quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

5014) O filme de Samuel Beckett (21.12.2023)




Um dos filmes mais modestamente enigmáticos da História do Cinema é a improvável parceria entre o dramaturgo Samuel Beckett (Prêmio Nobel de Literatura 1969) e o ator Buster Keaton, o rei das comédias-pastelão do cinema mudo. Film (1965) dura apenas 22 minutos, pode ser visto online, e não tem nenhum diálogo, o que de certa forma corresponde ao currículo do ator principal (Keaton) e ao temperamento do roteirista (Beckett).
 
O roteiro foi esboçado por Beckett em 1963, e a filmagem aconteceu em New York, em 1964, com a presença do autor – a única viagem de Samuel Beckett aos Estados Unidos. 
 
O diretor do filme, Alan Schneider, tinha experiência apenas teatral, tendo dirigido numerosas montagens da obra de Beckett, inclusive a estréia de Esperando Godot no EUA, em 1956. Film é sua criação cinematográfica mais conhecida.




O filme é a narrativa puramente visual, num ambiente urbano meio em ruínas, da aparente fuga de um homem encapotado (Keaton), em plena luz do sol, procurando ocultar-se às vistas de outras pessoas e trancando-se num quarto, onde aparentemente mora.
 
Sempre perseguido pela câmera (que entra com ele no quarto), o homem passa a bloquear tudo que pareça estar observando-o. Coloca cobertores vedando a janela, o espelho, depois cobrindo a gaiola onde há um papagaio, e até mesmo o aquário onde um peixinho parece vigiá-lo. Numa cesta no meio do quarto há um gato e um pequeno cão; o homem leva cada um deles até a porta e os empurra para o corredor. 
 
Nste trecho há a única ação que um fã de Buster Keaton pode identificar com suas comédias tradicionais, porque ele põe o gato para fora, vem buscar o cão, e quando abre a porta para livrar-se do cão o gato entra de novo. Isso se repete algumas vezes – é uma gag clássica do cinema mudo.




Depois o homem manuseia e rasga algumas fotografias (que supostamente reproduzem sua vida desde a infância), e um desenho pregado na parede.  Por fim, a câmera (que estava sempre às suas costas) mostra seu rosto: ele usa uma venda negra sobre o olho esquerdo, e quando olha para a câmera vê-se a si mesmo, como se a câmera fosse seu “duplo”, vigiando-o sem parar.




No saite “UbuWeb” (o “YouTube da vanguarda”) há um relato do diretor Alan Schneider descrevendo o entusiasmo e o horror de alguém que está dirigindo um filme-de-verdade pela primeira vez. Exultante por estar trabalhando com dois dos artistas que mais admirava, ele lamenta a própria inépcia, a própria inexperiência, e faz comentários tipo: “O segundo dia de filmagem nos trouxe diferentes problemas, mas foi tão horrendo quanto o primeiro”.
 
A Wikipedia (na sua versão em inglês) tem um verbete surpreendentemente longo e opinativo sobre o filme. Um dos comentários mais interessantes é o que o compara ao poema de Victor Hugo “La Conscience”, em que o poeta compara a consciência humana a um olho sempre em vigia, um olho que nunca se fecha. Comparação que não deixa de me evocar a imagem do morcego, no soneto famoso de Augusto dos Anjos: 
 
A consciência humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
imperceptivelmente em nosso quarto!
 
O personagem de Buster Keaton consegue se livrar da janela, do espelho, do cão, do gato, do papagaio, do peixe, até mesmo dos rostos pintados ou fotografados que o contemplam: mas no final é forçado a reconhecer a presença, dentro do quarto, da câmera, que age como um sucedâneo dele próprio. A câmera que, como ele, só tem um olho. A câmera que, como o morcego, é ao mesmo tempo cega e dotada de um radar próprio. 




Não deve ter escapado aos críticos o fato de que o Olho é uma das mais antigas imagens de Deus, aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo vigia, tudo fiscaliza, tudo testemunha. 
 
Curiosamente (por uma dessas sincronicidades serendipíticas na vida de quem escreve) fui consultar online uma resenha de Andrew Sarris, um crítico que leio com proveito, mesmo que às vezes rilhando os dentes de irritação. Ele descarta Film como sendo “um fracasso completo” e observa, com agudeza, que por ser silencioso o filme abre mão da maior qualidade de Beckett como dramaturgo, que é o seu diálogo. 
 
Ao lado, porém, ele resenha o filme Marlowe (1969), dirigido por Phil Bogart, com James Garner no papel do detetive Philip Marlowe. E a certa altura diz:




Vejam só que adendo providencial. O detetive é “o cavaleiro andante do olho privado e da consciência pública”. Traduzo “private eye” (=detetive particular) ao pé da letra para manter essa equivalência: o Olho é a consciência controladora que nos segue, o drone, a câmera da vigilância. 
 
