A Origem dos meus Sonhos. Em geral não ligo para livros escritos por políticos. Acho que quem os escreveu foi um ghost-writer qualquer, contratado a peso de ouro. Duvido que Bill e Hillary Clinton tenham sentado ao teclado para escrever suas autobiografias recentemente editadas. Não os estou chamando de burros. É porque é uma gente muito ocupada. Se tivessem tempo e sossego talvez produzissem livros razoáveis. Mas não têm.
Quem os tinha era Obama na época em que produziu seu volumezinho de memórias. Acredito que ele próprio o tenha escrito, porque o livro saiu em 1993, quando ele tinha 33 anos, era advogado, e trabalhava com comunidades carentes na área de Chicago. A oportunidade do livro surgiu quando foi eleito presidente da Harvard Law Review, uma publicação universitária tradicional, que jamais tivera um presidente negro. Barack nem sonhava em entrar para a política partidária, quanto mais tornar-se senador e presidente.
Suponhamos então que o livro foi mesmo escrito por ele; não é improvável. (Já não digo o mesmo de A Audácia da Esperança, publicado depois de sua entrada na política). É um livro cheio de observações detalhistas que denotam um olho agudo, uma percepção intuitiva e atenta das emoções, uma disponibilidade em examinar com critério de adulto acontecimentos da infância e da adolescência, sem soterrá-los com explicações ou justificativas. Obama narra sua infância, retrocede para narrar o encontro de seus pais, um estudante negro do Quênia e uma estudante branca do Kansas, que se casaram no Havaí. Descreve o desconforto gradual de um negro numa sociedade branca, num jogo onde, diz-lhe um negro mais idoso, “eles fazem as regras, e, quando você aprende a jogar pelas regras deles, eles mudam as regras”.
O livro de Obama, se não fosse escrito pelo atual Presidente dos EA e sim por um escritor negro obscuro, já seria um documento revelador sobre a situação racial nos EUA – e também no Quênia, país onde, no terço final do livro, ele vai em busca de suas origens e de sua família paterna. Seu livro é (como o Chronicles, de Bob Dylan) uma memória romanceada. O autor lembra uma manhã de 20 anos atrás e descreve as nuvens do céu e o pássaro que estava cantando, registra a cor das roupas de uma pessoa vista num café, descreve os cheiros que sentiu.
Livros assim, mistura de lembrança e reinvenção, revelam nossos processos mentais de evocar memórias. Metade do que lembramos está sendo improvisado no momento da lembrança; e da próxima vez que lembrarmos aquilo, já lembraremos o fato misturado ao que estamos improvisando agora. Quanto mais lembramos uma coisa, mais o presente modifica o passado. Ironicamente, quanto mais recordamos um fato mais nítido ele fica, e mais distante do fato que ocorreu. Quando nossa memória fotografa algo, deleta o objeto, e guarda apenas a foto.
1945) O terceiro braço (3.6.2009)

Chama-se “membro fantasma” quando um indivíduo perde, por exemplo, uma perna, mas continua com a sensação física de que ela está ali. Acredita que pode movê-la. Sente frio, calor; sente que o pé está coçando e sabe que não há como coçá-lo. Parece que os nervos se acostumam a interpretar certos estímulos exteriores como vindos daquele membro, e insistem em fazê-lo mesmo quando os estão confundindo com estímulos que vêm de outra parte. Pessoas místicas tendem a interpretar isto como prova da existência de um “corpo astral”, um campo energético com o formato aproximado do nosso corpo físico, o qual subsiste mesmo depois que partes substanciais do corpo físico são destruídas.
