sábado, 23 de janeiro de 2010

1562) A Tortura (15.3.2008)



Após depositar o ingresso na urna, uma porta nos dá acesso a alguns degraus, que descem até um corredor baixo, escuro, abafado, iluminado por lâmpadas na parede, a intervalos de alguns metros. No final, uma porta à esquerda se abre para o espaço não muito amplo. O teto baixo pode ser tocado com os dedos. O local tem o cheiro de mofo característico daqueles sebos de livros localizados em velhos edifícios úmidos e com pouca circulação de ar. As paredes estão revestidas de uma cobertura em vermelho e preto. Ao longo das paredes, e em mesinhas colocadas na parte central, estão cerca de quarenta artefatos de metal e de madeira, escurecidos pelos séculos. Não são réplicas, são instrumentos autênticos de tortura, e é impossível deixar de imaginar os momentos que pessoas iguais a nós passaram em contato com eles.

A “Mostra Internacional de Instrumentos Medievais de Tortura” está em cartaz numa sala do subsolo do Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, numa promoção do Departamento de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e da Fundação Catarinense de Cultura. Quem a organizou foi a Associazione Ricercatori Storici d’Italia, de Verona, e ela já foi vista por mais de 3 milhões de pessoas apenas na Europa.

Entre os instrumentos expostos, alguns são lendários. A Virgem de Nuremberg, por exemplo: um sarcófago oco cujo interior é cheio de lâminas afiadas. O condenado era colocado dentro, e quando a tampa se fechava seu corpo era ferido em lugares estratégicos. Este artefato foi conhecido também como “Iron Maiden” (“virgem de ferro”), embora o exemplar da exposição seja em madeira, uma “wooden maiden”. A Guilhotina exposta tem cerca de dois metros de altura, é muito menor do que as que aparecem no cinema. A Cadeira da Inquisição, um trono com centenas de agulhas pontiagudas de madeira e metal, é uma peça de artesanato de complexidade barroca. O Garrote, usado na Espanha do General Franco, consta de um poste, um banco, um aro de metal que fixa a cabeça do condenado, e um parafuso que, girado por trás, empurra sua nuca para a frente até que...

Fiquei apenas quinze minutos no porão abafadiço e retornei para o ar livre e o sol. O ser humano tem uma imaginação ilimitada para a arte de infligir sofrimento ao ser humano. Seja para extrair informações de inimigos, seja para amedrontá-los, seja pelo simples prazer de exercer o poder absoluto de causar a dor e a morte. Alguns daqueles instrumentos devem ter sido usados durante décadas, talvez séculos, em masmorras úmidas e malcheirosas de castelos espanhóis ou italianos. Espero que a exposição não seja vista por muita gente. Leio no jornal de hoje que 26% dos brasileiros entrevistados pela “Pesquisa Sobre Valores e Atitudes da População Brasileira” aprova a tortura “contra suspeitos de praticar um crime”. A Iron Maiden foi aposentada, não pelo surgimento de novos valores, mas pela produção de novas e mais eficientes tecnologias. O ser humano continua o mesmo.

1561) O cinema de Fellini (14.3.2008)


Fellini define seu próprio cinema com lucidez quando expõe o seu método, um método intuitivo e arriscado, que já resultou num número igual de obras-primas e de filmes desconchavados: “O cinema é como o circo: uma mistura exata de técnica, precisão e improviso. Quando aquele espetáculo minuciosamente ensaiado ocorre diante do público, ainda estamos correndo riscos, ou seja, aquilo faz parte da vida. Gosto dessa maneira de criar e viver ao mesmo tempo, sem as limitações que são impostas a um escritor ou a um pintor: mergulhando de cabeça na ação”.

