sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

0711) Paula, traz a cerveja! (29.6.2005)


(as flores de Monet)

De passagem pela Paraíba, ouvi no rádio uma divertida chamada sobre o Campeonato Brasileiro. O locutor anuncia: “Campeonato Brasileiro, 8 meses de emoção. Em 8 meses, muita coisa pode acontecer”. Efeito sonoro. Voz de um cara: “Paulinha, me traz a cerveja, o jogo já vai começar!”. Efeito sonoro. Mesma voz: “Paula! Cadê a cerveja? O jogo já começou!” Efeito sonoro. Mesma voz: “Oi mãe... vim ver o jogo aqui. Tem cerveja?” Volta o locutor: “Em 8 meses, muita coisa pode acontecer”.

Uma propaganda da Tigre, na TV, mostra um céu estrelado. Voz de homem: “Que céu lindo”. Voz de mulher: “É mesmo”. Uma estrela cadente desliza pelo céu. Voz do homem: “Veja, meu amor! Uma estrela cadente! Faz um pedido!” Voz da mulher: “Já fiz. Pedi pra gente poder comprar um telhado, antes que chova”.

Em sua simplicidade, estes textozinhos dão aulas de economia narrativa, e mostram como contar uma história com um mínimo de efeitos. Discute-se muito na literatura o predomínio da História ou do Estilo. Para alguns, a literatura deve se concentrar em inventar histórias interessantes e contá-las com eficácia. Para outros, a história pode ser qualquer uma, o que importa é o estilo pessoal do autor. É como na pintura: quando Monet pinta uma flor aquática, o importante não é a flor que mostra, mas o modo como ele pinta a flor.

História e Estilo são a perna direita e a perna esquerda. Pode-se até andar sem uma delas, mas com as duas vai-se mais longe, e melhor. Os exemplos que citei acima vêm da publicidade, onde é às vezes o cara tem apenas vinte ou trinta segundos para criar uma situação e um desfecho. A melhor maneira de contar histórias assim é através da elipse: em vez de contar tudo, conta-se apenas uma pequena parte, confiando que o público saberá interpretar corretamente os sinais e preencher os espaços vazios. No caso da primeira história, por exemplo, não é preciso dizer que Paula é a esposa do sujeito. Poderia ser a irmã mais nova, por exemplo; mas algo me diz que em 99% dos casos o cara que pede uma cerveja pra ver futebol pede à mulher, não à irmã.

Em ambas as histórias não sabemos quem são essas pessoas. Para que? Basta entendermos, após as primeiras frases, que são marido e mulher. O aprofundamento da descrição social e psicológica dos personagens é uma grande conquista da literatura dos últimos séculos. Mas não é, em hipótese alguma, um requisito indispensável para se contar uma história. É o mesmo caso das piadas. Um sujeito entrou no bar e pediu uma cerveja... Num avião havia um alemão, um judeu e um brasileiro... Dois náufragos estavam numa ilha deserta... Quem são essas pessoas? Não importa. São funções narrativas, e deles diz-se apenas o que é relevante (sua nacionalidade, no segundo exemplo). A Arte de Contar Histórias é um mecanismo com milhares de anos. Seu emprego na Arte da Literatura não deve fazer a gente pensar que as duas são a mesma coisa, nem que são antagônicas.

0710) O império da lambada (28.6.2005)


(Flávio José)

Estive em Campina Grande na abertura do São João, cheio de expectativa: ia haver um show de Flávio José, e eu até hoje nunca assisti um show ao vivo do grande forrozeiro. Nossas presenças no São João nunca coincidem: “quando eu ia ele voltava, quando eu voltava ele ia”. Cheguei ao Parque, desci, cruzei a pirâmide, mas quem disse que consegui chegar lá? Estava “duro de gente”, e nem consegui chegar perto da “catedral”, quanto mais do palco. Não me preocupei; fiquei tomando uma cerveja e ouvindo de longe. Mais do que o prazer de ver o show, experimentei o prazer de ver um São João como deveria ser – e muitas vezes não é.

