“A Terceira Margem do Rio” (Primeiras Estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. (p. 157)
Guimarães Rosa considerava “A Terceira Margem do Rio” um conto na linha do fantástico e certa vez, em conversa comigo, estranhou que eu, um cultor da science fiction, não tivesse reagido com mais entusiasmo a essa história, que conheci de primeira mão (Rosa às vezes me telefonava para eu ir ouvir a leitura de seus contos no Itamarati, ali na Rua Larga). Chegou a insinuar que a escrevera pensando em mim como leitor, o que evidentemente não tomei ao pé da letra. (pág. 10)
Só aparente e enganosamente é que ele se finge de simples, de livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o Primeiras Estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
O fato de que era um piloto experimentado torna a
situação ainda mais arrepiante, porque ele sabia de todos os riscos envolvidos –
eu, por exemplo, não sei.
Guimarães Rosa criou um conto em que um indivíduo
constrói uma canoa especial para si mesmo e parte na direção do rio e nunca
mais volta. Por quê? Para quê? Ele desaparece para sempre nesse rio “largo, de não se poder ver a forma da outra
beira”. Não conheço melhor descrição do espaço sideral.
Ele não perde contato com a terra, no entanto. O filho
(que narra a estória) é vigilante e fica fiel ao sonho do pai, mesmo quando
todo mundo critica o velho, diz que ficou doido, etc. O filho mantém a
retaguarda e a certa altura passa a alimentar o pai, levar-lhe mantimentos,
aceitando que ele permaneça nesse espaço, mas alguém da terra precisa lhe enviar abastecimento.
O pai não volta, e este é mais um dos contos de Guimarães
Rosa em que se começa com uma pergunta mas não se termina com uma resposta, se
propõe um mistério e deixa-se o mistério pairando no ar após o fim do conto. O
conto abre uma porta que não volta a se fechar.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.
("2001, uma Odisséia no Espaço", 1968)
É como aquelas viagens das naves-geração da ficção científica,
uma viagem sem volta, numa espaçonave-cidade onde as pessoas morrem e nascem
durante séculos, sabendo que não voltarão para a Terra; e quando eventualmente
alcançam o seu destino, quem chega lá são os bisnetos ou tetranetos dos
tripulantes que partiram.
O pai parte, o filho fica na margem, tocaiando,
pastorando. O vínculo entre os dois me lembrou O Tempo das Estrelas (“Time for the Stars”, 1956) de Robert
Heinlein. Uma nave sai para colonizar o espaço, e o contato com a Terra é feito
através de dois irmãos gêmeos telepatas (o livro propõe que a telepatia é mais
rápida que a luz). Devido à dilatação do tempo nas viagens espaciais, o gêmeo
que está no espaço envelhece muito lentamente e o que fica na Terra envelhece,
morre, e é com seus descendentes que o outro passa a se comunicar.
Não é exatamente o caso do conto de Rosa, em que a canoa
do pai acaba se parecendo mais com uma Estação Orbital, que nem vai embora para
os confins do Universo nem desce para a Terra – fica só ali, boiando.
Outro aspecto importante é o título do conto. A “terceira
margem do rio” é uma idéia que sugere a existência de uma dimensão a mais. Um
rio é como uma linha reta traçada num papel branco, dividindo aquele espaço em
margem de lá e margem de cá. Muitos analistas do conto chamam a atenção para
esse curioso adjetivo: “terceira”. Lembram que um rio não tem primeira e
segunda margens; não há ordem entre elas; são duas, apenas. Podemos pensar
apenas que a “primeira” é aquela em que estamos, a que é subjetivamente mais
importante, ponto de referência.
O que não deixa de lembrar a velha piada do bêbado, mais
uma vez registrada por Rosa noutro prefácio de Tutaméia, “Nós, os Temulentos”:
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: – Faz favor, onde é que é o outro lado? – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
No índice sugerido ao ilustrador Luís Jardim para a
edição original de Primeiras Estórias,
aparece um homem numa canoa, uma flecha (=indicação do voo espacial), o símbolo
do infinito (frequente nas ilustrações de Rosa) e o símbolo da balança, signo
astrológico. Este símbolo, porém, consta de duas linhas horizontais superpostas
sendo que a de cima se arredonda para o alto.
É como se tivéssemos a indicação de um mundo onde tudo é bidimensional, tudo é horizontal, tudo é plano como na “Planolândia”, a Flatland do clássico ensaio de Edwin Abbott, de 1884, sobre as dimensões do espaço – e esse arredondamento para o alto sugerisse a existência de uma terceira dimensão, uma terceira margem do rio.
É como se tivéssemos a indicação de um mundo onde tudo é bidimensional, tudo é horizontal, tudo é plano como na “Planolândia”, a Flatland do clássico ensaio de Edwin Abbott, de 1884, sobre as dimensões do espaço – e esse arredondamento para o alto sugerisse a existência de uma terceira dimensão, uma terceira margem do rio.
4 comentários:
Bah, seja numa canoa, numa nave, ou nesse texto,
fica-se flutuando entre a 3a margem e a 4a dimensão.
Maravilhoso, seu Braulio!
Muito bom, Braulio, nunca havia pensado nessa visão FC do conto!
Texto deslumbrante!
O voluntário e inexplicável afastamento social do personagem, nesse conto do Rosa, me lembrava o Wakefield, do Nathaniel Hawthorne. Não o havia lido nessa perspectiva de Sci Fi. Ótimo texto, Braulio!
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