(ilustração: Ryuta Iida)
“Escrever é cortar”, disse um escritor que sabia do que
falava. Isso assusta alguns principiantes
para quem o difícil é produzir algo.
Sofrem do problema de Kafka: “Quando
finalmente consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e todo o
esforço recomeça”.
Esse problema, contudo, só afeta metade da população escrevedora. A outra metade é uma cachoeira ininterrupta
de texto que se derrama sobre a página, como uma comporta de Itaipu despejando
um bilhão de litros de tinta por minuto, sem ter a menor noção de como chegar a
um ponto final ou, quando o consegue, sem saber como voltar atrás e reduzir
essa extensão inesgotável de texto para atender aos telefonemas impacientes do
editor que lhe faz a pior das ameaças: “Se não cortar, eu mesmo corto”.
Aliás, poderíamos reescrever assim este último trecho:
“A outra metade é uma comporta de Itaipu despejando um bilhão de
litros de tinta por minuto, incapaz de fazer ponto final ou de cortar algo,
mesmo quando o editor ameaça: – Se não cortar, eu mesmo corto”.
Caímos de 77 palavras para 38, e o essencial
foi dito.
A primeira versão de um texto pode ser cortada e remendada sem
perda de substância, porque o que o autor quer dizer nem sempre
está claro em sua mente no primeiro momento da redação. Um velho princípio básico dos manuais de
roteiro cinematográfico diz algo como: “Não se prenda à primeira versão do
roteiro; ela é aquele momento em que você está explicando a história para si
mesmo”. Primeiras versões estão cheias disso: explicações, reiterações,
raciocínios improvisados que dão a volta ao quarteirão para chegar num ponto
que estava a cinco metros aqui do lado.
Tudo isto é necessário ao se botar as idéias no papel. Depois, arruma-se o conjunto de idéias, joga-se o lixo fora e basta deixar o
essencial.
Todo mundo escreve procurando.
Escreve reproduzindo com palavras uma série de impulsos mentais
desencontrados. Ninguém consegue
produzir o tempo inteiro frases definitivas, reluzentes. Frases desse tipo geralmente levam quinze
minutos de poda e polimento. Podemos imaginar,
é claro, que o autor pensou, repensou, e quando se sentou para escrever já
escreveu a frase definitiva; mas a poda e o polimento existiram do mesmo jeito.
A maioria das pessoas escreve de improviso, ou seja, vai
verbalizando as idéias no instante em que elas lhe ocorrem. Escrevem, como se dizia, “ao correr da
pena”. Nossas idéias, principalmente
nossas idéias ficcionais, nem sempre nos surgem sob a forma de palavras
específicas. É mais comum que surjam
como fragmentos de situações narrativas, cenas semi-visualizadas, vontade de
dizer certas coisas, de registrar emoções, narrar vislumbres de coisas não
acontecidas...
Ou seja: sabemos mais ou menos o que deve acontecer, sentamos
diante do teclado e o resto é improviso.
Como esperar que desse improviso já brotem as melhores frases? Depois do esforço inicial de trazer as coisas
para o papel, começa outro esforço para tornar essas coisas mais parecidas com
o que tínhamos em mente de início. Quando não sabemos o que estamos pensando,
escrevemos pouco, as palavras pingam de uma em uma. Quando sabemos demais, não há dedos nem
teclas que bastem. Já temos tudo pronto
na mente mas é preciso cumprir essa tarefa exasperante de digitar as letras de
uma em uma!
(ilustração: Love Book Folding)
O que cortar? Uma das
primeiras coisas a fazer é cortar aqueles fragmentos do discurso que não dizem nada mas
que nos ajudam a manter o fluxo verbal. (Poderíamos
dizer: “O que cortar? Cortar o que não diz nada e serve somente para manter o
fluxo.")
Coisas como “Para não falar de....”, ”antes de mais nada...”,
“acima de tudo...”, “não é preciso dizer que...”, “é interessante notar que...”. Para que serve isto? Para o mesmo que serve o nosso “hããã...” ou
“humm...” quando estamos respondendo algo em voz alta: para emitir diante do
interlocutor uma falsa verbalização enquanto a verbalização verdadeira está
sendo processada em outro setor da mente.
Serve para dizer algo como “calma, não parei de falar, a vez ainda é
minha, daqui a pouco direi algo que faz sentido”.
E as enumerações? Quando
enumeramos, tendemos a sair enfileirando detalhes, minúcias, fragmentos,
exemplos, imagens, aspectos, até que um abençoado “etc.” estanca a
hemorragia. A maioria, numa segunda
“passada”, pode ir direto para o lixo.
Mais outra: sinônimos. É
muito comum a gente escrever algo como: “Precisamos de uma sociedade mais
justa, mais humana, mais equilibrada, mais democrática, mais sadia, mais
igualitária...” Estamos procurando a
palavra que exprime melhor nosso sentimento, e fazemos uma lista dessas
palavras no correr do texto. Na revisão,
a gente elege uma ou duas palavras e corta o restante.
Num artigo de idéias é bom chegar a uma prosa enxuta, com
variedade de idéias, não de vocabulário.
Uma prosa que diga as coisas com precisão, e, quando elas têm de ser
imprecisas, que sejam ditas com uma imprecisão deliberada.
No caso de textos literários, o momento de cortar é também um
momento de saber que tipo de efeito queremos produzir. O texto literário nem sempre procura a
limpidez. Às vezes queremos exprimir
(através de um personagem ou narrador) uma maneira de dizer as coisas que é
turva, ou prolixa, ou incoerente. Tudo
bem, contanto que, ao sairmos do âmbito do personagem, essas qualidades fiquem
lá com ele.
Já vi muitos autores dizerem que sentem pena de cortar os
próprios textos; me identifico com os que cortam com prazer. São dois prazeres sucessivos: o de derramar
no papel tudo a que temos direito, e depois o de tirar tudo que não serve
mais. São como o prazer de jogar futebol
na lama e de depois tomar um banho num chuveiro bem forte.
Um texto não é uma pintura a óleo onde o que não nos agrada pode
ser coberto com novas camadas. Melhor
vê-lo como um jardim. Os trechos que
estamos cortando são coisas que vão comprometer o que queremos para esse
jardim, seja o rigor ou a espontaneidade, seja a harmonia ou o contraste. Cortar é também uma forma de criar; de dar
realce ao que ficou. Na escrita, o
começo do processo parece com a pintura; o final parece com a escultura.
Sugiro ao leitor interessado neste tema que procure edições
antigas de Tutaméia e de Sagarana, de Guimarães Rosa, pela
Editora José Olympio, ou a edição das Sete noites de Jorge Luís Borges
pela Max Limonad, para ver reproduções em fac-símile dos manuscritos originais,
mostrando os numerosos cortes, consertos e remendos de dois escritores que
sabiam dar peso e função a cada palavra.
(Uma versão
ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Língua
Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, # 59, setembro de 2010.)
(ilustração: Brian Dettmer)
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