Um caso próximo disso, mas estranhamente diverso, é o que aconteceu com uma mulher de 64 anos internada num hospital de Genebra após sofrer um derrame. Ela sente a presença de um terceiro braço e afirma ser capaz de vê-lo e de movê-lo. O braço (segundo ela) é translúcido, pálido, de aparência leitosa, e é utilizado pela mulher para coçar-se, por exemplo (ele não pode penetrar objetos sólidos). Os médicos submeteram a paciente a um teste de “ressonância magnética funcional”, comparando o comportamento de seu cérebro quando ela movia ou imaginava mover seus braços verdadeiros e depois o “braço fantasma”. Os testes indicaram que o cérebro dela acusava de fato a presença do terceiro braço, e o seu córtex visual era ativado como se de fato ela o estivesse enxergando.
Cientistas acham que um caso raro como este pode representar uma ponte entre dois fenômenos: o tradicional “membro fantasma” e as experiência “out of body”, em que uma pessoa imagina estar se desligando do próprio corpo e flutuando no ar, vendo a si própria à distância.
Um leitor da publicação online em que saiu um artigo sobre este caso (http://tinyurl.com/d8vc9o) sugeriu: “Seria interessante descobrir se o braço fantasma seria capaz de perceber um objeto que fosse desconhecido pela paciente. Talvez se pudesse colocar um objeto numa caixa, fazê-la colocar o ‘braço’ dentro da caixa, apalpar o objeto e dizer o que era. Ou então fazer algum teste para descobrir se o braço é capaz de perceber temperaturas ou de sentir dor”. Parece que os médicos suíços não tiveram essa idéia. Vai ver que são aquele tipo de médico que em vez de imaginar um teste simples pensa apenas em utilizar o equipamento milionário à disposição no hospital, como o de “fMRI” (ressonância magnética funcional). Se a paciente é capaz de sentir e mover o braço, o passo mais lógico a seguir é determinar até que ponto esse braço imaginário reproduz a percepção do tato de um membro normal. É uma anomalia involuntária, claramente um resultado do derrame, mas seria interessante descobrir se alucinações como esta poderiam ser produzidas inconscientemente para compensar a perda de um membro.
1944) Charadas infames (2.6.2009)

Pelo que vejo nas bancas de revistas, a arte das palavras cruzadas continua viva, mas não sei se o mesmo acontece com a arte da charada. Meu pai era charadista, e eu cresci cercado de dicionários especializados, ajudando-o, com minha irmã Clotilde, a procurar sinônimos obscuros ou palavras que correspondessem a definições do tipo “planta da família das Euforbiáceas” ou coisa desse tipo. Existem dezenas de tipos de charadas. A mais comum é a adicionada (outrora chamada de “novíssima”): uma frase tem algumas palavras em destaque. Estas são as “pedras”, pedindo sinônimos que, montados juntos, dão um sinônimo do “conceito”, que é a última palavra. O número de sílabas de cada “pedra” é indicado. Uma bem rudimentar: “EM CIMA do MÓVEL está o DOCE. 2,2” Em cima, com 2 sílabas: sobre. Móvel, com 2 sílabas: mesa. Doce, 4 sílabas: sobremesa.
Os sinônimos não precisam ser exatos. “A MULHER com a LATA na CABEÇA anda DEVAGAR. 2,2,2.” A resposta é: paulatinamente. A charada ideal, no entanto, é uma frase fluente, que faz sentido e não parece forçada, e na qual a substituição das “pedras” pelas respostas, com a necessária adaptação de gêneros, continua produzindo uma frase igualmente fluida. Ocorre no primeiro caso: “Sobre a mesa está a sobremesa”. Não acontece com o segundo exemplo: “Paula com a tina na mente anda paulatinamente”. A frase fica forçada e meio sem sentido.