Deixem-me repisar a mesma tecla que repiso aqui todo ano. Não gosto da música de bandas como Mastruz Com Leite, Calcinha Preta, Asa de Águia, Limão Com Mel e outras do mesmo naipe. É um tipo de lambada padronizada e repetitiva, boa de dançar, mas sem substância. Não peço a extinção dessa música; eles que se divirtam em paz, no canto deles. O que questiono é a presença dessas bandas (que já vem há anos, sistematicamente) no São João de Campina. Não têm nada a ver com forró, com São João. É o mesmo caso dos shows de música sertaneja paulista ou goiana. Anos atrás, a véspera do São João teve como atração principal um show de Zezé de Camargo e Luciano. É tão absurdo quanto fazer um baile de Carnaval e contratar os Rolling Stones, sob o pretexto de que são a maior banda do mundo.

Existe mercado e público, sim, para a música nordestina. Alguns dos shows com maior público que já vi no Parque do Povo foram shows dos Três do Nordeste, de Elino Julião, de Maciel Melo, de Marinês. A música nordestina trava uma batalha desigual em três frentes, contra três concorrentes: 1) a axé-music baiana e derivados; 2) a música sertaneja das duplas paulistas, mineiras e goianas; 3) o forró-lambada das bandas nordestinas que seguem o modelo avestruz-com-leite. É uma luta desigual porque cada um desses três adversários é na verdade uma “frente” com dezenas de cantores e grupos, tendo na retaguarda um impressionante exército de estações de rádio, patrocinadores de peso, e influência política. A música nordestina, de um modo geral, não tem estas armas. (Eu até dispensaria a influência política, que nunca traz boa coisa)

Recentemente, foi realizada no centro do Recife uma manifestação com dezenas de sanfoneiros, protestando contra a invasão do São João de Caruaru, onde (cito “O Globo”) “o que se viam no palco principal eram bandas totalmente descaracterizadas, com dançarinas seminuas”. Já vi essa mesma presepada no Parque do Povo. Mais uma vez – não tenho nada contra dançarinas seminuas, mas sou contra chamar a isto de forró ou trazê-las para uma festa junina. No show business, contudo, a gente sabe que é o dinheiro quem fala-no-centro. Campina e Caruaru, as cidades que mais defenderam o São João do Nordeste, não deveriam passar por essa vergonha diante do Brasil inteiro.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

0709) Jackson do Pandeiro: regional e pop (26.6.2005)




Muito mais do que Luiz Gonzaga, João do Vale, Ari Lobo, etc., Jackson do Pandeiro exibia duas faces em seu repertório. 

Havia uma face regional, com temas, situações e personagens típicos do Nordeste, e uma face que podemos chamar de “pop”, voltada para assuntos urbanos ou de um universo além-Nordeste, ou então denotando uma mentalidade, uma “atitude” como se diz hoje, que é mais típica da cultura urbana e cosmopolita.

Basta pegar, de um lado, canções que celebram o coco da praia nordestina (“Coco do Norte”) ou o batuque primitivo do sertão (“Êta Baião”) e compará-las com canções que mostram esse mesmo coco chegando aos ambientes sofisticados do Rio de Janeiro (“Coco Social”) e o clássico desafio bem-humorado do Davi nordestino contra o Golias norte-americano (“Chiclete com Banana”). 

Ou pegar uma canção como “Moxotó”, documentário poético das paisagens e da cultura do vaqueiro do sertão, e comparar com “Falso Toureiro”, uma aventura totalmente ficcional onde o vaqueiro se vê num tipo totalmente inesperado de desafio contra o touro.

A sátira bem-humorada à brabeza da mulher também vem com duas faces. Em “A mulher do Aníbal”, ele brinca com a nordestina braba que pega o pobre do Zé do Angá (ou “Zé do Hangar”, segundo algumas versões) e dá-lhe uma surra de deixar quase morto. 