Observe-se que nessa definição do seu cinema Fellini não está se referindo apenas ao momento em que o filme é projetado para a platéia. O cinema, para ele, é o momento da filmagem, aquele momento mágico em que tudo está previsto e ainda assim tudo pode acontecer. Para Fellini, um homem emotivo, extrovertido, gregário, rodar uma cena devia ser um equilíbrio permanente entre as imagens rabiscadas num “storyboard” e o acúmulo de imprevistos e contratempos que se abate sobre uma equipe, mesmo nas condições controladas de um grande estúdio.

Conta-se que 8 ½ surgiu de uma crise de Fellini no primeiro dia de filmagem de um roteiro qualquer, quando ele meteu os pés, furioso, e disse: “Chega! Eu já fiz esse filme! Vou fazer outra coisa completamente diferente!” E então entrou no estúdio e começou a improvisar. O resultado foi o seu filme mais pessoal e mais surpreendente. Neste aspecto, Fellini é o contrário de diretores como Hitchcock e Buñuel, que colocavam toda a sua emoção criativa no roteiro, e durante a filmagem dos planos ficavam bocejando, cochilando, olhando o relógio. Para Fellini, filmar era um raro prazer, e é esse prazer que ele consegue transportar para o resultado que passa na tela.

Um bom exemplo do cinema de Fellini é a última seqüência de Roma: um grupo de motoqueiros, à noite, cruzando a toda velocidade as ruas desertas da capital. Documentário? Ficção? Não sei. Fellini pode estar registrando “in loco” um hábito dos motoqueiros romanos. Pode também conhecer esse hábito e o estar encenando com seus próprios atores e motos alugadas. E pode simplesmente ter tido (por conta própria) a idéia de que seria bonito ver as ruas desertas da Cidade Eterna sendo percorridas por esses cavaleiros futuristas, com rostos ocultos atrás de óculos e capacetes. Sob o rugido incessante e imutável dos motores, as luzes das motos em movimento fazem girar sobre a fachada dos edifícios das praças as sombras gigantescas das estátuas. Lembra o texto de Cortázar (nas Histórias de Cronópios e Famas) em que ele diz existir um ponto, numa praça em Roma, onde à lua cheia vêem-se mover-se as estátuas dos Dióscuros, que tentam dominar seus cavalos rebeldes. Esse ponto é a câmara de Fellini: sob a luz dos faróis de seus motociclistas fantasmas, as sombras do Passado põem-se em movimento sob as luzes do Presente. “E pur si muove”.

1560) As entrevistas de Clarice (13.3.2008)





Estou lendo a coletânea de entrevistas feitas por Clarice Lispector quando trabalhava na imprensa. O livro (Clarice Lispector entrevista, Rocco, Rio, 2007) traz 42 diálogos que Clarice travou com escritores, artistas plásticos, etc., dos quais 23 já haviam sido publicados numa coletânea anterior (De corpo inteiro) e 19 são inéditos. 

Clarice escreveu em revistas (Vamos Ler!, Fatos & Fotos, Manchete) e jornais (A Noite, Jornal do Brasil). O tom coloquial das entrevistas (onde às vezes ela fala tanto quanto o entrevistado) nos revela sua pessoa de uma maneira mais superficial, mas mais visível, do que a sua prosa às vezes obscura.

Clarice entrevistadora é aquilo que os falantes de inglês chamam de “candid”. Inesperadamente sincera e direta, ela faz em voz alta comentários que em geral a gente deixaria subentendidos. Confessa detalhes pessoais sem intenção de exibicionismo, apenas por estar vivendo um momento de conversa franca com uma pessoa amiga. 

Suas entrevistas eram na verdade bate-papos com pessoas que ela conhecia bem. Cada um desses diálogos envolve elogios recíprocos, admissíveis num encontro entre duas pessoas que se gostam mas que têm a consciência de ser personalidades públicas aos olhos do leitor. Mesmo a sós, são diálogos travados com um olho no leitor, como se estivessem num talk-show de TV.

O que os salva de serem uma rasgação-de-seda permanente é essa franqueza de Clarice, uma pessoa de emoções instáveis, hiper-sensibilidade, sinceridade abrupta. 

