terça-feira, 1 de dezembro de 2020

4647) "Viagem a Altemburgo": uma utopia brasileiríssima (1.12.2020)



Não existe gênero literário mais chato do que a Utopia. (Existem, sim, e são muitos – mas qualquer indivíduo que já tenha lido meia dúzia de romances utópicos sente um impulso instintivo em concordar com isto.) 
 
Um romance utópico narra basicamente a chegada imprevista de um visitante a uma cidade (reino, país) de cuja existência ele não suspeitava, sua recepção por algum tipo de cicerone local, e um passeio pelo locus utópico, acompanhado de longuíssimas explicações sobre as vantagens do sistema local. 
 
É típico do romance utópico que o visitante seja um mero receptáculo das informações fornecidas pela população local, via cicerone. De vez em quando acontece que ele se meta numa aventura passageira ou num leve mal-entendido, cujo efeito narrativo é mínimo, serve apenas para que novas coisas lhe sejam explicadas.
 
Um esforço notável, embora não totalmente bem sucedido, para escapar dessa camisa-de-força demonstrativa, é o romance Viagem (São Paulo: Martins, 1955) de Guilherme Figueiredo, republicado, com modificações, como Viagem a Altemburgo (Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990). 
 
O crítico Wilson Martins, cujas avaliações tenho sempre em alta conta, diz a respeito da obra:
 
Todo o atrativo do romance utópico reside, compensando a sua carência de humanidade, na inteligência de sua crítica, na finura da sua ironia. Nesse particular, coloco Viagem, sem hesitação, entre os mais perfeitos da espécie. (...) [E]scrito em inglês, o livro de Guilherme Figueiredo já lhe teria trazido celebridade internacional e o aplauso de, pelo menos, todos os admiradores de Swift, de Huxley, de Orwell.
(“História da Inteligência Brasileira”, vol. VII, págs. 362 e seguintes)

 
Para vocês verem que até um crítico respeitável escorrega nesse clichê bobão do “se fosse escrito em inglês”.
 
Viagem a Altemburgo conta a história de um paraquedista brasileiro cujo avião cai num ponto indefinido da Antártida. Ele é salvo pelos habitantes de Altemburgo, uma cidade-estado fundada séculos atrás por pessoas insatisfeitas com a civilização ocidental, e que existe às ocultas.
 
O visitante recebe o nome local de “Amicus” (muitos nomes próprios em Altemburgo têm forma latinizada) e fica hospedado na casa do prefeito, Evandrus, que tem uma filha lindíssima, Luscínia, e uma espécie de assistente-discípulo, Leo. Esses três, principalmente, irão ciceronear Amicus em suas andanças.
 
Uma das primeiras coisas que ele percebe é que as pessoas em Altemburgo se vestem de maneira totalmente extravagante e pessoal; cada um traja o que lhe der na telha, e o paraquedista, logo nos primeiros capítulos, conta:
 
Ganhei uma túnica de linho, sandálias com fitas de trançar nos tornozelos, e recusei um diadema de miosótis que a banhista-chefe me ofereceu. (p. 15)
 
E depois:
 
Alguém suspendeu a cortina lateral da sala e entrou. Era um jovem de seus trinta anos, de quase dois metros de altura, com grossos bíceps à mostra, tostados de sol e ornados de argolas de metal. Vestia um saiote vermelho e branco, caído até as coxas, e atado à cintura por um cordão também vermelho e branco, de onde pendia uma sacola. Seus cabelos, arrumados em cachos, desciam encaracolados até a nuca. Uma fita cingia-lhe a fronte; trazia coturnos de corda e um bastão longo e nodoso. Era um tipo extraordinariamente belo, de duros olhos azuis dardejantes e forte maxilar cerrado. (p. 25)
 
A variedade de trajes é grande, mas na maioria são variações de trajes greco-romanos. É outro lugar comum na ficção científica, inclusive em inglês: a tentativa, raramente bem sucedida, de visualizar roupas plausíveis para pessoas do futuro, ou de civilizações imaginárias. (Valeria a pena pegar dois clássicos da FC norte-americana, Ubik de Philip K. Dick, e Triton de Samuel R. Delany, e fazer uma análise comparativa dos figurinos que eles sugerem.)
 