Um reverso moderno e cosmopolita desta situação é “A mulher que virou homem”, onde a esposa do protagonista “foi pra Hollywood fazer uma operação” e volta dizendo “de hoje em diante meu nome é João”, e que “você me paga tudo que me fez”. A primeira canção parece um folheto de cordel; a segunda é uma história em quadrinhos.

O contraste de valores entre Nordeste e Rio fica bem claro noutra parelha de canções que mostram a “aclimatação” lenta e gradual do paraíba aos costumes cariocas. Em “Xote de Copacabana”, o paraíba se confessa desconcertado e até escandalizado com o que vê na praia: mulheres de biquíni, coisa e tal. 

Em “Falsa Patroa”, ele já está dando uma de esperto e se sai com desculpas tipicamente cariocas: “Doutor Delegado, eu não tive culpa... Foi a sua criada quem me convidou, dizendo que o apartamento era dela...”

Nenhum contraste me parece tão divisor-de-águas, no entanto, quanto o que podemos ver entre um daqueles forrós clássicos (“Forró em Limoeiro”, “Forró em Caruaru”), que descrevem o ambiente típico do forró nordestino, e a obra-prima de Rosil Cavalcanti “Forró na Gafieira”. 

Ali, o paraíba vai a uma gafieira em Jacarepaguá, perde a timidez e dá um show no salão: “Eu peguei logo uma escurinha, e mandei passo de coco que foi um chuá!” O dono da casa pede à orquestra que pare, vai no meio do salão, admirado, pede ao pau-de-arara que faça aquilo de novo, e ele encerra: “Falando assim, parece brincadeira: mas num instante a gafieira virou um forró!” 

Documento histórico da miscigenação cultural entre os coquistas nordestinos e os sambistas cariocas. Um romance que ainda espera para ser escrito.







0708) As idéias de Neil Gaiman (25.6.2005)



Em seu blog pessoal, Neil Gaiman, autor de Coraline e de Deuses Americanos, comentou recentemente a pergunta que se faz aos escritores: “De onde você tira suas idéias?” Ele faz um interessante “balanço” das fórmulas preferidas por quem pratica a literatura fantástica, principalmente nos quadrinhos ou nas histórias infanto-juvenis. A mais famosa delas é “E se?...” (“What if...?”). E se um dia você acordasse e descobrisse que tinha asas? E se sua irmã virasse um rato? E se você descobrisse que seu professor estava planejando matar e comer um dos alunos da turma, mas você não soubesse qual deles? Outra pergunta eficaz é “Se ao menos...” (“If only...”). Se ao menos a vida real pudesse ser como um musical de Hollywood. Se ao menos eu pudesse diminuir até ficar do tamanho de um botão. Se ao menos eu tivesse um fantasma que viesse fazer meu dever-de-casa.

Outra pergunta que dá um bom ponto de partida, segundo Neil Gaiman, é “Fico imaginando...” (“I wonder...”). Fico imaginando o que será que ela faz quando está sozinha em casa. Outra muito boa é “Se continuar assim” (“If this goes on...”). Se continuar assim, daqui a pouco os telefones vão estar conversando uns com os outros e dispensando os intermediários, e também “Não seria interessante...?” (“Wouldn’t it be interesting...?”). Não seria interessante se o mundo tivesse sido um dia governado pelos gatos?

Perguntas assim são as que os escritores de FC se fazem constantemente. O escritor tradicional costuma começar com uma história ou com personagens. O escritor de ficção fantástica começa com uma idéia fora-do-comum; os personagens e a história vêm depois. São duas atitudes literárias completamente diversas: a primazia dos personagens e do estilo, e a primazia da história. Há pessoas capazes de saborear estes dois modos (eu me considero uma delas), mas por uma certa especialização mental que ocorre na juventude há pessoas que parecem totalmente incapazes de enxergar valor num dos dois.