Alguns charadistas defendem o uso de sinônimos um tanto oblíquos. Lembro que uma vez me propuseram esta charada: “UM OLHAR MORTO. 2,1” Quebrei a cabeça e nada. O cara me explicou: “Um: cada. Olhar: ver. Morto: cadáver”. Gostei tanto que criei algumas variações, como a que proponho ao leitor: “UM ERRÔNEO CASTIGO. 2,2”. Percebi que várias palavras poderiam servir como sinônimo oblíquo para “um”, e produzi outras: “UM GRITO ELEVADO. 1,2”; “UM RÁPIDO SOLILÓQUIO. 2,2”. Outra dessas oblíquas é “FOI PRETO e ACABOU-SE. 1,2” Também não decifrei, e me explicaram: “Foi: ex. Preto: tinto. Acabou-se: extinto”.
Mas o melhor são as charadas infames, em que as palavras são voluntariamente deformadas, de modo que a solução é algo que soa parecido, mas que ninguém seria capaz de adivinhar. Uma das minhas preferidas é: O ANIMAL NA TORRE DA IGREJA ENCONTRA-SE DOENTE. 2,2” Não adianta quebrar a cabeça como o fiz durante dias inteiros, porque quando desisti me disseram que a resposta era: “O animal: tatu. Na torre da igreja: sino. Encontra-se doente: tá tussino”.
Uma pequena obra-prima do nonsense e do trocadilho infame é esta outra, que necessita de uma certa introdução. Em 1922, os aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral fizeram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, saindo de Portugal e chegando ao Brasil. Tornaram-se figuras famosas nos dois países. A charada dizia: “SOFRE DE GAGUEIRA o FILHO DO COUTO, mas NÃO É ELE, É O OUTRO. 2,3”. A resposta da charada, evidentemente, é: “Sacadura Cabral”.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
1943) Uma instalação: Cabo Branco (31.5.2009)
(foto: Cilson Jr.)
Obra geo-artística monumental, de autor anônimo, que promove um instigante questionamento das nossas percepções do espaço e do tempo.
Sugere uma interatividade totalmente integrada aos princípios pós-modernos da perecibilidade da Arte, e encara a dinâmica humana como um “fluxus” incessante, um coito simbólico entre o Desejante e o Descartável.
O primeiro aspecto da obra é deduzido dos “folders” fornecidos pela eco-galeria, onde somos informados de que o “locus” geográfico da obra é o ponto extremo das Américas. Cria-se um paradoxo simbólico: a obra se situa no ponto mais oriental de um continente ocidental. Inscreve-se como fronteira, umbral, e expressa a união dos opostos (yin, yang) aqui considerados como vetores de longitude.
Se os continentes migram e se afastam, a obra propõe um retorno à Gonduana primitiva. É um braço estendido à utopia pretérita da Pan-Géia.
O segundo aspecto diz respeito à feliz escolha dos materiais: água e terra, fluxo e estabilidade (e mais uma vez yin, yang). Elementos da natureza num confronto de minúcias imprevisíveis e desfecho inevitável.
Note-se a harmonia entre o duplo ciclo do ir-e-vir das águas: o ciclo contínuo das ondas, o ciclo mais amplo das marés – achado estético de primeira ordem, que nos remete às estruturas concêntricas de certos segmentos da Música Barroca.
E tudo contraposto ao recuar do promontório, esboroando-se ao contato diuturno desse elemento “mobile” que sem descanso corrói o “stabile”.
Também nos “folders” ficamos sabendo que o Cabo Branco proposto pelo artista encerra um promontório menor, a Ponta do Seixas, que seria, ela sim, o ponto extremo continental. (Repete-se aqui, mostrando a coerência do artista, o tema do “menor dentro do maior”).
Dualidade que induz o espectador a imaginar na Ponta do Seixas um acidente geográfico ainda menor e ainda mais ao Oriente, e neste mais outro, e assim por diante, “ad infinitum”... Uma vertiginosa fractal projetando-se para o Leste em expansões sucessivamente menores. Pulsão da vontade e limites da natureza, num jogo de opostos sobre o qual paira a sombra grega de Zenão de Eléia e seus paradoxos.
Por fim, o aspecto interativo da obra. A escala colossal do projeto convida o espectador a habitá-lo, vivê-lo – instalar-se na instalação. E convida à inevitável erosão da obra pelo próprio apreciador externo.
