Um dos filmes mais modestamente enigmáticos da História do
Cinema é a improvável parceria entre o dramaturgo Samuel Beckett (Prêmio Nobel
de Literatura 1969) e o ator Buster Keaton, o rei das comédias-pastelão do
cinema mudo. Film (1965) dura apenas
22 minutos, pode ser visto online, e não tem nenhum diálogo, o que de certa
forma corresponde ao currículo do ator principal (Keaton) e ao temperamento do
roteirista (Beckett).
O roteiro foi esboçado por Beckett em 1963, e a filmagem
aconteceu em New York, em 1964, com a presença do autor – a única viagem de
Samuel Beckett aos Estados Unidos.
O diretor do filme, Alan Schneider, tinha experiência
apenas teatral, tendo dirigido numerosas montagens da obra de Beckett,
inclusive a estréia de Esperando Godot
no EUA, em 1956. Film é sua criação
cinematográfica mais conhecida.
O filme é a narrativa puramente visual, num ambiente
urbano meio em ruínas, da aparente fuga de um homem encapotado (Keaton), em
plena luz do sol, procurando ocultar-se às vistas de outras pessoas e
trancando-se num quarto, onde aparentemente mora.
Sempre perseguido pela câmera (que entra com ele no
quarto), o homem passa a bloquear tudo que pareça estar observando-o. Coloca
cobertores vedando a janela, o espelho, depois cobrindo a gaiola onde há um
papagaio, e até mesmo o aquário onde um peixinho parece vigiá-lo. Numa cesta no
meio do quarto há um gato e um pequeno cão; o homem leva cada um deles até a
porta e os empurra para o corredor.
Nste trecho há a única ação que um fã de Buster Keaton
pode identificar com suas comédias tradicionais, porque ele põe o gato para
fora, vem buscar o cão, e quando abre a porta para livrar-se do cão o gato
entra de novo. Isso se repete algumas vezes – é uma gag clássica do cinema
mudo.
Depois o homem manuseia e rasga algumas fotografias (que
supostamente reproduzem sua vida desde a infância), e um desenho pregado na
parede. Por fim, a câmera (que estava
sempre às suas costas) mostra seu rosto: ele usa uma venda negra sobre o olho
esquerdo, e quando olha para a câmera vê-se a si mesmo, como se a câmera fosse
seu “duplo”, vigiando-o sem parar.
No saite “UbuWeb” (o “YouTube da vanguarda”) há um relato
do diretor Alan Schneider descrevendo o entusiasmo e o horror de alguém que
está dirigindo um filme-de-verdade pela primeira vez. Exultante por estar
trabalhando com dois dos artistas que mais admirava, ele lamenta a própria
inépcia, a própria inexperiência, e faz comentários tipo: “O segundo dia de filmagem nos trouxe diferentes problemas, mas foi tão
horrendo quanto o primeiro”.
A Wikipedia (na sua versão em inglês) tem um verbete
surpreendentemente longo e opinativo sobre o filme. Um dos comentários mais
interessantes é o que o compara ao poema de Victor Hugo “La Conscience”, em que
o poeta compara a consciência humana a um olho sempre em vigia, um olho que
nunca se fecha. Comparação que não deixa de me evocar a imagem do morcego, no
soneto famoso de Augusto dos Anjos:
A consciência humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
imperceptivelmente em nosso quarto!
O personagem de Buster Keaton consegue se livrar da
janela, do espelho, do cão, do gato, do papagaio, do peixe, até mesmo dos
rostos pintados ou fotografados que o contemplam: mas no final é forçado a
reconhecer a presença, dentro do quarto, da câmera, que age como um sucedâneo
dele próprio. A câmera que, como ele, só tem um olho. A câmera que, como o
morcego, é ao mesmo tempo cega e dotada de um radar próprio.
Não deve ter escapado aos críticos o fato de que o Olho é
uma das mais antigas imagens de Deus, aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo
vigia, tudo fiscaliza, tudo testemunha.
Curiosamente (por uma dessas sincronicidades
serendipíticas na vida de quem escreve) fui consultar online uma resenha de Andrew
Sarris, um crítico que leio com proveito, mesmo que às vezes rilhando os dentes
de irritação. Ele descarta Film como
sendo “um fracasso completo” e observa, com agudeza, que por ser silencioso o
filme abre mão da maior qualidade de Beckett como dramaturgo, que é o seu
diálogo.
Ao lado, porém, ele resenha o filme Marlowe (1969), dirigido por Phil Bogart, com James Garner no papel
do detetive Philip Marlowe. E a certa altura diz:
Vejam só que adendo providencial. O detetive é “o
cavaleiro andante do olho privado e da consciência pública”. Traduzo “private
eye” (=detetive particular) ao pé da letra para manter essa equivalência: o
Olho é a consciência controladora que nos segue, o drone, a câmera da
vigilância.