Há leitores de Isaac Asimov que não suportam Machado de Assis: “Toda história do cara é igual, é só triângulo amoroso, adultério...” E vice-versa: “Esse Asimov escreve muito mal, os personagens mudam de nome mas são todos idênticos”. São os pontos extremos de uma escala de visão: um só enxerga o infravermelho, o outro só enxerga o ultravioleta. Se o livro não tiver nenhuma criatividade na freqüência de onda a que o leitor está acostumado, não adianta ser uma obra-prima em outras áreas, porque esse leitor específico nem vai perceber.

No caso de Neil Gaiman, que trabalha com quadrinhos, literatura infanto-juvenil e literatura fantástica, é inevitável que suas idéias iniciais tenham este cunho fantástico, meio absurdo. É o universo de Kafka, Lewis Carroll. Cada uma das idéias acima pode resultar num bom ou mau livro, mas alguns leitores sentem, instintivamente, que “a idéia é legal”, que tem tudo para resultar numa história diferente e que diga algo de novo.

0707) O mistério de Kryptos (24.6.2005)


(Kryptos)

Os especialistas o colocam entre os dez códigos não-decifrados mais misteriosos de nosso tempo, comparável ao “Manuscrito Voynich” (v. artigo em 14.8.2004). Ao contrário deste, contudo, Kryptos tem autor conhecido e vivo: é o escultor americano Jim Sanborn, de Washington, que contou com a ajuda do criptologista Ed Scheidt, na época chefe do Departamento de Criptografia da CIA. “Kryptos” é um conjunto de objetos espalhados pela sede da CIA em Langley (Virginia), dos quais o mais importante é uma escultura em metal com mais de 2 metros de altura, como uma folha de papel dobrada em forma de S, coberta de letras. O conjunto todo contém milhares de caracteres em código com pelo menos quatro partes distintas, e foi instalado no QG da CIA em 1990, ao preço de 250 mil dólares.

A idéia de Sanborn parece ter sido a de plantar, no meio dos maiores especialistas em códigos dos EUA, uma mensagem misteriosa para provocar sua curiosidade e pôr à prova seu talento. O próprio Sanborn confessa ter achado que eles levariam alguns meses para solver o quebra-cabeça; quinze anos se passaram, e apenas três partes foram decifradas (por David Stein, da CIA, em 1998, e depois por Jim Gillogly, em 1999), restando um bloco de 98 caracteres que ninguém sabe o que significam. Eis o trecho não-decifrado de Kryptos: “?OBKR UOXOGHULB SOLIFBBWFLRVQQ PRNGKSSO TWTQSJQSSEKZZ WATJKLUDIA WINFBNYP VTTMZFPKW GDKZXTJCDIG KUHUAUEKCAR”. Eu tenho cá uma vaga noção do que quer dizer, mas não quero estragar o prazer dos colegas.

Criptografia é um negócio meio chato, pra quem não gosta. Pra quem gosta, é mais fascinante do que contar dinheiro. Que o diga Gary Philips, um cara de 27 anos que largou sua companhia de software em Michigan para se dedicar totalmente à decifração do enigma. Diz ele: “Kryptos me trouxe de volta à minha primeira paixão. Senti-me novamente livre para enfrentar um desafio sem ninguém para me dizer faça-assim ou faça-assado”. Pessoas como Sanborn ou Philips são indivíduos que (teoria minha) têm muito desenvolvida a “faculdade letranumérica” do lado esquerdo do cérebro, pessoas que são boas com letras e números, e extraem da manipulação destes signos um prazer quase erótico. Gente como Jorge Luis Borges, Edgar Poe, Raymond Queneau, Guimarães Rosa, Ellery Queen, Julio Verne, Georges Perec e o locutor que vos fala.

Kryptos ganhou enorme publicidade quando foi revelado que Dan Brown, autor do Código da Vinci (livro recheado de criptogramas) reproduziu trechos da escultura na capa da edição americana de seu livro. Quem quiser se aprofundar vá ao saite da criptologista Elonka Dunin, que tem uma fartura de informações e fotos: http://www.elonka.com/kryptos/. E não venham me perguntar para que serve isso. É como o xadrez, as palavras cruzadas, os palíndromos e anagramas, a poesia concreta, os trava-línguas. Serve para fazer cosca num pedaço do cérebro que umas pessoas têm e outras não.