Somando-se à ação da água, ela age rumo à conclusão do processo previsto. O Cabo Branco, à luz do neo-interativismo contemporâneo, está ali para que o público interfira, desbaste, corroa. Para que ele invada, desmate, edifique. Seu gradual desmonte será a expressão da atitude estética contemporânea, consagrando o conceito de “obra que convida o público a destruí-la”.
Pois afinal é este o Espírito do Tempo, o Zeitgeist que nos impele a interferir em obras criadas com esta única finalidade: de que as destruamos. É a nossa Arte, é o nosso Tempo. Assim somos nós.
1942) Os dependentes e os independentes (30.5.2009)

Dizia-se muito nas conversas entre artistas que lançavam CDs. “Deixei de assinar com uma gravadora para ser independente, e agora descobri que dependo dos amigos, dependo da família, dependo dos músicos, dependo de lojistas, dependo de todo mundo que ajuda a vender meu disco”. Este discurso, aliás, está se diluindo à medida que as gravadoras minguam de importância, e o “independentismo” se amplia mundo afora com aura de fato consumado.
Meu argumento contra essa visão é muito simples. Quando você depende de um, você é dependente. Quando depende de dez, é independente. Porque se algum desses dez “correr com a sela”, restam-lhe nove para, bem ou mal, continuar tocando o barco. E se o Um (a gravadora, no caso) cair fora, babau tia-chica. O conceito de dependência e independência, para mim, está ligado aos conceitos de concentração e diluição de poder.
Recebi um convite para um evento cuja justificativa dizia: “O objetivo precípuo deste conclave é questionar o fazer literário, dissecar seus processos, balizar seu desenvolvimento e estabelecer metas para a construção de um discurso literário brasileiro nesta época de diluição globalizada e de hegemonia dos discursos popularescos e dos gêneros comerciais”. Pensei: “O cara escreve assim para mostrar que domina a linguagem”. Depois pensei: “O cara capaz de escrever assim a sério provavelmente só consegue escrever assim. Ele não domina a linguagem. Ele aprendeu a duras penas uma linguagem – chamemo-la burocratês ou academês – e no final deixou-se dominar por ela, a ponto de ser-lhe impossível utilizar outra”. Dependência.
É como dizer: “Se você copia de um, é plágio; se copia de muitos, é pesquisa”. Verdade cristalina. Se eu faço um ensaio sobre Augusto dos Anjos citando Orris Soares o tempo todo, e só ele, estou dando motivo para alguém dizer que sem Orris e suas opiniões o meu texto não existiria. Mas se eu cito, além dele, Horácio de Almeida, Ferreira Gullar, R. Magalhães Jr. e Alexei Bueno, então nem Orris nem nenhum dos demais pode julgar-se essencial ao meu artigo. O pior que pode me acontecer é alguém perceber que citei idéias de muita gente e não emiti idéias próprias; mas ninguém pode me acusar de dependência em relação a um Fulano específico. (Eu seria, talvez, um daqueles casos que em transfusão de sangue se chama de “recebedor universal”).
Cara leitora, sugiro que passe agora à seção “Vida e Arte”. Fiquemos aqui só nós, os homens. Para que eu diga que talvez seja isto na vida amorosa nos induz a viver num “tico-tico no fubá” permanente: para não depender afetivamente, sexualmente, vitalmente, de uma mulher só. Temos medo de apoiar todo nosso edifício numa única pilastra. E se ela ceder? Por isso os homens gostam de ter sempre um Plano B, etc. As mulheres são mais corajosas porque são mais dependentes: apostam todas as suas fichas num sapo na esperança de que ele vire príncipe. Tiremos o chapéu para sua coragem.
1941) O livro e o texto (29.5.2009)
É preciso distinguir entre “texto”, que é um conjunto de sinais verbais possível de se reproduzir de diferentes formas, e “livro”, que é um objeto de papel onde esses sinais são reproduzidos através de impressão gráfica.