As pessoas levam Amicus para toda parte, explicam-lhe a origem histórica de Altemburgo, fazem-no participar de cerimônias públicas, dão-lhe acesso a documentos... e assim vai sendo cumprido o estatuto narrativo do romance utópico. Ou talvez fosse melhor dizer “estatuto descritivo”, porque não acontece muita coisa, a rigor, a não ser a ida de Amicus de ambiente em ambiente, de conversa em conversa.


(Guilherme Figueiredo, 1915-1997)
 
Guilherme Figueiredo cita nominalmente, e demonstra conhecer bem, a literatura utópica que o precedeu: H. G. Wells, Edward Bellamy, Thomas Morus, Aldous Huxley, Samuel Butler... O narrador demonstra uma certa consciência da natureza do gênero literário onde caiu de paraquedas:
 
O velho falava na certeza do meu interesse, convicto de que me prestava informações da maior utilidade. Mas enquanto isto, eu refletia sobre a espécie de mania pedagógica que atacava todos os altemburgueses e os conduzia sempre a um permanente desejo de expor, contar e exibir. (p. 159)
 
É a prosa vigorosa de Figueiredo que diferencia seu livro, positivamente, na comparação com outros clássicos do utopianismo brasileiro: São Paulo no Ano 2000 (1909) de Godofredo Barnsley, O Reino de Kiato (1922) de Rodolfo Teófilo ou A Liga dos Planetas (1923) de Albino Coutinho.
 
O livro é bem superior a todos estes, em termos de empuxo narrativo, de riqueza na observação de detalhes, de verossimilhança humana na narração de pequenas cenas, e principalmente nas páginas e mais páginas de críticas à sociedade brasileira da época do autor, críticas acaloradas, irônicas, sarcásticas, emotivas, sensatas ou não, arrazoadas ou não, mas demonstrando uma energia literária ausente nos exemplos acima. 
 
Wilson Martins se refere com entusiasmo ao Capítulo X do livro, onde Amicus produz uma violenta catilinária contra “a Civilização da Lata”, que é a civilização moderna. Diz o crítico, após citar parágrafos de Figueiredo:
 
A esse mundo que já existe, e no qual vivemos uma civilização de lata, não é difícil prever um porvir ainda mais enlatado: futuramente, até os banhos de sol e de mar virão enlatados, servidos a domicílio, em latas de quilo e de meio quilo... Faremos, igualmente, estações de água em lata, sem sair do apartamento, e, como a literatura já começa a ser gravada (o que Evandrus ainda não sabia), teremos, dentro em pouco, o livro enlatado: as livrarias serão substituídas por casas de discos, transformando-se em livrarias enlatadas...
(“História da Inteligência Brasileira”, vol. VII, pág. 364)
 
Figueiredo escrevia em 1955, Martins comentava em 1979: a lata de conservas lhes servia como símbolo de um futuro estandardizado, massificado, artificial.



(Uma estação de águas, em Oito e Meio de Fellini)
 
Curiosamente, um dos exemplos de experiências humanas a serem artificializadas, segundo Martins, são as “estações de águas”, que imagino serem aqueles períodos que as pessoas passam hospedadas em hotéis de cidades onde há fontes de água minerais com propriedades balsâmicas ou terapêuticas. Coisa mais século-19 eu não consigo imaginar. 

A angústia de Wilson Martins é a angústia de um personagem de Thomas Mann ou Henry James diante da invasão de massificações brutais como os desenhos de Walt Disney, o supermercado e a comida em conserva. No fundo, é a peleja do século 19 contra a década de 1950.
 
É o mesmo receio da novidade que vemos hoje com relação a tudo que é digital, virtual, online, photoshopado. É o receio de quem está se vendo obrigado a sair da “zona de conforto” (uma das expressões definidoras de nossa época) para a terra de ninguém, para um planeta onde o real e o fake são indistinguíveis, onde a bússola pode apontar em qualquer direção, um mundo conflagrado “where black is the color, where none is the number”, no dizer de Bob Dylan.
 
Viagem a Altemburgo é um livro com as limitações de sua época e de seu autor (se me perdoam esse truísmo). Seu defeito mais evidente é o fato de que Guilherme Figueiredo, quando resolve deixar de lado o turismo sociológico, embarca numa love story centrada no mais previsível dos enredos. Amicus, bem brasileiramente, se apaixona para bela Luscínia, a filha do seu anfitrião, consegue levá-la para a cama (por entre véus de elipses), e depois exige que ela pertença a ele, só a ele, pelo simples motivo de que ele a ama.
 