Dizem que no roteiro original de Beckett para Film aparecia uma citação do Bispo
Berkeley, "esse est percipi" = existir
é ser percebido. (O que lembra a máxima do grande Pudóvkin, cineasta russo: “O ator
não-iluminado não existe”). Todos nós vivemos (diz a tradição) sob o olhar de
Deus, e se sua atenção se desviasse de nossa pessoa por um segundo apenas,
seríamos instantaneamente evaporados. (Não deixa de ser encantadora essa
humaníssima capacidade divina para a distração.)
O roteiro de Beckett prevê estes dois personagens, que
ele chama de “E” (Eye = a câmera) e de “O” (Object = Buster Keaton). “E” sempre
acompanha o personagem filmando-o pelas costas de maneira sorrateira e
implacável; quando “O” percebe sua presença, encolhe-se, assustado, irritado,
pronto para fugir.
Fico imaginando se Beckett terá em algum momento pensado,
trocadilhisticamente, em chamar um destes dois personagens de “I”, que seria ao
mesmo tempo “Eu” e “Olho” (=eye). Um Eu todo encapotado em pleno sol de verão
(como o “homem invisível” de Wells, que precisava cobrir-se de roupas para
ninguém “vê-lo” e perceber que ele é invisível) e um Olho que o persegue
voyeuristicamente, arrastando consigo todos nós, curiosos de saber por que,
para aquele homem, ser visto é algo tão doloroso.
Film é um
desses trabalhos pouco visíveis mas que deixam ecos em obras mais conhecidas –
basta lembrar o caso de Eraserhead (1977),
o filme de estréia de David Lynch, que parece uma glosa e desdobramento de
alguns temas deste curta.
A equipe técnica do filme inclui ainda o diretor de
fotografia Boris Kaufman, russo de nascimento (como o diretor Schneider), e um
dos grandes fotógrafos de cinema de sua geração, com trabalhos do nível de L’Atalante (1934), Sindicato de Ladrões (1954), 12
Homens e uma Sentença (1957), O Homem do Prego (1964).
Curiosamente, Kaufman era irmão do documentarista Dziga
Vertov, o criador do “cinema-olho” soviético com filmes tipo O Homem com a Câmera (1929), cujo título ecoa o do filme de Buster
Keaton The Cameraman (1928).
(O Homem com a Câmera, 1929, Dziga Vertov)
O homem, a câmera, o olho: uma mitologia cinematográfica
que poderia ser mais e mais estendida, sempre evocando a experiência religiosa
de sentir-se vigiado por um Deus, ou a experiência de sentir-se investigado por
um policial, ou a experiência de ser seguido e fotografado por fãs,
jornalistas, paparazzi, curiosos...
Os três principais responsáveis por Film foram homens de vidas atribuladas, sujeitas a acidentes
levemente absurdos, que parecem justificar retrospectivamente seus
temperamentos paranóicos.
(Buster Keaton)
Buster Keaton trabalhou em centenas de comédias
amalucadas, absurdistas, sempre correndo, caindo, chocando-se com objetos, pulando
de edifícios, sendo espancado, atropelado. Diz-se que após sua morte o médico
legista perguntou a sua esposa sobre a ocasião em que ele quebrou o pescoço,
por volta do ano tal-e-tal. Ela desconhecia o fato – sabia apenas que durante
uma filmagem naquele ano ele machucou o pescoço mas no dia seguinte foi
trabalhar normalmente, mesmo reclamando. O pescoço curou-se sozinho.
Keaton assinou um contrato com o estúdio para cristalizar
sua imagem como “o homem que não ria”. Nunca riu num filme. Raramente foi visto
sorrindo em público.
(Samuel Beckett)
Samuel Beckett era um misantropo permanentemente recluso,
com poucos contatos sociais. Embora seus
amigos mais íntimos desmentissem certos mitos em torno dele, sua vida e sua
obra são um longo obituário da comunicação humana. Quando tinha trinta e poucos
anos, Beckett foi esfaqueado na rua por um desconhecido; durante o inquérito,
perguntou ao atacante por quê fizera aquilo, e ele respondeu: “Não sei,
senhor... desculpe”.
(Alan Schneider)
O absurdo também visitou o diretor Alan Schneider. Em
1984 ele estava em Londres, dirigindo uma peça, e atravessou uma rua com a
intenção de postar uma carta para seu amigo Beckett. Esquecido de que a “mão
inglesa” é ao contrário da norte-americana, ele olhou para o lado errado e
morreu atropelado por uma moto.
Um comentário:
Salve, Mestre! Assisti ao filme graças ao seu texto. Parece-me que a recusa de ser visto é expressão de uma pretensa fuga da vergonha. Essa condição inescapável de termos um corpo e de ser um agente que não escapa de olhares que nos avaliam, que nos posicionam, que nos determinam, que nos julgam, que nos limitam, que nos fixam e asfixiam com os seus olhares. A outra recusa do personagem, a de se ver, seria a expressão de uma fuga da culpa. Essa outra condição de termos de fazer escolhas para ser, sem termos o controle de suas consequências. O caráter de ser como uma aposta, um ensaio, uma incerteza e o resultado estar além de nosso controle. Grande abraço!
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