O livro é um objeto vinculado a uma maneira de registrar e transmitir informação.
Texto e livro são dependentes até um certo ponto. Um mesmo texto pode ser transformado em livros diferentíssimos entre si. Basta pensarmos em toda a variedade de edições que qualquer grande clássico literário já teve. E alguém pode gostar de um livro sem se interessar pelo seu texto: gosta apenas pela beleza ou pela originalidade de seu aspecto gráfico.
O texto é atemporal, maleável, adaptativo. O livro é datado, cheio de ressonâncias afetivas, carregado de nuances. É a cara da sociedade e da época que o produziram.
A discussão sobre “o fim do livro de papel” com a chegada da mídia eletrônica me lembra a discussão idêntica sobre a obsolescência do folheto de cordel.
Os folhetos talvez não existam mais daqui a 100 ou 200 anos, mas mesmo que isto aconteça os poemas de Leandro Gomes de Barros ou Manuel Camilo dos Santos continuarão sendo publicados e lidos – em CD-Rom, em livro eletrônico, em “chips quânticos”, sei lá o quê.
O texto é uma espécie de alma imortal, capaz de reencarnar em corpos variados: página impressa, livro em Braille, folheto, “coffee-table book”, cópia manuscrita, arquivo PDF... Qualquer texto pode se reencarnar nestes (e em outros) formatos, não importa se é Moby Dick ou Viagem a São Saruê, se é Macbeth ou O Livro de Piadas de Casseta & Planeta.
Sou um fetichista do livro de papel. Sou do tipo de ter várias edições diferentes do mesmo texto, ou de recomprar um livro que saiu com uma capa mais bonita ou projeto gráfico superior. Portanto, vou enumerar aqui algumas vantagens do livro eletrônico, que acho uma invenção bem-vinda.
1) A portabilidade. Hoje eu posso viajar e levar uma biblioteca de dois mil títulos no bolso do casaco.
2) Rapidez de busca. Posso localizar instantaneamente em qualquer um desses livros uma frase, um nome próprio, uma palavra qualquer que precise encontrar. Isto é ótimo para consultar dicionários, enciclopédias, obras de referência em geral.
3) Variação visual. Posso aumentar ou diminuir o tamanho da letra, o estilo da fonte; posso escolher letra branca sobre fundo preto ou vice-versa.
4) Anotações. Também posso (como nos livros de papel) sublinhar ou destacar trechos, deixar marcas ou comentários. 5) Visualização. Posso abrir duas telas lado, a lado, e, por exemplo, comparar o texto original de um poema de Auden com a sua tradução (sem peso extra na bagagem).
Novas mídias trazem novos recursos, bem como maneiras diferentes de empregar os antigos recursos. Tudo que enriqueça o ato de ler e o processo de reproduzir e disseminar os textos é bem vindo. Há quem tenha saudade do papiro e do pergaminho, e tem todo o direito de ter. Paciência.
1940) Soneto (28.5.2009)

(o soneto ecológico no Google Earth)
O soneto é uma das formas de poesia mais conhecidas, e em alguns momentos da História, como a segunda metade do século 19, poetas simbolistas ou parnasianos o consideraram a forma poética por excelência. Fazer um soneto perfeito era o objetivo de todos, e para isto inventaram regras cheias de preciosismo, como a de que nenhuma palavra importante (substantivos, adjetivos, verbos) podia ser repetida ao longo de todo o poema. Seus catorze versos, distribuídos ao longo de dois quartetos e de dois tercetos, formam quatro manchas gráficas que assumem na página um layout inconfundível (e deleitoso) para a visão do leitor que já tem certa experiência. Note-se que estou me referindo ao modelo italiano, criado ou popularizado pelo poeta Petrarca; há também o modelo inglês, usado por Shakespeare e outros, que contém três quartetos e um dístico, mantendo os catorze versos que desenvolvem um só tema.