Um episódio bem descritivo de sua maneira de ser é contado num poema de João Cabral (“Contam de Clarice Lispector”, em Agrestes, 1981-85). Clarice está em casa com alguns amigos falando sobre a morte, recordando episódios dolorosos e engraçados sobre a morte de outras pessoas. Chega então outro grupo de amigos que vêm do futebol, entusiasmados, e passam a monopolizar a conversa discutindo a partida, “gol a gol”. E a última estrofe conclui: 

Quando o futebol esmorece 
abre a boca um silêncio enorme 
e ouve-se a voz de Clarice: 
“Vamos voltar a falar na morte?”.

As respostas dos entrevistados de Clarice são visivelmente copidescadas por ela, porque vemos em todas a mesma polidez sintática, a mesma correção vocabular, e aquele leve artificialismo que se instala na linguagem oral quando é filtrada pelos parâmetros saia-justa de linguagem escrita. 

Às vezes Clarice tomava apontamentos, outras vezes levava um gravador. Alguns depoimentos são tão longos e taxativos que me dão a impressão de respostas fornecidas por escrito, e não de um diálogo testa-a-testa. 

Os diálogos mais surpreendentes, para mim, são os que ela trava com figuras do mundo do futebol (Zagalo, João Saldanha). A relação pessoal mais distante que ela tem com os entrevistados dá um peso extra às respostas pessoais que extrai de cada um. No geral, são conversas inteligentes e leves, em que o leitor aprende tanto com as perguntas quanto com as respostas.





1559) Os times domésticos (12.3.2008)



(alguém sabe o autor desta foto?...)

“Jogar em casa” é um fator importante no futebol. Por isso mesmo foi estabelecido o critério do mando de campo, e os campeonatos geralmente se organizam de tal maneira que os clubes se enfrentam duas vezes, uma na casa de A, outra na casa de B. É bom para qualquer time jogar no gramado que lhe é familiar, com o apoio de sua torcida, etc.

Quem acompanha o futebol sabe que num confronto entre um time grande e um time pequeno o time pequeno só tem alguma chance quando joga em seu próprio campo. São os chamados “alçapões”. No futebol da Paraíba, no tempo em que eu viajava para acompanhar jogos do Treze, lembro do calafrio de medo que nos acometia nos domingos de manhã quando pegávamos a estrada para enfrentar os times de Patos no Estádio José Cavalcanti, ou o Guarabira no Estádio Sílvio Porto. Meu time, que era no caso o time grande, já teve derrotas catastróficas nesses “alçapões”, e já teve vitórias consagradoras. Jogar no campo do adversário mobilizava todas as nossas energias, toda a nossa concentração. Equivalia a jogar um clássico.

No futebol de hoje em dia os times grandes estão cada vez mais pequenos. Cito como exemplo outro clube meu, o Flamengo, que está se tornando um time doméstico, um timeco, um timinho sem força moral, que só é capaz de derrotar um adversário quando joga no seu alçapão. Não importa se no caso é O Maior Alçapão do Mundo, o Maracanã. O critério é o mesmo. Não sou capaz de lembrar, nestes anos mais recentes, uma só vitória consagradora do Flamengo no campo do adversário.

Nesta Taça Libertadores da América, que mal começou, ficou bem claro que o Flamengo (e aqui incluo dirigentes, comissão técnica, jogadores) é um time medroso, um time nervoso e inseguro quando está longe do colo acolhedor de sua torcida. Ah, que diferença do Flamengo de Zico, de Nunes, de Rondinelli, de Júnior e tantos outros que iam pra cima, encaravam, batiam peito com peito com o adversário, naquela atitude de “Que foi que viu, véi?!” O Flamengo foi enfrentar o amadoríssimo Coronel Bolognesi no Peru, e jogou recuado o tempo inteiro contra o pior time da chave (e um dos piores do século), garantindo o empate com a desculpa de “a gente empata aqui, e ganha no Maracanã”.