0706) O patriotismo do gueto (23.6.2005)




(A pátria de Asterix)

Alguém famoso já disse que o patriotismo é o derradeiro refúgio de um canalha. A frase é meio forte, porque conheço muita gente patriota e sincera. Mas a verdade é que costuma-se invocar o patriotismo quando se trata de fazer sacrifícios pessoais (tipo pagar impostos ou ir para a guerra) em nome de uma entidade geográfica qualquer. 

Se alguém me gritasse: “O Brasil foi invadido! Tome aqui um fuzil e uma farda!” eu diria: “Meu amigo! Eu não tenho jeito para essas coisas, mas se precisarem de alguém pra compor um hino guerreiro, é comigo mesmo!”.

Existem dois tipos de patriotismo, aos quais eu chamo de “patriotismo Júlio César” e “patriotismo Asterix”. 

O patriotismo à la Júlio César é o patriotismo arrogante, expansionista, conquistador. Amo meu país porque é o maior país do mundo, o mais bonito, o mais livre, o mais rico, o mais forte, o mais cheio de qualidades, e estou disposto a ajudá-lo nessa difícil missão de sair invadindo os países discordantes e libertando-os para que fiquem iguaizinhos a nós.

O patriotismo à la Asterix é o daqueles caras que moram num lugarejo e têm milhares de reclamações e críticas à geografia do lugarejo, à administração pública, à flora e à fauna, aos hábitos sócio-culturais, mas ao primeiro sinal de que um país de fora está querendo anexar o lugarejo, os caras bufam de raiva e vão à guerra armados de ancinhos, enxadas, foices e (para as damas) rolos de amassar pastel e cabos de vassoura. Não se iludem nem um pouco quanto às virtudes e qualidades do lugarejo onde vivem, mas lutarão até a morte para terem o direito de resolverem eles próprios os seus problemas.

Nosso patriotismo brasileiro é contaminado pela retórica vazia e pelos exageros hipócritas dos políticos, mas os poetas têm também sua culpa no cartório. Olavo Bilac, um dos maiores que tivemos, perpetrou aquele famoso poema demagógico (“Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste...”) onde nos convoca para amar a vegetação brasileira. 

Este patriotismo de livro escolar com Hino Nacional e hasteamento da bandeira teve, no entanto, seu lado positivo. Foi capaz de fixar na mentes de gerações sucessivas a importância desta ficção geopolítica chamada “Brasil”, e bem ou mal precisamos dela, não porque corresponda a uma visão muito profunda da realidade, mas porque temos ficções concorrentes batendo à nossa porta, doidas para tomar o lugar da que herdamos de nossos avós.

Pátrias são ficções. São conceitos úteis, desde que não se transformem em símbolos absolutos. 

As pátrias não têm amor maternal por nós. O Brasil não é uma mãe mamífera cuidando de nós, seus filhotinhos travessos. É uma convenção geopolítica onde grupos de indivíduos se alternam no comando do Poder. E não me refiro ao Governo eleito: o Poder é algo mais amplo, mais disseminado e mais inoperável do que o Palácio do Planalto. 

Guardem o patriotismo para o Planeta Terra, colegas. Tudo que for menor que ele é gangue de bairro.





0705) Michael Jackson é inocente (22.6.2005)



Na mesma semana em que Mike Tyson sofria um melancólico e humilhante nocaute em sua mais recente tentativa de retorno ao ringue, Michael Jackson foi absolvido da acusação de pedofilia. Fiquei tão surpreso com este resultado quanto a maioria das pessoas, mas me parece óbvio que Jackson é um cara de 46 anos com o intelecto e a sexualidade de um cara de dez. Não é um desses pedófilos frios e cruéis que se deleitam violando crianças: é uma criança ele próprio, encalhado num pequeno círculo de perversõezinhas de descoberta genital, mescladas com ternura infantil e narcisismo. Como diria Olavo Bilac, Jackson não é bom nem é mau: é triste e humano.