O traço mais característico do soneto (para nós, que usamos o modelo italiano) é essa harmonia estrutural de 4-4-3-3, visível a todos, e que fica internalizada, automatizada, transformada pelo poeta numa espécie de moldura ou fundação à qual terá que se amoldar o conteúdo. As rimas e o seu sistema de organização podem variar (como se vê no presente caso), bem como a extensão métrica dos versos, e é justamente essa possibilidade de variação que enriquece a forma fixa e evita a monotonia. O importante é que a proporção numérica se mantenha, reproduzindo visualmente, e ritmicamente, essa base com que poeta e leitor já contam por antecipação, e que é o alicerce de tudo. Não seria nada estranho se um artista plástico produzisse pinturas ou desenhos usando as proporções sucessivas 4-4-3-3 e as chamasse de sonetos visuais, equivalentes aos da poesia.
Uma experiência curiosa deste tipo foi feita em Matosinhos (Portugal), sob a forma de uma intervenção urbana, com a plantação de um ”Soneto Ecológico” pelo poeta Fernando Aguiar. O poeta escolheu um espaço urbano, equivalente a um quarteirão, e ali plantou 14 fileiras de árvores em blocos de 4-4-3-3, em que árvores idênticas aparecem no final de cada fileira, para “rimar”. O resultado pode ser visto, com fotos (inclusive do Google Earth) , no blog do poeta, “O Contrário do Tempo”, através do link: http://ocontrariodotempo.blogspot.com/.
Mesmo que lhe faltem palavras, versos e rimas, trata-se tecnicamente de um soneto, porque está mantida na obra um dos elementos essenciais desta forma, que são justamente as proporções 4-4-3-3 de sua estrutura. Alguém poderia compor uma peça instrumental nestes termos; ou esculpir em mármore um quadríptico; ou fazer um curta com quatro sequências de 4-4-3-3 minutos; soneto não tem que ser literatura. O leitor mais atento terá notado que os quatro parágrafos deste artigo também obedecem a essa “regra áurea”, pelo prazer metalinguístico de refletir na forma o tema, e porque brincar com poesia é sempre bom.
1939) A palestra multimídia (27.5.2009)

Participei de uma mesa-redonda de ficção científica. Éramos cinco palestrantes, eu incluído. Quatro deles abancaram-se diante dos microfones e abriram com nonchalance seus reluzentes notebooks. A coordenadora me perguntou: “Sua palestra não tem apresentação multimídia?”. Meio encafifado, admiti que não. Ela sorriu com simpatia: “Ah, claro, você é da Paraíba...” Levei a mão à peixeira, que felizmente ficara na Paraíba trinta anos atrás; e sorri.
O primeiro palestrante levou 15 minutos tentando enviar seu PowerPoint para o telão. A coordenadora tentou ajudá-lo, ela clicava numa coisa, ele clicava noutra, e a tela permanecia azul como um céu de primavera. Veio um técnico, que mexeu aqui, acolá, reiniciou o computador... Conferenciaram em voz baixa e comunicaram à platéia que era um problema de configuração. O palestrante desligou o laptop, tartamudeou algumas coisas e passou a palavra. O computador da segunda palestrante, influenciado pelo primeiro, também recusou-se a obedecer. Com o rabo de olho eu percebi que ela tamborilava no touch-pad quando ficava impaciente, o que arremessava a tela noutra direção.
O problema do terceiro palestrante resistiu inclusive ao desplugamento do cabo e replugamento com as cabeças invertidas. E o notebook do último funcionou que foi uma beleza assim que foi ligado, chegando a arrancar aplausos tímidos mas espontâneos da platéia. Ele projetou cerca de quinze imagens acompanhadas de texto. Apontava a imagem no telão, e lia para a platéia o texto que havia embaixo, enquanto a platéia seguia obediente a leitura, movendo os lábios em silêncio. Quando ele acabou, era minha vez. A coordenadora da mesa me sussurrou, agitada: “Sr. Tavares, devido aos problemas técnicos e ao adiantado da hora, o senhor vai dispor de apenas dois minutos para sua comunicação”. Eu tinha, como sempre, preparado uma palestra de uma hora, mas não me fiz de rogado.