Semana passada, o Fla foi enfrentar o Nacional em Montevidéu e deu um show de nervosismo, de desorientação. Teve dois jogadores expulsos, levou gols bobos, e saiu de campo dizendo: “No Maracanã vamos jogar com nossa torcida e reverter esse resultado”. Me dá uma vontade de cair de joelhos e cobrir a cabeça de terra e cinza. A primeira característica de um time pequeno é se apequenar quando fica entregue a si próprio. Pra quem conheceu o Flamengo em outras épocas, essas festas dos últimos meses no Maracanã são bonitas, mas são um péssimo sinal. Significam que nosso time espera que nós ganhemos o jogo, porque ele não ganha de ninguém quando é entregue a si mesmo. A gente é o Olaria do século 21.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

1558) Dylan, o Espírito sobre as Águas (11.3.2008)



Bob Dylan subiu ao palco da Rio Arena, na noite do último sábado, envergando seu uniforme habitual nos últimos shows: um horroroso jaquetão cinza-alumínio, calças pretas e um chapéu preto da aba larga e copa baixinha. Está cada vez mais parecido com Vincent Price. O primeiro número foi uma levada arrebatadora que pôs todo mundo de pé, “Rainy Day Women n. 12 & 35”, talvez em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Seguiram-se duas canções de amor na sua época de ouro, “It ain’t me babe” e “I’ll be your baby tonight”, após o que veio o clássico “Masters of War”, num arranjo pesado, dramático, ominoso. O rock balançado retornou com “The Levee’s Gonna Break”, após o que seguiram-se canções lentas recentes: “Spirit on the Water”, “Things have changed”, “Workingman Blues”.

Outra canção antiga com arranjo irreconhecível, mas eficaz, foi “My Back Pages”, com o seu refrão definitivo: “Ah, mas eu era muito velho naquele tempo, hoje estou mais jovem”, uma canção que Dylan gravou quando tinha 23 anos e que canta com vigor redobrado agora aos 66. A esta, seguiram-se músicas que deram o tom ziguezagueante do show – rocks pesados que levantavam a platéia, seguidos por canções lentas. Foi o que se deu com “Honest to me” (do CD “Love and Theft”), num arranjo que lembrou o “Instant Karma” de John Lennon, ao qual sucedeu a suave e melódica “When the Deal Goes Down”. Em seguida, um dos melhores números da noite, “Highway 61”, conduzido por três guitarras estridentes (Dylan passou o show todo ao piano elétrico, com exceção das primeiras duas ou três músicas), que deu lugar a “Nettie Moore”, uma canção melancólica do disco novo, “Modern Times”.

O fecho do show foi novamente para cima, com o rock alegre de “Summer Days”, que fez uma parte da platéia romper umas barreiras de contenção e correr para a frente do palco, tapando a visão de quem estava nas cadeiras especiais ao nível do chão. Todo mundo ficou de pé, a banda atacou “Like a Rolling Stone”, e não é preciso dizer mais nada. O grupo saiu do palco, retornou uns dez minutos depois para executar a empolgante “Thunder on the Mountain” (faixa de abertura do CD novo) e encerrar com “Blowin’ in the Wind”.

Dylan é um dos artistas mais brechtianos da história do Rock. Não faz concessão alguma. Sua banda é fleumática, não dança, não rebola; vestem-se todos como detetives particulares de filme policial, ternos escuros, gravata frouxa, chapéus de feltro escuro. Lembram atores do Berliner Ensemble. Dylan não olha, não sorri. Quando o entusiasmo está grande, ele joga um banho de água fria. A galera mais jovem está habituada com cantores que fazem acrobacias aeróbicas, que “se relacionam” com a platéia o tempo todo, conversam, fazem trejeitos. Se Dylan fosse repentista, seria da escola de Ivanildo Vila Nova: rosto impassível, nada de gestos, nada de teatrinho. A Voz e o Verso. Assim como quem diz – o Martelo e o Prego.

