segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

5013) Andrés Fava, avatar de Cortázar (18.12.2023)



 
Andrés Fava é um dos personagens do romance O Exame Final (“El Examen”) de Julio Cortázar, um curioso livro que Cortázar escreveu em 1950, pouco antes de deixar a Argentina em definitivo para ir morar em Paris. O romance ficou inédito durante a vida do autor, e só teve publicação póstuma (1986). 
 
Para essa publicação, Cortázar deixou uma nota em que dizia: 
 
(...) Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas ruas. 
 
Julio Cortázar, esse simpático e otimista cronópio, a quem foi poupada a visão da Argentina de hoje.
 
Em paralelo a El Examen, surgiu em 1995 o Diário de Andrés Fava (no Brasil: Ed. José Olympio, 1997). A tradução brasileira é de Mario Pontes.
 
O diário roça apenas muito de leve pelos acontecimentos e personagens do romance, e consiste em reflexões de Andrés Fava sobre literatura, (principalmente), política, a vida em geral. São anotações, fragmentos, aforismos curtos, algumas argumentações mais concatenadas que se estendem por duas ou três páginas. 
 
Fava é claramente um avatar do Horácio Oliveira de O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”, 1963) – um homem jovem, preocupado o tempo inteiro com questões literárias e existenciais. Cortázar parecia não ter Oliveira, seu personagem mais famoso, em alta conta: em suas entrevistas com Omar Prego ele descreve o personagem como “um medíocre, sem nenhum talento especial”
 
Em todo caso, esses personagens são sempre parte de uma turma, um grupo de amigos (homens e mulheres) jovens, muito próximos, com variadas opiniões sobre tudo, desde a política até a estética. É sobre estas turmas que Cortázar escreve em Divertimento (1949, publicado em 1986), Rayuela (1963), 62: Modelo para Armar (1968), O Livro de Manuel (1973) – e em El Examen, onde Andrés Fava tem a função de coadjuvante e anotador.


 
Cortázar é um anotador compulsivo de fragmentos e reflexões curtas. O caráter fragmentário de Rayuela se deve em grande parte a esse método criativo por acreção, por acréscimo gradual de reflexões aleatórias:
 
Porque eu tinha, nas gavetas, em cima das mesas e em outros cantos de Paris, montanhas de papeizinhos e cadernetas onde, principalmente nos cafés, tinha ido anotando coisas, impressões. (...) Em Paris avancei, juntando todos aqueles papeizinhos e movido pelo que havia neles, que jamais tinham sido escritos com a intenção de serem um romance. Repito que escrevi esses papeizinhos em diferentes cafés, em épocas diferentes. Entre um papelzinho e outro podem ter-se passado cinco ou seis anos. 
 
(O Fascínio das Palavras, Julio Cortázar e Omar Prego, trad. Eric Nepomuceno, José Olympio, 1991)
 


É idêntico o modo de composição do diário de Andrés Fava, que em termos de enredo é o antecessor mais imediato de Rayuela. Pode-se simplificar a questão dizendo que enquanto o autor dividiu em dois livros autônomos a primeira narrativa (El Examen e o Diário), em Rayuela ele incrustou o “diário de reflexões” no corpo do próprio romance.
 
O diário de Fava traz reflexões sobre literatura:
 
Balzac – Martínes Estrada me faz lembrar em seu curso – trabalhava de catorze a dezoito horas por dia. Feliz dele, em que a suposta infelicidade do escritor-mártir (blablablá) aguentava semelhantes estirões. Tenho certeza absoluta de que ele se sentia felicíssimo escrevendo assim; que essa era a finalidade de sua vida, e que as saídas de casa representavam para ele algo assim como trocar a água do aquário, preparar os olhos e o coração para ir até onde Rastignac o esperava com impaciência. (p. 84)
 
Ter cuidado com o realismo ao escrever. Evitar a fauna do zoológico, convocar unicórnios e tritões, dando-lhes realidade. (p. 63)
 