Falei que um tema clássico da ficção científica é o da Tecnologia Órfã. Chamamos de Tecnologia Órfã a toda aquela que sobrevive à geração que a idealizou e construiu, e que sabia como pô-la em funcionamento. O escritor Gene Wolfe, por exemplo, já nos advertiu de que dentro de mais 50 anos seremos incapazes de mandar um homem à Lua, porque as pessoas que o fizeram uma vez e sabiam como fazê-lo já estarão todas mortas. A obsolescência, substituição e renovação de tecnologias estão acontecendo num ritmo ótimo para os fabricantes, que vendem cada vez mais, mas péssimo para os usuários. Não há tempo para consolidar know-how e interligar os processos culturais que acompanham a convivência com aqueles instrumentos. Como dizia Belchior, “o que há algum tempo era novo e jovem hoje é antigo”. Desaprendemos as coisas antes mesmo de tê-las entendido por completo. Temos dinheiro para comprá-las, mas não temos tempo de ler o manual para entender como as malditas engenhocas funcionam, nem de saber para que servem. Boa noite a todos.
1938) O mundo de Don Luís e Nelson (26.5.2009)
Nelson dizia: “Sou e serei sempre um menino espiando pelo buraco da fechadura”. (Não há como não lembrar da cena de Buñuel em El, o Alucinado, em que uma mulher entra no quarto para trocar de roupa, olha para o buraco da fechadura, e enfia ali com rapidez uma longa agulha, para vazar o olho de um possível “voyeur”). A tentação do mistério, do proibido, do pecaminoso, coloria as fantasias sexuais do dramaturgo pernambucano-carioca e do cineasta espanhol. Para eles, o sexo vinha sempre carregado de transgressão, de blasfêmia, de pecado, de ameaça de ir para o inferno.
Os dois tinham uma religiosidade cheia de conflitos, bem expressa na frase famosa de seu quase contemporâneo João Cabral de Melo Neto: “Não acredito em Deus mas tenho medo do inferno”. É uma religiosidade sem êxtase, sem epifanias e sem transcendência, uma religiosidade da qual tudo se evapora na descrença, menos o não, a proibição, a culpa, a condenação eterna por causa do pecado mortal. Uma religiosidade triste e sem esperanças, que nada lhes deixou de bom. Nem mesmo no plano moral, porque todo esse terror e essa tortura nunca os impediu de pecar desbragadamente, tanto na vida quanto na obra.
Buñuel diz que na Espanha de sua juventude só havia dois ambientes possíveis para o sexo: o bordel e o casamento. Diz ele: “Os homens da minha geração, e além disso espanhóis, sofriam duma timidez ancestral relativamente às mulheres e dum desejo sexual que era talvez o mais forte do mundo. Quando esse desejo, desrespeitando todas as interdições, conseguia ser satisfeito, causava um prazer físico incomparável, porque se misturava sempre com a alegria secreta do pecado. Sem sombra de dúvida que um espanhol tinha um prazer superior ao copular do que um chinês ou um esquimó”.
Quanto mais inatingível a mulher, mais desejável. Buñuel narra suas fantasias eróticas com a Rainha da Espanha, com a Virgem Maria, com a própria mãe. E diz uma das frases mais libertadoras do seu credo pessoal: “Foi apenas por volta dos sessenta ou sessenta e cinco anos que compreendi plenamente e aceitei a inocência da imaginação. Foi preciso este tempo todo para admitir que o que se passava na minha cabeça só me dizia respeito a mim”.
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