A absolvição, pelo que andei lendo na imprensa, se deu basicamente porque o promotor Thomas Sneddon foi com muita sede ao pote. Muitas das testemunhas da acusação acabaram dando depoimentos a favor de Jackson, às mãos do advogado de defesa Thomas Mesereau. E acima de tudo o garoto apontado como vítima e sua mãe foram vistos pelo júri como pessoas muito pouco confiáveis. A mãe, em especial, parece ter um longo histórico de tentativas de extorquir dinheiro de gente famosa. É uma tática muito comum no show-business e atividades parecidas: as pessoas conseguem acesso ao Famoso, paparicam, adulam, tornam-se íntimas, e daí a pouco aparecem grávidas, ou pegam uma briga e deflagram um processo por maus tratos, ou caem fora e escrevem um best-seller escandaloso revelando detalhes íntimos do Famoso. O mundo está cheio de gente que topa tudo por dinheiro.

Acontece que o promotor Sneddon pôs o carro adiante dos bois, na sua impaciência em condenar o cantor. Dele, disse Michael Walsh no saite “World Socialist”: “Na brutalidade demonstrada por Sneddon é possível ver em microcosmo todo o caráter da elite governante norte-americana: ignorante, irresponsável, rancorosa, perseguindo sem descanso qualquer pessoa que pareça encarnar a oposição ou a contracultura. Por que Jackson estava, de fato, sendo processado? Porque seu estilo de vida é diferente, e até bizarro; porque é visto como gay; e porque é negro”. Ocorreu o mesmo que no caso O. J. Simpson, um caso onde a condenação parecia certa, mas a polícia cometeu tantos absurdos na manipulação das provas materiais (na impaciência de condenar o Negro Famoso) que desmoralizou-se a si própria.

Jackson é um personagem trágico que parece criado numa parceria entre Shakespeare e Andy Warhol. Seu rosto de caveira, coberto por uma pele esticada e amarelecida, lembra o da múmia de Tutancamon, o faraó-menino. Emocionalmente arrasado, cheio de dívidas, isolado do mundo real por numa ilha-da-fantasia auto-imposta, parece rumar para uma decadência irremediável. Uma pena para quem o viu na época de “Beat it” ou “Billy Jean”. Sua absolvição neste processo foi uma simples trégua. Espero estar errado, mas acho que seus inimigos ainda o destruirão, e com munição fornecida por ele próprio.

0704) Destampou a caçarola (21.6.2005)


(o deputado Roberto Jefferson)

Meu vôo para o Rio fez escala em Brasília no dia em que o Deputado Roberto Jefferson prestou depoimento na Comissão de Ética da Câmara. Tivemos quase duas horas de atraso. O piloto avisou que havia mais de 15 aviões à nossa frente na lista de decolagem, e um engraçadinho lá atrás comentou: “É o pessoal do PT abandonando o barco”. Depois, outro engraçadinho comentou que de agora em diante a palavra “corruto” tem que se escrever “corrupto”, porque o PT não pode ficar de fora. E quem está divulgando estas graçolas? Eu, que voto no PT há mais de vinte anos (com ocasionais puladas-da-cerca em benefício do PSDB).

A defesa da honestidade e da ética, que o PT sempre ergueu como bandeira, foram uma pedra no sapato de muitos políticos salafrários. Esse discurso ético, se repetido com a devida insistência, acaba incomodando indivíduos que passam a vida toda mergulhados no toma-lá-dá-cá dos favores por baixo do pano, das comissões de 10%, das concorrências fajutas, das sobras do caixa de campanha, das falcatruas que todo mundo sabe e finge que não vê. Eles não ligam a mínima para honestidade. Só ficam irritados porque percebem que aqueles comunistas metidos a besta acham-se superiores a eles. E, como é sabido, o ideal do desonesto é propagar a noção de que todo mundo é desonesto. Quanto mais esta idéia se espalha, mais ele se sente acobertado e autorizado a ir em frente.