1557) A vitória das cores locais (9.3.2008)



Leio no Globo um episódio ilustrativo da peleja mais divertida do mundo de hoje: a do Monopolismo Globalizador contra a Resistência Regionalizante. Diz a matéria que alguns anos atrás a rede MacDonald’s instalou uma filial no estádio do Besiktas, um dos clubes de futebol mais populares de Istambul. Como qualquer brasileiro sabe de cor, as cores do MacDonald’s são o vermelho e o amarelo. Cores fazem parte da identidade visual de uma marca. São exaustivamente pesquisadas e discutidas antes de serem adotadas. Lembro de ter assistido uma palestra do designer Aloísio Magalhães em que ele passou uns vinte minutos explicando por que motivo o amarelo da Petrobras era único. Exibiu dezenas de slides mostrando as diferentes percentagens de vermelho contidas nesse amarelo, até se chegar à tonalidade definitiva, que pode ser subliminarmente identificada pelo público num simples olhar. Identidade visual não é apenas um logotipo.

Pois bem: os turcos torcedores do Besiktas sabiam disso “sobreliminarmente”, porque depredaram a pau e pedra a lanchonete do MacDonald’s. O motivo, simples e óbvio, era que o vermelho e o amarelo são também as cores do Galatasaray, o arqui-rival do Besiktas no futebol de Istambul. Será que os americanos não sabiam disso? Provavelmente sabiam, mas não acreditaram que os turcos detestassem tanto aquelas cores. Imagine só se alguém botasse no Estádio Presidente Vargas uma lanchonete pintada de preto e vermelho.

Depois da depredação o MacDonald’s voltou atrás e pintou a lanchonete de preto e branco (as cores do Besiktas), mas o mal já estava feito, ninguém comprava sequer uma batatinha frita. Ronald MacDonald botou o mac-rabo entre as mac-pernas e fechou as portas. Mais sábia (relata o jornalista Fernando Duarte, autor da matéria) foi a cadeia Burger King, que, escaldada pela desgraça do concorrente, abriu uma lanchonete no estádio do Fenerbahce e, em vez do tradicional vermelho de suas lojas, adotou com diplomática prudência o amarelo e o azul do clube turco.

Algo parecido ocorre aqui no Brasil. É o fenômeno da Coca-Cola azul. Como se sabe, a cor da Coca-Cola no mundo inteiro é o vermelho. Mas em Parintins, no Amazonas, onde a empresa patrocina os dois Bois do festival folclórico local, ela teve que se dividir. Nas propagandas do Boi Garantido, a cor usada é o vermelho; no material do Boi Caprichoso, tudo é azul. Em Parintins, essas duas cores têm um significado quase religioso. Quem torce por um Boi não usa a cor do rival, nem sequer pronuncia o nome do rival. A orgulhosa Coca-Cola curvou a cerviz e adotou a cor azul em todo o material de propaganda de um dos dois lados. Perdeu um centavo com isso? De jeito nenhum. Fatura, e fatura à pampa. A vitória regionalista é uma vitória puramente simbólica, talvez uma ilusão de poder. O Monopolismo Globalizador invade e fatura do mesmo jeito. Mas, às vezes, vale mais um gosto do que seis vinténs.

1556) “A montanha dos 7 abutres” (8.3.2008)




Os cursos de Jornalismo bem que poderiam exibir e discutir alguns filmes memoráveis sobre nosso ofício, que os mais mordazes dizem ser a segunda mais antiga das profissões. Hollywood tem uma balança pesada de pecados a pagar, mas no prato oposto existem algumas centenas de títulos, cada um dos quais pesando o equivalente a dez dos que estão no lado oposto. Graças a isso sobrevive.