A poesia quer ser metafísica, e às vezes consegue sê-lo com Lamartine e Valéry. A poesia inglesa é metafísica sem querer ser, surge no plano metafísico, que é seu céu e sua graça. Onde Mallarmé chega com seu último e extenuante bater de asas, Shelley já está naturalmente plantado como uma copa de árvore. (p. 37)
 
É difícil saber em que medida esses comentários são a visão pessoal do escritor Cortázar ou são a visão que ele atribui a seu personagem Andrés Fava. Em todo caso, é divertido vê-lo citar autores policiais em mistura aos clássicos:
 
Vagus quidam, como Petrarca dizia de um discípulo. Leio Suetônio, Tácito, Ellery Queen... (p. 63)
 
O termo em latim refere-se a um estudante que lê o que lhe cai nas mãos, sem se concentrar num só tema. Nas conversas com Omar Prego, o autor argentino deixa suas preferências muito claras:
 
Já a partir dos 16 ou 17 anos eu era um onívoro capaz de devorar os Ensaios de Montaigne, alternados com As aventuras de Buffalo Bill, Sexton Blake, Edgar Wallace, os romances policiais da época (fui um grande leitor de romances policiais) e os Diálogos de Platão. (O Fascínio das Palavras, p. 37)
 
Andrés Fava também não deixa de comentar obras de ficção científica:
 
Lido, já meio fora de hora, The Time Machine. Oh, pequena Weena, animalzinho humano, única coisa viva nessa história insuportável. Escrever musiquinhas, brincadeiras e cantigas de roda para Weena. Sentir que a levamos nos braços quando, sozinhos, atravessamos titubeando um aposento às escuras. (p. 22)
 
O autobiografismo criativo faz com que Cortázar atribua a Andrés Fava uma idéia que ele próprio iria desenvolver mais tarde no famoso conto “Continuidade dos Parques” (em Final do Jogo, 1964). Diz Andrés:
 
Não pude nunca escrever bem a história que mostraria essa imbricação da literatura e do objetivo, e ao mesmo tempo o voluntário afastamento daquela, que no fundo odeia o realismo. A idéia é a de um homem sentado em um sofá verde junto de um janelão dando para um parque, lendo um romance em que uma mulher encontra furtivamente o amante, que concorda quanto à necessidade de assassinar o marido para ficarem livres, e sobe a escada que a conduzirá ao quarto onde o marido, sentado em um sofá verde, ao lado de um janelão, lê um romance... (p. 107-108)
 

Andrés Fava é um avatar de Cortázar numa Buenos Aires sufocante, submersa pelo enorme vagalhão populista do peronismo. El Examen mostra, ao longo de duas noites e um dia, esse grupo de jovens estudantes, intelectuais, cheios de interesses literários e dúvidas existenciais, na Buenos Aires fantasmagórica, invadida por uma neblina escura que se assemelha a uma nuvem-baixa de antimatéria.
 
A “neblina” é o único elemento fantástico nesse romance de caminhadas urbanas sem destino certo, madrugada adentro. Equivale à proibição de ir à popa do navio em Os Prêmios (1960). A neblina escurece as ruas, os prédios, provoca acidentes de trânsito, obriga à interdição de avenidas. Andrés e seus amigos (Juan, Clara, Stella, o Jornalista, o esquisito e ameaçador Abel) andam por essa Buenos Aires ao mesmo tempo gótica e plebéia.
 
Cortázar exilou-se voluntariamente em Paris por não suportar a Argentina peronista, que ele considerava grosseira, cafona, pedante, apegada irracionalmente a conceitos abstratos de pátria, família, nacionalismo. El Examen narra, num capítulo quase surrealista, um enorme ajuntamento de pessoas que fazem fila numa praça para admirar uma relíquia, um osso – no qual muitos críticos viram uma prefiguração das multidões que dois anos depois formariam fila para ver o cadáver de Evita Perón. 
 
 





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