O que tem acontecido em certos setores do poder em Brasília me parece aquelas histórias em que numa turma de amigos tem um que não bebe, não fuma, não joga e não freqüenta a Zona. Na primeira chance que têm, os amigos embebedam o cara e o levam para o Cabaré de Zefa, encorajando-o a todas as patifarias. No dia seguinte, mostram-lhe as fotos: “Tá vendo, camarada? Você não é melhor do que ninguém. Você é igual à gente”.

O PT tem nobres intenções e inevitáveis defeitos; o mais recente deles é ter chegado ao Poder. No Poder, o sujeito percebe mais do que nunca que vive entre feras, e sente uma augustiana “necessidade de também ser fera”. O pessoal do PT traz consigo aquela flama incorruptível de uma esquerda que se criou lendo Gorki e Maiakóvski. Um idealismo humanista, baseado na crença (talvez ingênua) de que os seres humanos são fundamentalmente bons.

Acontece que, em política, ninguém é mais honesto do que os aliados que arranja. Fazer alianças é (para usar uma oportuna e reveladora metáfora do presidente Lula) passar um cheque em branco. Tudo que o aliado fizer, estamos assinando embaixo. E no Brasil ninguém governa se não se aliar com a Direita. Não a Direita nazistóide dos integralistas ou da TFP: mas a Direita anti-ideológica que há séculos se dedica à atividade predatória de enriquecer por todos os meios disponíveis. O Brasil é governado há 500 anos por gente que topa tudo por dinheiro, e que sussurra sem parar no ouvido de cada recém-chegado ao Palácio: “Deixa disso. Você é igual à gente”.

0703) Lugares Sagrados (19.6.2005)


(Gruta de Lourdes)

Ouvimos isto com freqüência: existem lugares sagrados, lugares onde há séculos se praticam rituais, peregrinações ou cultos, e que estes lugares encerram em si um tipo especial de energia psíquica. Estão, por assim, dizer encharcados de emoção humana , dos resíduos emocionais dos milhões de pessoas que por ali passaram – mas não “passaram”, simplesmente como quem passa por uma estação do metro. Vieram até ali com a finalidade de viver ali uma das experiências mais intensas e profundas de suas vidas; e isto deixa marcas. Eu acho tudo isto plausível, quando penso em lugares como a Gruta de Lourdes, como o Juazeiro do Padre Cícero, como Stonehenge, como o Caminho de São Tiago, como a Capela Sistina.

Os que acreditam no sobrenatural postulam a existência de um “campo psíquico” ou coisa parecida onde essa energia fica acumulada, ou pelos menos resíduos dela. Acho meio fácil póstular a existência de coisas cuja existência não podemos provar. Até indícios em contrário, o Sobrenatural e o Espiritual são para mim criações literárias: coisas que inventamos por conta própria porque convém à nossa imaginação e às nossas crenças, e se passamos a acreditar na sua existência é problema nosso.

Eu proponho uma outra maneira de ver a questão. Não existe nenhum “éter” ou “plano espiritual” onde essa energia emocional se acumula. Existe, contudo, um campo material onde a existência dela pode ser facilmente detectada, medida, pesada, manipulada por estatísticas e descrita pelas fórmulas tão ao gosto dos materialistas da Ciência. Esse campo é o da Cultura. Cultura entendida no sentido de pensamentos compartilhados, de idéias coletivamente formadas e usufruídas, de manipulação sensorial (através de palavras, sons, imagens fixas ou em movimento) das idéias e emoções. O verdadeiro “campo psíquico” que dá significação aos Lugares Sagrados não está no mundo do espírito, e sim no mundo das preces, das lendas, das histórias, das fotografias, das estatuetas, dos filmes, dos documentários, dos livros, dos souvenirs, das relíquias, de todos os objetos materiais que nos evocam um lugar de adoração (seja a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, seja a Kaaba de Meca, seja o Santo Sepulcro) e imediatamente despertam em nossa memória uma gigantesca cadeia de associações de idéias, com tudo que nossa Cultura nos injetou sobre aquele assunto, ao longo da toda a vida.