Este filme de Billy Wilder, realizado em 1951 sob o título Ace in the Hole (depois mudado para The Big Carnival) é a história de um jornalista carreirista e inescrupuloso, desses dispostos a qualquer coisa para dobrar a circulação do jornal e triplicar o próprio salário. 

Chuck Tatum (Kirk Douglas) é um jornalista caído na lista negra que chega ao Novo México em busca de uma segunda chance, e acredita tê-la encontrado quando descobre um homem que acabou de ficar parcialmente soterrado numa mina. Tatum percebe que quanto mais tempo demorar o socorro mais jornais ele poderá vender. 

Ele se alia a um xerife desonesto, pressiona o médico, manipula e depois seduz a quase viúva, intimida os pais de Leo (o mineiro soterrado), e cria num piscar de olhos um enorme carnaval em torno da mina, com cobrança de ingresso, transmissão ao vivo pelo rádio, barracas de hamburgers, shows de música. O resgate, que normalmente precisaria de um dia, arrasta-se por mais de uma semana. Enquanto isto, a quase viúva (que elogia com desdém o caráter do marido), começa a bater pestanas para ele.

Tatum é um dicionário ambulante de máximas e mandamentos do jornalismo marrom, ou até do jornalismo sério, o jornalismo preto-e-branco. “Hoje, é uma boa reportagem; amanhã, vai servir para embrulhar peixe”. Para o xerife, ele diz: “Dance pela minha música e será reeleito. Não dance e eu o crucifico”. “Posso lidar com pequenas notícias e grandes notícias, e se faltarem notícias eu saio para a rua e mordo um cachorro”. “Más notícias vendem melhor, porque boas notícias não são notícia”.

A história acontece num deserto do Oeste, um lugar de sol cegante e calor insuportável. É a versão diurna do chamado “filme noir”, o qual, por definição, transcorre quase todo durante a noite, e noite de chuva ainda por cima. Nos filmes como este, no entanto, a ambientação são as ensolaradas e sufocantes cidadezinhas do interior, onde é possível fritar um ovo no calçamento, e onde o filme encontra os mesmos “homens desesperados e mulheres fatais”. Homens capazes de qualquer crime para ficarem ricos; e mulheres capazes de qualquer traição para irem embora dali. 

São cidades claustrofóbicas, por mais que estejam cercadas das vertiginosas vastidões do Oeste americano. A mulher de Leo está tão presa ali quanto o marido, soterrado da cintura para baixo pelo desmoronamento. Billy Wilder satirizou o jornalismo em A Primeira Página, dissecou um casal “noir” em Double Indemnity. Este filme é de certa forma a síntese entre os dois.






1555) O romance de amor (7.3.2008)



Já ganhei a vida fazendo traduções para grandes editoras (atividade de que me orgulho, e à qual recorro sempre que a grana começa a encurtar). Já traduzi manuais técnicos, livros de auto-ajuda, romances policiais, de terror, de faroeste, de ficção científica. Um gênero para o qual torci o nariz no começo, mas que depois se revelou muito informativo, foi o do chamado “romance de amor” para o público feminino. Faz parte da cultura masculina menosprezar qualquer leitura em que o amor seja o tema central. Não importa se se trata de fotonovelas da Capricho ou Sétimo Céu (eita, como eu sou velho!), de romances de Jane Austen, ou de ensaios sofisticados como o de Roland Barthes. Diante desses produtos culturais, o adolescente rebelde que existe em nós mete os pés e grita: “Falas de amor, e eu ouço tudo, e calo! O amor na humanidade é uma mentira!” E nada mais dizemos, por mais que nos seja perguntado.

Ler (pior: traduzir) os romances de Barbara Cartland ou Barbara Delinsky pode ser uma atividade educativa, porque são produtos cuidadosamente planejados e executados para reproduzir um conjunto de mentalidades que editoras, autoras e leitoras vêm aperfeiçoando entre si há cerca de dois séculos. Como qualquer outro gênero literário, principalmente os de massa, o romance de amor é um conjunto de protocolos, garantindo a quem lê a certeza do que vai encontrar lá dentro, e que pode ser definido como “um pouco mais daquilo mesmo”.