Dizem que no roteiro original de Beckett para Film aparecia uma citação do Bispo Berkeley, "esse est percipi" = existir é ser percebido. (O que lembra a máxima do grande Pudóvkin, cineasta russo: “O ator não-iluminado não existe”). Todos nós vivemos (diz a tradição) sob o olhar de Deus, e se sua atenção se desviasse de nossa pessoa por um segundo apenas, seríamos instantaneamente evaporados. (Não deixa de ser encantadora essa humaníssima capacidade divina para a distração.) 
 
O roteiro de Beckett prevê estes dois personagens, que ele chama de “E” (Eye = a câmera) e de “O” (Object = Buster Keaton). “E” sempre acompanha o personagem filmando-o pelas costas de maneira sorrateira e implacável; quando “O” percebe sua presença, encolhe-se, assustado, irritado, pronto para fugir. 
 
Fico imaginando se Beckett terá em algum momento pensado, trocadilhisticamente, em chamar um destes dois personagens de “I”, que seria ao mesmo tempo “Eu” e “Olho” (=eye). Um Eu todo encapotado em pleno sol de verão (como o “homem invisível” de Wells, que precisava cobrir-se de roupas para ninguém “vê-lo” e perceber que ele é invisível) e um Olho que o persegue voyeuristicamente, arrastando consigo todos nós, curiosos de saber por que, para aquele homem, ser visto é algo tão doloroso. 




Film é um desses trabalhos pouco visíveis mas que deixam ecos em obras mais conhecidas – basta lembrar o caso de Eraserhead (1977), o filme de estréia de David Lynch, que parece uma glosa e desdobramento de alguns temas deste curta.
 
A equipe técnica do filme inclui ainda o diretor de fotografia Boris Kaufman, russo de nascimento (como o diretor Schneider), e um dos grandes fotógrafos de cinema de sua geração, com trabalhos do nível de L’Atalante (1934), Sindicato de Ladrões (1954), 12 Homens e uma Sentença  (1957), O Homem do Prego (1964). 
 
Curiosamente, Kaufman era irmão do documentarista Dziga Vertov, o criador do “cinema-olho” soviético com filmes tipo O Homem com a Câmera  (1929), cujo título ecoa o do filme de Buster Keaton The Cameraman (1928). 



 
(O Homem com a Câmera, 1929, Dziga Vertov)

 
O homem, a câmera, o olho: uma mitologia cinematográfica que poderia ser mais e mais estendida, sempre evocando a experiência religiosa de sentir-se vigiado por um Deus, ou a experiência de sentir-se investigado por um policial, ou a experiência de ser seguido e fotografado por fãs, jornalistas, paparazzi, curiosos...
 
Os três principais responsáveis por Film foram homens de vidas atribuladas, sujeitas a acidentes levemente absurdos, que parecem justificar retrospectivamente seus temperamentos paranóicos.



(Buster Keaton)
 

Buster Keaton trabalhou em centenas de comédias amalucadas, absurdistas, sempre correndo, caindo, chocando-se com objetos, pulando de edifícios, sendo espancado, atropelado. Diz-se que após sua morte o médico legista perguntou a sua esposa sobre a ocasião em que ele quebrou o pescoço, por volta do ano tal-e-tal. Ela desconhecia o fato – sabia apenas que durante uma filmagem naquele ano ele machucou o pescoço mas no dia seguinte foi trabalhar normalmente, mesmo reclamando. O pescoço curou-se sozinho.
 
Keaton assinou um contrato com o estúdio para cristalizar sua imagem como “o homem que não ria”. Nunca riu num filme. Raramente foi visto sorrindo em público.



(Samuel Beckett) 
 
Samuel Beckett era um misantropo permanentemente recluso, com poucos contatos sociais.  Embora seus amigos mais íntimos desmentissem certos mitos em torno dele, sua vida e sua obra são um longo obituário da comunicação humana. Quando tinha trinta e poucos anos, Beckett foi esfaqueado na rua por um desconhecido; durante o inquérito, perguntou ao atacante por quê fizera aquilo, e ele respondeu: “Não sei, senhor... desculpe”.




(Alan Schneider)
 
O absurdo também visitou o diretor Alan Schneider. Em 1984 ele estava em Londres, dirigindo uma peça, e atravessou uma rua com a intenção de postar uma carta para seu amigo Beckett. Esquecido de que a “mão inglesa” é ao contrário da norte-americana, ele olhou para o lado errado e morreu atropelado por uma moto.
 






Um comentário:

Fabinao disse...

Salve, Mestre! Assisti ao filme graças ao seu texto. Parece-me que a recusa de ser visto é expressão de uma pretensa fuga da vergonha. Essa condição inescapável de termos um corpo e de ser um agente que não escapa de olhares que nos avaliam, que nos posicionam, que nos determinam, que nos julgam, que nos limitam, que nos fixam e asfixiam com os seus olhares. A outra recusa do personagem, a de se ver, seria a expressão de uma fuga da culpa. Essa outra condição de termos de fazer escolhas para ser, sem termos o controle de suas consequências. O caráter de ser como uma aposta, um ensaio, uma incerteza e o resultado estar além de nosso controle. Grande abraço!