A energia psíquica dos Lugares Sagrados não está acumulada neles, e sim nas imagens deles que circulam aos milhões pelo mundo afora. É a energia emocional despertada num cristão pela simples visão de uma foto da Gruta de Fátima ou da Praça de São Pedro. Quando ele tem a chance de ir pessoalmente a estes lugares, sua emoção se intensifica, e ele pensa que é porque existe “uma energia pairando no ar”. A energia paira, sim, e muito forte: mas paira em toda a estrutura profana que deve sua existência a essa crença no sagrado. Por favor, não me chamem de cínico se eu afirmar que a maior prova da existência do mundo espiritual são os bilhões de dólares que ele movimenta por ano.

0702) A flor de Feynman (18.6.2005)



Um dos clichês mais irritantes que vejo por aí é quando alguém diz que os cientistas são indivíduos frios, objetivos, sem sensibilidade e sem emoções. “Como?! O sr. é químico, e gosta de música clássica? Mas que coisa surpreendente!” Alguém que diga coisas desse tipo perde algumas centenas de pontos em meu conceito. Um dos meus heróis no mundo da ciência é Richard Feynman, que ganhou um Prêmio Nobel de Física, e foi um dos indivíduos mais inteligentes, informais e irreverentes que a ciência americana já produziu. Recomendo com insistência sua autobiografia, Surely you’re joking, Mr. Feynman!, da qual há uma tradução portuguesa, Certamente está a brincar, Sr. Feynman! O título tem tudo a ver com o personagem. Feynman costumava dizer ou fazer coisas que chocavam, escandalizavam ou deixavam perplexas as pessoas; coisas que num primeiro instante pareciam absurdas. E que depois, bem examinadas, mostravam ser verdades límpidas, lógicas, irretorquíveis.

Falei no Prêmio Nobel para não pensarem que Feynman era um maluco-beleza, porque em seu livro ele conta como andava de quatro pelo tapete para descobrir se farejava tão bem quanto um cachorro, ou como, quando estudava em Princeton, passava dias examinando o comportamento das formigas para saber como elas tomavam decisões. Ou como fazia cálculos de cabeça que deixavam espantados os colegas, usando truques simples de substituição; ou como desenvolveu uma técnica própria para descobrir a combinação de um cofre. Feynman morou no Brasil e tocou tamborim numa escola de samba, mas... esta é outra história.

Em outro livro, The Pleasure of Finding Things Out: The Meaning of it All, Feynman se queixa de um amigo seu, artista, que diz: “Vocês cientistas não sabem entender a beleza de uma flor: vocês pegam a flor e separam parte por parte, até ela perder a graça”. Ele diz: “Ora, tudo que outras pessoas vêem numa flor eu também vejo, mas vejo muito mais. Eu posso imaginar as estruturas das células lá dentro, e ver como são bonitas. A flor tem beleza numa escala de centímetros, mas também numa escala muitíssimo menor. O fato de que a flor é capaz de desenvolver cores para atrair insetos também é interessante. Isto quer dizer que os insetos enxergam as cores. Será que eles têm também um senso estético? Como se vê, o conhecimento científico só faz aumentar a beleza e o mistério das coisas, não vejo como possa diminuí-lo”.

Eu me arrisco a dizer a Feynman que ele talvez não tenha percebido que grande parte das pessoas que elogia a beleza não se interessa por ela. Gostam das flores e dos crepúsculos como um enfeite para seu lazer, como algo que está ali com a função de proporcionar-lhes deleite. Grande parte da apreciação estética não tem nada dessa curiosidade desinteressada de Feynman. É apenas uma fruição egoísta de um prazer socialmente encorajado. Um sujeito só acha mesmo que uma flor é bonita no instante em que admitir que a flor é tão importante quanto ele.