Num artigo recente em The Guardian Kathryn Hughes relata sua tentativa frustrada de escrever livrinhos da Mills & Boon, editora inglesa que vende 200 milhões de histórias de amor por ano. Diz ela, sabiamente, que a maioria dos aspirantes a essa literatura fracassa porque na verdade não gosta desses livros. Quer escrevê-los porque acha que é fácil (acha que eles requerem pouco talento literário e pouca inteligência) e precisa ganhar um dinheiro rápido. E o leitor de best-seller é especialista em best-seller. Percebe, logo nas primeiras páginas, quando o autor é um deles ou não. Percebe quando o autor compartilha seu gosto por aquele tipo de livro ou está somente querendo fazê-lo de bobo.

Diz Hughes: “Todo mundo acha que pode escrever um romance da Mills & Boon, mas é mais difícil do que parece. A principal coisa é não ser condescendente. A editora está cansada de autores espertos que tentam fazer ventriloquismo com uma voz narrativa da indústria de massas e não conseguem disfarçar o fato de que se consideram superiores àquilo tudo”. O romance de amor (como a telenovela) pode ser definido como “uma fantasia de realização romântica em que um herói másculo abandona voluntariamente seu modo evasivo de ser e se compromete a uma vida monogâmica com a heroína”. Além disso, o romance é “uma fantasia sobre a vida das classes superiores”. Seu propósito é garantir por algumas horas, a uma leitora insegura de si mesma, a fantasia da felicidade afetiva e da ascensão social.

1554) O artista cara-de-pau (6.3.2008)



(Stewart Home)

Pode parecer aqui nesta coluna que eu nutro algum tipo de despeito contra os artistas plásticos pós-modernos, mas não é vero. Tenho muitos amigos nessa área e em geral admiro muito o que produzem. O problema é que depois que alguém teve a idéia de dizer “arte é aquilo que a gente chama de arte”, o mundo artístico começou a bater biela. Vem um cara e manda duzentas cuecas sujas para uma Bienal, depois chega outro e remete uma geladeira vazia para a Documenta, outro inaugura numa galeria uma exposição de hidrantes envoltos em celofane... Enfim, eles fazem lá suas coisas e sempre aparece um crítico fumando piteira e falando em desconstrução, em somatório de léxicos pós-industriais, em pulsões semióticas e o escambau.

Num artigo intitulado “Paint it Black” na revista-livro Strange Attractor n. 3 (www.strangeattractor.com.uk) o artista britânico Stewart Home faz um dos depoimentos mais arrasadores e mais caras-de-pau sobre o mercado da arte. Ele começa assim: “Um dia, na primavera de 1982, eu acordei e decidi que irria ser um artista. Eu tinha 20 anos e achava que arte era qualquer coisa que as pessoas que exercem o poder na Cultura dizem que é arte. Meu entendimento de arte era institucional, e eu acreditava que várias manobras burocráticas eram requeridas para em transformar num artista, em vez da posse de uma qualidade totalmente nebulosa chamava talento”.

Home descreve as numerosas (e bem-humoradas) manobras que realizou para ter obras expostas em galerias ou participando de exposições coletivas. “Eu tinha notado que muitas Histórias da vanguarda eram escritas por pessoas envolvidas no próprio movimento que registravam”, diz ele. Passou a redigir manifestos e mais manifestos que não passavam de paródias de manifestos famosos, e criou movimentos como “Generation Positive” e outros. Um golpe interessante foi quando ele grampeou uma série de folhas-teste de impressoras, com letras e formas aleatórias (usadas para controlar o fluxo de tinta), e passou a vendê-las. A Galeria Tate de Londres comprou um exemplar, e Home passou a colocar no seu currículo a informação (verdadeira) de que “tinha obras adquiridas pela Galeria Tate” – sem explicar do que se tratava.