Luscínia tenta explicar-lhe, com riqueza de arrodeios, que lá em Altemburgo as pessoas vão para a cama com diferentes parceiros, sem pertencer a nenhum deles.  Apesar de gostar muito de Amicus, ela acha que se se prender monogamicamente a ele vai causar uma conflagração social em Altemburgo, devido ao tamanho da ofensa. Além do mais, o pobre Amicus tem como primeiro rival possível o jovem Leo, descrito mais acima, o “tipo extraordinariamente belo, de duros olhos azuis dardejantes e forte maxilar cerrado”.
 
Essa situação igualmente século 19 desencadeia, nos capítulos finais, um desfecho aventuroso, cheio de peripécias, fugas, perseguições, tiroteios, mortes.
 
Guilherme Figueiredo é um narrador vigoroso, como já falei, e mesmo sendo ainda engravatado demais para competir com os melhores nessa área, está anos-luz à frente dos nossos utópicos tupiniquins. Seu livro torna-se chato quando ele (ao que me parece) começa a enxertar textos que tinha na gaveta, dando-os como exemplos da literatura de Altemburgo. Aliás, esse defeito era muito mais visível na edição de 1955, como ele próprio reconhece no prefácio que antecede a edição de 1990:
 
O crítico Wilson Martins (...) aconselhou o autor a, em futura edição do livro, suprimir todo um capítulo. A professora Laura de Paula, como leitora de Editora Atheneu-Cultura, sugeriu ao autor a eliminação de trechos e digressões inúteis.
 
Tenho ambas as edições; tendo lido a mais recente, bastaram alguns minutos de comparação para ver que de fato os cortes foram feitos, e em grande benefício do livro.

 
Figueiredo foi autor teatral de sucesso, é um prosador de talento, e devo a ele um dos livros mais divertidos da minha juventude, o Tratado Geral dos Chatos (Rio: Civilização Brasileira, 1962), um volume fininho que passou anos na minha cabeceira, cheio de virtuosismo estilístico e de fina observação dos defeitos humanos.


 
Ele é também, aliás, um dos autores da famosa toada (e “politicamente incorreta”) “Maria Chiquinha” (“Que é que ocê foi fazer no mato, Maria Chiquinha? Eu precisava de cortar lenha, Genaro meu bem...”).
 
Como escritor, demonstra muito mais recursos do que os utopistas brasileiros citados acima. Nem mesmo Rodolfo Teófilo, romancista de sucesso, o supera em sua abordagem do gênero. O humor (sarcástico, ácido) é um dos elementos que o distinguem dos demais utopistas, que tendem a assumir atitudes professorais e moralizantes.
 
“Homem do seu tempo”, Guilherme Figueiredo deixa bem claro o quanto o seu narrador, Amicus, encarna os seus próprios rompantes de perplexidade masculina diante de uma sociedade teoricamente liberal nos costumes. 

Amicus é uma espécie de Nelson Rodrigues ou Adelino Moreira perdido no festival de Woodstock ou na Amorquia (1991) de André Carneiro, escandalizado diante daquele agarra-agarra e perguntando se aquelas pessoas conhecem O Verdadeiro Amor. E Luscínia, a beldade ambicionada, acaba tendo explosões deste tipo:
 
-- Meu pai, perdoa-me, perdoa-me! Só eu sou culpada, só eu... Como poderia prever que este homem, vindo de outra terra, teria por mim estranhos sentimentos? E como imaginar que eu os aprenderia, e o amaria egoisticamente, a ponto de repelir os meus amigos, a ponto de angustiar a todos que me amam?  (p. 198)
 
Toda utopia para nós é uma distopia para o nosso vizinho do lado, e mais: toda Utopia Social reflete apenas os avanços e os recuos mentais do indivíduo que a concebe.
 
 
 
 





Um comentário:

Ricardo Vergueiro disse...

Muito bom artigo! Lembrei de como para mim foi um "cutelo na costela" (rs) ler até o final a Cidade do Sol do Campanella...Jesus, eu pelo menos achei chato pra burro..Rs... Gostei demais das dicas de leitura. Parabéns pelo blog.Abs