Home pregou peças em Deus-e-o-mundo, plantando falsas notícias e falsas entrevistas na imprensa. Usou em seu benefício táticas como a da “Greve de Arte”. Diz ele: “Dei minha conferência de despedida em 1989 no I.C.A, e minha conferência de retorno em 1993 no Victoria And Albert Museum, o que mostra que o fato de ter passado esses anos sem fazer nada provavelmente fez mais por mim do que se eu tivesse suado a camisa para produzir obras de arte nesse período”. Stewart Home conclui: “Provei, para minha própria satisfação, que para me tornar um artista reconhecido publicamente bastava saber manipular vários sistemas simbólicos e burocráticos, e não era necessária nenhuma forma de talento ou de treinamento”.

1553) A arte de ser invisível (5.3.2008)




Em O homem invisível, H. G. Wells produziu a primeira explicação científica para a invisibilidade, que até então a literatura produzia através de encantamentos, poções mágicas, etc. 

Wells sugeriu algo como de uma vibração imposta às moléculas do corpo, fazendo com que a luz as atravessasse sem ser perturbada. O homem invisível, porém, não poderia enxergar, pois a luz atravessaria seu globo ocular sem produzir os reflexos necessários à visão. Ele nem vê nem é visto.

Wells pretendia apenas explorar as aventuras de um homem que descobre mais problemas do que vantagens na invisibilidade. Em primeiro lugar, ele tem que andar nu, pois sua invisibilidade não se transfere para as roupas – e andar nu pelas calçadas, no inverno londrino, não é uma experiência das mais agradáveis. Ajuda a praticar pequenos furtos (embora todo mundo saia à perseguição daquela fruta ou daquele maço de notas que parece ir flutuando pelo ar). 

Mas andar na calçadas implica num esbarrão atrás do outro, pois ninguém o vê; descendo para o meio da rua ele corre o risco de ser atropelado. Para poder fazer as tarefas mais comuns, o homem invisível resigna-se a vestir roupa, capote, chapéu, óculos escuros, e a cobrir o rosto com bandagens.

Alguns animais resolvem o problema misturando-se às cores e formas do ambiente onde vivem. O camaleão é o exemplo mais conhecido, mas há insetos que são indistinguíveis de uma pedrinha, de um talo de capim, de um galhinho seco. 

É uma invisibilidade virtual, porque o inseto continua a ser visto, mas como sua imagem se confunde com o que há à sua volta, o observador não consegue fazer a distinção entre forma e fundo, e não percebe a sua presença.

A literatura policial explorou o conceito da invisibilidade psicológica para fazer com que um criminoso fugisse do local do crime sem ser percebido. 

Numa das histórias de G. K. Chesterton com o detetive Padre Brown, um crime é cometido num sofisticado clube londrino, durante um banquete. A investigação se concentra nas idas e vindas dos convidados e dos garçons. No final, o Padre Brown demonstra que o assassino entrou na sala como convidado e saiu como garçon. Como? Mudando a postura e o andar, uma vez que todos estavam vestidos de black-tie. Entre um grande número de indivíduos com trajes iguais, as testemunhas viram entrar na sala um sujeito empertigado, passo firme, ar autoritário, e, minutos depois, viram sair de lá um sujeito de olhos baixos, pisando de leve, com uma bandeja na mão. Jamais imaginariam que fosse a mesma pessoa.

Outro conto de Chesterton, “O homem invisível”, trata de um crime semelhante. Ninguém viu o assassino sair da casa. Depois de muitos interrogatórios, o Padre Brown vê em cima da mesa algumas cartas com carimbo daquela data, e pergunta quem as trouxe. “Ora, foi o carteiro!” O carteiro era o homem invisível. Todos o viram entrar e sair (era ele o criminoso) mas ninguém registrou sua presença.